segunda-feira, fevereiro 02, 2015

Das folhas


Brilha-lhes o olhar ao falar daquilo que lhes fez a vida. Têm memórias de elefante. Sente-se o gosto, melhor, o gozo com que nomeiam os objetos que um dia ajudaram a criar, que foram capazes de "agarrar" antes dos outros. São os editores. Conhecem-se muito bem uns aos outros. Alguns foram um dia da mesma família, entre si tiveram divórcios ou separações amigáveis. Competem por esses objetos de cultura, sem par, que são os livros. Devo dizer que sempre lhes invejei esse precioso caminho entre as folhas. Ouço deles, com grande prazer, as histórias das empresas e dos livros que ajudaram a nascer. A nossa vida contemporânea - cultural, mas também política - tem muito a ver com o percurso do mundo editorial português. E da audácia, coragem e teimosia dos homens que o construíram.

Os tempos vão hoje estranhos para a edição dos livros. Os gigantes dominam o mercado, "compram" as montras e a exposição dos volumes nas livrarias, controlam a distribuição, influenciam a divulgação e até a crítica, emitiram cheques que, de um dia para o outro, fizeram desaparecer ou atenuar o brilho de marcas que fizeram história. Nada que a organização mercantil da sociedade, contra a qual pouco se pode fazer, não explique com grande simplicidade.

A mim, isto cria-me alguma nostalgia. Gosto dos pequenos editores, dos que colocam no mercado poucos exemplares, que teimam em resistir, que se apuram numa capa, no papel utilizado, na originalidade de uma proposta bizarra. Mais do que uma luta, creio que se sentem portadores de um dever, que tem muito a ver com uma geração a que também pertenço.

Esta tarde, estive à conversa com um amigo que faz parte da história da edição livreira em Portugal. Com os pés na terra, admite as realidades mas, como sempre, procura encontrar os escaninhos por onde possa realizar os seus sonhos. Trouxe-me uma ideia nova, original, com muita graça e imaginação. E com custos ínfimos. Em duas horas, discutimos as hipóteses de a pôr em prática. Um destes dias, quando o projeto tiver mais corpo, partilharei (detesto esta palavra, mas vá lá!) a ideia por aqui. Tenho a certeza que será apelativa para muitos leitores deste blogue.    

Meia dúzia de anos...

Faz hoje seis anos - apenas uma meia dúzia de anos... - que este blogue foi iniciado, precisamente na data em que assumi funções como embaixador em Paris. 

Pareceu-me então curioso utilizar este meio para comentar o quotidiano e deixar registadas algumas notas de diversa natureza, embora não tivesse planeado antecipadamente essa mesma diversidade. Não pretendi criar um espaço oficioso e acho que isso sempre se notou. Quando, no fim de janeiro de 2013, regressei a Portugal e me aposentei do serviço diplomático, decidi prosseguir com o blogue. O termo dessa dependência profissional levou ao uso de uma maior liberdade crítica na elaboração dos textos.

Em todos estes anos, sem uma falha, publiquei todos os dias, no mínimo um "post", estivesse em férias ou em trabalho. Foi um total de cerca de quatro mil "posts", que deram origem a cerca de 38 mil comentários. Em média, nos dias que correm, mais de mil pessoas leem o que por aqui se escreve. 

Não sei por quanto tempo mais este blogue será publicado. Às vezes sinto um certo cansaço no alimentar desta rotina. Mas, até que um dia me dê na veneta parar, poder-me-ão ir encontrando por aqui.    

Grécia


Durante alguns anos, passei na Grécia uma semana durante o verão. Georgios Papandreou, ao tempo que era ministro dos Negócios Estrangeiros, começou a reunir anualmente à sua volta um grupo de mais de duas dezenas de amigos, sob a égide da Fundação com o nome do seu pai, Andreas Papandreou, para debates sobre temáticas internacionais. De manhã ao final da tarde, com os dias a culminarem com uma palestra de um convidado especial, abordavam-se as grandes questões políticas globais. Por lá passaram, noutros anos, Bill Clinton, Amartya Sen, Richard Holbrook, Fernando Henrique Cardoso, Yossi Beilin, Ségolène Royal, etc. E também Jaime Gama e António Guterres. Aprendi muito nessas reuniões em que, por regra, me cabia introduzir os assuntos europeus. São os chamados Symi Simposium.

Num desses anos, em Corfu, um dos convidados americanos de Georgios foi um simpático economista americano. Brilhante, divertido, inventivo e muito cordial, Joe era professor universitário com vasta obra publicada e, por coincidência, ambos vivíamos então em Nova Iorque. Esse facto fez com que nos aproximássemos e, no regresso por Atenas, com as respetivas mulheres, organizámos um simpático jantar a quatro, em que combinámos ver-nos mais tarde em Manhattan. Assim viria a acontecer. 

Passaram uns tempos. Uma manhã, recebi uma chamada telefónica de Georgios Papandreau, de Atenas, inquirindo: "Já deste os parabéns ao Joe?". Eu devia estar distraído. Horas antes, a Academia Sueca anunciara que o Prémio Nobel da Economia fora atribuído ao Joe, a Joseph Stiglitz.

Tempos mais tarde, lançou o "The Globalization and its descontents" e telefonou a convidar-me para um jantar volante comemorativo, na residência da sogra, no Upper West Side (eu morava no lado contrário da ilha), uma mulher muito interessante, que estivera ligada à publicação da obra. Semanas depois, quando Jorge Sampaio, então presidente da República, visitou Nova Iorque, tivemo-lo a jantar em casa, numa noite de conversa muito animada.

Desde que saí de Nova Iorque, nunca mais encontrei Joseph Siglitz. Como não vejo Georgios Papandreou,desde há já quatro anos, quando estivemos juntos em Paris. Georgios é, nos dias de hoje, uma figura muito pouco popular na Grécia. Não conseguiu sequer ser eleito para o parlamento, no passado dia 25. Há uma semana, nos bastidores do "Prós e Contras", quando revelei aos três convidados gregos que era seu amigo, a reação não foi das mais entusiásticas, bem pelo contrário. Mas eu tenho por hábito não deixar que o infortúnio dos amigos afete a amizade e, por isso, Georgios Papandreou faz parte integrante da "minha" Grécia. Onde, um dia, conheci Joseph Stiglitz.

Há dias, Siglitz pronunciou-se sobre a situação grega e a Europa. Constatou, por exemplo, que o euro, criado como um factor de unidade europeia, acabou por provocar assimetrias como nunca antes se observara, considerando a Alemanha, e não a Grécia, a grande ameaça atual à coesão da União Europeia: "A Grécia fez alguns erros, mas a Europa fez erros bem maiores. Quando esta crise começou o rácio da dívida grega face ao PNB era de 110%. Agora é cerca de 170%. O medicamento que lhe deram foi venenoso. Levou a que a dívida subisse e a economia baixasse", acrescentando: "As políticas que a Europa impôs na Grécia simplesmente não funcionaram e isso é também verdade para a Espanha e para outros países". Podemos presumir em quais ele estava a pensar

domingo, fevereiro 01, 2015

Notas de fim de tarde


1. Como português, não me agrada ver o chefe do Estado acossado desta maneira sobre o caso BES. Mas para ter o direito a estar agora calado sobre o banco, o senhor presidente deveria ter tido a prudência de não ecoar na Coreia laudas pouco rigorosas quanto ao estado do mesmo.

2. O que se passa na RTP é quase obsceno. A administração cessante negociou a sua demissão a troca de uns elogios num comunicado que contrariam a avaliação antes feita por quem lhe retirou a confiança. Agora a administração tira desforço em público. E o novo "projecto" para a RTP prenuncia o seu fim. Boas notícias para a SIC e TVI por parte do governo, em ano eleitoral.

3. Não é muito largo o caminho do PS perante o tema Syriza. Os socialistas não se podem alhear do abanão que a Grécia está a provocar na Europa. Mas também não podem, qualquer que seja o pretexto, ficar reféns dessa "guerra".

4. É penosa a situação que se vive em algumas áreas do governo. Depois da deliberada destruição do serviço público, que deixou o Estado em péssimo estado, é quase cruel ver ministros a vegetar, só para o primeiro-ministro dar ares de "resiliente". É patético!

5. O anúncio da carta-protesto do deputado do PSD a Alexis Tsipras só não tem graça porque apouca a instituição parlamentar portuguesa à escala internacional, colando-a a um ato caricatural ridículo, de quem "não se enxerga".

6. Fez bem o governo ao não encarar a possibilidade de retirar a nacionalidade portuguesa aos nacionais integrados no Estado Islâmico. Para além da duvidosa constitucionalidade da medida, Portugal deve assumir, face a esses cidadãos, a sua responsabilidade no combate ao terrorismo internacional.

7. Ainda alguém um dia me explicará a razão de ser dos comentários esquizofrénicos do FMI: num dia, surge alguém com um parecer, no seguinte há um responsável (ou irresponsável?) qualquer a dizer o contrário. Em que ficamos?
 
8. Gostei muito de ver Cavaco Silva homenagear o fado, num pessoa de excelentes vozes e de um instrumentista (e empresário) de mérito ("anda, Pacheco", dizia a Hermínia ao pai do galardoado). Pena foi que soasse a contrição oblíqua, mas devo ser eu que estou a ver mal as coisas.
 
9. Nunca consegui entusiasmar-me pelo espetáculo - que deve ser fascinante - do futebol americano, que agora tem a sua final, o "superbowl", que suspende a vida americana. Acontece-me o mesmo com o cricket, concordando com quem diz que "é tão interessante como ver relva a crescer". Enfim, limitações assumidas.
 
10. O "Observador", um site de grande qualidade que foi, manifestamente, a grande novidade de 2014 em matéria de informação, está a cumprir, com cada vez maior clareza, o objetivo com que foi criado: ser uma voz conservadora, consistentemente anti-socialista, fazendo os possíveis para ainda tentar salvar a direita de um desastre eleitoral em outubro de 2015.

Grécia - Europa


Devo confessar que foi muito divertido para um antigo profissional de relações internacionais poder apreciar a coreografia da conferência de imprensa do presidente europeu do Eurogrupo com o novo ministro grego das Finanças. Ambos sabiam que a "body language" seria medida ao milímetro pelos observadores. E ninguém ficou desiludido.
 
O holandês, com os caracolinhos de um "pãozinho sem sal" de político "by the book", percebeu que estava numa peça com um "script" que não podia controlar, pelo que, num tom um pouco embaraçado, limitou-se a dizer (lendo-as) as "deixas" que trazia alinhadas de casa. Nada de novo e nada de surpreendente: a UE limita-se a dizer o óbvio da cartilha bruxelense e a deixar que sejam os gregos a ir a jogo e apresentar as novidades. Ai dele se, perante Berlim, cometesse algum erro, ousando um improviso que pudesse vir a ter leituras ínvias. Mais holandês do que socialista (a "Internacional Socialista" é, historicamente, um albergue espanhol, onde cabe sempre mais um), o jovem Dijsselbloem (só soletrar isto divide a Europa!) mostra uma ousadia de movimentos de um moinho do seu país e deve sofrer imenso ao ter de confrontar-se com estes "bárbaros", que põem em causa a ortodoxia do "consenso de Bruxelas".  
 
O histriónico ministro helénico, Varoufakis (quem quiser seguir-lhe o blogue, em inglês, clique aqui), que sente ser uma estrela na nova companhia, tem consciência de estar no seu momento Andy Warhol, com o mundo a tentar ler o seu sorriso desdenhoso, sabendo o incómodo que provoca nos interlocutores com a ousadia da sua leitura heterodoxa da questão financeira. Intelectualmente sobranceiro, num estilo físico típico de um filme de ação de Hollywood, está no seu papel de dizer à Europa "lá de cima" que o problema é agora dela. Se bem interpreto a sua atitude - e os dias que aí vêm mostrar-nos-ão melhor se entre ele e Tsipras as coisas se coordenarão sempre à perfeição -, quer fazer crer que estudou todas as hipóteses e cenários e que tem resposta para os próximos capítulos, quaisquer que eles venham a ser. Logo veremos, porque a realidade prova, em regra, ser muito mais imaginativa que os homens.
 
Aconteça o que vier a acontecer, aqueles minutos da conferência de imprensa ficarão para a história de uma certa Europa.

Guerra Colonial


De 3 a 6 de fevereiro, a RTP 2 assinalará o início da Guerra Colonial, através de documentários, filmes e debates. Vejam aqui a agenda de programas.

Na 6ª feira, dia 6, antes da "Costa dos Murmúrios", um filme de Margarida Cardoso, baseado num livro homónimo de Lídia Jorge, estarei às 23 horas num debate sobre Portugal e os processos de independência das suas colónias com Jaime Nogueira Pinto e o embaixador angolano Luis de Almeida.

sábado, janeiro 31, 2015

O nome

 
O Observador traz hoje um artigo curioso sobre a escolha de nomes para as crianças. (Sei que muitos amigos não me perdoarão por estar a chamar a atenção para um site "reacionário", mas eu sou assim, falo do que gosto e o texto tem graça. Pronto!).

O artigo trouxe-me à memória uma história divertida, que mete "corrupção" e tudo. Estávamos nos anos 70. Um grande amigo meu, que se foi embora da vida há poucos anos, regressara de S. Tomé e Príncipe, onde estivera como professor numa missão de cooperação. Por lá conhecera uma funcionária do PNUD, de nacionalidade americana. Apaixonaram-se (até ao fim da vida dele, quase quatro décadas depois) e ela engravidou. Vieram para Portugal. Fomos convidados para padrinhos dessa filha que nasceu e à qual quiseram dar um nome raro, que não fazia parte da lista dos nomes permitidos em Portugal. Queriam que se chamasse Marla. Isso mesmo, Marla!

Avançámos para uma conservatória, conversámos com o conservador, que não se mostrou nada progressista. Eu, recém-diplomata, esmerei-me no processo convictório, mas sem sucesso. Começava mal uma carreira! Que não, que havia regras, que "o 25 de abril não permitia tudo" e coisas assim. Ainda se fosse Marta, tudo bem! Ora Marta! Eu tinha uma sobrinha com esse nome e, claro, fora fácil chamá-la assim. "Olhe! E porque não se engana ao escrever?", aventei. Nada feito, teimava o homem, falando para ser ouvido pelo resto do pessoal, com a autoridade do balcão pelo meio. Sentimos que a coisa estava preta (se é que o politicamente correto permite falar assim).

Olhei bem a personagem. O burocrata tinha um bigodinho, à malandro, tipo "amigo da onça", trejeitos untuosos, anel brilhante, emblema de pedrinhas, de 25 anos de um clube de Carnide. Cheirou-me a dobrável. Chamei-o a um canto do balcão, disse: "O amigo compreende, a mãe da criança é americana, lá na América o nome de Marla "é mato", é uma tradição de família, os avós faziam muito gosto nisso. Eu sei que o meu amigo só cumpre a sua obrigação - e faz muito bem! Porém, os pais estariam disponíveis a dar uma ajudinha para alguma obra social a que o amigo seja apegado, lá no seu bairro, a alguma creche, instituição de caridade". O olhar do funcionário disse-me que eu tocara numa corda sensível. A "obra social" abria-se subitamente ao "mecenato". Deslizei-lhe então uma nota de "quinhentos mil reis" (à época, era dinheiro!) para dentro do processo. Não lhe disse, como o João da Ega ao diretor da "Trombeta do Diabo", a frase literariamente histórica: "Recolha o bago, amigo Palma. Negócios são negócios e o baguinho está aí a arrefecer". Ele não se chamava Palma Cavalão, nem me interessava o nome. Ou melhor, interessava-me que fosse Marla o nome da criança.

A Marla chama-se hoje Marla. Um beijo para ti, Marla, aí por Viena.

Eles

Não são muitos. Aliás, são cada vez menos. Nasceram quase todos num tempo próximo do segundo conflito mundial. Por opção, destino ou meios de família, rumaram ao estrangeiro e por lá frequentaram partidos, copos e universidades. Começaram, quase sempre, pela margens da esquerda. Abril trouxe-os, com naturalidade, de volta. Como os marines de Bush no Iraque, esperavam ser recebidos com flores, foram-no com a olímpica indiferença de um país que não aprecia, por aí além, os iluminados, que detesta estrangeirados, muitas vezes por inveja, na maioria dos casos apenas por feitio. Com maior ou menor sucesso buscaram, na nova sociedade e na nova política, o lugar a que se julgavam fadados. Às vezes foram reconhecidos, até porque alguns tinham real qualidade, quase sempre à mistura com muita falta de senso da medida. Porque são tremendistas no verbo e na escrita, peroram sempre de cátedra, como "tudólogos" da vida, de quem bebeu "do fino", quase sempre num registo definitivo, de finis patriae. Alguns, raros, continuaram à cata de amanhãs que agora já só assobiam, outros foram seduzidos pela direita, outros ainda pelo bonapartismo breve da paróquia. Todos - mas todos! - entendem, lá no fundo, que a pátria que por aí anda os não entendeu, os não aproveitou, não lhes deu a importância e o estatuto de lápide na parede a que se achavam com direito, logo a eles, aos que se universitaram para serem a elite. Sabem tudo, mas não aprenderam nada.

sexta-feira, janeiro 30, 2015

O "estilo Syriza"



Hoje vou jantar com amigos - alguns estrangeiros, mas nenhum grego -  em "estilo Syriza", isto é, sem gravata.

Este já é um tempo novo na Europa do Protocolo. Não sabemos se, no plano político e económico, o sucesso do Syriza está garantido. Porém, no "dress code", a revolução já começou. O seu provável momento alto será a deslocação de Alex Tsipras, na próxima semana, a algumas capitais europeias. Irá sem gravata aos encontros? Imagino a agitação que atravessará os especialistas em Protocolo.

Por cá, quero crer que o ministro Paulo Portas, não obstante todas as divergência políticas, terá sentido, neste ponto particular, uma simpatia pelo estilo de vestuário novo chefe de governo grego.

Trieste ou uma estranha forma de vida


Eu devia ter aí uns dez ou onze anos. O nome surgiu numas palavras cruzadas, com que o meu pai e o meu avô materno entretinham as horas desses serões ainda sem televisão, lá por Vila Real: “Cidade livre no mar Adriático”, com sete letras.

A palavra era Trieste. Nome estranho. Nunca tinha ouvido falar e, no entanto, ela surgiu, fácil, ao meu pai e ao meu avô, que se entretiveram a falar sobre a história da cidade. Eu já tinha então o saudável vício de consultar dicionários por tudo e por nada, mas posso imaginar que me terá soado bem bizarro ler no gordo “Prático Ilustrado” da Lello (verifico agora) que se tratava de um porto na “Venécia Juliana”…

Na conversa dos mais velhos, ouvi então dizer que a tal Trieste tinha sido ou era uma “cidade livre” e isso, recordo bem, excitou a minha imaginação. O que seria uma “cidade livre”? Um lugar onde podia fazer-se o que se quisesse? Abandonando por algum tempo o jogo cruzadista, eles falavam de Trieste ter estado sujeito às mãos de vários poderes. Que coisa interessante! Como seria Trieste?

Um dia, o meu pai mostrou-me, na sua coleção de selos, um carimbo grosso com a palavra Trieste. Era um selo da “cidade livre”!

O nome de Trieste nunca mais abandonou a minha imaginação, num tempo em que o estrangeiro era apenas, para mim, a vilória galega de Verin. Porém, saber do destino trágico de uma urbe, que tinha tido uma existência sobressaltada por muitas guerras, casava bem com a quase homofonia que a ligava à palavra “triste”. Talvez por isso, e por alguma coisa mais que pudesse entretanto ter lido, era a imagem de uma cidade triste a que eu fixara para sempre desse porto do Adriático que não conhecia.

Trieste esteve, por muitos anos, fora das rotas das viagens a que a vida me conduziu. Um dia, numa ida a Veneza, ao sugerir a alguém que a organizou uma “saltada” a Trieste, ali perto, a minha ideia foi recebida com espanto. “Trieste? Mas para que quer ir a Trieste?”. Só faltou que dissessem: “Ninguém vai a Trieste!” Era difícil explicar que uma minha curiosidade de infância alterasse planos de viagem de um grupo. E, lá no fundo, eu sentia-me embaraçado em ter de confessar esse estranho e pouco adulto fascínio. Adiei assim a minha ida a Trieste.

Um dia, em Viena, numa conversa com uma colega, tendo vindo à baila o nome de Trieste, ela sugeriu-me, sobre a cidade, um livro então recente de uma escritora de viagens (até anos antes, escritor, porque entretanto mudou de sexo…), Ian Morris. O título do livro não podia ser mais mobilizador da minha curiosidade: “Trieste or the meaning of nowhere”… Comprei-o, devorei-o e era, de facto, interessante (o volume ainda deve andar por alguns caixotes, fechados desde a partida de Paris). Reforçou-se a minha curiosidade por Trieste.

Passaram uns tempos e, surpresa das surpresas, não é que o governo italiano me convidou um dia a integrar uma mesa redonda em Trieste, sobre questões de segurança internacional!? Aceitei com o entusiasmo de um neófito. Finalmente, Trieste surgia na minha rota de vida. Foi há pouco mais de dez anos.

Ido de carro da Áustria, através da Eslovénia, cheguei num fim de tarde a uma cidade serena, que apenas pela língua soava a italiana. Instalei-me no (então) excelente “Duchi d’Aosta”, na Piazza d’Unità d’Italia. A praça, sobre o mar, dava ares de uma miniatura da nossa Praça do Comércio. Dominava-a o edifício do Municipio. Olhando dela a baía, pressentia-se uma grandeza perdida. Por detrás da sede municipal, ficava a Cidade Velha, que conduzia ao Duomo e ao Castelo de San Giusto, bem como à Basilica de San Silvestro. Confirmei agora os nomes, que já deixara escapar com o tempo.

Nos dois dias seguintes, subi de taxi essa colina para estar nos debates, que tinham lugar na universidade. Pelo meio da tarde, descia a pé as ruelas, tentando perceber a vida fora das grandes artérias. Como viajante, esclareço, sou um “voyeur” de periferias, tenho um vício bisbilhoteiro dos bairros decadentes, encantam-me ruas com pouca gente, casas comerciais sem charme, becos esconsos. Acho que a alma das cidades está mais por aí do que está nas avenidas com lojas estandardizadas.

Trieste, nesse capítulo, não me desiludiu. Nela, os bairros juntam casas antigas com uma arquitetura estranha, idêntica àquela de que estão cheias as cidades do pós-guerra, de uma funcionalidade sem grande graça. Mas, ao mesmo tempo, consegue-se perceber por ali algo mediterrânico, no pálido manchado dos ocres, nas varandas com flores. Lembro-me de ver castanhas à venda, como em Lisboa, o que me confortou.

Perto do porto, os bares e os cafés tinham menos interesse do que eu esperava. Trieste chegou a ser o porto axial do Mediterrâneo e era muito vulgar que as linhas de transporte marítimo trouxessem a menção “via Trieste”, como marca dessa centralidade. Os tempos, porém, eram outros.

Na minha agenda, levava o nome de alguns cafés. Um deles, o “Pirona”, mais pastelaria que café, tinha a fama de ser frequentado por James Joyce, nos dez anos que passou em Trieste. Já o “Tommaseo” se diz ligado à libertação italiana no século XIX. Curiosamente, a sua arquitetura e decoração lembram mais um café de Viena do que um espaço de Itália. Acabei a tarde, frente ao meu hotel, com um “prosecco” no “Caffé del Specchi”, um local elegante, com toque turístico, mas, mesmo assim, incontornável, como alguns gostam agora de dizer.

Volto às origens da cidade. Não os queria maçar muito com a sua confusa história, bem como do território que lhe estava adjacente. Porém, sem ela, não é possível entender o seu caráter tão peculiar, na charneira de vários mundos.

Durante muito tempo, Trieste foi o porto meridional do império austríaco, com o alemão a ser a sua língua. A Itália sempre a cobiçou e viria a ocupá-la após a derrota alemã na primeira guerra mundial. Depois, foi a vez dos nazis, nos anos 40, que a utilizaram como centro para a repressão. Viria a tornar-se-ia jugoslava no termo da segunda guerra. Para ultrapassar o contínuo interesse conflitual da Itália e da Jugoslávia, os Aliados deram-lhe o estatuto de “território livre”, com a URSS e os EUA a terem sobre esse espaço uma dupla tutela, também ela sempre polémica, o que levou à sua divisão em duas zonas de ocupação militar, que se consagrariam mesmo numa partição institucional efetiva em 1954. Apenas em 1975, se encontrou uma solução, com a Jugoslávia (hoje a Eslovénia) a ter direito a territórios a leste e a Itália a fixar-se na cidade. Confuso? Deve ter sido bem mais para quem por lá vivia e foi sujeito a todas estas bolandas, sem direito a pronunciar-se sobre o seu próprio destino.

Flanar por Trieste implica uma visita obrigatória à estação ferroviária. Com alguma imaginação, poderemos ver por ali a sombra do Orient Express dos tempos áureos, na sua rota para Istambul. Se tivesse pretensões de guia turístico, teria também de recomendar o passeio pelas margens do Canal Grande, com uma entrada na bela igreja ortodoxa ou na impressionante Sinagoga, bem como uma sortida ao Palacio de Miramare. Pouco mais.

Recomendo Trieste aos nostálgicos irónicos da História, aos cultores da sociologia empírica que se entretêm a olhar as gentes e os costumes, sem pretensões de sínteses definitivas e inteligentes, mas apenas como forma de tentarem perceber, modestamente e com prazer, o que por ali resta dos mundos atravessados no seu passado. Aviso à navegação: para os amantes das cidades “óbvias”, Trieste pode ser uma imensa seca. Não tem nenhum do “glamour” típico da Itália ali ao lado. Repercute apenas uma distante dignidade dos tempos dos Habsburgos e de quantos lhes seguiram os caminhos. Nem sequer revela a rudeza da alma eslava do seu leste balcânico. De facto, Trieste não é já quase nada disso, ou melhor, é apenas o saldo sofisticado de tudo isso. Mas apenas para quem o souber ler, claro.

Cultura

 
Os tempos não parecem fáceis para os lados da secretaria de Estado da Cultura, "to say the least". Novas mudanças ocorreram agora no Opart – Organismo de Produção Artística, entidade que gere o Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado.
 
Congratulo-me que na nova direção permaneça Adriano Jordão, um homem cuja competência e dedicação tive oportunidade de testemunhar ao tempo que foi Conselheiro Cultural na Embaixada em Brasília, durante os quatro anos em que a dirigi. 

Luis Castro Mendes

 
Se o vosso descuido os fizer perder isto, não digam que os não avisei, está bem?
E se, como aperitivo, visitassem o excelente Tim Tim no Tibete ?

quinta-feira, janeiro 29, 2015

Sindicalismo diplomático

Um dia, creio que 1977, fiz parte de um grupo de jovens diplomatas portugueses que decidiram, coletivamente, não integrar uma Associação dos Diplomatas Portugueses que estava então em curso de criação. Essa associação tinha como implícito objetivo "isolar" os interesses dos diplomatas do conjunto de reivindicações que, à época, os trabalhadores do MNE apresentavam à tutela. Eu insurgia-me então contra aquilo que considerei ser uma espécie de "clube" um tanto elitista e informei os organizadores de que só estaria disponível para integrar esse movimento a partir do momento em que ele tivesse uma natureza expressamente sindical. Não tenho hoje a certeza de estar certo nesse meu gesto radical, confesso, mas foi assim que as coisas se passaram, não sem alguma "accrochage" com colegas com outras perspetivas. Anos mais tarde, a associação viria a mudar de nome e a converter-se num sindicato - a Associação Sindical dos Diplomatas Portuguesas (ASDP) - e, natural e coerentemente, passei a ser seu associado. Anos depois, viria mesmo a ser vice-presidente da direção, como já um dia contei por aqui, com uma historieta divertida.

Ontem, fui eleito como novo presidente da assembleia geral da ASDP. Há precisamente dois anos, dia por dia, deixei o serviço ativo do MNE. Assim, não tenho hoje o menor interesse pessoal direto nas questões de natureza profissional que o sindicato tem perante si. Mas mantive-me sempre como seu associado e sinto-me plenamente solidário com o conjunto de reivindicações que hoje mobilizam os diplomatas portugueses. Essas reivindicações são assumidas pela lista ontem eleita, aliás votada por um número de eleitores que faz história na ASDP. Este sufrágio de clara confiança conforta o grande entusiasmo que constato nos integrantes nos novos corpos gerentes, pela consciência clara de que a condição diplomática atravessa em Portugal um tempo muito difícil, fruto conjugado de alguns atos políticos e administrativos tomados em seu detrimento, conjugados com inaceitáveis preconceitos a que a comunicação social dá fácil cobertura, que urge combater e reverter. A pluralidade das pessoas envolvidas nesta candidatura, seguindo aliás uma saudável e permanente tradição dentro da ASDP, afasta o risco de qualquer alinhamento político-partidário e garante uma grande independência à atuação dos seus corpos gerentes.

Os Açores e a Ucrânia

Algumas almas piedosas ficarão chocadas com a similitude que vou fazer: há qualquer coisa que aproxima os Açores da Ucrânia. É simples: ambos são vítimas da dimensão política da sua geografia.
A NATO nasceu com os americanos já nos Açores. Salazar foi obrigado a aceitar, com Londres à mistura, esta imposição da grande potência do outro lado do Atlântico. Ironicamente, as Lajes acabariam por fazer parte do seguro político de vida do ditador no pós-guerra, quando os ocidentais dela vencedores, já mergulhados na Guerra Fria com os soviéticos, decidiram não correr os riscos que uma abertura democrática na península ibérica poderia acarretar. A partir daí, as Lajes foram um barómetro interessante do estado das relações entre Lisboa e Washington. Porém, salvo algumas "marchandages" de oportunidade, que os cheques em dólares consagraram, Lisboa nunca conseguiu que a base se transformasse num instrumento ativo da sua política externa. A humilhação imposta pelos EUA a Marcello Caetano, em 1973, por ocasião da guerra do Yon Kippur, deixou bem clara a (ausência de) margem de manobra portuguesa na matéria. Todo o discurso sobre o assunto nas últimas quatro décadas, embrulhado pelos nossos esforçados atlantistas, não passou disso mesmo: de um discurso, que nunca atravessou o Attlântico. As Lajes são portuguesas mas o destino geopolítico em que elas se inserem, sendo embora por nós partilhado, não está sob o nosso controlo. Quem não perceber isto ou é ingénuo (e, por isso, perigoso) ou está de má-fé.
A que propósito é a Ucrânia aqui chamada? Porque a Ucrânia é também, a seu modo, uma "casualty" geopolítica. A Ucrânia é um espaço político que uma certa acrimónia face a Moscovo, que nos últimos anos raptou o discurso dentro da UE e da NATO, acabou por erigir num bizarro santuário da intocabilidade. A Rússia, que como entidade política está muito longe de ser "flor que se cheire", acabou por demonstrar na Crimeia (como já tinha feito na Geórgia) que não está disponível para deixar afetar os seus interesses estratégicos e que não permitirá que Kiev se transforme numa guarda avançada de quem ameaça o que considera ser o essencial da sua segurança. E que teme que a atual NATO seja isso mesmo. O Ocidente pensou que tinha ganho a Guerra Fria, depois de moldar quase toda a Europa central e de Leste ao seu "template", por via da UE e da NATO. E, depois, "explorando o sucesso", como gostam de dizer os militares, pensou que podia "ir por ali adiante" na sua cruzada democratizadora e homogenizadora. Só que o mundo real não funciona assim. Por muito que se alguns aceitem que os "bons" estão do lado de cá e os "maus" do lado de lá (nos meus tempos da OSCE, os russos diziam "a Leste de Viena"), a história da paz global ensina-nos que temos que viver lado-a-lado com os "maus". E estes, os "maus", também têm medos, inseguranças e perceções geopolíticas que - goste-se ou não! - têm de ser tidos em conta no quadro global, por muito pouco respeitáveis que possam ser considerados. A história mostrou já, à saciedade, que a Ucrânia é uma fronteira por onde passa hoje a divisão entre dois mundos que, uma vez mais, entraram num ciclo histórico de distanciação. Toda a fronteira têm dois lados e, por isso, a Ucrânia vai sempre ter dois lados.
Cada um a seu modo, os Açores e a Ucrânia são a prova provada, se acaso ela fosse necessária, de que a geografia tem muita força. Não se pode lutar contra ela, ou melhor, poder pode, só que depois saem caras as consequências dessa luta inútil. E irresponsável.

quarta-feira, janeiro 28, 2015

Destinos


O que será melhor? Viver como um nababo num "resort" em Punta Cana, na República Dominicana, ou espiar 50 anos de cadeia na prisão de Frankland, no nordeste britânico? Não parece haver dúvidas. E se houver uma terceira opção, isto é, viver placidamente cá por Lisboa?

A três cidadãos, nascidos no mesmo dia 28 de janeiro e no mesmo ano de 1948, couberam destinos muito diferentes. Um deles, um felizardo, é Mikhail Baryshnikov, bailarino e ator, que anda refastelado nas Caraíbas. O segundo, Charles Taylor, antigo líder da Serra Leoa, foi condenado por crimes contra a humanidade, pelo que vai ter as paredes como paisagem para o resto dos seus dias. Resta um terceiro que, confessa, não tem razões de queixa da vida.  

Os cenários da vida

Vivi em dez cidades diferentes. Nunca decidi em qual delas gostei mais de viver.

Não há uma cidade ideal. Somos diferentes em cada tempo da nossa existência: pelas idades que vamos tendo, pelas ambições que fomos criando ou deixando cair, pelo modo como, em cada momento, nos vamos sentindo, fruto de razões próprias ou que a vida nos impôs. Pelas gentes e pela forma como as cruzámos, pelo bem-estar que pudemos ter.

As cidades só existem connosco dentro. Por anos, consegui ser feliz num lugar difícil como era Luanda sob guerra civil, e estive sempre menos confortável numa cidade que, paradoxalmente, rima com esse conceito, como é Viena. A terra que me mobilizou os sonhos de juventude, Paris, resultou numa experiência aquém da satisfação plena, num quotidiano vivido num tempo estranho - além de que não se deve viver onde se foi turista, aprendi. Brasília, a urbe artificial, onde presumi que iria ter uma existência pesada, converteu-se numa bela experiência, graças a um desafio profissional mobilizador, somado a um círculo agradável de amigos. Londres, cujo formalismo gongórico me assustava, revelou-se uma cidade de vida livre e de gente irónica.

Depois de quatro décadas a mudar regularmente de poiso, concluí que não tenho uma cidade ideal, porque essa cidade teria de conjugar coisas inconciliáveis entre si.

Em tese, todos queremos cidades calmas, onde a organização da vida reduza o stresse, onde o tráfego não nos encanite a paciência, onde se possa passear a pé, onde o verde se imponha ao fumo e ao pó. Vivi em Oslo, onde havia tudo isso, e foi ótimo. Voltei lá, há pouco, e concluí, com facilidade, que não era sítio onde me apetecesse viver.

Por contraste, senti-me bem em Nova York, uma cidade que não para, onde não somos estrangeiros, com lugares públicos apetecíveis, mundo de livrarias, restaurantes fabulosos e lojas de tudo, com gente diversa por todo o lado, a dar vida à vida. E, contudo, gostaria de viver por lá eternamente? O frenesim e o desafio constante vão bem com um certo tempo interior, o individualismo como doutrina de comportamento urbano não fará nunca o meu estilo, a lei do dinheiro é um panorama social onde não gostaria de esgotar os meus dias.

Lisboa é a minha escolha? Não, é apenas o destino. Tem lixo, incivilidade, trânsito caótico, ruído qb. Mas tem sol, tem risos, tem os lugares que já são nossos, as esquinas que dobramos sem surpresas, os locais onde nos chamam pelo nome.

A cidade ideal é aquela onde se é feliz. E isso está dentro de nós, a cidade é apenas o lugar onde encenamos a vida. Mas, paradoxalmente, e se pensarmos bem, a cidade ideal é também aquela que possamos encarar, com serenidade, como o cenário da nossa própria morte.
(texto que publiquei na revista XXI, "Ter Opinião")

terça-feira, janeiro 27, 2015

Síndroma de Estocolmo

Tem algo de patológico o conhecido "síndroma de Estocolmo", o estranho sentimento de afetividade que alguns raptados criam face aos seus raptores, depois um período de pressão psicológica. O governo português parece ter-se tomado de amores masoquistas pelas receitas da Alemanha, na lógica do "quanto mais me bates mais gosto de ti". Deve provocar sorrisos piedosos nos corredores da chancelaria berlinense este afadigado seguidismo face às versões mais radicais da austeridade, este extremado tropismo a fingir de "nórdico", este liberalismo obsessivo que atravessa a maioria cessante.

Lembrei-me ontem disso ao ouvir as lamentáveis declarações do primeiro-ministro, desqualificando de uma forma muito pouco elegante as propostas do Syriza, com o objetivo claro de agradar à tutela alemã. Foi triste e alguém deveria dizer ao dr. Passos Coelho que, nas relações internacionais, é de bom tom manter respeito pelos seus contrapartes, em especial tratando-se do líder eleito de um país aliado e amigo. Por maiores que sejam as divergências que tenha face às suas opções políticas, causa-me sempre um grande incómodo ver um qualquer dirigente do meu país fazer "tristes figuras" na ordem internacional, como ontem aconteceu. Já quanto aos comentários, também de grande infelicidade, do dr. Pires de Lima sobre o mesmo assunto, acho que já todos levamos isso à conta da sua estranha propensão recente para as graçolas de mau gosto, que tem vindo a desgastar a sua imagem. Estará o governo a perder a cabeça?

segunda-feira, janeiro 26, 2015

Campos da Paz

Leio na imprensa brasileira que morreu Aloysio Campos da Paz, criador da Rede Sarah Kubitchek. A Rede Sarah, como é vulgarmente conhecida, é uma instituição dedicada à à prestação de serviços especializados nas áreas de reabilitação física e neurológica e tem hoje oito unidades em grandes cidades brasileiras.
Um dia, em Brasília, tive de recorrer aos serviços da Rede. Estranhei, no hall de entrada, um letreiro a informar os visitantes que, se alguém lhes pedisse dinheiro pelo serviço, deveriam queixar-se. A Rede é gratuita, é essa a sua filosofia central. O seu serviço é impecável, sereno, dedicado, de extrema eficácia profissional. Campos da Paz dirigia a sua equipa pluridisciplinar como um patriarca, como um pai, com um sentido pedagógico permanente, onde nunca faltava o sorriso. Fiquei a dever-lhe atenções e uma excelente orientação. Por isso, agora que soube da sua morte, quero registar aqui o meu pesar. Sempre pensei que o seu nome rimava bem com a ação que desenvolvia.

... e a Grécia aqui tão perto

A vitória do nacionalismo de esquerda na Grécia, não sendo uma surpresa, não deixa de ser um choque e uma provocação à História. A União Europeia confronta-se, tenderia a dizer que pela primeira vez, com uma liderança nacional que, de forma frontal e sufragada por uma clara vontade popular, coloca em causa o compromisso de rigor orçamental em torno do qual tem funcionado o modelo coletivo de saída da crise. A voz de um pequeno país ergueu-se na contestação das políticas que conduziram à sua pobreza e ao desespero. Resta saber como é que o braço de ferro, que só agora se inicia, vai terminar. E, muito em especial, se a sua voz terá eco noutros parceiros.

A Grécia vai dizer à Europa "não pagamos!". Vai dizer que a dívida é por ela titulada mas que rejeita que ela seja lida exclusivamente como uma "culpa" e até uma responsabilidade nacional. É a revolta do pobre contra o usurário, sem cujo dinheiro não pode passar, mas que só aceitou - nas condições em que aceitou - por um estado de necessidade em que se encontrava. O que "ilegitima" a posição do credor. A Grécia rejeita muito mais do que o pagamento integral daquilo que deve: refuta a filosofia de culpabilidade que lhe colaram à pele. Resta saber qual será a resposta e o grau de flexibilidade da Europa, isto é, se está disposta a "comprar uma guerra" com a Grécia que leve a União ao limiar da rutura, à pressão para o abandono da moeda única. E que consequências isso poderá ter para o euro e para o futuro do Tratado Orçamental.

O primeiro-ministro Tsipras tem diante de si uma missão quase impossível, só atenuada pelo facto de possuir o "alibi" de não ter uma maioria absoluta, o que pode facilitar a sua acomodação pontual e a aceitação de alguns recuos, fruto dos compromissos necessários com os seus eventuais parceiros de coligação. Não é apenas no plano europeu que esse ciclópico trabalho se requer. Também no quadro interno, o governo Syriza elevou a fasquia das expetativas muito alto, com promessas de um ambicioso programa de emergência social cujo modo de financiamento não é ainda muito claro.

E nós, no meio de isto? Não é preciso ser bruxo para adivinhar o que vai por S. Bento: "Para já, mantemo-nos discretos. Não se diz nada que possa indiciar que, de alguma forma, subscrevemos a posição grega. Criámos uma imagem de país cumpridor, mantemos os nossos compromissos e veremos como o debate evolui. Se a Grécia conseguir flexibilizar os termos dos empréstimos europeus, muito bem: aproveitaremos! Se não conseguir, o que é o mais provável, o nosso percurso virtuoso merecerá ainda mais destaque perante os nossos credores. E continuaremos na mesma linha. Colocar em causa a nossa posição face à Alemanha, que tanto nos custou a construir, é que não!" Não será assim? Como é que se chama a falta de coragem? Sabem o que significa a palavra pusilanimidade? Então é isso! Ou oportunismo! Chamem-lhe o que quiserem...

Não há alternativa para esta posição nacional? Claro que há! E ela deveria ser encarada, porque, também para nós, a receita da austeridade não tem sido indolor. Também por cá a receita tem sido um fracasso evidente, que só não vê quem não quer. Mas não reduzimos o défice e equilibrámos o saldo primário? Somos como alguém que tem boas análises clínicas mas que continua manifestamente doente, apenas magnificando esperançosamente os escassos sinais de melhoras: a nossa dívida disparou, a recuperação (em grande parte artificial) do emprego estagnou, a emigração qualificada continua, os serviços públicos degradaram-se a um limite quase insuportável. Aí à porta está agora a drástica redução das exportações para Angola e o impacto que isso vai ter no saldo da nossa balança comercial, que já estava a dar sinais negativos nos últimos meses. E o ambiente europeu de juros baixos, que tem aliviado ligeiramente o nosso serviço de dívida, depende de tudo menos de nós.

O interesse nacional justificaria que, com outros países europeus que mostram uma atitude mais aberta face à consideração do caso grego, viéssemos a ajudar a uma flexibilização das metas do Tratado Orçamental, ganhando espaço para "respiração" das economias, de forma ordenada e não dramatizada, de braço dado com a inteligente política do Banco Central Europeu. E que, quebrado que está o tabu da renegociação da dívida, colaborássemos, de forma pró-ativa, para que a Europa encare de vez esse problema, que nos esmaga os orçamentos e destrói o quotidiano das muitas vítimas portuguesas da crise. Mas, como costumava dizer alguém de quem sinto muito a falta, "não estamos com gente disso!".

Tu


Só depois dos trinta anos é que fiz o meu primeiro amigo espanhol. Chamava-se (e chama-se) Rafa e conhecemo-nos em Oslo, na Noruega, onde ambos nos estreávamos como diplomatas em posto no exterior. Um dia, Rafa e a mulher convidaram-nos para um jantar em casa, com o seu embaixador, também acompanhado da mulher. Ele era um velho diplomata (às tantas, era mais novo do que eu sou hoje!), com um ar de Dom Quixote, falas pausadas e enfáticas, uma imagem de um certo estilo da carreira, já então perdida um tanto no tempo. Nós, em Portugal, também tinhamos uma figuras e figurões equivalentes. A senhora podia ter saído de um quadro de Velásquez, cabelo armado, cabeça altiva e uma afetação a mimar o estilo dos "grandes de España" (e, se calhar, era mesmo dessa casta aristocrática que tanto entretem alguns diplomatas em posto em Madrid).

O jantar foi simpático, recordo, com o embaixador a contar cenas da sua vida vivida pelo mundo, recheada de pormenores picarescos, de figuras desenhadas com o exagero da retórica, episódios ensaiados e testados mil vezes, para públicos diversos. Em grau variado, com o decurso dos anos, ficamos quase todos assim, podem crer...

Nessa noite, eu mantinha-me num relativo silêncio, não tanto por timidez, mas essencialmente porque, à época, o meu castelhano era muito primário e hesitante. Das vezes em que intervim, dirigindo-me ao velho embaixador, tratava-o por "Señor Embajador, usted...". Para minha grande surpresa, Rafa fazia-o de uma forma bem mais solta e íntima: "Embajador, tu...". Estranhei muito aquela forma de se dirigir ao seu chefe, de quem o separava uma imensa diferença de idade, e disse-lho mais tarde. O meu amigo riu-se e fez-me notar que, na tradição da carreira diplomática espanhola, o tratamento por "tu", o "tuteo", é aceite e generalizado, mesmo com superiores hierárquicos. Mas esses "tus" são muito diferentes, uns são mais respeitosos que outros, pelo que importa perceber que a a formalidade entre as pessoas não é quebrada necessariamente pelo uso do "tu". No fundo, acontece o mesmo com a necessidade de bom senso na aplicação do "you" anglo-saxónico. E também aprendi entretanto que, por vezes, o "usted", em lugar de ser um modo educado, pode também ser visto às vezes como algo agressivo e até deselegante, uma marcação artificial de distância. 

A que propósito vem isto? Refiro-o para notar um vício que anda por aí em muito boa (?) gente que, estando longe de nos tratar por tu, sendo mesmo cerimoniosos à moda portuguesa, a meio de uma conversa, um pouco "à espanhola", mete coisas como "se tu te distrais..." ou "e quando tu vais comprar um jornal...". Posso estar enganado, mas sinto que é já uma influência, entre nós, da construção espanhola das frases: o Ronaldo ou o Mourinho falam assim... Na realidade, o que essas pessoas quereriam dizer, respetivamente, seria "se nos distraímos..." ou "quando vamos comprar um jornal...". Não notaram?

Este tema das formas de tratamento é um mundo fascinante, que já por aqui abordei por mais de uma vez. E, sempre, recordando a frase de François Mitterrand quando um amigo (relativo) se lhe dirigiu um dia, à cata de intimidade, sugerindo: "François, on se tutoie?". A resposta do antigo presidente, com algo de deliciosamente snobe, ficou histórica: "Si vous voulez..."

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...