Chegou cedo, sentou-se numa das primeiras filas. Há muito que o vejo fazer isso, nos colóquios a que por ali costumo assistir ou participar. Sempre engravatado, de fato escuro, ar grave. É uma figura, podemos dizer "histórica", de um grupo de extrema-esquerda que, por uma persistente e quiçá injusta falta de apoio popular, nunca atravessou as portas do parlamento. Os textos que ainda hoje subscreve no site do grupo, a cuja liderança regressou há pouco, não enganam: mantém-se fiel às raízes, ao passado, às figuras referenciais da ideologia que o guiam desde há muito.
Nesse dia da passada semana, eu falava num colóquio a propósito da Europa (e hoje é o dia dela). A certo passo, para melhor ilustrar a ideia de que o medo ao comunismo foi uma das forças que ajudou a cimentar a unidade europeia do pós-guerra, repeti uma graça "batida": "Não foram só Schuman e Monnet os grandes impulsionadores da Europa comunitária. Uma certa "gratidão" neste domínio é também devida a Stalin". Instintivamente, do podium, atravessei a sala com um olhar e vi o velho revolucionário agitar-se claramente na cadeira, erguendo a cabeça, fitando-me severo, ao ouvir a referência, que, sei lá!, deve ter sido interpretada como desrespeituosa para com o "pai dos povos" - como um amigo brasileiro costuma referir-se-lhe, entre a brincadeira e o sério. Fiquei curioso.
Josef Stalin foi uma figura que mobilizou emocionalmente milhões de pessoas, antes, durante e depois da guerra (que acabou fez ontem 71 anos), durante a qual titulou a liderança da União Soviética. Não vem para aqui chamada qualquer avaliação sobre a sua figura histórica, odiada e amada em doses maciças. Nunca fui tocado pela admiração pela personagem, que acho, no entanto, de recorte fascinante. Um dia, obriguei um grupo de embaixadores da OSCE, numa visita à Geórgia, a fazerem um desvio até Gori, terra onde Stalin nasceu e onde havia uma sua estátua numa praça, que eu queria fotografar. Mas já não encontrei aberto o "Museu Stalin", para minha arrelia eterna. Detesto perder estas oportunidades, confesso.
Mais recentemente, em Moscovo, deparei com uma manifestação cheia de bandeiras vermelhas, com foices e martelos, e decidi que era um ensejo raro de ver de perto uma reunião pública do único partido que por ali nunca fora impedido de existir, desde 1917. Numa das área do comício, havia uma banca com pins e objetos de antiguidade comunistas, desde velhos exemplares da Pravda e do Izvestia (e um facsimile do Iskra) até estatuetas e imagens de todo o género de Lenine. Aproximei-me e pedi: "Stalin!". Pensei oferecer uma lembrança a um amigo que vivia em Paris e cujas reiteradas invocações de Stalin mereciam a oferta. Vi a perplexidade espelhada na cara dos vendedores. Seria uma provocação? Olharam para o meu ar de turista e deduziram que deveria ser um estrangeiro ainda tocado pelo "grande Stalin". Um minuto depois, trouxeram um pin, de lata manhosa e claramente feito há pouco tempo, por que me pediram uns imerecidos rublos. Ali, logo atrás da "Casa dos Sindicatos", junto à muralha do Kremlin onde a uma sua discreta estátua, que poucos notam, continua a figurar, a memorabilia disponível de Stalin não estava claramente à altura.
O Partido Comunista Português foi, como todos os seus congéneres, bem estalinista até tarde. Lendo os textos do PCP nota-se que o seu "phasing-out" do estalinismo, sendo relativamente rápido para os ritmos do partido, não incorporou uma forte autocrítica e não foi marcado por uma "diabolização" da figura de Stalin. Aliás, nos sectores mais profundos do comunismo português, sempre me pareceu ter ficado uma marca residual de grande respeito, quando não mesmo de afetividade, pelo líder que conduziu a URSS nos anos trágicos da agressão nazi.
Há pouco tempo, durante um colóquio em que intervim numa cidade do Alentejo, comentei que o traçado das fronteiras de algumas Repúblicas da Ásia Central, que, vai para pouco mais de uma década, visitei e estudei com algum pormenor, parecia ter sido feito por Stalin com o deliberado propósito de fragmentar etnias e estabelecer um jogo fragilizante de tensões regionais. No final do colóquio, um velho comunista tomou a palavra e criticou a minha interpretação sobre a "perversidade" de Stalin, que achou deslocada e sem sentido, embora me parecesse que desconhecia, por completo, a realidade concreta que eu tinha abordado.
Mas não é necessário ir muito longe no tempo e na idade dos protagonistas para apreciar a adulação a Stalin. Encontrei, há pouco, nas minhas desarrumadas papeladas antigas, um texto publicado no "Luta Popular", o então diário do MRPP, no dia 2 de maio de 1975, intitulado "Vida e Obra de Estaline". É um documento magnífico, denso, adjetivado pela agitação revolucionária. Subscreve-o o "camarada Abel", uma promissora figura da "jota" do MRPP, que hoje é mais conhecido por José Manuel Durão Barroso. Deixo-lhes só esta pérola: "Onde quer que estejamos, mal se pronuncie a palavra Estaline um poderoso campo magnético isola à direita toda a espécie de oportunistas, unindo ferreamente à esquerda os verdadeiros comunistas e os autênticos revolucionários".