O Melo era aquilo a que agora se chama um cromo. Projetava uma imagem caricatural do diplomata: sempre de fato com colete, de onde sobressaía a corrente de ouro do relógio de bolso. Como tique, tinha por hábito dar lustre nas calças ao brasão que trazia no anel. Falava de forma pausada, mimando o estilo que ele admirava em vetustas figuras da carreira, vindas de um tempo a cujos sinais exteriores ficara fiel. Velho conselheiro já sem hipóteses de promoção ou de chefia de missão, arrastava agora a sua consabida calaceirice por um posto onde fora colocado contra a vontade expressa do embaixador. Este pagava-lhe com uma atitude de permanente ironia e desprezo. Porque era um pouco tonto, o Melo parecia não perceber que era regularmente gozado pelo seu chefe.
Uma tarde, na embaixada, foi chamado ao gabinete do embaixador. Encontrou-o com um colega mais velho, que tinha vindo de Lisboa, em férias. Tratado o breve expediente, o embaixador perguntou-lhe:
- Ó Melo, você tem horas certas?
O conselheiro sacou, com orgulho, do seu velho e valioso relógio de bolso, preso pela ostensiva corrente de ouro. E esclareceu o embaixador. Este voltou à carga, dirigindo-se para o colega de Lisboa:
- Tu queres saber que o nosso Melo nunca muda a hora no relógio?!
Perante o espanto afivelado pelo embaixador visitante, o Melo, sorridente, voltou a tirar o relógio, explicando que, de há muito, decidira não proceder aos acertos horários, ao longo do ano, para evitar forçar o delicado mecanismo do velho relógio. E lá mostrou que, precisamente, tinha então a hora errada.
- É verdade que estes relógios ingleses são frágeis, comentou o chefe do posto.
O Melo reagiu. Não, o relógio era americano! Retirou-o, uma vez mais, do bolso do colete e mostrou a marca, a ambos os embaixadores. E preparava-se para sair quando o seu superior hierárquico, com alguma ironia, lhe lançou:
- Ó Melo, eu perceberia o seu cuidado, se o relógio fosse de ouro, mas assim...
O conselheiro, que herdara o precioso relógio de ouro da família, reagiu e, retirando-o de novo do bolso, mostrou o contraste, sobre o qual deu algumas explicações, que pouco pareceram interessar aos seus interlocutores. E foi saindo. Estava já prestes a fechar a porta, por fora, quando ouviu o seu chefe dizer para o embaixador visitante:
- Aquele relógio do Melo não é nada mau. O que é pena é que não tenha ainda ponteiro dos segundos. Mas percebe-se, é de outro tempo.
O Melo, contudo, ainda tinha ouvido o comentário. Reabriu a porta, pediu desculpa e mostrou, à evidência, que o seu embaixador estava errado: o seu relógio marcava os segundos. E saiu.
O conselheiro já não testemunhou a "barrigada de riso" que invadiu ambos os embaixadores. E, em especial, a frase do seu chefe:
- Eu não te dizia que o tipo sacava do relógio, pelo menos cinco vezes?! Com jeito, ainda tinham sido algumas mais...
Esta história foi-me contada, há cerca de um quarto de século, por um embaixador. Já não conheci o "Melo", nem qualquer os outros protagonistas. Longos anos houve em que era possível a subsistência de algum autoritarismo nas relações hierárquicas, dentro das nossas missões diplomáticas. Eram outros tempos, embora eu ainda tenha encontrado alguns "Melos", pelos corredores das Necessidades.