terça-feira, maio 13, 2014

Surpresas

Houve um tempo em que costumava brincar com amigos brasileiros, que nunca tinham vindo a Portugal e que regressavam daqui deslumbrados com a modernidade da "terrinha", bem distante da imagem que a frequência do anedotário lusófobo neles havia instilado.

A esses amigos, eu costumava perguntar: "Então esperavam chegar a Lisboa e ser recebidos no aeroporto por uma velhinha vestida de negro, de bigode, a cantar o fado e a assar sardinhas?"

Depois da "Eurovisão", estou curioso em saber o que esperam eles encontrar no aeroporto de Viena.

Eu, germanófilo

O meu pai contava a história de um colega que, durante a guerra, se assumia como germanófilo, junto da maioria anglófila dos seus amigos. Passou anos numa solidão orgulhosa, para assim afirmar a firmeza dos seus ideais. Nos dias que correm, e em termos europeus, não me parece que qualquer das duas designações acarrete a menor popularidade.

Sou germanófilo? Não esqueço que devemos muito da Europa que temos à geração política alemã que, no pós-guerra, conseguiu ajudar a constituir as paredes da casa democrática europeia, num tempo de memórias trágicas, de ressaca de fortes traumas e de corajosos compromissos. Como português europeu, sinto-me tributário de um tempo em que contámos com a Alemanha para entender as dificuldades próprias de um Estado inelutavelmente periférico na geografia, recém-saído de uma ditadura que presidira às últimas décadas de um império alimentado contra o tempo. Considero-me para sempre devedor da atenção que um homem como Helmut Kohl dedicou a um país que lhe era distante, talvez porque tivesse entendido que, também nós, lutávamos para derrubar um "muro" que nos separava da esperança na consolidação da liberdade e na construção do bem-estar.

Para Portugal, a Alemanha foi, durante muito tempo, o "bom gigante" com o qual contávamos no seio da Europa, distante da atitude do outro parceiro do novo eixo dominante, da França, onde nos foi difícil superar o cinismo que uma figura como Giscard d'Estaing simbolizou como ninguém, no nosso processo de aproximação às instituições comunitárias. Com a Alemanha, para surpresa de muitos, comungámos no desejo de ver a Europa alargada a Leste, porque cedo entendemos que esse era o inevitável preço que havia que pagar pelo fim da União Soviética, abrindo uma janela de oportunidade para um novo equilíbrio geopolítico, que era também o nosso. Desde logo, pela unificação alemã, um primeiro "alargamento" nunca como tal assumido, por uma espécie de pudor reverencial.

Numa década, a Alemanha mudou imenso. Com o curso da recente crise financeira, alterou drasticamente o seu paradigma de relação intra-europeia e projetou de si própria a imagem de uma potência económica ainda longe da plena maturidade política, com uma atitude à altura do seu efetivo poder. A sua liderança na gestão da crise foi no mínimo patética, sempre arrastada pelos acontecimentos, em lugar de os pilotar. O modo como nela tem controlado as figuras maiores da máquina da União Europeia demonstrou arrogância, insensibilidade e acabou por afetar duradouramente a legitimidade política das suas instituições.

A Europa nunca será um país, pelo que, para ter hipóteses de afirmar-se no seu espaço e na força dos valores que projeta no mundo, necessita de ter no seu seio Estados fortes que tenham, simultaneamente, o sentido de compromisso em torno dos interesses comuns e a grandeza de os pensarem numa lógica que tenha a permanente preocupação de evitar ou diluir as clivagens. O respeito pelos mais fracos é o sinal mais importante dessa grandeza. Sinto cada vez mais saudades da Alemanha que aprendi a admirar e respeitar em Bona. A minha "germanofilia" é, dia após dia, posta em causa pelo que me chega de Berlim.

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

De acordo

Leio que a viagem do presidente da República à China vai ser coroada por um punhado de acordos. É da tradição diplomática aproveitar este tipo de deslocações para firmar alguns instrumentos negociais. Nem sempre os acordos são de natureza jurídica vinculativa. Muitas vezes não passam de meros protocolos de intenção ou de cooperação, mas é de praxe dar-lhes o estatuto geral de "acordos". Esgotado já muito do espaço para os acordos Estado-a-Estado (a pertença à União Europeia desviou muita da competência nacional nas áreas económicas), grande parte desses textos acabam por ser subscritos por responsáveis de entidades públicas, ou mesmo privadas, normalmente em cerimónias finais, sob a tutela, em fundo para a foto, dos chefes das delegações. 
 
Não é segredo para ninguém que, muitas vezes, e literalmente, esses textos não chegam a sair do papel. Mas, outras vezes, acabam por ter sucesso, abrem portas, em particular se estivermos em face de países em que a vontade das entidades políticas pode ter uma voz decisiva em certas decisões empresariais. Como é o caso da China.
 
Há umas décadas, integrei a delegação de um membro do governo português a um determinado país do norte de África. A visita fora preparada com alguma rapidez, as relações bilaterais no plano político estavam longe de estar desenvolvidas e o propósito essencial da nossa deslocação era muito específico. Não havia, assim, nenhum acordo para assinar.
 
Durante a reunião de trabalho do governante português com o seu homólogo local, este último inquiriu sobre se não havia nenhum acordo para ser subscrito. Murmúrios de ambos os lados da mesa confirmaram que não. O governante local não se mostrou conformado. (Recordo uma história similar que contei um dia aqui). No dia seguinte, a visita terminaria com uma conferência de imprensa e não "parecia bem" que a ocasião não fosse coroada com a assinatura de um qualquer texto. Mas o quê? 
 
Pelos mais de três anos que passara na Direção-geral dos Negócios Económicos do MNE, eu tinha uma grande experiência de "produção" de acordos na área económica. Nesse período, subsequente ao 25 de abril e num tempo de alargamento da nossa rede de relações bilaterais, muitos instrumentos jurídicos haviam sido firmados com dezenas de países - no meu caso, da África, Ásia e Oceania. Assim, e não sem algum gozo, disse que não teria dificuldade, se o chefe da delegação portuguesa assim concordasse, em gizar, com um colega desse país, o texto de um "Acordo geral de cooperação económica, científica e técnica". Esses eram os chamados "acordos-quadro", uma espécie de declarações de intenção, na base dos quais se poderiam estabelecer, mais tarde, outros instrumentos mais específicos e até vinculatórios. Os "acordos-quadro" eram tão genéricos e inóquos que não havia o menor risco de incluir, como seu último artigo (e cito de cor): "Este acordo entrará provisoriamente em vigor na data da sua assinatura e, definitivamente, na data em que ambas as Partes concluírem a troca dos instrumentos de ratificação que confirme estarem cumpridos, em cada uma delas, os requisitos constitucionais que lhes são próprios". Raramente um acordo bilateral foi "produzido" tão rapidamente... Feito de "retalhos" de acordos similares que o arquivo do MNE desse país tinha em carteira, fui criando o texto, com um simpático colega desse país, à medida daquilo que sabia ser-nos aceitável. E, no último dia da visita, lá se assinou o "importante" texto, que, como seguramente salientado por ambos os governantes, consagrava "as excelente relações bilaterais entre os dois países". O que até era verdade...
 
Cerca de uma década depois regressei a esse Estado, nessa altura já na qualidade de "governante". Fui informado que havia um acordo para assinar, que vinha a ser negociado há meses. Já nem sei bem do que área técnica se tratava. Mas, ao lê-lo, não pode deixar de fazer largo sorriso. É que, do preâmbulo do novo acordo, constava expressamente: "Portugal e "o país tal", no âmbito do previsto no artigo "tal" do Acordo geral de cooperação económica, científica e técnica firmado em "tantos de tal", acordam em estabelecer um protocolo no domínio...". Lá estava a referência ao "meu" acordo! Ainda estará em vigor?    

segunda-feira, maio 12, 2014

Exportações

Há coisas que convém deixar sublinhadas. Por serem verdade e por serem normalmente pouco explicadas. É, por exemplo, o que escreveu Nicolau Santos a propósito das exportações, "a única coisa que correu bem na economia real durante os três anos de ajustamento". Para além dos fantásticos êxitos conseguidos por empresários de alguns setores, em muitos casos com o positivo impulso de uma AICEP que funcionou bem (digo-o eu), há elementos que têm de ser melhor precisados. Assim, há vários pontos a ter em conta:
 
"O primeiro é que a maior fatia do acréscimo das exportações se deve aos combustíveis refinados (nota: que não produzimos, que importamos, refinamos e depois exportamos). Sem isso teriam crescido 14% em 2011, 4,2% em 2012 e 2,3% em 2013. O segundo é que, para exportar 100 euros de combustíveis refinados o país tem de importar 82 (contra, por exemplo, 38 euros nos têxteis). E o terceiro é que estamos a exportar mais do mesmo, embora estejamos a subir na cadeia de valor. Em qualquer caso, a dependência dos combustíveis e a anormal compressão das importações têm sido a base do sucesso do novo ajustamento externo. Convém não o esquecer, para não ficarmos surpreendidos quando o vento virar". 

Spoooorting!

Ontem. Entrou, afogueado, a pedir um chá, na sala que tinha esta vista. Tinha sido uma hora e meia de sofrimento. Por debaixo do casaco, uma camisola verde-branca, daquelas que os "décimos segundos jogadores" usam nas bancadas, enquanto desancam árbitros, adversários e, de passagem, lampiões e andrades ausentes. O verdadeiro adepto, não aquele que, como eu, encolhe os ombros e segue para outra chávena com torradas. É ele. E o seu ânimo ia, claro, elevado: "foi a primeira vez que, este ano, perdemos para a Liga em casa!". Caramba! Não há como o conforto destas estatísticas para animar a malta.
 
Grande Sporting! Melhor: grandes sportinguistas, os melhores adeptos do mundo!

"Europa - trágica e magnífica"

É um livro cujo surgimento foi discreto, ligado a um dia da Europa - 9 de maio - que passou sem grande alarde. Trata-se de uma compilação de textos publicados pela jornalista Teresa de Sousa, ao longo de vários anos, no jornal "Público".
 
Teresa de Sousa, como já aqui tive oportunidade de referir, é uma das pessoas que, entre nós, melhor pensa as coisas internacionais e, muito em especial, que mantém sobre a vida europeia uma atenção particular, que a torna uma analista imperdível para quem se preocupa com o futuro do continente e do seu projeto de integração. 
 
Por isso, e sem qualquer reserva, recomendo muito a aquisição (é, além do mais, muito barato) deste seu interessante livro.

domingo, maio 11, 2014

Embaixadas

Há pouco, numa entrevista de rádio, Francisco José Viegas referia que "certos futebolistas brasileiros gostam de fazer embaixada". Pus-me a pensar se a esmagadora maioria dos ouvintes portugueses terá percebido o que isso significava.

No Brasil, o conceito de "embaixada" vai muito para além do de representação diplomática. Segundo o "Aurelião" (versão maior do fantástico dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira), "embaixada" tem também o significado de "malabarismo ou demonstração de habilidade em que o jogador mantém o controle da bola, sem deixar que ela toque o chão". A "embaixada" (ou "embaixadinha", como é mais vulgar ouvir-se), deriva de se manter a bola "em baixo", sempre junto à perna e ao pé. É admitida e apreciada em treinos ou demonstrações mas, curiosamente, durante os jogos, um exagero na utilização dessa qualidade artística, de uma forma que possa ser vista como humilhante para o adversário direto, é considerada ofensiva e dá origem a fortes protestos da equipa adversária. Já assisti a cenas de violência por virtude de "embaixadinhas", ou seja, pelo facto do autor da proeza estar a ser visto como estando "a gozar o parceiro", como nós diríamos.

A língua portuguesa é muito rica nestas variantes vocabulares. A quem pretender ir um pouco mais longe na riqueza do léxico futebolístico usado do outro lado do Atlântico aconselho a dar uma vista de olhos aqui.

sábado, maio 10, 2014

Melhor do que emagrecer

Não obstante a ausência da figura tutelar do Nuno, a tertúlia da "Dois", no "Procópio" de sempre, esteve ontem muito animada. A deslocação de um causídico nortenho à capital contribuiu para animar as hostes, reforçadas com um diplopoeta conjunturalmente repatriado. O mesmo que, ao fim da noite, deixou no seu Facebook estas estrofes.

O SENTIMENTO DE UM ALSACIANO

No bar Procópio, ao anoitecer,
há tal alacridade, tal folia,
que os bulícios, o Tejo, a maresia,
fazem até questão de se esconder.

Alice veio dar- me as boas-vindas
e o Senhor Luís minha bebida.
Falamos com amor das coisas lindas
que tantas comezainas dão à vida...

Ali onde se urdiram tantos golpes
e derrotas se fizeram alegria,
contamos das artroses, dos joelhos

desfeitos sob o peso (nao me voltes

a falar da dieta que eu devia...)
E diz o alsaciano: trapos velhos?

Talvez! Na nossa mesa eram vermelhos...


Mas o nosso homem não ficaria sem resposta. Poucas horas era passadas, e logo um ausente, também ele diplomata, de pena fácil e elegante, deixava pela sua facebookica folha uma resposta:

À NOITE


Naquela tertúlia de burgueses
Há sempre coisas simplesmente loucas,
E que sem histórias nem entremezes
Em todo o caso merecem umas bocas.

Como quando tu, já feito alsaciano,
Todo fresco na Dois te sentaste.
E, rodeado de carinho lusitano,
Reconheces a Pátria que deixaste.

Ele é Luís, ele é Carlos e até Alice
Correm à Dois cheios de alegria.
Houve abraços, risos, tagarelice,
E pão-de-ló molhado em malvasia.


Então, um diplomata que é poeta,
O que faz se a ocasião enseja?
Toma, rápido,da cibercaneta
E sobre aquele episódio verseja.


Ainda diziam por aí que "não havia Necessidade(s)"...

Cavalos

O adido militar junto daquela embaixada era um pouco "bronco". Oriundo da arma de Cavalaria, saíam-lhe por vezes algumas expressões que o bom-senso, mas em especial a boa educação, recomendariam que não fossem utilizadas em círculos sociais. O modo rude como tratava a mulher, uma senhora simpática e discreta, era objeto de frequentes críticas. O embaixador não o apreciava excessivamente, pelo que foi com alguma relutância que, um dia, se viu obrigado a aceitar o raro (que teve, pelo menos, a vantagem de ser o único) convite que o militar lhe formulou para ir jantar "lá a casa".

O repasto era em "petit comité", só com as respetivas esposas, o que tornou a situação ainda um pouco mais pesada. Ao longo da refeição, o militar contou, numa linguagem que às vezes fazia alçar o sobrolho à embaixatriz e baixar os olhos à sua própria mulher, alguns episódios das "campanhas de África", a roçar o picaresco, com o vernáculo a ajudar. Levemente incomodado e não querendo "dar troco", o embaixador foi parco em comentários, com as senhoras a fazerem a despesa da parte mais simpática da conversa.

Chegada a altura do café, foi colocada a alternativa de o servir nos sofás da sala ou à mesa de jantar. O embaixador, num subliminar truque para apressar o ritmo para a saída, propôs que fosse logo tomado à mesa. Servidas as senhoras, o açucareiro acabou por ficar próximo da mulher do adido, mas fora do alcance do embaixador, que discretamente o solicitou. Foi então que, da boca do distinto oficial de Cavalaria, saiu esta pérola que o anedotário diplomático recolheu:

- Então, Miquelina?! Dá aí um coice no açucareiro para o senhor embaixador!

Em tempo: um comentador acidulado (e, claro, anónimo e insultuoso) quis ver neste post um ataque aos militares que servem nas nossas embaixadas. Desengane-se! Tenho a sorte de ter ficado com um amigo em todos - mas todos! - os excelentes profissionais militares com quem me cruzei em várias embaixadas. Estou mesmo certo que eles acharão graça a esta historieta, aliás difícil de contar de outra maneira.

sexta-feira, maio 09, 2014

'"Aspas"

"Andas com aspas a mais", disse-me há dias um amigo, leitor regular do blogue. Já tinha pensado nisso, mas esperava que ninguém tivesse notado...

Sem ser de forma deliberada, dei-me conta que tenho vindo a usar uma escrita cada vez mais solta, com maior frequência de alguma coloquialidade. E como, em mim mesmo, pressinto a estranheza pelo recurso a esse tipo de vocabulário, coloco-lhe aspas, quem sabe se para me distanciar.

Por outro lado, recorro também muito a expressões estrangeiras, não por qualquer snobismo cosmopolita mas apenas porque me ocorrem, por facilidade, por preguiça, porque elas encerram muitas vezes aquilo que quero dizer, dando-me mais trabalho estar à procura de equivalentes portugueses. Às vezes pergunto-me se, para alguns leitores, isso não será um problema. Além de que as aspas, nas palavras estrangeiras, são para mim de inevitável regra. Como é o itálico, para as poucas latinadas que trago na memória.

Voltando ao início. Uso cada vez mais aspas. Concedo que, com isso, os textos perdem algo em elegância. Mas esse é talvez o preço que pago para ter estofo para manter este blogue ativo. "That's life!"

A Europa e os seus tempos

Ao final da tarde de ontem, dei-me conta de que haviam passado precisamente 18 anos desde que estivera a falar naquele mesmo auditório da faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. À época, a conversa foi com o Francisco Sarsfield Cabral (que é feito de si, Francisco?). Agora, fui palestrante único, tendo o professor João Salgueiro para o diálogo final.

Algumas outras diferenças marcaram as ocasiões. Em ambas, a Europa foi o tema, mas a Europa de que falei já muito pouco tem a ver com a Europa desses tempos. O que agora disse foi centrado nas questões económico-financeiras, ao passo que, na outra vez, recordo que quase só se falou de instituições. Dei-me conta que tinha mais perguntas do que respostas para elas, mas é de boa regra os "governantes" terem sempre mais certezas. Desta vez, quer a palestra quer o debate que se lhe seguiu foram em inglês, porque é essa a língua de trabalho do curso de Economia, frequentado por gente que vai do Médio Oriente a uma muito variada Europa. Os tempos mudaram bastante. Mas continuam muito interessantes.

A "saída limpa"

A opção por uma "saída limpa", após o termo do programa de ajustamento, foi uma decisão acertada? Sabê-lo-emos no futuro.

Convém ter claro que vários países, a começar pela Alemanha, foram dando claros sinais de que não eram favoráveis ao estabelecimento de um "programa cautelar" para Portugal. Quando afirmavam publicamente que a "opção" era de Portugal, estavam a esconder jogo: sabiam da dificuldade em obter uma prévia concordância por parte de vários Estados. Porém, a verdade é que o governo português poderia, se quisesse, ter forçado essa vontade, se acaso tivesse considerado que um "programa cautelar" era a opção mais prudente. É claro que isso não seria "de borla": foi por pressentir que havia alguns "strings attached" que a Irlanda fez a opção que fez. 

O governo português não entendeu assim e, dessa forma, vai terminar o ajustamento com um regresso aos mercados sem nenhuma "safety net", para o caso de alguma coisa vir a correr mal. É uma posição que, no essencial, traduz uma forte aposta numa estabilidade dos mercados que, enquanto país, Portugal não tem a menor hipótese de controlar ou sequer influenciar. É bom que isto se saiba e se diga. 

Independentemente do facto do governo ter conseguido cumprir muito daquilo que lhe era exigido pelos credores, a verdade é que só por uma ilusão de ótica alguém pode ficar convencido que o atual "apaziguamento" dos mercados, com a queda dos juros da nossa dívida, tem essencialmente a ver com esse comportamento. Basta olhar para a queda abrupta dos juros gregos para se perceber que são essencialmente fatores conjunturais, e não a atitude e o comportamento dos governos, que está a "segurar" os mercados: foram o excesso de liquidez e, em especial, as garantias dadas pelo governador do BCE de que não deixará "cair o euro". É claro que se o nosso país tivesse abertamente incumprido, e por aí caído em desgraça aos olhos da "troika", os juros não se comportariam assim. Mas bastou-lhe conseguir "ficar bem" na fotografia (mesmo com algum "photoshop" que interessava aos credores) para que as águas se não agitassem por sua causa.  

A meu ver - mas esta é uma opinião pessoal, talvez apenas razoavelmente informada, mas que vale o que vale - a opção por uma "saída limpa" traduziu uma irresponsabilidade, que pode fazer correr grandes riscos ao país. Temo que o "fogacho" político tenha prevalecido face à prudência financeira. Mas, neste particular ponto - admito sem dificuldade -, posso estar a reagir com base na profunda desconfiança (isto é, falta de confiança) política que tenho face a esta maioria e à sua capacidade para estar à altura das circunstâncias.

Acho aliás especialmente grave, e muito sintomático, que o governo tenha escondido dos portugueses uma coisa decisiva: se alguma coisa vier a correr mal, o "programa cautelar" já não estará à sua disposição, o país terá de recorrer diretamente a um novo programa de "resgate", isto é, a "troika" regressará por aí. E acho lamentável que a oposição não tenha feito o "trabalho de casa" e nào tenha sabido denunciar isto em devido tempo.

Não se diga também que a "almofada financeira", entretanto criada (no quadro de um ambiente pontualmente favorável no mercado de capitais, que o governo fez bem em aproveitar) para suprir as necessidades de financiamento do Estado nos meses que aí vêm, constitui uma completa garantia de segurança. Se, por um conjuntura que pode nada ter a ver com a evolução da nossa situação interna (mas que eventualmente pode ser agravada por esta, com decisões do Tribunal Constitucional ou pela perceção de crise política iminente), os juros começarem de novo a disparar no mercado secundário, aquela "almofada" será apenas uma mera extensão no corredor em direção ao cadafalso de um novo "resgate" - com o que isso significará de novas medidas de austeridade.

Para bem de todos nós - e escrevo isto com total e patriótica sinceridade - espero que a opção pela "saída limpa" tenha sido a escolha acertada. Se assim for, se as agências de "rating" começarem finalmente a valorar o esforço feito por Portugal (sustentando, com as suas reclassificações, futuras necessidades de recurso aos mercados), se o BCE conseguir afastar as nuvens deflacionárias (como as declarações de Draghi ontem deixam antever) que atrasam a retoma europeia, se nenhum facto político inesperado à escala internacional (nenhuma Crimeia "a sério") vier perturbar o que está a ser este tempo de acalmia financeira, se vários outros fatores se conjugarem positivamente, tudo poderá estar bem encaminhado e haverá hipóteses de nos "safarmos". Mas, porque a vida não é um poema de Kipling, temo que haja ainda muitos "ses" por aí. Se fosse religioso, rezava. Não o sendo, apenas fico preocupado. E muito. 

quinta-feira, maio 08, 2014

O botão

As cerimónias de entrega de credenciais dos embaixadores estrangeiros passam-se no palácio de Belém, numa grande sala adjacente ao gabinete oficial do presidente da República (digo "oficial" porque, na realidade, o presidente não trabalha nesse gabinete). Durante o ato protocolar, o chefe do Estado tem a seu lado, mas um pouco mais recuado, o ministro dos Negócios Estrangeiros (ou, na frequente impossibilidade deste, um qualquer secretário de Estado, ou mesmo o secretário-geral, do MNE). Quem, em qualquer governo, passou por essa função na cerimónia sabe que deve colocar-se "sobre uma rosa" que existe no desenho da carpete.

A cerimónia é simples. O presidente recebe da mão do embaixador as chamadas "cartas credenciais" (um envelope com uma carta do chefe de Estado estrangeiro ao seu homólogo português, a "recomendar" o seu embaixador), passa-as de imediato ao membro do governo, que as "despacha", logo de seguida, para alguém do serviço do Protocolo, situado ainda mais atrás. Seguem depois para o gabinete oficial, onde os três, acompanhados pelo assessor diplomático de presidente, se sentam para uma conversa de alguns minutos.

Fiz essa "coreografia" várias vezes, ao longo de alguns anos, ao tempo em Jorge Sampaio era presidente. O traje para a cerimónia é o fraque. Com o tempo e com o corpo a ter tendência a avolumar-se, o meu fraque foi ficando cada vez mais apertado. Enquanto de pé, o único botão do fraque ainda fechava. Por isso, e de certo modo, constituía para mim um alívio o momento em que nos íamos sentar, já com esse botão desapertado. A partir daí, a sustentação do abdómen ficava a cargo do colete, este já com vários botões, que se usa sob o fraque. Mas, com o tempo, também o próprio colete foi ficando, progressivamente, mais justo e apertado. E como não podia ser desabotoado, estar sentado era também um tormento. Hoje posso dizer que aquela não era uma cerimónia que eu apreciasse excessivamente.

Numa dessas ocasiões, na receção a um embaixador de um país asiático, mal tínhamos acabado de nos sentar, enquanto o presidente dizia aquelas "niceties" iniciais ("Mr. Ambassador, it's a great pleasure to receive you in Portugal..."), antes de abordar algumas temáticas bilaterais, apoiado nas notas que os Negócios estrangeiros lhe tinham preparado, um dos botões do meu colete soltou-se, projetando-se em frente, mais de um metro. A conversa estacou por instantes. O embaixador, impávido, olhos em bico arregalados, cuidou de preservar um ar neutro, como se o caricato da cena não o tivesse tocado. Eu olhei, algo embaraçado, para um divertido Jorge Sampaio, que, se bem o conheço, deve ter dito qualquer coisa como "Mr. Secretary of State, these things happen!". O assessor presidencial, simpático e risonho, apanhou o botão e devolveu-mo, quiçá temeroso de que, se fosse eu a tentar apanhá-lo, acabasse por desencadear, fruto de uma pressão abdominal acrescida, uma temível "rajada" do resto dos botões a saltarem. Até ao fim da conversa, "fiz peito", sentado entre um presidente que me continuava a olhar bem disposto e um embaixador, muito asiático e compenetrado, que, nem por um momento, através de um simples sorriso, quis dar sinal de que comungava de uma qualquer leitura do ridículo que a situação a que assistira encerrava. Não seria por falha dele que as relações bilaterais seriam comprometidas...

quarta-feira, maio 07, 2014

Hermano Reis

Ontem, um amigo comemorou o seu aniversário e entendeu lembrar, no momento, outros amigos que o destino já não permitiu que o acompanhassem na data. Não é vulgar assim proceder, mas dei-me conta da justeza do ato. O que hoje somos depende muito daqueles que, entretanto, nos deixaram.

Passaram já três anos desde que saiu de cena Hermano Reis. Cruzámos o Hermano, vai para duas dezenas de anos, uma noite, num jantar daquela que era a novidade gastronómica da Lisboa de então, a "Tasquinha da Adelaide". Foi o Zé Guilherme Stichini Vilela quem nos apresentou ao Hermano, bem como ao Paulo, um grande amigo que com ele trabalhava. O Hermano era médico, do Porto, tinha vivido nos Estados Unidos, decidira nos últimos anos apostar profissionalmente em Lisboa. Era a alegria feita vida, a boa disposição feita atitude. Não apenas simpatizámos de imediato: tornámo-nos amigos na hora. Com ele e com o Paulo, bem como com a Manuela - quando ela aportava à capital ou quando nós íamos ao Porto - criámos uma fantástica relação, feita de cumplicidades, de boa disposição, de um entendimento sereno, como se nos conhecêssemos desde sempre. Dou-me conta que nunca soube a idade do Hermano: a sua idade era a da nossa amizade.

O Hermano era um homem grande. Como pessoa e como caráter. Olhava a vida e o mundo com um sorriso imenso, numa perspetiva saudavelmente lúdica, da qual, curiosamente, nunca estava distante um grande rigor empresarial e profissional. Eu tinha com ele uma relação um tanto bizarra: consultava-o regularmente como médico, escutava o seu avisado e muito elaborado conselho, baseado na regular leitura das minhas análises clínicas. Era, contudo, um tanto estranha essa minha "ida ao médico": invariavelmente, acabávamos a consulta a "trocar" restaurantes, a combinar experiências gustativas que estavam muito para além dessas minudências que eram os colesteróis, os trigliceridos ou os açúcares que são o verdadeiro sal da vida. Juntos, com o João Paulo Guerra (que ele nunca conheceu pessoalmente e que assinava "Reviralho" - hoje, estas coisas já podem saber-se) inaugurámos o blogue "Ponto Come" onde, como "Aldini", deixou notas deliciosas sobre experiências que a sua incessante curiosidade gastronómica motivava. Foram tempos felizes. Quantas vezes, nesses anos pesados de trabalho europeu, eu não saía diretamente do aeroporto, esmagado de cansaço, para uma tasca que o Hermano e o Paulo tinham descoberto num improvável subúrbio lisboeta, onde eu recuperava energias (isto é, calorias!) que me compensavam da miséria dos menus aéreos.

Fizémos grandes noitadas, sempre divertidas e bem regadas, daquelas que ficam para a memória eterna da vida. Cruzámos histórias, estivemos juntos em momentos menos bons. Juntámos amigos comuns, passámos bastas horas de alegria. Não só em Portugal, mas também no Brasil, onde animámos algumas incríveis noites cearenses.

A geografia da vida e os ritmos que esta entretanto levou, durante mais de uma década, acabou por nos separar fisicamente. E logo o espetro da morte iria surgir, nesse período, no horizonte do Hermano. Sinto imensa pena em não termos podido acompanhar, como deveríamos, esse seu tempo complexo. E igualmente de não termos sabido testemunhar, de forma oportuna, como também deveríamos ter feito, o nosso sentimento de partilha da dor que a partida do Hermano representou para todos - para a Manuela, para os seus filhos, para o Paulo, para os amigos. Hoje, posso revelar que ficámos como que bloqueados, em busca das palavras que nunca encontrámos.

Lembrei-me bastante do Hermano, ontem, na festa aniversariante do nosso amigo, quando ele lembrou, como diria Lopes Graça, que "até os mortos vão ao nosso lado". Como vai o Hermano.

terça-feira, maio 06, 2014

O cerco

Aqui deixo uma última história do 25 de abril de 1974.

Os voluntários foram mais que muitos, por isso houve que selecionar a dúzia de aspirantes e alferes que se disponibilizaram, naquele fim de tarde de 26 de Abril, para a operação de detenção do almirante Henrique Tenreiro, figura emblemática do regime caído na véspera.

À EPAM havia chegado a notícia de que o idoso marinheiro, que entretanto navegara para a lucrativa indústria das pescas, estaria refugiado a escassas centenas de metros do quartel, numa moradia do outro lado da alameda das Linhas de Torres, residência da “Madame Campos”, então famosa produtora nacional de cosméticos.

Um bando armado, porque pouco mais era que isso, lá partiu para o assalto. Montámos o “dispositivo” em torno da casa, num granel de imprecisão, bem digno de tropas de Administração Militar, que já haviam esquecido o pouco que Mafra lhes ensinara.

Recordo ser já noite quando o capitão Leitão (o nome não era bem esse...) e um tenente bateram à porta da casa, conosco emboscados em volta, num ambiente de alguma tensão, porque se dizia que Tenreiro podia estar protegido por elementos da Legião Portuguesa.

A sequência à abertura da porta prenunciou algum drama: a empregada que assomou, de avental e crista, recortada pela luz interior, esvaneceu à vista das G-3, pelo que vimos o Leitão e o acompanhante arrastando-a, solícitos, para dentro de casa, cuja porta entretanto se fechou.

Cá fora, entreolhámo-nos, silenciosos, à cata de algum ruído, quiçá de tiros. Nada. Passaram aí dez minutos. A porta reabriu-se e o Leitão e o tenente saíram, sorrisos nos lábios, com uma senhora idosa a acompanhá-los à soleira. Abandonámos as nossas discutíveis posições táticas e juntámo-nos, em molhada, no pátio fronteiro à casa, ansiosos por novas.

- Então?! O que é que se passou?.

O Leitão respondeu que tudo não fora mais do que um equívoco, que o Tenreiro não estava refugiado na casa, que apenas haviam assustado três senhoras e a empregada e que, além delas, apenas havia na casa dois cavalheiros de idade. Tudo, portanto, “nos conformes”. Um tanto de orelha murcha, iniciámos o regresso ao quartel.

Já na descida da rampa, um céptico lembrou-se de perguntar:

- E tu conheces o Tenreiro, ó Leitão? Não seria um dos velhotes?

Estacou o bando, com o Leitão já a flutuar na dúvida.

- Bem, de facto não conheço o Tenreiro, mas perguntámos os nomes aos tipos…

Reinstalada a confusão, subsistia uma questão magna:

- Alguém conhece o Tenreiro?

 Um de nós disse:

- De fotografia, sim.

E lá regressou a tropa ao seu objetivo. O Leitão voltou a bater à porta, entrou, terá explicado aos ocupantes da residência o dilema operacional que nos atravessava e tem então lugar a seguinte e edificante cena: fez assomar a uma das janelas os dois cavalheiros idosos, a fim de ser feito o respectivo reconhecimento visual. Em definitivo, nenhum era o Tenreiro.

E lá vimos o Leitão a sair da porta às arrecuas, com muitas vénias para a sorridente senhora, no final de uma brilhante operação militar, na noite em que não prendemos o Henrique Tenreiro.

segunda-feira, maio 05, 2014

Pela hora da "troika"

Às vezes, percebemos que outros dizem melhor do que nós aquilo que pensamos. Um dos mais lúcidos observadores da vida portuguesa contemporânea, Viriato Soromenho Marques, sintetizou há dias no DN precisamente o que penso sobre a nossa situação económica e financeira, num artigo intitulado "Mais perdas do que ganhos". Aqui fica, com a devida vénia, como era uso dizer-se:

Depois destes três anos de voragem, todos temos a obrigação de estabelecer um balanço do "programa de ajustamento". Na minha leitura, os ganhos são frágeis e conjunturais, enquanto as perdas são estruturais, e algumas até irreparáveis. O equilíbrio das contas externas é a nota positiva, mas uma análise mais fina revela que ele só ocorreu devido a uma redução das importações, em virtude da contração da procura interna. Por outro lado, a redução da despesa pública, como na saúde e na educação, ultrapassou em muitos casos a linha vermelha da entropia de instituições e serviços. A redução do défice foi obtida através de uma austeridade mais baseada no aumento dos impostos do que em cortes inteligentes da despesa. Os falhanços estruturais são imensos. Desde logo uma dívida pública que não cessa de aumentar (e a redução da dívida foi o motivo deste programa!), e cuja gestão futura se assemelha a uma roleta russa. O aumento vertiginoso do desemprego e a explosão da emigração criam problemas sociais permanentes e alienam recursos humanos válidos e insubstituíveis por um período que só poderá ser de longa duração. A redução do PIB e o aumento da pobreza demorarão anos a ser compensados por taxas anémicas de crescimento. Uma trajetória que arrisca a deflação, aumenta ainda mais os custos do crédito e do investimento, que seriam indispensáveis para o aumento da competitividade. Como coroa do desaire, a gestão danosa dos ativos públicos, através de privatizações que lesam o interesse nacional, reduzem o Estado a uma entidade virtual, incapaz de se assumir como um criador de estratégias que compensem a total dependência em que o País se encontra de decisões alheias. E o facto de este cândido balanço não ser unânime revela que, mesmo no plano da ética pública, nenhuma lição parece ter sido aprendida.

"Las veladoras"

Faz parte do circuito turístico obrigatório de Havana uma passagem pela moradia onde viveu Ernest Hemingway. Embora o escritor, cujas simpatias progressistas eram conhecidas, não tivesse por ali permanecido muito tempo em pleno período castrista, a sua "Finca Vigia" (curiosamente, a residência do presidente do governo regional da Madeira também se chama "Quinta Vigia") surge subliminarmente inserida na geografia afetiva de que a Revolução cubana se reivindica. Note-se, de passagem, que quinta, casa e recheio foram nacionalizados depois da queda de Fulgêncio Baptista, como a muitas outras propriedades iria acontecer em Cuba.

Há anos, durante uma visita que o meu colega embaixador português em Havana tinha preparado para nós à "Finca Vigia", estava incluído um "tour" pelo interior da casa que, não sendo muito grande, tem a curiosidade de manter alguma "memorabilia" do escritor, em especial alguns milhares dos seus livros, coisa que me divertiria observar, porque por aí ficaria a ter uma ideia daquilo que interessava a quem tão magnificamente escrevia.

Chegados à propriedade, nos arredores da capital, deparou-se-nos um inesperado problema. No dédalo burocrático que o sistema cubano ainda mantinha (e desconfio que manterá), dentre a documentação que o meu colega apresentou à responsável, faltava uma autorização de uma qualquer entidade da área cultural. Sem essa assinatura ou esse carimbo, estava definitivamente comprometida a possibilidade de entrada.

Simpática, a senhora fez algumas diligências telefónicas, desfez-se em desculpas, mas ordens eram ordens. Aliás, esclareceu, talvez para suavizar a nossa desilusão, que as autorizações para visitas ao interior eram muito raras, contando-se não mais do que uma dezena por ano. Mostrou-nos, a propósito, um livro de honra onde figurava a assinatura de uma "muy importante personalidad" que tinha, meses antes, tido esse privilégio. Tratava-se no embaixador da Macedónia junto das Nações Unidas, curiosamente um colega que eu conhecia bem.

Bom, se não era possível a visita, far-se-ia uma volta a pé à moradia, olhando-se o seu interior através das portas envidraçadas e das janelas, a maioria das quais estavam abertas. Não sendo a mesma coisa, ficava-se com uma perspetiva generosa da casa. A nossa guia foi-nos acompanhando, com grande amabilidade, apontando as diversas áreas da habitação e chamando a atenção para alguns pormenores da decoração e equipamento.

À medida que a visita prosseguia, fui-me apercebendo de que, no interior da casa, se movimentavam três outras senhoras, que nos sorriam e se iam afastando, como para não perturbar a nossa visão. De camiseta branca e saia travada muito curta (uma "moda" que eu já tinha visto reproduzida noutros mundos do "socialismo real", mesmo se, como era o caso, estava algo inadequada ao perfil físico das senhoras), não pareciam desempenhar um trabalho muito evidente.

Não sem alguma disfarçada ironia, mas com real curiosidade, perguntei o que faziam aquelas pessoas. A resposta foi pronta: "Son las veladoras", respondeu-me a nossa guia. Inquiri o que eram as "veladoras" e foi-me explicado que a sua função era acompanhar as visitas ao interior da casa, pela qual "velavam", servindo simultaneamente de guias. "Mas não me disse que, no ano passado, apenas houve meia dúzia de visitas autorizadas ao interior da casa". Sim, claro, foi-me confirmado. "Então, nesse caso, o que é que elas fazem?" Pelo olhar do meu colega embaixador e da sua mulher dei-me conta que talvez tivesse excedido a minha quota razoável de curiosidade inquisitiva. A minha interlocutora, contudo, não se descompôs e logo respondeu: "Lo que hacen? Pues allí están para acompañar a los visitantes. Quando los hay, por supuesto!"

Nestes tempos em que dizemos um "até jà" à "troika", cujas sábias políticas nos trouxeram uma taxa de desemprego que vai ficar nos anais da nossa História e no sacrifício forçado de muitas e muitas famîlias, pergunto-me se o "benchmark" cubano de políticas ativas de combate ao desemprego não deveria inspirá-los.

(Roubei a foto a Ana Marques Lopes, do FaceBook)

domingo, maio 04, 2014

O Mondrões e as flores

Dizem-me que hoje é dia da Mãe. Nunca percebi por que luas deixou de ser a 8 de dezembro, como aprendi em criança. Nessa Vila Real da minha infância, duas ruas disputavam então o título das mais bonitas passadeiras de flores da cidade, que os vizinhos faziam pela Páscoa: a rua Avelino Patena e a rua Alexandre Herculano. Tenho a "glória" única de ter nascido na primeira e ter vivido na segunda. As restantes ruas da cidade, onde também se faziam passadeiras, nunca estiveram à altura de competir com aquelas duas artérias. Com os anos, as passadeiras deixaram de se fazer. E é pena.

Os desenhos da rua Alexandre Herculano (na imagem) eram da autoria do senhor Lima, proprietário do Café Imperial. Com fama de comunista, sempre mal encarado e desagradável para os seus clientes, o homem só enchia o seu café na noite de Consoada, onde tradicionalmente se alojavam os "hereges" que insistiam em tomar uma bica profissional ou os viciados, a caminho da missa do Galo. Os seus desenhos das passadeiras eram, contudo, dificilmente batíveis (neste caso pelo desenho do senhor Claro, que orientava a rua Avelino Patena).

Para a composição das passadeiras, ia-se na semana anterior pelos montes, em busca de flores. Integrei essa operação algumas vezes. "Briefadas" pelo senhor Lima, um grupo de senhoras avançava de carro para zonas rurais tidas como podendo proporcionar as cores das pétalas desejadas pelo "designer". Eram levadas pelo Mondrões, um motorista reformado que morava lá na rua e cuja contribuição para o empreendimento era conduzir um grande automóvel emprestado à organização. O Mondrões era de poucas falas, resmungão, pouco aberto a aceitar comentários sobre o modo como dirigia. Contavam as senhoras, durante as noites em que no "Ninho" (uma instituição de educação de crianças, também da rua), se fazia a separação das flores, que a condução do Mondrões proporcionava momentos de grande emoção, fruto do estado de quase permanente embriaguês em que o homem andava. Mas a história foi-lhe justa: não há nota de qualquer acidente ocorrido.

É ainda sobre o Mondrões que corria na minha rua um episódio célebre. Um dia, na tasca do Morrinha, também lá pela rua, ao Mondrões foi dado a provar um vinho branco cuja pipa acabara de chegar do produtor. Pedia-se a sua abalizada opinião. O homem, porém, tinha acabado de emborcar uma dose idêntica de vinho tinto, pelo que o seu estómago terá tido um ligeiro incómodo. É então que o Mondrões, mirando o ventre proeminente, tem um "diálogo" com os dois vinhos: "Ou vos aguentais os dois aí dentro, ou vamos os três para o chão!"

sábado, maio 03, 2014

Veiga Simão

Em 1972, ao tempo em que era presidente da Assembleia Geral da Associação de Estudantes do ISCSPU (isso mesmo, com um "U"), tendo sido recentemente reeleito para o mesmo cargo, recebi um ofício do Ministério da Educação Nacional, que era dirigido a mim, na qualidade de presidente cessante, no qual se referia que, por despacho ministerial, toda a lista associativa eleita tinha sido "homologada" (a "homologação" era obrigatória antes da entrada em funções), com a exceção dos nomes de Fausto Bordalo Gomes Dias (esse mesmo, o Fausto, cantautor) e... de mim próprio. Estávamos na "primavera" marcelista. Três anos antes, em início de 1969, uma outra lista associativa, de que eu também fazia parte, fora "não homologada", sendo ministro Hermano Saraiva. Desta vez, o ministro era Veiga Simão, que hoje morreu.

As voltas da vida são muito curiosas. Fui embaixador junto da ONU, lugar que Veiga Simão viria a ocupar. Fui embaixador no Brasil, lugar que Hermano Saraiva também ocupou. Os dois ministros da Educação que não "homologaram" duas das eleições democráticas em que eu fora eleito viriam a ser sucedidos por mim naqueles postos.

Em 1997, Veiga Simão foi convidado por António Guterres para ministro da Defesa. Lembro-me que, para mim e para outros colegas de governo, alguns dos quais também antigos dirigentes académicos, a nomeação de Veiga Simão constituiu uma surpresa e "não caiu" muito bem. Mas, vistas as coisas com serenidade, não havia razão para tal. Veiga Simão já havia sido ministro da Indústria de Mário Soares, fora deputado pelo PS, tinha ocupado postos importantes na administração pública democrática e a sua elevada qualificação técnica era consensual. Além disso, o seu comportamento político depois do 25 de abril revelou que, tal como algumas outras figuras da administração caetanista, tinha aderido com indiscutível sinceridade às ideias democráticas. Daí a poder ser visto por alguns de nós como "one of us" ia, contudo, alguma distância.

Em substituição de Jaime Gama, acompanhei Veiga Simão a duas reuniões ministeriais da defunta UEO (União da Europa Ocidental), uma vez a Roma, outra a Bremmen. As delegações eram compostas pelos responsáveis dos Negócios estrangeiros e da Defesa de cada país, devendo tomar a palavra um após o outro. Sendo ministro, Veiga Simão chefiava naturalmente a delegação portuguesa. Porém, como logo se verificou desde o início da reunião de Roma, os responsáveis governamentais dos Negócios estrangeiros tomavam a palavra antes dos da Defesa. Deixei que fosse Veiga Simão a ter a perceção de que, não obstante eu ser secretário de Estado e o "número dois" da delegação, cabia-me falar antes dele. Sem entusiasmo mas com garbo, vergou-se à regra que estava a ser seguida à volta da mesa e disse-me para avançar. Assim fiz. No final, recordo-me da estranheza, não isenta de algum prazer, com que terminei a minha intervenção: "e agora, cedo a palavra ao meu colega Veiga Simão, ministro da Defesa do meu país". Como iam longe os tempos da minha "não homologação"! 

Um dia perguntei a alguém que conhecia bem o percurso político de Veiga Simão o que é que verdadeiramente impressionava na personagem. A sua grande inteligência, a abertura à modernidade e o seu entusiasmo, foi a resposta que retive. Julgo que um forte sentido de serviço público seria de acrescentar, com justiça, àquela descrição.  

sexta-feira, maio 02, 2014

Maria Barroso

Faz hoje 89 anos uma senhora por quem tenho, de há muito, um grande respeito: Maria de Jesus Barroso. É uma das figuras públicas portuguesas que, ao longo de todos estes anos, nunca me desiludiu. Combatente contra a ditadura, mulher coragem em tempos pessoais e políticos muito difíceis, mostrou-se sempre, ao lado de Mário Soares, com uma dignidade de que o país se deve orgulhar, consagrando-se como uma personalidade com uma dimensão cultural e cívica que é muito rara entre nós. Escrevo isto com o à-vontade de quem está longe de ser um seu íntimo ou mesmo próximo. Mas não posso esconder a admiração que sinto pela sua coerência e a sua verticalidade.

Parabéns, doutora Maria de Jesus!

... e logo se vai ver!

Ver aqui .