segunda-feira, maio 20, 2019

Flores e folhas


Uma grande e bela novidade: a Livraria da Travessa, essa magnífica realidade livreira do Brasil, abriu uma loja na rua da Escola Politécnica. Já por lá passei, nestas que são as suas primeiras horas. Vou ser cliente, muito atento, esperando nos possam trazer a imensa variedade do muito que se edita no Brasil. Saravá, Travessa!

E, claro, já fui ver os jacarandás que estão lindíssimos pelas ruas de Lisboa. Apanhei-os no fundo do Parque Eduardo VII, em transversais da Alexandre Herculano, na dom Carlos e, daqui a horas, vou ver os das Necessidades, porque a diplomacia também se alimenta de flores.

Com este sol, com este tempo, Lisboa está imbatível!


sábado, maio 18, 2019

Noites da Beira

Casas do Côro, Marialva



Convento do Seixo, Fundão



Pousada Convento de Belmonte


Casa das Muralhas, Covilhã

sexta-feira, maio 17, 2019

Medalhas

Vai por aí uma forte demagogia, velha parceira da ignorância, na questão da condecoração de Joe Berardo. E, no entanto, as coisas são bem simples.

A uma determinada figura, pública ou não, pode ser atribuída uma distinção honorífica, por decisão do chefe de Estado, em função de uma avaliação, feita num determinado momento, de que o seu percurso de vida ou alguma sua ação é relevante e merece ser destacado pela sociedade, no quadro de quantas estão tipificadas no regimento de cada Ordem. O mesmo se aplica às instituições. Deixo de parte as condecorações atribuídas “ex oficio”.

Mas uma coisa me parece óbvia: ninguém pode prever o comportamento futuro de um agraciado, após lhe ter sido atribuída a distinção. E, naturalmente, no momento de atribuí-la, não foram tomados em conta quaisquer atos por ele praticados que, a ser conhecidos, poderiam ter inviabilizado essa decisão.

Por essa razão, um caso como o que agora envolve Jo Berardo tem um modo de tratamento muito transparente, mas, sempre e só, dentro da lei.

Se acaso ele tivesse sido condenado por um crime, com sentença transitada em julgado, a uma pena de certa natureza, ser-lhe-ia retirada a condecoração, numa decisão praticamente automática. Não foi esse (ainda?) o caso, pelo que, neste domínio, o assunto está por ora encerrado.

A única outra possibilidade, prevista na legislação, de Berardo ter a sua comenda em risco prende-se com a circunstância do seu comportamento poder ter infringido alguns dos deveres a que os agraciados estão obrigados. Isso implica a instauração de um processo disciplinar, com a audição do próprio, que pode levar a uma posterior decisão, a ser tomada sob proposta do respetivo Conselho das Ordens. Um processo que pode demorar algum tempo, porque não pode ser de ânimo leve, sem uma forte ponderação, que se retira uma distinção que, num determinado contexto, foi decidida pelo chefe do Estado.

Portugal é um Estado de direito. Nem o Presidente da República, nem o Governo, nem a Assembleia da República, nem sequer os tribunais (e muito menos o “clamor” público) podem retirar uma condecoração atribuída a alguém sem que sejam seguidos todos os passos que acima referi (e nem precisei de consultar os pormenores da lei para escrever o que aqui escrevi). Tudo o resto releva do reino das reações emotivas, por mais compreensíveis que estas possam ser.

Querem saber se fico escandalizado pelo facto de Joe Berardo continuar a ser designado como “comendador”? Fico, claro, mas, indignações à parte, eu quero é que se cumpra escrupulosamente a lei. É no país da estrita legalidade que eu gosto de viver.

quinta-feira, maio 16, 2019

Costa Braz


Nos anos 70, a Líbia de Kaddafi estava longe de ter a imagem negativa que, anos mais tarde, viria a adquirir, em especial pelo envolvimento com ações terroristas. O coronel e os seus colegas, recém-emergidos de um golpe militar que havia deposto a monarquia do rei Idris, eram vistos como um nasserismo modernizante, que pretendia colocar a riqueza do petróleo nas mãos do povo, nesses tempos em que o terceiro-mundismo fazia escola. Se os americanos estavam desagradados com o fim da base militar de Wheelus, que tinham mantido perto de Tripoli, os poderes europeus faziam então crescentes gestos de abertura ao novo regime, rico e fonte de negócios. 

Nas suas deambulações para promover o novo regime democrático português, Mário Soares deslocara-se à Líbia, em 1974, onde se encontrara com Kaddafi. Talvez daí tivesse ficado alguma ligação ao PS português.

Um dia de 1977, o nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros foi alertado para o facto de que uma delegação líbia, chefiada por um ministro, que se deslocava a Lisboa para um congresso do PS, pretendia ser recebida oficialmente. Ao que nos chegou, traziam propostas de cooperação económica interessantes. Nessa altura, tinha a meu cargo o pelouro das relações económicas com os países árabes e fui encarregado de montar toda a operação. 

Parte dela consistia em organizar os contactos para o chefe da delegação. Esta era presidida pelo ”ministro dos Municípios” da Líbia. Por esse tempo, o nosso Ministério da Administração Interna mantinha uma estrutura importante ligada ao nascente poder local. Assim, foi considerado adequado pedir uma audiência para ele ao seu “homólogo” português, o ministro Costa Braz.

A conversa entre os dois, a que assisti, acabaria por ser surreal. O ministro líbio era afinal uma espécie de ministro das Obras Públicas e o poder local, na Líbia, não era mais do que uma ficção. Enquanto Costa Braz falava das virtualidades do novo municipalismo português, gabando-lhe as vantagens e sublinhando o esforço da democracia para diluir o centralismo, o líbio elaborava sobre a necessidade de pôr termo ao poder tradicional das tribos, através de um poder central forte. As obras públicas, ordenadas por Tripoli, funcionavam como fator de legitimação do novo regime. Foi uma verdadeira cacofonia, entre chá e “misunderstandings”.

Acabada a audiência, Costa Braz pediu-me que ficasse para trás e, divertido, perguntou-me o que é que ele estava a fazer “naquele filme”. Eu, embaraçado, expliquei toda a confusão. Ela, contudo, iria continuar: Costa Braz ainda viria ser convidado, mais tarde, para ir à Líbia... 

Verdade seja que, no seu todo, aquela operação luso-líbia iria funcionar às mil maravilhas: uma missão portuguesa (que integrei) deslocou-se à Líbia semanas depois, voltámos para concluir o acordado no ano seguinte e isso seria o início de uma importante presença empresarial de Portugal naquele país, que durou décadas, empregando muita mão-de-obra portuguesa. Isso continuaria até ao fim do regime de Kaddafi, bem como da própria Líbia, enquanto existiu como um estado funcional.

Há dias, por um mero acaso, acabei por ter um contacto indireto com o coronel Costa Braz, um homem de abril que tem sido menos lembrado. Uma figura distinta e impoluta dentre os militares da Revolução, que, não por acaso, viria a ser Provedor de Justiça e Alto-Comissário contra a Corrupção. A sua saúde não andará famosa nos dias de hoje, mas aproveito para daqui lhe enviar um abraço de admiração e respeito. E esta singela recordação.

16 de maio de 2009 - publicado há 10 anos neste blogue


“LE MONDE”

“Ontem, revelei a minha ligação afectiva ao jornal "Le Monde". Mas tenho uma história que prova bem que essa afectividade não é um exclusivo meu.

Estávamos em 1976. Surgira em S. Tomé e Príncipe uma greve dos professores cooperantes portugueses... por cuja pré-selecção eu próprio tinha sido responsável, pouco tempo antes. Aparentemente, os nossos docentes sentiam estar a haver alguma discrepância entre as condições que lhes haviam sido prometidas, antes de partirem de Portugal, e a realidade local com que então se defrontavam. A coisa parecia séria, as aulas estavam suspensas e a "batata quente" foi passada para as minhas mãos, porque eu fora o elo de ligação com as autoridades santomenses. E aí fui eu despachado de Lisboa, viajando através de Paris e de Libreville, no Gabão, para o cumprimento da minha primeira missão externa. Cinco meses depois de entrar para o MNE, imaginem!

Chegado a S. Tomé, o embaixador português, Amândio Pinto, homem simpatiquíssimo, sem dar mostras de qualquer agastamento por terem mandado um "miúdo" para resolver um problema diplomático, perguntou-me logo se eu queria encontrar... o primeiro-ministro, Miguel Trovoada, que era também responsável pela pasta da Cooperação. "O primeiro-ministro!?", inquiriu o recém-admitido adido de embaixada que eu era. "Claro, não há qualquer problema", disse o embaixador. E, com a maior naturalidade, pegou no telefone e ligou ao primeiro-ministro. Para meu espanto, de neófito, meia hora depois, lá estávamos no respectivo gabinete.

Ao cumprimentar o chefe do Governo de S. Tomé, que veio depois a ser presidente da República, dei-me conta de que, sobre a sua secretária, tinha um exemplar do jornal português "O Século". E, pelo título de uma notícia, percebi que aquele jornal teria, pelo menos, duas semanas. Aí, não resisti: "Vejo que está a ler um Século antigo. O senhor primeiro-ministro quer o Monde de ontem?". Trovoada fez um olhar surpreendido: "Mas como é que você tem o Le Monde ontem?". Expliquei-lhe que saíra de Paris na tarde da antevéspera, já com o Monde desse dia (aliás, com a data do dia seguinte) debaixo do braço. Miguel Trovoada, homem que muito frequentara a França, sorriu, encantado com a possibilidade de ter notícias frescas da Europa, e, logo ali, disse que mandaria um carro à nossa Embaixada, para recolher a novidade informativa. O nosso embaixador prontificou-se a ser ele a mandar entregar-lhe o jornal, de imediato.

Para a pequena história, assinale-se que o governo santomense fez algumas concessões que permitiram acomodar as reivindicações dos nossos professores e me deram ensejo de com eles negociar o fim da greve. E que o jovem adido de embaixada que eu era regressou, impante, a Lisboa, com a missão bem cumprida.

Será que o "Le Monde" teve alguma coisa a ver com isso?”

quarta-feira, maio 15, 2019

Agustina


Agustina Bessa Luís, escritora, vive hoje os seus dias afastada do mundo, por uma doença incapacitante e irreversível. Figura maior da cultura portuguesa, dela fica uma obra notável, que lhe concede um lugar cimeiro, de entre os prosadores nacionais contemporâneos. Ao seu conservadorismo político, que a conduziu a atitudes e opções que frequentemente a distinguiram de muitos dos seus pares das letras, somou-se sempre o orgulho numa afirmada condição nortenha, que marca a sua escrita e o imaginário que a suporta. Agustina é também alguém que fugiu à banalidade, ao cultivo de grupos e capelinhas, sempre totalmente senhora de si mesma.

Nunca fui um fã incondicional da sua obra, mas reconheço-lhe uma grandeza rara. É feita de uma escrita rica, muito inteligente e culta, capaz de inesperadas ousadias e, deliberadamente, com um rigor moral que sempre pretendeu sem concessões, mesmo que, pelo meio, emirjam  às vezes algumas contradições, nada impróprio nas pessoas geniais.

Há dias, caiu-me nas mãos uma muito recente biografia de Agustina, escrita por Isabel Rio Novo, intitulada “O Poço e a Estrada”. É uma obra muito interessante, tão completa quanto lhe foi possível fazê-la sem o apoio dos familiares da escritora. Um trabalho pelo qual perpassa uma admiração genuína pela autora, o que não impede um grande rigor de execução e metodologia.

Ao ler o livro, veio-me à memória a única conversa que tive com Agustina, num almoço organizado no Rio de Janeiro, em 2005, depois de, nesse dia, ter sido entregue o prémio Camões a Lygia Fagundes Telles. Fiquei sentado entre as duas, tendo colhido a sensação de que ambas viviam em mundos literários tão distintos que isso afetava o apreço estético entre si. Mas admito que possa ter sido uma perceção errada.

Lembro-me de ter puxado a conversa para o trabalho de complementaridade entre a obra da escritora e o cinema de Manoel de Oliveira. Para minha surpresa, Agustina, que acabava de me conhecer, fez um requisitório de queixas sobre o cineasta, sobre as dificuldades em trabalharem em conjunto, sobre os “abusos” de Oliveira na utilização de alguns dos seus textos. Através de um dos capítulos desta biografia, percebi agora melhor o que Agustina me disse naquela conversa.

Nessa noite, fui jantar com o escritor Helder Macedo, que estava de passagem pelo Rio. No final da noite, ao nos cruzarmos com Agustina no hall do hotel, Helder Macedo cumprimentou-a e, delicado, comentou: “A Agustina é uma pessoa fantástica: consegue não ter inimigos”. A escritora, divertida, retorquiu: “Não tenho, mas faço-os!” E deu uma bela gargalhada.

(Artigo hoje publicado no Jornal de Notícias)

As flores e o Mondrões


Nos meus tempos de Vila Real, algumas ruas da cidade atapetavam-se de flores, creio que pela Páscoa. Não faço ideia se o hábito se mantém. Ao que lembro, duas artérias disputavam então o título das mais bonitas passadeiras de flores: a rua Avelino Patena e a rua Alexandre Herculano. Tenho a "glória", que julgo única, de ter nascido e vivido na primeira e de ter depois passado alguns anos na segunda.

Os desenhos da rua Alexandre Herculano (na imagem) eram da autoria do senhor Lima, proprietário do Café Imperial, na Rua Direita. Com fama de ter “ideias avançadas”, leia-se, de comunista, sempre mal encarado e algo desagradável para com os clientes (chegava a bater-lhes!), só enchia o seu café na noite de Consoada, e apenas por ser o único que abria em toda a cidade. Por ali, tradicionalmente, se alojavam os "hereges" que insistiam em tomar uma bica profissional ou os muito viciados, a caminho da missa do Galo. Fui um bom cliente dessas noites, pela primeira das razões. Os desenhos das passadeiras do Lima, dizia-se, eram dificilmente batíveis. A mão artística da familia Claro, recordo, orientava a execução da passadeira da rua Avelino Patena, a sua grande competidora. 

Nem imaginam com que “raiva” de infância, no dia da procissão, eu assistia à passagem do bispo de Vila Real, dom António Valente da Fonseca, pisando aquela “obra de arte”, que tanto trabalho tinha dado a fazer. Não lhe perdoava!

Para a composição das passadeiras, ia-se, na semana anterior, pelos montes, em busca de flores. Bem industriado pelo senhor Lima, um grupo de senhoras avançava de carro para zonas rurais onde se sabia ser possível colher as cores das pétalas desejadas pelo "designer". 

Quem então as conduzia era o Mondrões, um motorista reformado cuja contribuição para o empreendimento era manobrar um grande automóvel emprestado à organização. Era um homem baixo, encolhido sobre si mesmo, com um boné castanho. Vivia num baixo da nossa rua, entre o Benites da sapataria e o Marques do liceu.

O Mondrões era homem de poucas falas, resmungão, pouco aberto a aceitar comentários sobre o modo como dirigia a viatura. Durante as noites em que, no "Ninho" (uma instituição de educação de crianças pobres, também lá na nossa rua, dirigida pela “Lurdinhas do Ninho”) se fazia a separação das flores, as senhoras relatavam então, entre gargalhadas, episódios proporcionados pela condução do Mondrões, durante essas expedições rurais. Ao que parece, o modo peculiar de conduzir do Mondrões proporcionava momentos de incómoda emoção, fruto do estado de quase permanente embriaguês em que o homem andava. Mas a história foi-lhe justa: não há nota de qualquer acidente ocorrido, pelo menos nessas jornadas floridas.

Quase em frente ao Ninho ficava o Morrinha, um tasco que recordo dirigido por um cavalheiro que mancava muito de um pé, tutelado por uma autoritária mãe (o que a gente guarda, do passado!). O Morrinha foi talvez o último lugar de Vila Real onde ainda se podiam comprar rebuçados de “meio tostão”. (Em teoria, e pela taxa oficial de conversão euro-escudo, um euro daria para comprar 4.008,964 rebuçados de meio tostão). 

Um dia, no Morrinha, terá sido proposto ao Mondrões que experimentasse um vinho branco cuja pipa acabara de chegar do produtor. Pedia-se a sua abalizada opinião sobre a nova “pinga”. O homem, porém, tinha acabado de emborcar uma dose idêntica de vinho tinto, pelo que, no seu estómago, terá sentido um ligeiro incómodo, como resultado da mistura dos dois líquidos. Acariciando o seu ventre proeminente, o motorista profissional teve então um "diálogo" com os dois vinhos, que ficou nos anais da vizinhança: "Ou vos aguentais os dois aí dentro ou vamos os três para o chão!"

Uma aliança etílica ligeiramente menos bem “réussie”, no meu almoço de hoje, e os campos floridos à beira das estradas da Cova da Beira levaram-me assim ao Mondrões, ao Morrinha, aos tapetes de flores, à Lurdinhas do Ninho, ao Lima do Imperial e até ao bispo que lhe pisava as obras de arte. É que isto é como as cerejas - umas levam às outras -, as quais, agora, por aqui, já se comem bem boas!

15 de maio de 2009 - publicado há 10 anos, neste blogue


ANGOLA

“O embaixador do Congo em Paris, Henri Lopes, contou-me, há dias, uma história curiosa, passada em 1974.

Na capital do Congo, Brazaville, estava situada aquela que era a principal representação externa do MPLA no exterior. Nesse tempo, o movimento defrontava-se com uma cisão chamada Revolta Activa, então chefiada por Mário Pinto de Andrade. A Organização de Unidade Africana (OUA) procurava encontrar uma solução para aquela fractura política e Henri Lopes, que era então primeiro-ministro do Congo, havia sido encarregado de tentar uma reconciliação. Em algumas conversas, Neto dera sinais de poder aceder a essa ideia, pelo que foi marcada uma reunião no gabinete do primeiro-ministro congolês.

Assim, numa manhã, Neto e Lopes falavam do tema, com o presidente do MPLA a dar indicações claras de que, nos termos de algumas condições, um compromisso era possível. Num determinado momento, porém, chega a notícia de que uma revolta tinha tido lugar em Portugal. Era dia 25 de Abril.

Ao espanto de Agostinho Neto sucedeu-se, de imediato, a sua decisão de pôr fim a qualquer mediação ou entendimento. O MPLA e a Revolta Activa acabaram por agravar as suas tensões, que chegou a momentos de alguma violência, mesmo em Brazaville. Os membros da Revolta Activa não viriam a ter qualquer papel no início da independência angolana.

É curioso como, aqui por Paris, se encontram histórias esparsas que se ligam à nossa aventura africana.”

terça-feira, maio 14, 2019

O tempo das cerejas


“Já estamos no tempo das cerejas, sabia?”, disse-me hoje a empregada do hotel, algures na Cova da Beira, terra afamada das melhores cerejas. E acrescentou: “Na minha terra, em Alpedrinha, elas amaduram mais cedo”. Gostei do orgulhoso “amaduram”, em lugar do “amadurecem”. 

Não lhe perguntei se conhecia a canção de Montand e hino da Comuna de Paris, “Le temps des cerises”, porque, nos tempos que correm, já ninguém conhece o que eu conheço e, a cada dia, dou-me conta de que cada vez conheço menos coisas que quase todos conhecem. E também não ousei recordar-lhe que, como lá se diz no poema, “é bem curto o tempo das cerejas”. 

Ontem, no Souto da Casa, ofereceram-me cerejas. Ouvi então a voz de Montand: “Quand vous en serez au temps des cerises / Si vous avez peur des chagrins d'amour / Évitez les belles!”. Sábio conselho, difícil de seguir. Diz quem sabe dessas coisas.

Serra da Estrela



O Carvalho da drogaria


No meu tempo, em Vila Real, as duas principais drogarias da cidade eram propriedade de dois irmãos, de apelido Carvalho. As voltas da vida tinham-nos afastado. Os feitios também. Um era uma figura de perfil discreto, que recordo de chapéu na cabeça e um porte sereno: era “o senhor Carvalho da drogaria”. O outro era uma personalidade que tinha tudo de oposto: bigode ao vento, brincalhão, “blagueur”, de verbo e riso fáceis: era “o Carvalho da drogaria”. A cidade era cruel. Mas não havia que enganar!

Eu devia ter aí uns 13 ou 14 anos quando comecei a “parar” na loja do “Carvalho da drogaria”. Era na rampa de S. Pedro, perto de minha casa. Pelas tardes de férias, com a cidade a ferver de calor e tédio, enquanto ele “aviava” quem por ali aparecesse, eu ficava, da parte de fora do balcão, à conversa, sei lá bem sobre quê. O Carvalho - para mim, o “senhor Carvalho”, dando-me ele a “importância” de sempre me tratar por “senhor Costa” - era levado da breca com as criadas (era assim que se dizia, claro) que as patroas mandavam por lá buscar água oxigenada ou bicarbonato de sódio ou pedra-pomes. Cheio de rapapés, elogiava-lhes o penteado ou a blusa sob o avental branco ou o que lhe viesse à gana. Às mais inocentes, sob um pretexto qualquer, convencia-as a irem “lá dentro”, à zona mais íntima da loja, onde era certo e sabido que lhes mostrava umas certas revistas trazidas por amigos de França. Era então ouvi-las: “Ó senhor Carvalho! Que indecente!” E de lá saiam, coradas, cheias de risadinhas nervosas, com o Carvalho, lúbrico, a lançar-lhes: “Volte sempre, menina Odete! Ainda não viu nada!”. E acrescentava, para mim: “Jeitosa, esta pequena! Não acha, senhor Costa?”. Eu devia achar, ao que me lembro desses tempos de inquietas descobertas.

O Carvalho mudou um dia a sua drogaria para a Rua Direita, então a artéria comercial mais importante da cidade. Eu já não vivia em Vila Real. Por muito tempo, aquele continuou a ser um ponto de passagem obrigatório nas minhas idas pela cidade. Como eu o tinha “apanhado”, um dia, na Régua, num “tête-à-tête” romântico num café, provocava-o: “Tem ido muito à Régua, senhor Carvalho?”. Ele soltava uma gargalhada, comprometido, mas sempre livre, na vida de solteirão que levava. “O senhor Costa sabe-a toda, ó se sabe!”, respondia-me ele. 

E assim nos fomos dando, até que um dia notei que a drogaria tinha fechado. Informei-me e soube que o Carvalho tinha zarpado para Barcelos, sua terra de origem, reformando-se das drogas. Num telejornal dos “anos da brasa”, vi então, uma noite, o meu amigo Carvalho como porta-voz de uma manifestação sei lá bem sobre quê. Já deve ter morrido há muito.

Há dias, dei comigo a dizer, na minha casa, em Lisboa: “Acho que devíamos mudar o Carvalho da drogaria de parede”. Ao leitor, a frase pode soar a estranha. Em minha casa, não. O “Carvalho da drogaria” é o nome simplificado que o óleo de Gracinda Candeias (na imagem) ganhou depois do meu pai, um dia, entrando na sala de jantar da casa onde eu vivia, em Londres, ter dito: “Este vosso quadro faz-me sempre lembrar o Carvalho da drogaria”. Parece que era o bigode do Carvalho que ele identificava naquela pintura. E assim ficou, para sempre. Mas ainda não houve consenso para a saída do “Carvalho da drogaria” daquela parede.

14 de maio de 2009 - publicado há 10 anos, neste blogue


HOLOCAUSTO

“Hoje de manhã, numa conferência na Fundação Calouste Gulbenkian, aqui em Paris, Eduardo Lourenço dizia que, se pensarmos bem, a escravatura pode ser considerado o primeiro holocausto. Nunca me tinha ocorrido, mas, como quase sempre, ele tem razão.”

segunda-feira, maio 13, 2019

Pérolas da eloquência


Amanhã vou a Manteigas. Aproveitarei para recordar essa figura estupenda da retórica lusa que foi Américo Tomás, que dela dizia: “É uma terra bem interessante, porque estando numa cova está a mais de 700 metros de altitude...”

domingo, maio 12, 2019

Contrastes



Viana, no dia que agora termina, estava soberba. Um sol magnífico pairou sobre a cidade. Cheira já a verão.

Numa conversa, a anteceder o trabalho de um “retiro” em que estive por ali, sobre questões europeias e internacionais, veio à baila a outra Viana, a Viana invernosa, com chuva e vento, uma cidade muito diferente. Vir por ali em novembro ou março é ter a experiência de uma outra cidade.

Alguém lembrou então que um ambiente desses é, afinal, o ideal para se escrever um livro, ao calor da lareira, saindo pouco de casa. Logo outra pessoa comentou que, para alguns, um tempo pouco acolhedor é, ao contrário, deprimente, desmotivador, indutor de tristeza. Uma leitura contrastante.

Lembrei-me então de uma história.

"O senhor embaixador não acha este clima deprimente?: cinzento, pesado e que obriga a ficar em casa a maior parte do tempo. As pessoas aqui devem sofrer muito com isto, não?" O secretário de Estado português, de visita a uma capital nórdica, fazia este comentário, na tarde escura de um mês outonal, em frente do nosso embaixador, na respectiva residência.

"Nem imagina!, senhor secretário de Estado", responde o diplomata. "Estes climas nórdicos, para além de serem muito incómodos, criam uma pressão psicológica terrível sobre as pessoas, levam a alguns desregramentos, como o alcoolismo, e chegam a originar doenças do foro psiquiátrico. Há por aqui imensos suicídios!" E o embaixador continua, por vários minutos, a discorrer sobre as óbvias desvantagens das longas noites, da ausência de sol e dos respectivos impactos negativos.

O secretário de Estado deve ter regressado a Lisboa com a plena confirmação daquilo que sempre suspeitara, sobre os malefícios do tempo na Escandinávia.

Algumas semanas depois, o nosso embaixador recebe um almirante em fim de carreira, homem bonacheirão e "bon vivant". O clima local continuava o mesmo, claro.

"Sabe, senhor Embaixador? Eu acho que é muito confortável sentir este contraste entre o tempo frio que faz lá fora e o ambiente simpático dentro das casas, nestes países nórdicos. De certo modo, este clima ajuda-nos muito à concentração, a apreciar os bons momentos da leitura de um livro, de uma conversa à lareira, com um copo ao lado. Eu devo confessar-lhe que sempre achei muito estimulante, intelectualmente, este tipo de tempo". E o almirante tira uma baforada do Cohiba e bebe mais um golo do "Royal Salute", que o embaixador guardava para os grandes visitantes.

O anfitrião sorri e anui, de imediato: "Tem o senhor almirante toda a razão! Isto de se estar em casa - e as casas aqui são quase sempre muito cómodas, como sabe -, com a neve e o frio como pano de fundo, é um estímulo fantástico para o bem-estar, para a relação dentro das famílias, para criar um ambiente muito saudável. Estas sociedades nórdicas não são ricas por acaso: é porque as pessoas se sentem bem e, naturalmente, isso estimula o trabalho e a eficácia. O clima é uma das chaves da felicidade nestes países, pode crer!".

Woody Allen criou a figura de Zelig, a personagem que mimetizava aqueles de quem ficava próximo. Este embaixador não era um homem hipócrita, nem sequer vivia na busca obsessiva de ser bem visto pelos seus visitantes, colando-se-lhes às opiniões. Pela minha experiência, tinha apenas uma despojada ausência de opinião própria, vivendo na eterna hesitação entre inteligentes argumentos contraditórios, relativamente aos quais não se conseguia decidir, mas que era capaz de aprofundar genuinamente, sempre com o entusiasmo das grandes convicções.

Belmonte


Guarda


Trancoso


Aguiar da Beira


Granja



Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...