terça-feira, março 03, 2015

Yolanda Brígida

Você era uma criança. Falava à televisão, ao lado dos seus pais, emigrados na Suíça. Perguntaram-lhe o que gostava mais de ver nos noticiários. Com o olhar vivo e inocente, disse: os desastres! Essa sua resposta ficou-me para sempre.
 
Tempos mais tarde, curso tirado, estagiária da notícia, salário de recibo verde, telefonou-me para Brasília a inquirir do nome de um português envolvido num acidente. Expliquei que a ética da minha profissão não me autorizava a quebrar o sigilo. Não esqueci a sua reação: "A ética?! Deixe-se disso! Vá! Diga-me lá! É que se eu não consigo essa informação, o meu chefe põe-me na rua!"
 
Um dia, num jornal com mais de cem anos, na "silly season", li uma peça sua sobre um senhor chamado Eça de Queirós. Explicava, pedagógica, que era "um escritor realista português do século XIX", do qual citava obras a esmo. Fui ver: o texto era da Wikipedia. Fazia bem em apoiar-se em fontes prestigiadas, nessa Britannica da geração dos "shots".
 
Veja-a agora muito por aí, Yolanda Brígida ou Cátia Vanessa ou qualquer outra coisa assim que a rica imaginação dos seus pais tenha gerado. De "corneto" na mão, nos "travellings" na peugada do advogado desconcertante, à coca da casa dos "pulseirados", a perguntar como se sente à mãe que perdeu o filho no mar alto, a entrevistar o primo da vizinha de um tipo que conheceu o criminoso.
 
Vi um dia a sua glória. Uma baliza tinha caído sobre a cabeça de uma criança. O dia era “seco” em eventos. Os três telejornais abriram com a notícia, era o "seu" desastre. E lá estava você em campo, baliza ao fundo, preparada para a partida. Ao longe, as "repórteres" dos outros canais, seus heterónimos, filmavam-se comicamente entre si, debitando “buchas” para as respetivas câmaras, à espera do requestado edil local, que você entrevistava e que se prestava ao papel de alterne entre pantalhas, a todas anunciando o clássico "rigoroso inquérito". Um "must"!
 
É que onde eu gosto verdadeiramente de a ver é nos diretos, à porta de um tribunal fechado há horas, na soleira de uma urgência com uma velhinha a revelar o cancelamento da consulta numa greve, no rescaldo de um incêndio a recolher a clássica declaração sobre a "mão criminosa” no sinistro. Adoro as redundâncias em que ecoa, quase palavra por palavra, o que o “pivot” acabou de dizer, não vá alguém ter entrado na sala só nesse instante. Exulto quando se dirige, impante, à vedeta em estúdio, que mal a conhece, com um íntimo: "Daqui é tudo, Judite!'.
 
Há dias, vi-a numa de excelência. António Costa tinha acabado de falar sobre o seu "sermão aos chineses", que em ano eleitoral substitui o "sermão aos peixes", do outro António, mas Vieira. Ele saía já de cena, tenso, e você, marota, ética Cofina, reguila qb, sem esperar resposta, só para gáudio da malta lá na redação, atirou-lhe à cara: "O país está melhor, António Costa?". Eu, no caso dele, sabia o que lhe tinha atirado à cara, a si.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, março 02, 2015

Refletir é preciso

Na carreira diplomática, que me encheu a existência profissional até há uns tempos, existe uma regra de ouro, em face de situações que nos incitam a uma reação imediata, a qual nos pode parecer óbvia e indiscutível: parar um pouco para refletir. Quando a pena ou a tecla nos apelam para enviar, logo de seguida, um "telegrama" ou uma "nota verbal" com uma reação forte e dura, a boa experiência aconselha a "dormir sobre" ela.

Quantas vezes, perante uma patetice qualquer, recebida da "Secretaria de Estado" (designação que damos ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa), não me apeteceu arrasar de imediato, com um "telegrama", o funcionário expedidor, acobertado sob o heterónimo de "NEstrangeiros" (expressão que assina vulgarmente as comunicações que recebemos nos postos). Mas, como referi, a profissão ensinou-me a saber "dormir sobre o telegrama", fórmula há muito consagrada na casa. É que, no dias seguintes, com mais calma e ponderação, a validade dos nossos argumentos aparece quase sempre servida por uma linguagem mais elegante e aceitável, embora não necessariamente menos firme.

Lembrei-me disto a propósito da Grécia. Nos tempos que correm, o eixo daquela diplomacia que é sempre relevante afastou-se do Palácio das Necessidades. Não é coisa que me agrade constatar, mas é a realidade das coisas. E assim, do reino profissional dos "telegramas", passámos, nos últimos anos, à glória das folhas de Excel feitas política externa (às vezes, com alguma irresponsabilidade que vai até ao ponto de "tweetar" garotices). Do "terceiro andar" do Palácio, local do poder, a reação político-diplomática aparece regularmente transferida para outras sedes, quase sempre desenhadas com cifrões à mistura. E tenho pena que, por essas novas bandas, não haja hoje, ao que tudo parece indicar, uma massa crítica suficiente que evite que as reações dos políticos, quando confrontados com os "cornetos" das estagiárias televisivas, não haja sido antes aculturada por umas horas de reflexão. E, já agora!, com algum sentido e responsabilidade de Estado, se não for pedir muito.

Por isso, ó gentes deste governo cessante, não "syrizem" as vossas emoções, "durmam sobre" o assunto, reajam com um estilo "cool", percebam que a precipitação pode estragar duradouramente uma relação bilateral, tendo de caber aos vindouros sarar as feridas e juntar os cacos. É que, depois, como ensinou o meu amigo e colega Marcello Duarte Mathias, "gasta-se uma vida inteira a corrigir um erro de trajetória". Ouçam-no, tanto mais que ele tem ascendência grega...

Fernando Madrinha


Devo-me ter cruzado no máximo umas três vezes na vida com Fernando Madrinha, jornalista do "Expresso" e seu colunista até ao seu último número. Não o conheço bem, quero eu dizer. Mas conheço-o de escrita, ao longo de quase 20 anos - eu que sou um leitor do "Expresso" desde o nº 1, isto é, há mais de 40 anos. E nem sempre estando de acordo com o que ele escreve, longe disso!, reconheço-o como uma voz livre e uma opinião ponderada e equilibrada, num mundo do jornalismo opinativo onde se passam muitos recados e se fazem ainda mais fretes. Tenho assim pena, desconhendo as razões de fundo, de vir a perder os seus textos. Só espero que o jornal nos não nos venha a "compensar" com (mais) alguns "talibans" de pena adjetivada, que fazem do radicalismo, de qualquer dos lados do espetro, o seu "fond de commerce". Cá estarei para ver.

José Quitério



Foi uma bela cerimónia aquela que ontem teve lugar na Reitoria da Universidade de Coimbra, no dia em que se comemorava o 725º aniversário da instituição. 

Tratou-se da entrega do "Prémio Universidade de Coimbra" 2015 a José Quitério, a figura do jornalismo português que dedicou à cultura da gastronomia mais de quatro décadas da sua vida. 

O elogio do premiado foi feito por outro nome cimeiro da gastronomia portuguesa, José Bento dos Santos, atual presidente da Academia Internacional de Gastronomia. Antes, havia sido feita a leitura de um belíssimo e clássico texto de José Quitério.

A unanimidade é muito difícil de se obter, em qualquer área da vida. Mas eu desafiaria alguém em Portugal a juntar, como aconteceu com José Quitério, o conjunto tão diverso de personalidades que apoiaram a sua candidatura, proposta pelo jornalista Fortunato da Câmara, que desde há semanas lhe sucedeu como crítico gastronómico do "Expresso". Senão, vejamos:

Álvaro Siza Vieira, arquiteto
André Jordan, empresário
António Lobo Xavier, advogado
António Mega Ferreira, escritor
Artur Santos Silva, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian
Baptista Bastos, escritor
Carlos do Carmo, cantor
Francisco José Viegas, escritor
Francisco Pinto Balsemão, empresário
Guilherme de Oliveira Martins, presidente do Centro Nacional de Cultura
Helena Sacadura Cabral, economista
Joaquim Furtado, jornalista
José Bento dos Santos, empresário
José Carlos de Vasconcelos, jornalista
José Miguel Júdice, advogado
Luis Pato, empresário
Maria de Lurdes Modesto, publicista em culinária
Maria do Céu Guerra, atriz
Miguel Esteves Cardoso, escritor
Rui Vieira Nery, professor universitário.

domingo, março 01, 2015

O dever

Não me parece uma falta de extrema gravidade a existência de uma dívida do dr. Passos Coelho à Segurança Social. Pode acontecer a qualquer um.

Só que o dr. Passos Coelho não é qualquer um, é o primeiro-ministro do país, a quem sempre exige uma conduta impoluta, como se vê a Justiça exigir noutro contexto.

Por isso, representa uma evidente falta de cultura democrática, em lugar de procurar justificar-se em formalismos, não ter apresentado desculpas públicas ao país. O país ficaria satisfeito e o primeiro-ministro teria saído bem desta pequena história. 

Assim, não saiu.

Renso

Quando o novo primeiro-ministro italiano, de quem antes pouco tinha ouvido falar (não acompanho em pormenor a vida política italiana, devo confessar), tomou posse, o seu nome - Renzi - ficou às voltas na minha cabeça. Aquele apelido dizia-me alguma coisa, mas não conseguia pensar o que fosse.

Um dia, a luz surgiu-me. Um nome "próximo" era vulgar aos meus ouvidos, desde a infância. Fazia parte dos amigos que, com o meu pai, se sentavam na esplanada do Girassol, no jardim, nas férias de Verão, em Viana do Castelo. Chamavam-lhe "Renso". Um dia, tinha eu aí uns oito ou nove anos, referi-me a ele como o "senhor Renso". O meu pai corrigiu-me: "Deves chamar-lhe senhor Coutinho. Só os amigos próximos o tratam por Renso" disse, com um sorriso enigmático. Tomei devida nota.

Passaram uns anos e, no grupo do Girassol, que o meu pai continuava a frequentar em férias, ouvi um dia dizer que "a mulher do Renso tem andado adoentada". Nessa ocasião, inquiri, finalmente, da origem do "petit nom". E fui esclarecido.

O "Renso" tinha sido colega de escola primária do meu pai. Na realidade, chamava-se Coutinho. A crueldade dos colegas levou-os a apodá-lo de "toucinho". Com o tempo, a miudagem veio a mudar criativamente o "toucinho" para "ranço". A corruptela da vida transformou, finalmente, o "ranço" em "renso". Daí ao "senhor Renso" foi um passo curto. As voltas que os nomes dão!

Que o Estado Islâmico não pegue nisto, é o mínimo que se pode desejar, atenta a incompatibilidade entre Maomé e o toucinho...

sábado, fevereiro 28, 2015



Epígrafe

De palavras não sei. Apenas tento
desvendar o seu lento movimento
quando passam ao longo do que invento
como pre-feitos blocos de cimento.
 
De palavras não sei. Apenas quero
retomar-lhes o peso   a consistência
e com elas erguer a fogo e ferro
um palácio de força e resistência.
De palavras não sei. Por isso canto
em cada uma apenas outro tanto
do que sinto por dentro   quando as digo.
 
Palavra que me lavra. Alfaia escrava.
De mim próprio matéria bruta e brava
-- expressão da multidão que está comigo.

José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, fevereiro 27, 2015

Regresso à escola

Há semanas, tive necessidade de obter uma certidão da minha licenciatura. Desloquei-me à secretaria da minha faculdade e, quando referi o ano de fim do meu curso, a simpática funcionária que me atendeu (já não era a Dona Irene, do meu tempo) voltou-se para as colegas e, como se apresentasse uma avis rara, disse alto: "Está aqui um aluno dos anos 70!". Ficou toda a gente a olhar para mim, comigo a não me reconhecer no qualificativo de "aluno"! A colega logo reagiu: "Esses anos já estão lá em baixo..." o que significava que jaziam nas catacumbas da faculdade tais registos do antanho, imagino que com patine de teias de aranha. (E devem ter ficado a perguntar-se: para que é que este homem quer uma certidão de licenciatura?). Dias depois, lá surgiram as papeladas que me diziam respeito e tiveram a amabilidade de me trazer, por curiosidade, no livro de registos, uma fotografia minha desses tempos, com forte cabelame e uma imponente bigodaça. As figuras que fazíamos!

Nos últimos anos, "regressei" à universidade. Já tinha feito uma incursão, há uns tempos, na Universidade de Aveiro, onde orientei uma tese de mestrado. Depois, na UTAD, presidi durante cerca de quatro anos ao respetivo Conselho Geral, uma experiência muito interessante, embora nem sempre fácil. Em Coimbra, colaboro com a respetiva Faculdade de Economia, de cujo Conselho Consultivo faço parte, desde há quase cinco anos. Na Universidade Autónoma, faço este ano letivo parte do corpo docente na área das Relações Internacionais. E, na Universidade Nova de Lisboa, além de integrar desde 2013 o Conselho da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, tive hoje a grata experiência de ser arguente em duas teses de mestrado na área das Relações Internacionais. Sabe-me bem este regresso à escola. 

Falando da Grécia


quinta-feira, fevereiro 26, 2015

Tertúlias


Faço parte de várias tertúlias. Nenhuma delas tem uma agenda de intervenção pública, mas em todas aprendo coisas úteis. Como regra, congregam pessoas, homens e mulheres, que se sentem bem a falar umas com as outras, mesmo se oriundas de círculos muito diferentes e com perspetivas, políticas e não só, às vezes contrastantes. Algumas dessas tertúlias são semanais, outras acontecem todos os meses, outras "quando o rei faz anos". Umas são temáticas, outras de mero convívio, às vezes com copos e vitualhas à mistura. 

A tertúlia é uma magnífica terapia contra o sectarismo, a bem da tolerância. Ouvir os que pensam de forma diferente da nossa enriquece-nos. Conversar com quem connosco partilha identidades conforta-nos. O fim de ciclo de uma tertúlia começa a pressentir-se quando os debates se transformam em discussões acaloradas. Já assisti à diluição de algumas tertúlias de que fiz parte, algumas vezes com pena, outras com alívio. Mas sou um "tertuliano" militante, confesso.

quarta-feira, fevereiro 25, 2015

Ucrânia


Paulo Sande, Bernardo Pires de Lima e eu próprio discutimos na Económico TV a crise político-militar na Ucrânia.

Pode ver esse debate aqui e aqui.

Trocadilhos

Gosto de trocadilhos criativos na designação de lojas. Ontem passei pelo "Ás de Comer". Há dias, pela lavandaria "Lavarte". E lembrei-me da clínica veterinária com que deparei um dia no Rio: "Cãopacabana". A Maria Lúcia Lepecki, recém chegada do Brasil nos anos 70, foi quem me chamou pela primeira vez a atenção para esta inócua mas divertida aventura no reino da "paranomásia" (é verdade, é assim que isto se chama). Ela que se encantava com a involuntária ironia da "A Reparadora dos Anjos" e a quem uma vez levei uma fotografia da estreita "Rés vés", uma loja que havia em Campo de Ourique e cujo subliminar trocadilho só funcionava para quem se lembrasse da frase completa.

"Portugal no primeiro quartel do século XXI"

Terá lugar amanhã, quinta-feira, dia 26 de fevereiro, na Fundação Calouste Gulbenkian, a conferência "Portugal no Primeiro Quartel do Século XXI - Estratégias Rumo ao Futuro".

A realização será presidida pelo general Ramalho Eanes, contando com a participação do Bastonário da Ordem dos Engenheiros, eng. Carlos Matias Ramos, do presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, dr. Artur Santos Silva, do professor Jorge Miranda, do almirante Fernando Melo Gomes e de mim próprio.

Caber-me-á desenvolver o tema: "Política externa e diplomacia nacional - a envolvente europeia e mundial. Adequação da política externa portuguesa à nova realidade existente".

 

terça-feira, fevereiro 24, 2015

Elegia

já nada é o que era
e provavelmente nunca mais o será
e mesmo que o fosse
algo me diz que já não seria o que era
porque o que era
era o que era por ser o que era
do que eu me lembro muito bem
embora eu então não fosse o que agora sou
mas o que agora sou
ou estou a ser
é deixar de ser o que sou
porque eu sou deixando de ser
deixar de ser é a minha maneira de ser
sou a cada instante
o que já não sou
e o mesmo se deve passar com tudo o que é
motivo por que não admira que assim seja
quer dizer
que nada seja o que era
e se assim é
ou já não é
seja ou não seja


Alberto Pimenta, in 'Ascensão de Dez Gostos à Boca'

Esse mesmo!

Custa-me falar deste assunto, por razões facilmente compreensíveis. Mas sentir-me-ia pior não o fazendo.
 
Nos últimos três anos, este governo foi acusado de não ter uma política europeia. E não teve. Ou melhor, tinha a que lhe ditava o seu tropismo para um mimetismo silencioso e sorridente para com quem distribuía as cartas do jogo. Era cómodo, era barato e sempre ia "dando" uns milhões - pagos com juros de palmo a quem, na Europa rica, vive à tripa forra com a desgraça, e com os juros, dos outros. E ainda ficávamos obsequiosamente gratos, o que deve dar um gozo imenso a quem nos olha hoje com um irónico e sobranceiro sorriso setentrional.
 
Subitamente, o governo "decidiu" ter uma política europeia. Do silêncio fragoroso, emergiram vozes, que surgiram das Finanças, essência da política externa que nos resta. Só que, ao contrário daquilo que foi o sentido do combate europeu de Portugal durante décadas, a nova "coragem" política à mesa do Conselho de Ministros, que no passado nos colocava em saudável confronto com os contribuintes líquidos, na linha de defesa de uma Europa mais solidária, passou a revelar-se face aos deserdados da sorte europeia. Portugal "faz" de Benelux, finge de nórdico, tem tiques de ricaço, p'cebe?. Num duplo sentido, só percetível por alguns, quase poderíamos dizer que é a Cova da Moura a "armar" a Quinta da Marinha.
 
Aprendi na escola primária que colocarmo-nos ao lado dos mais fortes para poder bater nos mais fracos tem um nome muito feito. Esse mesmo!

Os embaixadores

 

Era uma vilória pequena, a uma grande distância de Lisboa. O dia estava muito quente. O embaixador, de passagem, decidira beber uma cerveja num snack-bar local. A sala tinha bastante gente, pelo que optou por uma mesa mais isolada, distante da porta, onde o ar condicionado parecia funcionar de forma mais eficaz. E entreteve-se a ler um jornal que encontrou por ali.

Uma exclamação fê-lo levantar os olhos: "Ó embaixador!". Tentou perceber quem o chamava, mas não viu ninguém dirigir-se-lhe. Pelo contrário, alguns dos circunstantes viraram-se para um cavalheiro que acabava de entrar, cuja cara não era muito percetível, com a luz da rua a recortá-lo por detrás. Viu-o cumprimentar, à passagem, vários dos presentes e sentar-se a uma das mesas. Era um homem alto, já bastante entrado na casa dos 70.

Um dos seus companheiros de mesa pediu para o balcão: "Ó Pinto! Traz aqui um café para o sr. embaixador. Em chávena fria, como ele gosta". Notava-se que o recém-chegado gozava de prestígio local. O silêncio e a atenção que envolviam as palavras com que se dirigia a quem o rodeava confirmavam isso mesmo.

O embaixador visitante estava cada vez mais curioso. Quem seria aquele seu colega? Conhecia bem a carreira e, muito em especial, sabia quem eram os que tinham ocupado postos de embaixador. Nenhum correspondia àquela figura.

Procurou fixar melhor a cara do novo cliente e, poucos instantes depois, fez-se-lhe luz: era de facto um diplomata, uma boa dezena de anos mais velho do que ele. Recordava-se vagamente que ele havia sido vítima de uma intriga e de uma perseguição por parte da hierarquia, pelo que acabara por nunca lhe ser atribuída a chefia de uma embaixada. Conhecia-o de vista, desde há décadas, mas não se recordava de, alguma vez, ter trocado com ele qualquer palavra. Estava reformado, há já uns bons anos.

A insistência com que fixava a mesa acabou por não passar desapercebida e o antigo colega cruzou com ele, de súbito, um brevíssimo olhar, que logo desviou. Reconhecera-o, pela certa, e pareceu ter ficado preocupado. Um cumprimento de outro cliente "Boa tarde, senhor embaixador!" foi recebido com um esgar inquieto pelo homem, que terá entendido que, naquela sala, estava alguém que sabia que o seu estatuto profissional não era exatamente aquele que a vilória tinha consagrado, provavelmente desde há vários anos.

A situação estava a começar a tornar-se algo pesada. O  embaixador, logo que pôde, pagou a cerveja e caminhou em direção à porta. À passagem pela mesa em que o seu velho colega de carreira estava sentado, lançou, alto, com um sorriso simpático: "Boa tarde, embaixador! Tive muito gosto em vê-lo!". E saiu. Satisfeito.  

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

José Sócrates

Há pouco, dei comigo a pensar que José Sócrates, com todas as acusações que sobre ele agora impendem por, alegadamente, ter quebrado o segredo de justiça ainda se arrisca, um destes dias, a ir dar com os costados a uma prisão.

Ilídio Monteiro


Há coincidências terríveis. Na passada semana, juntei-me com dois amigos num almoço, a convite de um deles. Já não estávamos os três juntos desde 1976, ano em que nos tínhamos deslocado numa delegação técnica portuguesa à Líbia. Foi essa mesma "aventura", de há quase 40 anos, que nos juntou.
 
Um dos membros dessa delegação tinha sido o engº Ilídio Monteiro, que nela representava a Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas, de quem falámos nesse almoço. Na decorrência dessa missão, aquele empresário acabaria por desenvolver vários e importantes negócios na Líbia, por décadas, os primeiros dos quais com base em protocolos que, no ano seguinte, foram assinados por uma nova delegação portuguesa enviada a Tripoli, em que também participei.
 
Há minutos, pela memória da semana dada por Marcelo Rebelo de Sousa na televisão, soube da morte muito recente do engº Ilídio Monteiro. Tive o gosto de me cruzar com ele várias vezes, ao longo dos anos. Era uma pessoa muito agradável, com humor e ironia, que gostava das coisas boas da vida, para além de ter sido um grande empresário no seu setor. Deixo aqui o meu pesar à sua família. 

domingo, fevereiro 22, 2015

Não, senhora ministra!

A ministra Maria Luís Albuquerque é, no plano técnico, uma das figuras mais competentes deste governo. Dirão alguns, mais cínicos e irónicos, que isso não é difícil... Talvez seja verdade, mas o que é indiscutível é que a senhora ministra das Finanças demonstra, com clareza, ter um perfeito domínio das questões que lhe compete tutelar, sendo mesmo capaz de o fazer com uma capacidade de explicitação pública muito superior ao seu antecessor. E lá virão os mesmos dizer que também isso, em si, não é obra por aí além... Quero com isto dizer que, goste-se ou não da política que defende - e eu não gosto mesmo nada - ela defende-a de forma capaz e a prova provada disso está no crescente "appeal" que faz nascer nas hostes do seu partido, onde, qual Cavaco Silva ao rodar o carro para a Figueira da Foz, surge sebastianisticamente como uma promessa, ungida daquela sedução pelos titulares das Finanças que, de tempos a tempos, empolgam os setores conservadores de um país que nunca soube fazer suas contas.

Dizia-se de um certo professor que tive que, entusiasmado pelo brilho que achava ter nas suas aulas, saía delas "aos ombros de si próprio". A senhora ministra das Finanças, verdejante oásis no deserto político em que se move, ter-se-á também deixado deslumbrar pelo nível da sua "performance" dentro do executivo de que faz parte e tem vindo a dar mostras de um comportamento que, frequentemente, roça já um perfil de arrogância e alguma sobranceria. Vê-se isso no parlamento onde dá ares de que mais ninguém "sabe da poda". Não fosse o seu sorriso gaiato e a sua cara laroca a ajudarem e as coisas seriam ainda bem piores.

O destino político da senhora ministra estará, daqui a meses, na mão dos portugueses. E esses, a seu tempo, dirão de sua justiça. Só que, até lá, a senhora ministra não tem um mandato que lhe permita, ainda que temporalmente, conspurcar fora de portas o nome do país honrado em que exerce funções. Alguém deveria conseguir explicar à senhora ministra que o espetáculo a que se prestou ao lado do seu colega alemão foi de uma indignidade, quase sem par, na representação externa do Estado. Deixar-se utilizar como instrumento comparativo por parte de Berlim na sua cruzada de isolamento da Grécia configurou uma das mais tristes figuras que alguma vez vi fazer a um governante português na ordem externa - e, podem crer!, já vi bastantes e bem lamentáveis. E prolongar essa atitude no Eurogrupo, para entrar no "quadro de honra" com que Berlim premeia os "alunos" bem comportados, ajudando cobardemente à humilhação de um país também amigo e aliado, provocou um incómodo muito raro no país, ao que se diz até nas hostes da maioria. Este governo - e meço as palavras - consegue, dia após dia, surpreender-nos na sua capacidade de rebaixar a dignidade do Estado que circunstancialmente titula.

Angola, a hora da política


Há tempestades anunciadas, pelo que é irresponsável não tomar, a montante de ventos e chuvas fortes no horizonte, medidas que possam atenuar os seus efeitos. O que está prestes a ocorrer nas relações económicas luso-angolanas é uma dessas tempestades. E o Estado português parece ter enterrada a cabeça na areia.

O país não terá ainda plena consciência das ameaças que hoje pairam sobre o futuro de largas dezenas de milhares de portugueses que trabalham em Angola, com as dificuldades que já sentem nas transferências salariais que suportam outras tantas famílias em Portugal. Quem encheu de PME’s sucessivas caravanas ministeriais, com “números” otimistas nas televisões, tem hoje a obrigação de se revelar eficaz em iniciativas políticas para compensar os efeitos da crise que afeta conjunturalmente a economia angolana.

Foi garantido pelo senhor ministro dos Negócios Estrangeiros que o chefe de Estado angolano declarara ultrapassada a tensão política bilateral. Então por que esperam as nossas autoridades para daí tirar as necessárias consequências? A relação luso-angolana é estratégica? Em que é que isso se pode traduzir, em gestos pró-ativos de boa vontade por parte de Angola ou no tocante a facilidades de crédito a implementar por Lisboa, com vista a apoiar pontualmente os nossos operadores económicos, naquele que é um dos mercados essenciais para as nossas empresas?

Os empresários e os trabalhadores portugueses deram provas, ao longo das últimas décadas, de uma cooperação leal com um país que, se lhes deu oportunidades, beneficiou também da sua competente retribuição, de que a paisagem contemporânea da vida angolana é talvez o melhor testemunho.

Não quero ensinar o pai-nosso ao vigário, mas lembraria que a diplomacia económica não é apenas o passarinhar entre aeroportos e salões dourados, não se esgota na assinatura de protocolos de duvidosa implementação. A ação dos agentes diplomáticos só é eficaz se reforçada pela intervenção dos atores políticos, cuja determinação visível na defesa do interesse nacional é também a condição sine qua non para a sua avaliação.

O senhor presidente da República tem aqui uma particular responsabilidade. Nesta especial relação, o papel dos chefes de Estado tem sido historicamente essencial. O professor Cavaco Silva prestaria um último serviço ao país – e, por consequência, ao seu próprio prestígio – se desse mostras públicas de se empenhar ativamemente na procura de soluções com vista a minorar os graves problemas que, no relacionamento entre Portugal e Angola, estão aí já ao virar da esquina.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...