sábado, novembro 05, 2016

Alarme


Tocou um alarme durante a nossa reunião, aqui na Estónia. Por um minuto, ninguém se mexeu: todos temos a tendência de pensar, pela prática, que, quando um alarme toca, "nunca é nada!". Passado esse minuto, um certo desconforto começou a atravessar a sala. Duas ou três pessoas levantaram-se e foram-se encaminhando para a porta. 

Um português, irónico: "Se calhar, chegaram russos. Se assim for, tanto faz ficarmos na sala ou não..." Não eram os russos. Não era incêndio. Afinal não era "nada"! Como "sempre"...

sexta-feira, novembro 04, 2016

Em português


Já se percebeu: o caso da Guiné Equatorial não mais vai perder o seu lugar cativo na atenção mediática sobre a CPLP. De agora em diante, por mil coisas da maior utilidade que a organização venha a conseguir fazer, nada distrairá os nossos plumitivos da coreografia do senhor Obiang, sobre quem o cumprimentou ou não, e, claro, sobre a existência oficial da pena de morte naquele país africano. Questão sobre a qual, aliás, o MNE Santos Silva disse o que havia que ser dito.

Sem com isso pretender absolver o sinistro regime político que vigora naquele país -  esse sim, um imenso e escandaloso problema – talvez um destes dias valesse a pena esses jornalistas se debruçarem sobre as largas dezenas de Estados em que essa prática se mantém, entre os quais figuram alguns com os quais mantemos simpáticas relações: Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul, China, etc. Não me consta, aliás, que a subsistência da pena de morte nesses países figure nas agendas das nossas conversas bilaterais com eles.

Para além desse «fait-divers», a recente Cimeira da CPLP trouxe algo de novo? 

Raramente me permito um grande otimismo no tocante àquela organização, mas devo dizer que, em geral, gostei do modo como o Brasil «agarrou» a sua presidência rotativa. Várias vezes tenho expressado a ideia de que o futuro da CPLP dependerá sempre muito do modo como o seu país membro mais relevante à escala global souber usar a organização em benefício da sua própria estratégia. No passado, o Brasil não parecia ter interesse em explorar as potencialidades deste grupo político-linguístico. Mas talvez agora, num momento em que o país caiu «na real» (como por lá se diz), em que o seu glamour como emergente empalideceu um pouco, em que a sua excelente diplomacia procura fazer esquecer tempos de conflitualidade interna fragilizante, em que a sua economia passa por um tempo de lenta recuperação – talvez agora a CPLP lhe possa servir para alguma coisa. E nisso fico contente pela memória de José Aparecido de Oliveira.

Se houve facto interessante e inédito nesta «cúpula» ou «cimeira», como as diferentes versões da nossa língua impõem, foi a presença muito oportuna de um convidado que se chama António Guterres. Com ele em Brasília, talvez o país anfitrião do encontro tivesse constatado que, afinal, o «primo pobre» europeu pode ainda produzir alguns fatores de relevo na cena internacional, que não estão distantes dos interesses do próprio Brasil, como António Costa também teve o ensejo de sublinhar no tocante a um possível acordo UE-Mercosul. 

Em português, há muitas coisas que podem ser feitas em conjunto. Desde que haja vontade política, lealdade e uma linha de ação mínima em que todos nos encontremos. Mesmo tendo à ilharga o senhor Obiang, o qual, repescando O’Neill, acaba por ser um pouco o «remorso de todos nós».

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, novembro 03, 2016

Talin não tem S


Quando ontem disse a um amigo que hoje ia à Estónia, ele advertiu-me: "Não ponhas um S antes do nome da capital. Eles não iriam gostar..."

Nightmare


Foi uma tradição de décadas: numa noite em cada ano, no Bar Procópio, o Nuno Brederode Santos passava para o lado de dentro do bar e elaborava um famoso cocktail a que dava o nome de "Nightmare" (pesadelo). O segredo da mistura mantinha o mesmo grau de secretismo que o druida Panoramix guardava para a sua poção mágica, na aldeia de Asterix. Os "happy few" a quem a mistela era servida dividiram-se sempre quanto ao nível do paladar final do combinado. Havia mesmo quem dissesse que, a cada ano, o Nuno tinha uma "fórmula" diferente, fruto dos humores da conjuntura e talvez dos níveis dos alcoóis que a Alice destinava às prateleiras.

O Nuno deixou de ir ao Procópio e eu também tenho sido muito relapso no meu pousio das almofadas da "mesa dois". O "Nightmare" já não sai há uns bons anos e, que se saiba, o Nuno não passou o segredo a ninguém - se é que segredo havia...

Agora, com a hipótese de uma vitória de Trump - não quero acreditar, mas a possibilidade existe - fica criado um cenário de pesadelo, de "nightmare". Se esse infausto acontecimento ocorrer, porei o meu fígado de castigo por umas horas e pedirei à Alice para me deixar fazer um "Nightmare" à minha maneira. Chamar-lhe-ei "Trump". Terá, pela certa, bourbon e vodka. E será "explosivo", garanto.

quarta-feira, novembro 02, 2016

Iskra


À margem de um encontro internacional, fui um dia apresentado à mulher do então ministro sueco do Comércio, Leif Pagrotsky. Sabendo-me português, dirigiu-se a mim num espanhol com ressonância latino-americana. Tal como o seu marido, era muito pequena de estatura e também muito morena, num contraste evidente com o estereótipo da sueca. Explicou-me ser de origem uruguaia e chamar-se Iskra. Não consegui conter a curiosidade e perguntei-lhe, um tanto a medo: "O seu nome tem alguma coisa a ver com um jornal?...". Ela sorriu, surpreendida: "Conhece o Iskra?" Confirmei que, como alguém com passado marxista, não me era estanho o nome do "Iskra", um jornal editado por Lenine. A simpática uruguaia-sueca, arquiteta de profissão, revelou-me que a sua mãe, comunista uruguaia e devota de Stalin, decidira dar-lhe esse incomum nome.

O jornal Iskra, publicado na clandestinidade, teve uma existência breve, nos primeiros anos do século XX. A palavra "iskra", em russo, significa "centelha" ou "faúlha" e o lema do jornal era "da centelha surgirá a chama", simbolizando a propagação da ideia revolucionária.

Lembrei-me do Iskra há horas, na RTP, antes de entrar no ar para uma conversa com Ana Lourenço, ao ver imagens da agitação que abala Marrocos.

Há seis anos, um vendedor de fruta tunisino Mohamed Bouazizi imolou-se em protesto. Começou aí a "primavera árabe" que levou à deposição do ditador Ben Ali e ao sucesso da democracia no país. Ele foi a "iskra" que espoletou todo o movimento.

Agora, num cenário político diverso, mas nem por isso sem algumas similaridades óbvias, um vendedor de peixe marroquino está a suscitar ondas de protesto no nosso segundo vizinho mais próximo (embora, em linha direta, a distância de Rabat a Lisboa seja menor do que a que separa as capitais portuguesa e espanhola). 

Poderá este incidente ser a "iskra" para um movimento de natureza idêntica? E há a certeza de que o resultado de uma mudança política em Marrocos se fará no sentido do reforço da experiência democrática que por lá hoje vigora? Quando se lança o fogo numa pradaria, nunca se sabe para que lado acabará por soprar o vento.

terça-feira, novembro 01, 2016

Os nossos


O que sobrou em nós dos nossos mortos? Nestes dias em que, por um ritual também deles herdado, os evocamos intimamente, talvez valha a pena interrogarmo-nos sobre se soubemos construir, em nós mesmos, alguma coisa com aquilo que eles nos deixaram, à hora da morte, como tributo daquela que foi sua vida. É que se "isto" tem algum sentido, esse sentido só pode ser a consagração dos valores que deveriam ter transitado para nós. Se isso não aconteceu, se não fomos fiéis a essa herança (e todos encontraremos alibis conjunturais para o não termos sido), então talvez alguma da saudade que sentimos seja apenas um mal-estar íntimo por esses mortos estarem, afinal, já muito distantes daquilo que hoje, em realidade, somos.

Hipocrisia

Nas hostes da antiga maioria, levantou-se um escarcéu sobre a projetada redução das verbas atribuídas ao ministério da Educação, no orçamento do próximo ano.

É minha impressão ou trata-se da mesma oposição que acha que é importante reduzir os gastos públicos, que o controlo do défice deve fazer-se, não pelo aumento de impostos, mas pela contenção da despesa, pela redução do número de funcionários, por ataque às "gorduras" do Estado? E agora condena quem está a fazê-lo?

Se o ministério da Educação tivesse tido um programa orçamental do qual viesse a originar um impacto negativo no cumprimento das metas do défice e um encargo maior na dívida, aposto que viria logo uma acusação de "despesismo", de "irresponsabilidade", de estar a "fazer o frete" ao sindicato do Mário Nogueira e coisas assim.

segunda-feira, outubro 31, 2016

O professor Coutinho

Anda por aí a polémica sobre os "doutores" que, afinal, não o são, que inventaram títulos, talvez para adocicarem o "Vai um cafezinho, shotôr?", lá pelos ministérios.

Há muitos anos, na Pompeia, em Vila Real, no tempo em que não havia telemóveis e, nos cafés, os clientes eram chamados em voz alta, quando surgia uma chamada telefónica para eles, havia um "caramelo" com ar pomposo, alto e de poupa, que era useiro e vezeiro na utilização desse tipo de serviço. Andava na Escola do Magistério Primário, mas, ao que se sabia, estava ainda bem longe de ter concluído o curso que lhe daria direito ao título de professor. Não obstante, era frequente ouvir-se "Chamam ao telefone o professor Coutinho". O nosso homem, estrategicamente colocado do outro lado do café, levantava-se pausadamente e, solene, atravessava a sala em direção ao aparelho preto, pousado sobre a lista telefónica, que o meu amigo Neves facultava ao uso dos clientes. E por ali ficava, uns minutos, enrolado sobre si próprio, emitindo sons ininteligíveis.

A frequência regular das chamadas, naquela hora de enchente depois de almoço, levou à desconfiança: aquilo era "montado" para consagrar, por usucapião auditivo, o título antecipado do grau académico do Coutinho.

Um dia, depois de uma taina no Choco, o Pinto, colega do Coutinho no "Magistério" (os homens, por lá, contavam-se pelos dedos de menos de duas mãos), descaiu-se e confirmou que sabia do caráter deliberado das chamadas para homem,  para "armar", como então se dizia. Eram feitas à sucapa por uma criada da casa onde o Coutinho se hospedava, perto da Cardoa, com a qual ele mantinha uma "amitié particulière". A partir desse dia, a história correu em mesas da Pompeia e, sempre que o Coutinho era chamado ao telefone, havia quem organizasse uma caçoada algo barulhenta. Mas a coincidência desse ruído com o "perpwalk" pós-pandrial do Coutinho parece ter tido sucesso: as chamadas desapareceram!

Que será feito do professor Coutinho?

UP


A revista UP, que a TAP oferece aos seus viajantes, convida todos os meses uma personalidade diferente a escrever o seu editorial. A ideia é elaborar uma curta mensagem personalizada, em português e inglês, que estimule quem nos visita a conhecer algo mais sobre o país.

Tive o prazer de ser convidado a ser o "anfitrião" da UP do mês de novembro, que estará em distribuição a partir de amanhã. Tenho assim o privilégio de juntar-me a figuras como Miguel Sousa Tavares, Gonçalo M. Tavares, Clara Ferreira Alves, Lídia Jorge, João Lobo Antunes e muitos outros.

No meu texto, optei por estimular os visitantes para olharem para Portugal para além dos "clichés" dos guias turísticos e, muito em particular, a chamar a atenção para Trás-os-Montes, uma zona do país que a maioria estrangeiros, mas também muitos portugueses, ainda desconhecem - e não sabem o que perdem!

Mas é melhor lerem:

Uma vida passada em grande parte fora de Portugal fez de mim um quase obsessivo turista no meu próprio país. Por décadas, parte importante das minhas férias era passada a recuperar o que perdia no resto do ano. E essa viagem nunca mais parou.

Nessas visitas, fui criando uma espécie de mapa, humano e cultural, do meu Portugal afetivo. Frequentemente, dei por mim a testar, junto de amigos e conhecidos estrangeiros que nos visitavam, esse meu íntimo guia sentimental. Para tal, era importante transmitir-lhes alguns instrumentos para a compreensão do país. E nada melhor, para isso, do que revelar o modo como eu próprio me comportava no meu eterno regresso a Portugal.

São coisas bastante simples, como o atentar no movimento num largo principal de uma aldeia recôndita, na alegria de uma festa popular numa vilória, no silêncio de uma paisagem, de um miradouro improvisado. Mas, igualmente, o gosto de nos sentarmos no «café central» das cidades de província, olhando a coreografia social, o prazer em descobrir restaurantes e tascas em locais recônditos, onde nos servem vinhos que não conhecemos, doces que por ali se conservam por tradição. E também aquilo que se aprende ao entrar em pequenas lojas, fora dos grandes circuitos de comércio, onde se encontram coisas insólitas, entrecruzadas com conversas e amena simpatia.

É que, longe dos locais turísticos que os guias apontam ao visitante minucioso, existe um Portugal sereno que, sem se impor, se oferece discretamente a quem o visita. E em que vale a pena um visitante perder-se.

Desse Portugal, que não sendo imenso é, ainda assim, muito diverso, o que é que eu selecionaria para apontar, como um destino seguro, a um visitante estrangeiro disposto seguir o meu conselho? Um país feito de dureza de vida, de beleza única, de gentes fortes e de caráter: Trás-os-Montes.

Trás-os-Montes é a natureza mais bravia que Portugal tem para oferecer. Situado, como o nome indica, por detrás das grandes serras nortenhas, é um mundo de paisagens deslumbrantes, de uma culinária preciosa, de cidades cheias de história. Miguel Torga, o poeta que por lá nasceu, chamou-lhe, imodestamente, “o reino maravilhoso”. E talvez não tenha exagerado. Para lhe dar razão, basta atentar no rio Douro, que desenha a fronteira sul da região, obra ímpar da natureza e do homem, no colorido das vinhas que são a sua riqueza, na majestade dos seus vales profundos.

Vá a Trás-os-Montes! Arrisque perder-se naquilo que Portugal tem de mais autêntico, genuíno e belo. E, depois, diga-me se eu não estava certo.

domingo, outubro 30, 2016

Liberdade


Há dias, a propósito de um comentário feito ao ressurgimento de um comentador azedo, e de outros que o emulam, fui crismado de "comuna" para cima, nuns blogues de seita.

Agora, porque disse o que pensava sobre as "liberdades" em Cuba, caiu sobre mim, em páginas do Facebook, um ror de insultos, em que o de "reacionário" foi o mais benévolo.

Pensar pela própria cabeça tem um preço, mas é muito agradável, podem crer.

Bernardino Gomes



Era um homem cordial, agradável, com sentido de humor e de oportunidade, na inteligência culta das intervenções públicas que fazia. Alguém que olhou a relação transatlântica como o vetor central e inescapável da equação geopolítica do país. Civicamente, soube sempre estar no lugar certo, olhando a vida coletiva de uma forma solidária, com opções há muito assumidas e a que se mantinha coerentemente fiel.

Morreu hoje Bernardino Gomes.

A hora dos mencheviques

Mudou hoje a hora. Nem sempre tivemos este regime horário. Por exemplo, entre 1992 e 1996, a nossa hora acompanhava a da Europa central. Foi o primeiro governo de António Guterres que decidiu reintroduzir o modelo da hora atual. A decisão não foi totalmente pacífica, no Conselho de Ministros em que foi tomada. Eu estava casualmente por lá, substituindo Jaime Gama, e manifestei-me contra, com base num conjunto de argumentos que não vêm para o caso. A defesa da medida que acabaria por ser adotada foi feita, com brilhantismo, por Eduardo Marçal Grilo, ministro da Educação e do Ensino Superior. Guterres era um grande adepto da alteração mas, nem por isso, havia conseguido convencer pessoas que lhe eram muito próximas, como foi o caso de António Vitorino e Joaquim Pina Moura. Fomos, recordo, as três vozes postas em minoria naquele Conselho de Ministros. À saída, Pina Moura, com o seu imenso humor, de que sinto muita falta, disse-me: "Por uma vez, fazemos parte dos mencheviques".

sábado, outubro 29, 2016

Marta Neves

Ontem, quando tratava de um assunto num balcão de um hospital de Lisboa, olhei para o nome que a funcionária trazia ao peito: Marta Neves. Um nome comum, o daquela jovem mulher, bonita e elegante. Mas que me dizia alguma coisa.

Por um instante, fui tentado a perguntar-lhe se era ela quem tantas cartas me havia mandado, durante anos, com alguma regularidade. Ia queixar-me, finalmente, do tom impessoal daquelas missivas manuscritas a tinta azul, da sua falta de um mínimo de intimidade, como se a mesma carta pudesse ser dirigida a mim como a qualquer outra pessoa. E dizer-lhe que tinha uma bela letra, fácil de ler, reveladora de serenidade.

Mas não, a Marta Neves que estava diante de mim não tinha idade para me ter escrito cartas que, com toda a certeza, eu tinha recebido ainda antes dela nascer.

Eram sempre cartas simpáticas, otimistas. As cartas da Marta Neves traziam sempre boas notícias e vinham em envelopes cheios de papelada, às vezes até traziam uma prometedoras "chaves", mas em plástico...

Marta Neves era o nome ficcionado que assinava a correspondência que, por muitos anos, as Seleções do Reader's Digest nos mandava, a anunciar os livros e discos que editavam. Vim a saber um dia que a "Marta Neves" era, na realidade, a escritora Rita Ferro.

Olhei para a sorridente e eficaz empregada do hospital, ponderei as pessoas na fila que estavam "desertas" para que eu lhes desse lugar no balcão e decidi não lhe falar nessa outra Marta Neves. Ia ser complicado "to make a long story short" e, no final, talvez ela não achasse nenhuma graça. E quem estava à espera, seguramente, ainda acharia bem menos. Como ela não deve ler blogues, que é mais vício de rebujentos, fica por aqui a minha história epistolográfica com a Marta.

Bica


Recomendo vivamente a nova revista "Bica", que pode ser consultada livremente aqui.

São 212 páginas onde se fala muito de Lisboa (meto por lá a minha "colherada", nas páginas 25 e 26), que esta publicação trimestral pretende tratar com muita atenção e cuidado, e de que apresenta um guia precioso. Ah! E também Viseu, com um dossiê especial.

sexta-feira, outubro 28, 2016

Amizade


Os verdadeiros amigos não são para as ocasiões. São para sempre. Aprendi isso numa existência aos solvancos geográficos, pelas terras em que vivi e onde os fui criando. Parte deles foi deixada ficar para trás no tempo, porque não transitaram para o quotidiano seguinte, às vezes por descuido, outras porque nós próprios mudamos e não sabemos sobreviver, mutuamente, à usura da ausência. Uma parte desses amigos, contudo, foi permanecendo, nessa decantação progressiva do tempo. E a esses foram-se somando novos, que ficaram tanto ou mais amigos do que aqueles que vinham do passado. No seu conjunto, os meus amigos são a riqueza que guardo a meu crédito, fazem parte da minha conta a prazo da vida.

Lembrei-me disto há uma semana, quando me foi dado partilhar a felicidade de dois amigos. É que a alegria dos nossos amigos constitui uma parte da nossa própria alegria. E, se não estou enganado, é a isso que se chama, muito simplesmente, essa coisa bonita e insubstituível que é a amizade.

(Dedico este post à Rusa e ao Zé Luis)

28°


Gosto destes dias de fim de junho. Maio foi muito bom, mas o Verão que aí vem já promete. Ontem, jantei numa esplanada. Hoje, estou a pensar passear ao fim da tarde no jardim da Estrela. Que belo tempo! 

Estranho, contudo, esta ideia de andarem a vender, por estes dias, castanhas assadas. Não é coisa que se coma num tempo tão quente! Antes, só se viam à venda no Outono. Agora é isto! O que é que pensarão os turistas de calções que enxameiam Lisboa?

Marcelo e Fidel


Entendo o prazer que Marcelo Rebelo de Sousa deve ter tido ao encontrar-se com Fidel de Castro, durante a sua visita a Cuba. Ele pertence a uma geração para quem as referências da História são importantes, independentemente da lateralização ideológica das figuras que a encarnam. Por isso, poder falar, ainda que no seu ocaso, com um dos protagonistas do mundo contemporâneo, deve ter sido uma experiência marcante. De certo modo, invejo-lhe esse momento, não obstante Fidel não ter nunca feito parte das minhas mitologias.

Castro e a revolução cubana foram um expoente para uma certa geração radicalizada que antecedeu a minha – que é, aliás, a mesma de Marcelo. A heroicidade da luta contra o agressor “yankee”, que tentava limitar o grito de liberdade saído da Sierra Maestra e que se empenhava em suportar sinistros déspotas, por toda essa América Latina sujeita à tutela cínica da Doutrina Monroe, foi uma bandeira que excitou as várias esquerdas mundiais. E também por cá.

Cuba, depois, foi o que foi. De um farol de liberdade, que Guevara ainda tentou exportar, transformou-se numa ditadura triste, em grande parte prolongada graças ao alibi dado pelo bloqueio americano, o qual, aos olhos benevolentes de alguns, lhe absolve todos os pecados.

Raramente tive uma experiência tão desagradável, como turista, como quando há uma década, sem guias nem mentores, passeei pela pobreza das ruas de Havana, então uma cidade de gente sem esperança, a que nem a graça que alguns acham à decadência dava alguma franca alegria.

Fidel libertou os cubanos do bordel dos Estados Unidos em que Baptista convertera o país, mas prendeu-os num pesadelo de vida que condenou gerações à penúria. E não me venham com a conversa do “orgulho” nacional, como se isso pudesse alguma vez substituir a possibilidade de dizer, alto-e-bom-som, podendo também escrevê-lo fora do “Granma”, o que se pensa, bem ou mal, dos dirigentes, que se querem eleitos e contrastantes.

A vida ensinou-me a deixar de ser complacente com a crueldade dos sonhos radicais, do “socialismo real” do Leste europeu a todos os modelos que relativizam o interesse em preservar as liberdades “burguesas”, reféns de amanhãs que o tempo veio o provar ser, infelizmente, muito similares o outros “ontens” que quero esquecer.

Para mim, guardarei para sempre o olhar triste daquela pintora cubana, uma mulher jovem, num subúrbio de Havana, que me contava ter vendido quadros seus em exposições nos Estados Unidos, e a quem, inadvertidamente, perguntei se tinha gostado da viagem: “Eu? Eu não fui! Eu não posso sair daqui. Eu nunca vou sair daqui...”. Aquele desencantado e nem sequer revoltado “nunca” marcou-me para sempre.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

Jogar pelo seguro


Salvo para alguns inimputáveis, preparados para brincar com o fogo, não existe uma real alternativa de bom senso na eleição presidencial americana. Se Hillary Clinton está muito longe de entusiasmar as hostes, é em geral reconhecido tratar-se de um “safe pair of hands” que garante que a potência determinante à escala global fica sob um controlo responsável. Este texto parte, assim, do pressuposto que Hillary Clinton será a próxima presidente americana.

Depois das aventuras da administração Bush filho, os dois mandatos de Obama mostraram uma América num dos seus ciclos regulares de retração estratégica. Sair logo que possível do Afeganistão e do Iraque, readequar o discurso da guerra anti-terrorista e tentar sarar algumas feridas abertas pela administração divisiva que o precedera – tal era o projeto visível de Obama pelo mundo. A Europa deixara aparentemente de figurar nas prioridades essenciais de uma política externa que olhava a Ásia e o Pacífico como o destino futuro de atenção. A Rússia parecia controlável nas suas ambições.

Os acontecimentos, esse regular obstáculo dos políticos, atrapalharam as previsões. O destino desigual das “primaveras árabes” e a desregulação do Iraque, gerou impactos imprevisíveis em todo o Médio Oriente, criando um caos cuja resolução não era conforme com a política de “no boots on the ground” que os EUA se obstinavam em manter. Os aliados ressentiram-se. Israel e a Arábia Saudita desconfiaram da eficácia do apaziguamento de Washington com as ambições nucleares do Irão. A Turquia mostrou-se um parceiro errático. A Rússia de Putin afirmou-se como uma potência oportunista, jogando na certeza de que a resposta ocidental aos seus avanços estratégicos ficaria sempre aquém das armas. Provou ter razão na Ucrânia, como já testara na Geórgia. A NATO, esse heterónimo militar dos EUA na Europa, teve de reganhar agressividade verbal e visibilidade do seu dispositivo. Os EUA não conseguiram recuar tanto quanto tinham planeado, o que também não foi facilitado por uma União Europeia descredibilizada e crescentemente dividida.

Oito anos depois de um ridículo prémio Nobel da Paz, dado “avant la lettre” como uma espécie de investimento na esperança, o balanço da política externa de Obama é claramente pífio. O mundo não está mais seguro do que estava na data da sua posse. É indiferente se a culpa é ou não de Obama, o que contam são os resultados. E esses são maus.

Hillary Clinton não herda a diplomacia de Obama, recebe também o resultado dos erros que ela própria cometeu, de que o caos na Líbia é talvez o caso mais flagrante na nota de culpas que merece pelo tempo em que geriu o Departamento de Estado. Quando aí chegada, Clinton olhava a prioridade Ásia-Pacífico como central na estratégia diplomática pós-Bush. O “braseiro” do Médio Oriente impôs-se e estragou esse desígnio. O seu saldo não foi brilhante.

Que fará Hillary Clinton pelo mundo, uma vez chegada à Casa Branca? A mais republicana candidata que os democratas podem produzir vai, ao que tudo o indica, agravar as tensões com a Rússia, que dá sinais de estar já a contar com isso. Se assim acontecer, uma parte da União Europeia exultará, outra hesitará em acompanhá-la até ao fim. A União pode dividir-se neste particular e a América, que se mantém um poder europeu, confirmará o seu tropismo para partir ou unir o velho continente, de acordo com os seus interesses. Nada que seja verdadeiramente novo.

Mas o grande teste imediato de uma administração Clinton passa pela Síria e pelo modo como aí lidará com uma Rússia que já mostrou que prefere ser temida a respeitada. Há quem diga que a Turquia pode funcionar como ”subcontratado” dos EUA na região. Recuperar a confiança do mundo sunita (com a Arábia Saudita à cabeça) e de Israel é outra das tarefas essenciais na região.

Resta... o resto: o futuro dos acordos comerciais inter-regionais, a substância efetiva da política Ásia-Pacífico e o modelo de relação futura com a China (com o crescente problema da Coreia do Norte no horizonte) e com a India nuclear, as alianças preferenciais numa Europa pós-Brexit, a definição da filosofia de ação externa, entre o proselitismo democrático e a “realpolitik”, etc.

Tempos interessantes, como diz a velha expressão chinesa que os ocidentais adotaram. E perigosos, pelo que vale a pena jogar pelo seguro e o seguro é Hillary Clinton.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

Administração Hillary


Um "disclaimer" prévio: os autores são meus amigos. Um aviso sério: ninguém se arrependerá se comprar este livro. Garanto.

Raquel Vaz-Pinto e Bernardo Pires de Lima, dois dos nossos mais talentosos académicos na área das relações internacionais, escreveram uma obra de grande valia. Partindo do conhecimento profundo que têm da estrutura das relações internacionais, cruzando-a com uma apurada análise da política externa americana, produziram um guia quase imprescindível para nos guiar através da Administração Obama, no caminho para uma (quase certa) Administração Clinton. Por ali ficam, com realismo e numa linguagem acessível, os grandes desafios que o mundo vai enfrentar no futuro imediato, com pistas para o modo como o próximo governo americano os irá ter em conta.

Este não é um livro conjuntural, que se esgota em escassos meses, ultrapassado pelo peso da realidade. É um referencial de análise para quem gosta de política internacional e tem curiosidade de saber o que a América pode vir a fazer por esse mundo fora nos próximos anos.

quinta-feira, outubro 27, 2016

Afinidades

Há uns anos, numa conversa com alguém com quem partilho grandes afinidades políticas, vieram à baila dois nomes de antigos líderes do PSD: Durão Barroso e Marcelo Rebelo de Sousa. 

Essa personalidade conhecia ambos bastante bem e, comparando-os, deixou cair esta reflexão: “Você não está de acordo comigo de que, entre os dois, não obstante as divergências que possamos ter com o Marcelo, estamos mais próximos dele e bem mais distantes de Barroso, por partilharmos um mundo de referências que nos são comuns?” 

Ontem, ao ver a imagem de Marcelo com Fidel, lembrei-me dessa conversa e da minha concordância com o que então dizia essa figura, que foi dada por várias razões e também por essa.

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...