Uma noite de 2011, em Paris, depois de um jantar na embaixada brasileira, fiquei à conversa num canto com Lula da Silva, que tinha ido a França receber um doutoramento "honoris causa". O embaixador tinha convidado um grupo pequeno de amigos de Lula, dos quais eu fazia parte. Com gosto, não me custa dizer.
Lula estava muito bem disposto, durante o jantar disse algumas coisas simpáticas sobre a presidência de Dilma Rousseff, então ainda no seu primeiro mamdato, mas senti que o "bichinho" da política ativa não lhe desaparecera por completo. Embora as pessoas à sua volta apenas pertencessem ao Instituto Lula, devo dizer, com sinceridade, que fiquei com a impressão, até por conversas com algumas delas, que o regresso ao poder fazia evidente parte da agenda coletiva, ainda que apenas implícita, daquele grupo. Não sendo plausível que a reeleição de Dilma estivesse em causa, a aposta nas presidenciais de 2018 era assim o cenário mais provável. (Lula iria ainda passar por graves problemas de saúde, mas, nos últimos tempos, parecia "back into business").
Falámos a sós, por alguns minutos. Contei-lhe então uma conversa que havia tido um dia num almoço na poderosa FIESP (Federação das Indústrias do Estado de S. Paulo), com uma das mais importantes figuras da finança privada do país. Aproximava-se o fim do termo do segundo mandato de Lula. A economia ia muito bem, o Brasil parecia imparável e, por alguns tempos, a ideia de poder haver ambiente político para mudar a Constituição e abrir a porta a um terceiro mandato do presidente começara a correr. O meu vizinho de mesa, sem me pedir confidência, disse-me:
- Se se fosse feita aqui na FIESP uma votação secreta para Lula poder ter um terceiro mandato, posso assegurar-lhe que essa ideia era aprovada por larga maioria.
Lula, com uma gargalhada, reagiu:
- Não sei se eles votaram antes do Fernando Henrique ter mudado a Constituição, para ter direito a um segundo mandato... Mas eu nunca quis um terceiro mandato. Queria cumprir a Constituição tal como a recebi.
Pode ser que tenha sido assim, também pode ser que Lula tivesse avaliado que, no Congresso, as coisas não estariam suficientemente maduras para tal. De todo o modo, não o fez e isso foi positivo para a estabilidade institucional do país. Devo dizer que, à época, fiquei com alguma admiração por Lula não ter estimulado os que pretendiam fazer a revisão institucional. E disse-lho:
- Sabe, Presidente, o senhor devia ter um prémio de Geografia.
- Da Geografia, embaixador?
- Sim, Presidente, porque o senhor conseguiu "tirar" o Brasil da América Latina. Na América Latina, as vantagens da continuidade política costumam ser mais importantes do que a letra das constituições. Mas o senhor, não, preferiu respeitar a constituição existente e, pode crer, isso foi muito apreciado em muitos países.
Lula ficou visivelmente satisfeito com o que ouviu. Lá nos despedimos nessa noite, com um imenso abraço, tratando-me por "querido embaixador", como era do seu jeito. Não voltei a falar com ele desde então.
Ontem, Lula, ao tentar integrar o governo Dilma para se furtar à justiça, ajudou a que o país "regressasse" à região. E isso não é uma boa notícia. Tenho muita pena, confesso.