sábado, fevereiro 18, 2012

Síria e Kosovo

Na sexta-feira, estive presente na cerimónia que, em Paris, assinalou o 4º aniversário da independência do Kosovo, uma realidade política até hoje reconhecida por 88 países, entre os quais 22 da União Europeia, incluindo Portugal.

Não pude deixar de recordar-me, na ocasião, que o Kosovo talvez hoje deva a sua existência à intervenção militar promovida pela NATO, em 1999, feita à revelia de qualquer legitimação do Conselho de Segurança da ONU, então bloqueado pela obstinação russa e chinesa. Uma ação discutível mas que, para largos setores da comunidade internacional, se justificou por ser talvez a única forma de suster a repressão sangrenta das forças sérvias sobre a população kosovar. 

A atual crise síria evoca, naturalmente, o caso do Kosovo. Também agora largos setores da opinião pública internacional sentem que se está perante um verdadeiro escândalo: a completa impunidade de uma ação impiedosa de um regime sobre a sua própria população. E, uma vez mais, a oposição russa e chinesa no Conselho de Segurança está presente. Só que, nesta conjuntura, o quadro geopolítico não aponta no sentido de alguns países poderem ser tentados a agir militarmente, mesmo sem o conforto da legitimidade multilateral.

Alguns tentam "perceber" as razões formais da Rússia e da China, ao não darem luz verde para uma pressão constrangente sobre Damasco: os ocidentais mostraram, na Líbia, que a resolução 1973 foi "abusada" e que, da imposição de uma "no fly zone", se passou rapidamente para um processo de "regime change", que não estava previsto no mandato onusino. E ambos os países também temem que, por esta via, comece a consagrar-se um "direito de ingerência", princípio que sempre recusaram, pela utilização alargada e sem controlo que dele pode fazer-se. Razões discutíveis mas arguíveis, no plano dos princípios.

O que a Rússia e a China parece não perceberem é que, ao não partilharem, em situações graves como estas, as preocupações de grande parte do mundo, além de ficarem ligados, inapelavelmente, aos fautores das barbáries, contribuem para condenar a ONU a uma irrelevância que degrada a sua imagem e legitimidade. De bloqueio em bloqueio, vão dando razões a quantos acham, às vezes por motivos que não são os melhores, que, em situações limite, é preciso "ir a jogo", ultrapassando os impasses onusinos. E que assim se cria, na opinião pública internacional, um ambiente de crescente condescendência face a possíveis ações unilaterais, sem limites nem mandatos, que possam pôr cobro a situações de flagrante escândalo humanitário. 

"Não somos a Grécia!"

Pois não!

sexta-feira, fevereiro 17, 2012

Francês

Numa conversa, há dias, uma figura do mundo económico francês comentava, com agrado, o facto de Portugal ser um país francófilo e francófono, elogiando a circunstância dos nossos diplomatas e outras figuras portuguesas com quem se cruzava falarem, quase sempre, "um ótimo francês".

Retorqui-lhe que a realidade não será tão rósea quanto ele julga. Com efeito, se é normal que aos diplomatas seja exigido um conhecimento razoável da língua francesa, já esse atributo começa a rarear muito no resto da sociedade portuguesa, fruto da avassaladora presença do inglês. E lembrei-me de uma pequena história.

Um dia, nas funções executivas que ocupei, convidei um contraparte francês para se deslocar a Portugal. Num almoço de trabalho que organizei no palácio das Necessidades, reuni alguns colegas e altos funcionários. Um dos responsáveis políticos, um jovem secretário de Estado, dez anos mais novo do que eu, brilhante e promissora figura desse governo, logo após ser apresentado ao convidado francês, perguntou-me se ele falava inglês.

Tomei a pergunta como uma mera curiosidade, sabida que é a escassa propensão de muitos políticos franceses para línguas estrangeiras. E respondi que, de facto, já tinha ouvido o nosso convidado falar inglês. Acrescentei, curioso: "porque é que você pergunta isso?". A resposta foi cristalina: "Porque eu não falo 'uma palavra' de francês..."

Nesse preciso instante, dei-me melhor conta da realidade de haver hoje uma nova geração (também) de políticos, em Portugal, que foi educada tendo o inglês como língua central da sua formação e que estão hoje já muito distantes dessa grande língua de cultura que é o francês, infelizmente, e de facto, em forte regressão entre nós. No meu caso, não tenho dúvidas: muito do que sou o fiquei a dever à língua francesa e ao mundo que ela me abriu.

Semana inglesa

No passado domingo, passeando pela londrina King's Road, com todas as lojas abertas, lembrei-me do conceito da "semana inglesa" - a conquista do direito ao descanso obtida no início do século XX. Inicialmente, era um dia e meio sem trabalho nos serviços, passando, mais tarde, a dois dias completos. O comércio foi sempre mais flexível, embora o domingo se tivesse mantido, durante muito tempo, um período "sagrado" de encerramento de quase tudo.

O mundo, entretanto, mudou. A flexibilização dos horários, que sempre existiu em sociedades com direitos sociais limitados, foi-se impondo no mundo liberal, impulsionada, em especial, pela pressão do comércio, ou melhor, do dinheiro. A concorrência entre os diversos modelos de comercialização acabou por criar uma "epidemia" quase inescapável.

Hoje mesmo, foi anunciado que o presidente Nicolas Sarkozy tem intenção de alargar as já existentes facilidades de abertura do comércio ao domingo, um pouco na linha do seu conhecido slogan político: trabalhar mais para ganhar mais. Aliás, muitas zonas turísticas, e não só, de Paris já abrem regularmente todo o fim-de-semana.

Neste tempo em que também alguns feriados desaparecem, em que se flexibilizam certas coisas que tínhamos por adquiridas, talvez algum contraditório não faça mal aos espíritos. Por isso, este fim de semana, já coloquei de parte, para reler, o "Droit à la paresse", o clássico de 1880 de Paul Lafargue, uma obra que imagino não deva ter desagradado ao sogro do autor.

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

Paredes

Recebi alguns comentários pelo facto da música que passou a ser ouvida nos telefones da Embaixada, enquanto se aguarda uma ligação, ser de Carlos Paredes. 

Foi uma opção deliberada por um grande compositor e intérprete português, para substituir um "musak" incaraterístico que vinha com o equipamento de origem. 

A escolha, pelos vistos não foi consensual, como verifico por alguns (embora poucos) mails recebidos. Para contentar esses críticos, prometo, no dia 24 de abril, colocar como música de fundo o "Ó tempo volta p'ra trás".

terça-feira, fevereiro 14, 2012

Café Filho

Há uns dias, falei por aqui de Café Filho. Um colaborador da embaixada, antes de ir googlar as suas dúvidas, perguntou-me quem era.

Café Filho foi um presidente inesperado do Brasil. Sucedeu a Getúlio Vargas, depois do suicídio deste, em 1954. Foi presidente por menos de um ano e meio, tendo-se afastado do cargo por formais razões de saúde (morreu em 1970, com 71 anos). Nem por isso o Estado Novo português deixou de o convidar para uma deslocação a Lisboa, que ficou nos anais das grandes visitas de Estado realizadas a Portugal.

O objetivo de Lisboa era garantir o apoio do Brasil à sua política colonial, atitude que este país só viria a modificar depois da instauração da ditadura militar. Espera-se que que alguém tenha tido o cuidado de explicar a Café Filho que o banho de multidão que teve pelas ruas de Lisboa era menos a expressão da sua popularidade pessoal do que a mostra da imensa simpatia que Portugal tinha pelo país que representava.

Deve ser interessante procurar, nos arquivos do MNE o argumentário que terá estado subjacente ao convite para uma visita de Estado de tão efémero e transitório personagem. Mas a presciência na decisão deve ter sido, pelo menos, idêntica àquela que nos levou, anos mais tarde, a iniciar a construção do monumental palácio de S. Clemente, no Rio de Janeiro, para futura embaixada de Portugal, quando já estava praticamente tomada a decisão de mudar a capital do país para Brasília...

Voltando a Café Filho, foi-me muito interessante verificar, durante os anos que vivi no Brasil, que raramente alguém o identificava como um chefe de Estado da história do país. E que todos ficavam altamente surpreendidos quando eu lhes revelava que essa figura política havia atravessado em glória a rua Augusta, em Lisboa, em carro aberto, sob aplausos e chuva de papelinhos, como o mostram os jornais da época.

Um dia, ao visitar oficialmente a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, pedi para incluírem uma visita ao "Museu Café Filho". Todos os interlocutores locais ficaram surpreendidos, porque, sem exceção, desconheciam a existência desse museu e, alguns deles, do próprio Café Filho, que não identificavam como potiguar (designação dos naturais do Rio Grande do Norte). Teimosamente, lá consegui colocar a visita na agenda. O museu, afinal, era uma desilusão. Como detetei pelo livro de registo, os seus visitantes eram muito escassos. Recordo-me que havia algumas salas com móveis, estantes com livros e muito pouca documentação. Nesta faltavam fotografias da sua "apoteótica" visita a Portugal, que tanto havia marcado a minha memória de infância. 

segunda-feira, fevereiro 13, 2012

Petróleo eleitoral

Aqui há tempos, alguém comentava a circunstância de um determinado candidato presidencial, depois de ter criado fortes expetativas ao longo de muito tempo, ter baixado de forma trágica nas sondagens: "A continuar a descer assim, qualquer dia descobre petróleo..."

domingo, fevereiro 12, 2012

Crime

Os adeptos do Manchester City foram alertados para os cuidados que devem ter com os carteiristas, na sua deslocação esta semana à cidade do Porto.

Por mim, sinto-me muito seguro. Cheguei há pouco a Londres, uma cidade onde, como se sabe, o crime apenas faz parte da imaginativa ficção de Conan Doyle.

sábado, fevereiro 11, 2012

De olhos fechados

Numa iniciativa inédita, o carnaval de S. Paulo terá, este ano, um júri constituído por cegos, que fará a sua avaliação dos sambas sem se deixar impressionar pelos corpos, trajes e coreografias.

Ocorreu-me uma questão: se acaso, na vida política, os votos fossem dados sem que os eleitores tivessem oportunidade de ver as caras dos eleitos, os resultados seriam diferentes?

Salvador

A cidade brasileira de Salvador da Bahia atravessou dias terríveis, com a greve da polícia a gerar uma onda inédita de criminalidade violenta. Lembrei-me muito dos bons amigos que tenho naquela que é a terra onde se cruzam, de forma mais visível, as principais componentes humanas que formaram o Brasil. Entre as quais a portuguesa, bem simbolizada no Gabinete Português de Leitura, de que fica a foto.

Durante muitos anos, a vida política da Bahia teve como figura tutelar António Carlos de Magalhães, uma das poucas personalidades que os brasileiros identificam pela sigla do seu nome: ACM (as outras duas são JK, Juscelino Kubitschek, e FHC, Fernando Henrique Cardoso, o que julgo significativo). 

Nascido para a vida cívica durante o regime militar, ACM foi aquilo que no Brasil se chama um "coronel", uma figura dominadora da política e da sociedade local, com uma força económica e mediática que garantiam o prolongamento da sua manutenção no poder. Fazer política, na Bahia, fora do controlo do clã ACM ou contra ele, era uma aventura, no mínimo, muito arriscada. Personagem controversa, arregimentou, ao longo da sua vida, imensos inimigos no Brasil mas, igualmente, uma legião de seguidores na Bahia. Tendo sido um dos políticos mais poderosos do seu país, teve quase tudo o que o destino lhe poderia dar: foi deputado estadual, prefeito, deputado federal, senador, presidente do senado, governador do Estado, ministro, etc. Conservador nas ideias, apoiou a ditadura militar e, no quadro democrático, integrou sempre as formações mais à direita do espetro político. De origem portuguesa, ACM tinha uma profunda ligação afectiva ao nosso país, cujos interesses no Brasil sempre cuidou em apoiar, quando a tal solicitado.

Em início de 2007, a vida política baiana deu uma imensa reviravolta: o clã ACM foi fortemente derrotado nas urnas, perdendo o governo do Estado, que passou para o PT. Na Bahia, Portugal tinha e tem importantes interesses na área empresarial, pelo que, logo após a sua posse, me desloquei a Salvador para encontrar o governador recém-empossado, Jacques Wagner. Nesse dia em que visitava oficialmente o novo poder, fiz questão de convidar António Carlos de Magalhães para um jantar público naquele que era - e não sei se ainda é - um dos locais mais "in" de Salvador: o Hotel Convento do Carmo, da rede das Pousadas de Portugal. O velho político ficou claramente agradado com o gesto do representante diplomático português, agora que os seus préstimos potenciais para o país onde estavam as suas origens ficavam muito mais reduzidos. Mas eu quis manifestar-lhe, num tempo que lhe era então muito adverso, a gratidão que devíamos a alguém que sempre mostrara gostar de nós. Para a história: ACM viria a morrer seis meses depois. 

Da manhã desse mesmo dia, recordo uma historieta que dá bem conta da complexidade da política brasileira. Eu seguia num carro cedido pelo governo da Bahia. A certo passo, decidi interrogar o motorista, um homem muito simples, sobre os novos rumos da política do país: Lula tomara posse para um segundo mandato, escassos dias antes. "Está satisfeito com a reeleição de Lula?". O homem sorriu, deliciado, e disse: "Eu votei Lula. Gosto muito dele. Fez muito por nós, pelos pobres". Um tanto curioso, inquiri: "E ACM? Que achava dele?". O motorista ia dando um salto no banco: "ACM? ACM é um santo! Está ver estes viadutos, estas estradas? Foi tudo feito por ele! Ele é o nosso pai".

Ver dois inimigos jurados serem adulados pela mesma pessoa é um milagre que só os orixás da Bahia poderiam fazer. Espero agora que esses mesmos orixás também possam ajudar a repor a calma na bela cidade de Salvador.

quinta-feira, fevereiro 09, 2012

Chipre

Ontem, ao receber a visita do meu novo colega cipriota, recordei-me de uma história passada em 1999, que se liga à existência das duas entidades que dividem, de facto, a ilha de Chipre. 

A República de Chipre é hoje um Estado membro da União Europeia. Cerca de 40% do seu território está sob controlo da chamada "República Turca de Chipre Norte", uma entidade criada em 1983, que só é reconhecida pela Turquia e que resultou de um conflito armado, em 1974, que opôs as comunidades cipriotas grega e turca. Nesse ano, uma invasão por tropas da Turquia, após uma tentativa de golpe de Estado para forçar uma anexação à Grécia, provocou a divisão forçada da ilha. Um complexo e não conclusivo diálogo entre as duas partes tem vindo a prolongar-se, desde então. A "linha verde" que divide ambos os espaços tem uma "buffer zone" controlada pela ONU, o que justifica a presença no terreno da sua mais antiga operação de manutenção de paz.

Nesse ano de 1999, fiz uma visita de trabalho a Nicósia, a fim de preparar a nossa presidência da União Europeia, no primeiro semestre do ano seguinte. Lembro-me de ter falado longamente com o então presidente da República, Glafcos Clerides, e com ministro dos Negócios Estrangeiros, George Kasoulides, sobre o processo de adesão do país à UE, muito apoiado pela Grécia, mas que, à época, tinha à sua frente alguns sérios escolhos, colocados por alguns parceiros. Desses interlocutores recolhi também a sua perspetiva sobre os problemas intra-comunidades na ilha.

Meses mais tarde, já no exercício da nossa presidência da União Europeia, visitei Ancara. Os turcos são a verdadeira e indisfarçada tutela de "Chipre Norte", pelo que o assunto faz parte integrante de qualquer diálogo seu com a UE. Para além da questão da sua própria adesão à UE, a Turquia deu sempre uma grande importância à questão cipriota e eu não me pude nem quis furtar-me a debater o assunto, quer com o meu homólogo, Mehmet İrtemçelik, quer com İsmail Cem, o ministro dos Negócios Estrangeiros. Cem, que já desapareceu, era um homem muito simpático e bem preparado, e conservo um livro com fotografias suas que então me ofereceu, várias da quais tiradas nos bairros populares de Lisboa. A visão de ambos esses políticos turcos era, como é óbvio, oposta à que eu recolhera em Nicósia.

Mas eu iria ter uma surpresa, nesta minha visita a Ancara. O primeiro-ministro turco, Bülent Ecevit, teve a a simpatia de me receber em audiência. Ecevit era um homem pequeno, com um ar antigo e um bigode proeminente. Era uma figura histórica da política turca, que alternou no poder executivo de Ancara com o seu grande rival conservador, Süleyman Demirel. Após as amabilidades introdutórias da praxe, colocou-me a seguinte questão: "Soube que esteve em Chipre há alguns meses. Por que razão não atravessou a "linha verde"?" Dito isto, ficou a olhar-me nos olhos, com um ar inquisitivo e profundo. Pelos vistos, estava bem informado sobre os passos dados em Chipre por alguém que mais não era do que um mero secretário de Estado de um país algo distante - um país que, no entanto, então como agora, defendia a presença plena da Turquia e de Chipre nas instituições europeias, sem que, contudo, deixasse de recusar abertamente o reconhecimento de "Chipre Norte". 

"Decidi não atravessar a "linha verde", senhor primeiro-ministro, porque estava em Nicósia a convite do governo da República de Chipre. Naturalmente, só visitei a parte da ilha que está sob o seu controlo".

Ecevit tinha, porém, uma hábil réplica preparada: "Mas o seu homólogo espanhol, poucas semanas depois da sua ida a Chipre, atravessou a "linha verde" e falou com as autoridades de "Chipre Norte"! Porque não fez o mesmo?"

Por um segundo, hesitei, mas respondi-lhe: "É verdade, mas o meu colega espanhol estava na ilha na sua capacidade de representante da presidência da União Europeia e, por essa razão, era natural que procurasse falar com todas as partes. No meu caso, estava numa visita de natureza bilateral à República de Chipre, com a qual assinei mesmo um acordo em Nicósia, pelo que não considerei que fosse esse o contexto adequado para atravessar a "linha verde"".

Ecevit não deu mostras de ter ficado muito convencido da racionalidade imbatível da minha resposta. E eu, confesso hoje, também não...

As novas escutas

Os telejornais televisivos, logo seguidos da imprensa, divulgaram, há pouco, um pequeno filme de uma conversa, na abertura da reunião do Eurogrupo de hoje, entre os ministros das Finanças de Portugal e da Alemanha.

O filme foi feito à distância, mas foi captado o som da conversa, traduzida com legendas. A troca de palavras era, naturalmente, para ser mantida sob reserva, dada a extrema delicadeza do que estava a ser comentado. Estamos perante um caso flagrante de escuta, uma invasão inaceitável da privacidade dos dois interlocutores, que não sabiam que estavam a ser ouvidos. No caso do ministro alemão, o que disse pode, facilmente, colocar-lhe problemas parlamentares.

Se há limites para as práticas intrusivas da comunicação social, este era, claramente, um deles. Uma imprensa que já segue práticas deste género autoqualifica-se. O "chicospertismo" mediático tem de ter um limite.

As contas

Um dia, no auge da negociação do tratado de Amesterdão, em 1997, o atual comissário europeu Michel Barnier, que ao tempo era ministro francês dos Assuntos Europeus, trouxe para a mesa um tema então quase "tabu": as diferentes contribuições financeiras dos países para o orçamento comunitário e o modo como isso poderia, um dia, vir a refletir-se na força de relativa dos países no processo decisório.

O assunto surgiu porque os países mais pequenos, como era o caso de Portugal, resistiam então a alterar, sob pressão dos grandes Estados, o poder de voto que tinham negociado aquando da sua respetiva entrada para as instituições comunitárias. Por essa altura, a opção que se discutia era a combinação do poder de voto com uma relativa ponderação do peso populacional de cada Estado. A França não gostava da ideia, porque isso abalava o equilíbrio formal de poder que mantinha com a Alemanha, desde a criação da CEE. E Michel Barnier notou, num tom que se pretendia de aviso aos Estados mais pobres, que se fôssemos por caminhos de fatores de diferenciação objetiva, então, mais cedo ou mais tarde, acabaríamos por ter também de considerar a desigual contribuição financeira dos Estados para o orçamento comunitário.

Confesso que a fria invocação do argumento me chocou, porque era a primeira vez que via fontalmente expostos por um responsável político, embora num quadro de discussão não pública, os limites da solidariedade intracomunitária. O argumento era rebatível em termos políticos e económicos, nomeadamente com as vantagens diferenciadas que os grandes países retiram do mercado interno, bem como de outros fatores, que não deixei de mencionar, de imediato, à mesa do debate. Mas a conversa parou por aí.

Nos últimos meses, ao observar o modo como alguns Estados tomaram conta, na prática, da gestão das contas da União, tenho vindo a pensar um pouco mais na premonição de Michel Barnier. Que acabou por se concretizar, mesmo sem uma mudança formal dos tratados.

terça-feira, fevereiro 07, 2012

Tutólogos

Tendo andado alguma coisa por esse mundo, nunca encontrei uma espécie idêntica à dos nossos "tutólogos". Refiro-me a esses predestinados portugueses que são capazes de falar e escrever sobre tudo, não no tom leve e limitado de um post de blogue ou de uma despretensiosa nota de comentário, mas em severa coluna jornalística ou cátedra televisiva, com peso e opinião reverenciada. 

Todos nós, na vida comum, nos tornamos especialistas - piores ou melhores - em alguma coisa, fruto da profissão que exercemos ou da dedicação que prestamos a um tema particular. É natural que, nessas matérias específicas, nos consideremos habilitados a "mandar bitaites", mais ou menos judiciosos. No resto dos assuntos, como comuns cidadãos, temos "opiniões", do nível das que emitimos em grupos de amigos, que valem o que valem, por mais "presunção e água benta" que tomemos. Um exemplo claro são os blogues, como este, os quais, nas diversificadas temáticas que tocam, não passam de uma espécie de conversa no "café du commerce".

O que me parece muito estranho é que se tenha consagrado no nosso país - e, como digo, não os vejo noutros países - essa categoria dos "especialistas em tudo", que tanto peroram sobre as virtualidades da descida da "taxa social única" como das estatísticas de suicídios dos adolescentes, dos méritos das opções do Paulo Bento para o centro da nossa defesa como da política do Médio Oriente, da avaliação dos professores às greves dos polícias, passando por milhares de outros assuntos, quase sempre de forma definitiva e não auto-dubitativa. E o país, reverente, para, escuta e olha-os!

Não duvido, em alguns casos, de estarmos perante gente preparada, estudiosa e ponderada, capaz de emitir opiniões sensatas e equilibradas. Noutros, a agressividade jocosa e o radicalismo sectário passam por presumir-se com graça estilística e querer fazer-se passar simultaneamente por profundo. Tenho por algumas (não todas, longe disso) dessas figuras consideração pessoal e admiração, mesmo que delas discorde. Continuo a interrogar-me, contudo, como é possível a esses "tutólogos" pretenderem ser-lhes acessível toda a complexidade da vida contemporânea, sem que alguém lhes faça perceber que correm o risco de simplificar a realidade através de uma mera e muito pessoal caricatura das coisas. E, devo dizê-lo com franqueza, choca-me que isso condicione a opinião do país que os lê ou escuta, nos espaços de saliência mediática que lhes são concedidos.

Já aqui contei uma pequena frase que alguém disse, um dia, a uma dessas figuras, mas vou repeti-la: "Eu estou quase sempre de acordo consigo, exceto quando conheço os assuntos"...

Presidenciais

As bancas das livrarias parisienses estão a ficar cheias de livros assinados pelos candidatos às eleições presidenciais francesas. E, também, de obras sobre essas mesmas personalidades, algumas mais ou menos hagiográficas, outras algo críticas.

Há dias, comentava com um amigo francês que, passado que seja o dia do ato eleitoral, as obras dos derrotados ou a eles dedicadas deixarão imediatamente de se vender, porque, pelo menos por algum tempo, essas figuras passarão ao "caixote do lixo da história", para utilizar a cruel expressão de Karl Marx.

O meu amigo reagiu, com graça: "E as obras assinadas por quem vencer as eleições? O autor delas bem gostaria de as ver desaparecer e serem esquecidas, para não ter de ver confrontada a sua prática futura com aquilo a que se compromeu por escrito..."

Não está mal visto!

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Isabel II

Um grande amigo, residente no Sri Lanka, mandou-me há pouco algumas belas fotografias da visita que a raínha Isabel II, de Inglaterra, fez a Portugal, em 1957, neste dia em que se celebra o 60º aniversário da sua assunção formal de funções. 

Na imagem que reproduzo, vê-se a soberana britânica com a mulher do nosso presidente da República, Berta Craveiro Lopes. E, também, o ministro dos Negócios Estrangeiros de então, Paulo Cunha, à conversa com o duque de Edimburgo.

A visita de Isabel II a Portugal fez parte de outras operações políticas e protocolares de idêntica natureza, muito ligadas à necessidade de garantir apoios à política colonial portuguesa. Lembro, neste contexto, a visita, em 1959, do imperador da Etiópia, Hailé Selassié (que, tal como a raínha, também fez uma vistosa entrada pelo Cais das Colunas), e dos presidentes da República do Brasil, Café Filho (1955) e Juscelino Kubitschek (1960), bem como do presidente Sukarno, da Indonésia (1960) e do rei da Tailândia (1960).

Em todos os casos, a Baixa lisboeta foi cenário de cortejos muito bem recheados de assistência, de que nos ficaram, para sempre, imensas fotografias a-preto-e-branco em "O Século Ilustrado". Mas pode dizer-se que as visitas de Juscelino Kubitschek e Isabel II foram, sem sombra de dúvida, as que mobilizaram um público mais sinceramente motivado. Isabel II viria a Lisboa mais tarde, em 1985, numa visita já sem o fausto de 1957.

Para se medir melhor a longevidade política da soberana britânica, consulte-se aqui.

domingo, fevereiro 05, 2012

Mentiras

O rapaz espreitou pela porta e o chefe de repartição lançou-lhe, do fundo da sala: "Entre! Entre! Ó Torquato!".

Voltando-se para o embaixador português na Mauritânia, sentado no sofá a seu lado, esclareceu: "O Torquato está cá há uns meses, é do último concurso de adidos". E olhou o adido: "O Torquato conhece o senhor embaixador Gameiro, que está em Nouakchott, não conhece?", com o Torquato a rumorar que sim.

O Torquato, embora simpático, era do género displicente e algo descuidado, gravata permanentemente descaída, um ar de quem anda ali por favor, a quem tanto se dá estar na carreira diplomática como viver à custa dos vastos rendimentos da família, cujo "social" lhe espreitava no nome e lhe permitia alguma subliminar cobertura de membros da hierarquia da casa. Entrara para a carreira quase por acaso, num bambúrrio do concurso. Era useiro e vezeiro de chegar tarde e a más horas, passava o dia agarrado ao cigarro, a ler o jornal esticado num sofá, sendo de uma lentidão exasperante na execução das escassas tarefas de que era encarregado.

"Ó Torquato, você chegou a falar com o ministério dos Assuntos Sociais, sobre a questão do acordo sobre segurança social com a Mauritânia? Aqui o senhor embaixador Gameiro precisa de saber em que ponto o assunto está."

O adido, com um ar um tanto ausente, explicou que tinha telefonado duas vezes, que não tinha obtido qualquer informação sobre o estado do projeto de acordo, mas que ia ligar de novo.

"E com quem falou você lá?", inquiriu o chefe, já em tom levemente inquisitivo.

O Torquato embrulhou-se numas explicações menos convincentes, tão pouco plausíveis que delas quase se deduzia que, na realidade, não tinha mesmo tratado do assunto.

"Está bem, está bem! Vá lá ver isso já e diga-me alguma coisa à tarde. Sem falta!", com o rapaz a desaparecer, aliviado, pela porta.

O chefe explodiu: "Desculpa lá, pá! Este tipo é um mentiroso! Já não é a primeira vez que o apanho nestas patranhas", comentou, desalentado, o chefe.

O embaixador visitante tentou moderar a irritação do amigo: "Ó homem! Deixa lá! Também não tens a certeza se o rapaz mentiu. Até pode ter tentado telefonar..."

"Estás muito enganado. Este tipo é tão mentiroso que nem sequer se pode acreditar no contrário daquilo que ele diz..."

O golo de Barcelos

Ben Gazzara (1930-2012)

Nunca foi um ator de topo. As suas origens italianas revelavam-se naquela postura, andar e olhar de "matador" que conferiam, às vezes, um tom algo vulgar e repetitivo a algumas das suas interpretações, dando a impressão de que se estava a representar a si próprio, numa espécie de Humphrey Bogart alatinado.

Só John Cassavetes soube trazer ao de cima o seu melhor, em especial no "The killing of a Chinese bookie". E embora muito longe de ser o seu melhor filme, não esquecerei nunca a Nova Iorque de Gazzara e Audrey Hepburn, no "They all laughed", magistralmente dirigido por Peter Bogdanovich.

... e logo se vai ver!

Ver aqui .