Ontem, um amigo comemorou o seu aniversário e entendeu lembrar, no momento, outros amigos que o destino já não permitiu que o acompanhassem na data. Não é vulgar assim proceder, mas dei-me conta da justeza do ato. O que hoje somos depende muito daqueles que, entretanto, nos deixaram.
Passaram já três anos desde que saiu de cena Hermano Reis. Cruzámos o Hermano, vai para duas dezenas de anos, uma noite, num jantar daquela que era a novidade gastronómica da Lisboa de então, a "Tasquinha da Adelaide". Foi o Zé Guilherme Stichini Vilela quem nos apresentou ao Hermano, bem como ao Paulo, um grande amigo que com ele trabalhava. O Hermano era médico, do Porto, tinha vivido nos Estados Unidos, decidira nos últimos anos apostar profissionalmente em Lisboa. Era a alegria feita vida, a boa disposição feita atitude. Não apenas simpatizámos de imediato: tornámo-nos amigos na hora. Com ele e com o Paulo, bem como com a Manuela - quando ela aportava à capital ou quando nós íamos ao Porto - criámos uma fantástica relação, feita de cumplicidades, de boa disposição, de um entendimento sereno, como se nos conhecêssemos desde sempre. Dou-me conta que nunca soube a idade do Hermano: a sua idade era a da nossa amizade.
O Hermano era um homem grande. Como pessoa e como caráter. Olhava a vida e o mundo com um sorriso imenso, numa perspetiva saudavelmente lúdica, da qual, curiosamente, nunca estava distante um grande rigor empresarial e profissional. Eu tinha com ele uma relação um tanto bizarra: consultava-o regularmente como médico, escutava o seu avisado e muito elaborado conselho, baseado na regular leitura das minhas análises clínicas. Era, contudo, um tanto estranha essa minha "ida ao médico": invariavelmente, acabávamos a consulta a "trocar" restaurantes, a combinar experiências gustativas que estavam muito para além dessas minudências que eram os colesteróis, os trigliceridos ou os açúcares que são o verdadeiro sal da vida. Juntos, com o João Paulo Guerra (que ele nunca conheceu pessoalmente e que assinava "Reviralho" - hoje, estas coisas já podem saber-se) inaugurámos o blogue "Ponto Come" onde, como "Aldini", deixou notas deliciosas sobre experiências que a sua incessante curiosidade gastronómica motivava. Foram tempos felizes. Quantas vezes, nesses anos pesados de trabalho europeu, eu não saía diretamente do aeroporto, esmagado de cansaço, para uma tasca que o Hermano e o Paulo tinham descoberto num improvável subúrbio lisboeta, onde eu recuperava energias (isto é, calorias!) que me compensavam da miséria dos menus aéreos.
Fizémos grandes noitadas, sempre divertidas e bem regadas, daquelas que ficam para a memória eterna da vida. Cruzámos histórias, estivemos juntos em momentos menos bons. Juntámos amigos comuns, passámos bastas horas de alegria. Não só em Portugal, mas também no Brasil, onde animámos algumas incríveis noites cearenses.
A geografia da vida e os ritmos que esta entretanto levou, durante mais de uma década, acabou por nos separar fisicamente. E logo o espetro da morte iria surgir, nesse período, no horizonte do Hermano. Sinto imensa pena em não termos podido acompanhar, como deveríamos, esse seu tempo complexo. E igualmente de não termos sabido testemunhar, de forma oportuna, como também deveríamos ter feito, o nosso sentimento de partilha da dor que a partida do Hermano representou para todos - para a Manuela, para os seus filhos, para o Paulo, para os amigos. Hoje, posso revelar que ficámos como que bloqueados, em busca das palavras que nunca encontrámos.
Lembrei-me bastante do Hermano, ontem, na festa aniversariante do nosso amigo, quando ele lembrou, como diria Lopes Graça, que "até os mortos vão ao nosso lado". Como vai o Hermano.