terça-feira, janeiro 03, 2012

Corgo

Ao longo da vida, fui aprendendo a não ter opiniões perentórias (é assim que se escreve, nos termos do novo Acordo Ortográfico, por muito que isso custe a alguns) sobre assuntos de que pouco sei. Posso ter sentimentos ou "feelings", posso emitir opiniões "de mesa de café", mas habituei-me a estudar os assuntos antes de sobre eles me pronunciar de forma categórica. E, quando não os conheço, assumo-o claramente. Fico mesmo surpreendido com a imensidão de "tutólogos" (os que falam e escrevem sobre tudo) que por aí anda, alguns, aliás, bem pagos "à peça". Que sabedoria!

Vem isto a propósito do anunciado termo formal da linha do Corgo, a ligação ferroviária entre a Régua e Chaves, passando por Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Pedras Salgadas e Vidago, que teve belas carruagens antigas (1ª, 2ª e 3ª classes) e, durante muitos anos, fumarentas locomotivas a vapor. Não faço ideia se há ou não razões sólidas para a decisão. Deve haver, pela certa.

Tenho no meu ouvido, desde a infância, a voz de um funcionário da CP a chegar à casa da minha família, em frente à estação das Pedras Salgadas, à procura do meu tio João Santos, secretário da Câmara municipal de Chaves: "o senhor chefe da estação manda perguntar ao senhor Joãozinho se ainda se atrasa muito, pois o comboio tem de partir...". E recordo-me que o mesmo responsável pela estação ia frequentemente buscar um banco de madeira para ajudar algumas senhoras da família a galgar a distância entre o cais e o último degrau do comboio. Penitencio-me por nunca ter feito o percurso entre as Pedras Salgadas e Chaves, com a gabada descida do Reigaz, a passagem em Oura e no Vidago, com vista para o Palace, até ao cruzamento com a linha do Tâmega, antes do fim da linha (cujo projeto de continuidade internacional para Verin ficou sempre no papel). Mas ficaram-me na memória, para sempre, apeadeiros com nomes tão sonantes como Nuzedo, Zimão, Tourencinho, Fortunho ou Cigarrosa.

A CP decidiu agora assumir a decisão de fechar a linha do Corgo, ao que parece por imperativas razões financeiras. Não sei quanto custaria manter, para efeitos turísticos, o percurso que ainda existia, entre Vila Real e a Régua. De uma coisa estou bem certo: custaria muito menos do que os oito milhões de euros que as greves dos maquinistas, só no ano de 2011, fizeram perder à empresa. Mas essas são outras contas. 

segunda-feira, janeiro 02, 2012

Os dias do movimento

Estes não são dias como os outros. Na carreira diplomática, as pessoas mudam de postos, de tempos a tempos. Uns transitam entre embaixadas ou consulados, outros passam de Lisboa (da "secretaria de Estado", no jargão da carreira) para lugares no estrangeiro ("para posto"), ou vice-versa. Às vezes, estas novas colocações acontecem caso-a-caso, espaçadas entre si no tempo. Outras vezes, as nomeações têm lugar para um conjunto mais ou menos largo de funcionários. Neste caso, ocorre aquilo a que se chama, na tradicional linguagem das Necessidades, "o movimento". São esses os dias que vivemos.

O movimento é um evento sazonal importante, uma reorientação dos destinos da casa pela tutela, com a atribuição de novas responsabilidades aos funcionários. Nunca se sabe, ao certo, quando o movimento tem lugar, pelo que é invariavelmente precedido de uma imensidão de boatos sobre a sua efetiva concretização ("dizem que já está para assinatura em São Bento"), com palpites diários sobre datas ("cheira-me que ainda sai esta semana. Já tem o OK de Belém"), sempre de "fontes fidedignas" ("uma senhora do 'quarto andar' garantiu-me que já está para publicação"). Umas vezes, as coisas vão-se sabendo ao poucos (fruto das fugas nas "consultas"), noutras permanecem "no segredo dos deuses" até bastante tarde.

Sobre a substância do movimento, a "cultura" do claustro e dos corredores cria, durante semanas consecutivas, "bocas", mais ou menos fundamentadas ("nem te passa pela cabeça quem vai para Bamako!" ou "já está tudo assente: o homem vai mesmo para Hanói. Até já tratou da escola para o filho..."). A coreografia também é vista à lupa ("o tipo já se passeia como se o lugar fosse dele" ou "dizem que o homem anda, há dias, a rondar o 'terceiro andar'" ou ainda "viram-nos a almoçar juntos nas 'Espanholas'; não é por acaso!").

Com a aproximação do seu anúncio, as informações sobre o movimento vão-se tornando mais fidedignas, sendo progressivamente preenchido o quadro virtual de vagas ("afinal, confirma-se que 'fulano' sempre vai para Kampala. O 'beltrano' bem tentou, mas não conseguiu o posto"). Há sempre uns "connaisseurs" frustrados, que depois procuram justificar os seus erros de avaliação ("estava para ser como eu te tinha dito na semana passada, mas houve acertos de última hora, garantiram-me! É sempre assim!"). Há, ainda, as desilusões ("'sicrano' está fulo! Tinha por certo ir para Dushambe e, afinal, fica na secretaria de Estado. Parece que está à espera de Ulan Bator, que só 'abre' em maio, com a passagem 'à disponibilidade' do outro").

E, por fim, há as surpresas. As surpresas são o verdadeiro "sal" dos movimentos, as nomeações de quem se julgava "não colocável" ou de quem se não esperava que viesse a assumir certas funções. Tanto podem emergir de postos atribuídos ("então não queres ver que aquele tipo, depois de tudo o que se passou, ainda conseguiu ser colocado em Cartum? Francamente!...") ou (caramba! Viste o "postaço" que o tipo apanhou, vindo de onde vinha?) como dos lugares "na secretaria de Estado" que foram objeto de preenchimento ("e o homem lá vem para o lugar que queria. Vamos ter que o aturar em Lisboa. Com o feitio dele, vai ser bonito!").

Frases mais ou menos parecidas com estas devem ouvir-se, por estas horas, nos claustros e corredores das Necessidades. Foi sempre assim! Os dias do movimento são sempre dias movimentados.

Lafaye e o fado da Amália

Nestes tempos em que o fado anda tanto por aí, julgo ser justo lembrar o muito que por ele fez, através da promoção de Amália, o escritor, artista plástico e jornalista francês Jean-Jacques Lafaye. 

Lafaye teve um significativo envolvimento na vida artística internacional da fadista, a partir dos anos 80. Mas foram os seus trabalhos sobre Amália, publicados em francês, que muito ajudaram a fixar o fado no imaginário francês, que quero destacar: "Le chant des paroles", "Amalia, le fado etoilé", "Amalia Florilège" e "Récital idéal: Amalia Rodrigues/Carlos" Gardel", entre uma imensidão de outros textos e trabalhos promocionais  

Agora que a UNESCO consagrou o fado, com a ajuda do mundo, entendo que Jean-Jacques Lafaye merece partilhar conosco este momento. Aqui fica o reconhecimento, com um abraço.

domingo, janeiro 01, 2012

Nathalie

Há dias, o programa dominical televisivo "Vivement Dimanche" foi dedicado a Gilbert Bécaud, que morreu já há 10 anos. Para quem, como eu, testemunhou a imensa popularidade que Bécaud teve em Portugal, foi interessante conhecer aspetos da sua vida e trabalho de que nunca tinha ouvido falar, bem como obras de um período em que a canção francesa já tinha deixado de ser popular no nosso país. Curioso foi também ouvir Charles Aznavour contar histórias daquele que foi um seu rival de audiências.

Uma das canções de Gilbert Bécaud que ficaram no ouvido de mais do que uma geração foi "Nathalie", uma música de ritmo pretendidamente russo, que referia episódios de uma estada em Moscovo e, em especial, a companhia de uma guia local, nesses tempos misteriosos de "guerra fria" (anos mais tarde, Elton John, num outro estilo, mas com a "distância" idêntica, faria uma "Nikita", de cariz tendencialmente similar).

À época, as letras das canções não apareciam escritas nas badanas dos discos. Por isso, os mais dotados para línguas lá as iam repetindo com algum rigor, enquanto que outros "seguiam" o som e repetiam coisas que apenas lhes pareciam similares (o caso mais "trágico" eram as, então populares, canções italianas, que eram trauteadas de forma ridícula, muitas vezes sem se ter a noção do que se estava a dizer).

Numa tarde, na mesa vila-realense da Pastelaria Gomes, assisti a uma divertida discussão a propósito da letra da "Nathalie". Um teimoso colega, já um tanto esquerdista, insistia que Bécaud, no texto que cantava, se referia ao "temps beau de Lénine", em glória da Revolução de outubro (que, por acaso, foi em novembro...). Essa "revelação" deu origem a uma gargalhada imensa, até o convencermos (nesse tempo não havia Google nos telemóveis, para acabar imediatamente com as teimas) que a canção fala simplesmente do "tombeau de Lénine", o túmulo do fundador da União Soviética, na Praça Vermelha...

Sensatez

Com os anos, aprendi que uma das maiores provas de maturidade é fugir à tentação fácil, no primeiro dia de cada ano, de começar a fazer dieta, de organizar estantes e papelada, de escrevinhar com cuidado a nova agenda e lista telefónica, de procurar preparar, a tempo e horas, a vida lúdica (espetáculos, férias) para os meses que aí vêm e outras coisas assim ditadas pelas regras de uma efémera previdência, na lógica sergiana (não de António Sérgio, mas de Sérgio Godinho), de que "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida". Se o Natal é quando um homem quiser, o ano novo também deve ser. Mudar de vida porque se muda de ano é entregar a nossa existência ao calendário. E isso é muito triste, a menos que ele seja da "Pirelli"

A grande sabedoria é ter coragem para continuar a fazer, no "ano novo", exatamente o que se fez no "ano velho". Nem mais nem ontem. Se há coisa a que é preciso resistir é ao "agora é que é!"  

sábado, dezembro 31, 2011

2012

Não quero começar este ano com uma nota pessimista. Por isso, deixo-lhes apenas uma nota realista.

Votos de um bom ano!

Como se diz na minha terra, "não há de ser nada"!

Última frase

De uma pessoa amiga, recebi, neste último dia de 2011, esta frase de Nietzsche:

"Uma das formas de disfarce mais subtis é o epicurismo e uma certa coragem ostentatória do gosto que assume ligeiramente o sofrimento e se defende de tudo o que é triste e profundo. Há homens serenos que se servem da serenidade porque essa mesma serenidade os torna incompreendidos. E que querem ser incompreendidos."

Acabo o ano com esta frase, de que gostei.

Conhecimentos

Na carreira diplomática, conhece-se muita gente. Esse é apenas o efeito colateral de uma profissão que, pela sua natureza, implica imensos contactos. Quando colocados no estrangeiro, os diplomatas acabam por ter um conjuntural acesso a pessoas, instituições e círculos sociais que estão vedados, em regra, a muitos outros cidadãos. Nas suas próprias capitais, dependendo das funções exercidas, muitos diplomatas são cortejados pelas embaixadas estrangeiras, sedentas de apoio para a obtenção de facilidades.

A primeira regra que um diplomata deve aprender é que esse seu estatuto pseudo-social é limitado no tempo e deriva apenas, ex officio, das funções que transitoriamente ocupa. E que, em regra, isso acaba com o termo dessas mesmas funções. Quando vivi em Londres, ia todos os anos ao "garden party" oferecido pela raínha, que sempre saudava pessoalmente os diplomatas numa receção de gala em Buckingham. Porquê? Apenas porque eu trabalhava então na nossa embaixada. Agora, quando vou a Londres, se um dia quiser visitar o palácio real, compro um bilhete e sigo o guia turístico. E raínha, nem vê-la!

Perceber a naturalidade disto é sintoma de mero e proverbial bom-senso. Mas, infelizmente, nem todos os diplomatas o têm. Conheci colegas, felizmente poucos!, que ficaram convencidos que, pelo facto de terem tido fortuitos contactos com personalidades públicas, passaram a beneficiar de um imediato "social upgrading".

Recordo uma jovem adida de embaixada que, tendo acompanhado o seu ministro dos Negócios Estrangeiros numa delegação a um determinado país, durante a qual o governante foi simpático e "quebrou" alguma distância, se sentiu autorizada, de regresso a Lisboa, a convidar o ministro para a sua festa de aniversário. E ficou ofendida com a "nega" que recebeu...


sexta-feira, dezembro 30, 2011

Prendas

Na vida internacional, recebem-se frequentemente algumas prendas que consideramos bizarras. As mais das vezes, isso deve-se ao facto dos critérios estéticos de certas culturas serem muito diferentes dos nossos. Por isso, ficamos frequentemente "sem graça" ao ser confrontados com ofertas que, de imediato, concluímos que não irão nunca ter um lugar nas nossas casas. Se as oferecemos a terceiros, para além disso poder representar uma ofensa a quem no-las deu se se acabar por se saber desse desvio, também ficamos com a obrigação de explicar o que estamos a dar e a razão por que isso acontece. É sempre um problema, até porque, não raramente, se trata de peças caras, não tendo nós o direito de não reconhecer a gentileza do gesto.

Recordo-me que, há uns anos, a minutos de sair de um hotel de um riquíssimo país do Golfo, para o qual tinha apenas levado uma mala de mão e uma pequena pasta, cheiíssimas já com roupa e papelada, fui surpreendido pela oferta de uma imensa - mas horrorosa! - e muito pesada peça de cristal. Nem eu tinha como a transportar, numa viagem que iria ter duas escalas, nem aquilo poderia alguma vez ser exposto em sítio algum. Optei, em desespero de causa, por oferecê-la ao motorista que tinha andado comigo nos dias anteriores, não sem antes passar uma declaração escrita, garantindo que se tratava de uma oferta da minha parte... Espero que o homem não tenha tido problemas e, em especial, que não tenha contado nada às suas autoridades!

Há dias, pelo Natal, recebi, de um colega de um país onde os critérios estéticos divergem muito dos nossos, uma dessas peças "impossíveis". Comentando o assunto com um amigo, ele notou que também as instituições internacionais são, às vezes, alvo de ofertas que, não podendo ser recusadas, criam problemas para a sua exibição. É que, na decorrência de publicitadas e públicas ofertas, as instituições ficam naturalmente obrigadas a expô-las, sob pena de criarem incidentes diplomáticos.

Isso fez-me recordar uma questão que era objeto de muitas piadas, ao tempo em que estive em Nova Iorque. Tratava-se da famosa estátua de um elefante em metal, oferecida à ONU pelo Nepal, Namíbia e Quénia, uma obra de um artista búlgaro.

O secretário-geral da ONU decidiu colocar a estátua no jardim da organização, entre a 1ª avenida e a rua 48ª. Só que logo surgiu um problema: a expressão hiper-avantajada de um certo órgão do animal suscitou, quase de imediato, um escândalo na cidade, com uma romaria de visitantes a apreciar aquilo que ficou conhecido como a "endowed elephant statue" (estátua do elefante bem dotado). 

Para grandes males, grandes remédios. Com a ajuda de jardineiros hábeis, as Nações Unidas lá conseguiram fazer crescer uma sebe junto ao animal, que lhe tapa as "partes" exageradas e torna mais aceitável a exposição da obra de arte. Consta, além disso, que aquela área do jardim da ONU já não admite visitas, apenas sendo possível ver a estátua de longe. A eficácia deste "cover-up" é tal que na net não se consegue encontrar nenhuma foto do elefante sem a sebe.

A diplomacia foi sempre a arte de resolver grandes problemas. Ou problemas grandes...

Gastronomia

A toda a largura da primeira página do suplemento "Culture & Idées", do "Le Monde" de amanhã, lê-se "La gastronomie vote à droite", esclarecendo-se, em subtítulo do longo artigo (não acessível por link), que "nascida nos meios conservadores, a arte da boa vida faz culpabilizar as pessoas de esquerda".

Não sabia. Será que a direita é pantagruélica ("eles comem tudo e não deixam nada", dizia o Zeca Afonso) e a esquerda é famélica (daí o "de pé, ó vítimas da fome"?) ?

Presidências rotativas

O futuro dirá se 2011 ficará na história da União Europeia como o ano que consagrou o verdadeiro fim da importância das presidências rotativas.

Elemento tido outrora por essencial para a ligação de cada país ao projeto integrador, por suscitar uma mobilização nacional e promover a diversidade de agendas e sensibilidades, a presidência rotativa esteve sempre sob fogo por parte de alguns, que consideravam o modelo como cada vez mais fragilizante da continuidade do trabalho comunitário. Com a passagem da União a 27, foram claras e públicas as dúvidas sobre a capacidade de alguns Estados assumirem as responsabilidades decorrentes da presidência. O tratado de Lisboa, ao criar a figura de presidente do Conselho Europeu e ao retirar à presidência rotativa muitas das suas competências, terá sido a machadada formal no modelo.

Em tempos mais recentes, as coisas foram, porém, muito mais longe. A circunstância de países que assumiam as presidências estarem afastadas do projeto da moeda única, sendo que esta está no centro das preocupações da União, tornou ainda um pouco virtual a sobrevivência do modelo. E esse facto, por outro lado, abriu caminho à emergência dos poderes fáticos dentro da UE, o que, não sendo uma novidade, nunca tinha sido expresso publicamente de forma tão ostensiva.

Como irão evoluir as coisas a partir daqui? A Dinamarca, que assume a presidência no primeiro semestre de 2012, é um país que não adota o euro e tem um "opting-out" no quadro da União Económica e Monetária consagrado nos tratados. Seguem-se Chipre, com um conflito interno que tem repercussões importantes nas relações externas da UE, a Irlanda e a Lituânia. Trata-se de um conjunto de pequenos Estados, numa Europa em que o papel dos grandes Estados parece estar a afirmar-se de modo flagrante. Mas, por exemplo, a Dinamarca e a Irlanda são países com muito forte identidade comunitária, que, no passado, levaram a cabo presidências com grande sucesso. Deixar-se-ão menorizar no seu exercício? Contestarão a preeminência a que alguns se habituaram?

Ironicamente, pode hoje dizer-se que as presidências rotativas estão hoje "protegidas", em ultima ratio, pelo tratado de Lisboa, que foi quem conduziu ao seu enfraquecimento. O facto de, como recentemente se viu, ser muito difícil obter um consenso a 27 para alterar aquele acordo, como que garante que o modelo, pelo menos no plano formal, vai continuar a subsistir.

Jornalismo

Há algumas semanas, em Lisboa, num agradável almoço com Baptista Bastos e João Paulo Guerra, muito se falou das "calinadas" do jornalismo contemporâneo. Mas ambos os meus interlocutores lembraram uma imensidão de histórias passadas, que ficaram gravadas na memória de gozo coletivo.

A melhor das frases foi citada pelo João Paulo Guerra, quando recordou esta "pérola" que abria uma reportagem: "Era meia noite e, no entanto, chovia..."

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Havel e Corvacho

Neste final de ano, morreram Václav Havel e Eurico Corvacho.

Visitei Havel em Praga, acompanhando António Guterres, no final dos anos 90. Conheci pessoalmente Corvacho, em 1974/75, nos tempos do MFA.

A morte de Václav Havel mereceu grandes e merecidos títulos. O herói da Revolução "de veludo", um humanista e um democrata, concitou loas de todos os quadrantes. Contrariamente a Alexander Dubček, Havel escapou à habitual tragédia das figuras-charneira da História e viu, em vida, consagrado o seu papel. Intelectual e escritor, apoiou o caminho do seu país em direção à União Europeia, depois da partilha da Checoslováquia. E morreu em glória.

Muito menos leitores deste blogue ouviram falar de Eurico Corvacho. Foi um militar de abril, próximo da "esquerda militar", o grupo que então mais se ligou ao Partido Comunista Português. Foi comandante da Região Militar Norte e a sua imagem surgiu pela primeira vez aos portugueses, pela televisão, a denunciar a atividade de um grupo de extrema-direita que se opunha à Revolução, o ELP - Exército de Libertação de Portugal. Foi membro do Conselho da Revolução. E morreu esquecido.

Havel e Corvacho tinham pouco a ver um com o outro? O discurso maniqueu, tão no "l'air du temps", dirá que Havel quis a democracia para o seu país e que Corvacho apenas queria implantar uma nova ditadura. Eu digo que, cada um, à sua maneira, teve uma ideia de liberdade para o seu país. A História favoreceu aquele que, afinal, tinha razão. Ainda bem.

Nadir Afonso

O "Diário de Notícias", que hoje comemora 147 anos (parabéns!) traz na primeira página esta magnífica obra de Nadir Afonso, o arquiteto e pintor flaviense, com mais de 90 anos. Achei que valia a pena reproduzi-la.

Sentimentos

Deveria merecer o maior respeito de todos nós o sentimento da população da Coreia do Norte, expresso nos últimos dias, pela norte do seu "líder" Kim Jong-Il. 

Quando vejo alguns comentários medíocres e jocosos, na imprensa e nos blogues, a propósito do sofrimento público daquela gente, sinto a obrigação de lembrar que os norte-coreanos vivem uma dupla tragédia.

Por um lado, são vítimas inocentes de um dos mais fechados regimes do mundo, que, há mais de 60 anos, lhes cerceia qualquer informação, os policia intelectualmente e os faz serem meros figurantes num gigantesco "trompe l'oeil" que edulcora a tristíssima realidade do mundo que habitam. E, por outro, esse mesmo condicionamento psicológico indu-los a serem muito genuínos na expressão dos seus sentimentos, porque os conduz a tomar como uma irreparável perda a desaparição de um dos obstáculos à sua própria libertação.

A solidariedade que nos deve merecer a tragédia que afeta os norte-coreanos obriga a que respeitemos a sinceridade da sua dor.

Direitos humanos

O ministério dos Negócios Estrangeiros russo publicou, pela primeira vez, um relatório sobre o cumprimento dos direitos humanos no mundo. 

Nesse texto, Portugal é criticado por não ter transposto uma diretiva comunitária sobre direito de livre circulação e residência. A diplomacia russa considera também que 24% dos brasileiros são discriminados em Portugal.

Abre imensas e legítimas expectativas o facto de Moscovo manifestar a sua preocupação com o tema dos direitos humanos.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Túnel do Marão

Desde há vários meses, as obras do túnel que um dia atravessará o Marão estão suspensas. 

Há uns anos, um empresário de águas (e já então feliz proprietário de um "franchising" das Pousadas de Portugal, a quem comprou por-tuta-e-meia uma das mais carismáticas pousadas do país, conferindo-lhe hoje uma decoração digna de uma "pensão da Tia Anica"), conseguiu mobilizar, por muito tempo, a justiça de Penafiel, para tentar ser compensado por alegados (e, depois, não provados) prejuízos ambientais ao seu negócio, causados pelas obras do túnel. Com o tempo ganho, a estrada se não afastou da tal "pensão". Surgiu depois um novo aliado: os constrangimentos financeiros do país. E assim está bloqueado um dos projetos mais importantes para a diluição da interioridade transmontana, uma terra onde, note-se, nunca se construíram autoestradas ao lado umas das outras. O túnel, incompleto, por lá está, com as estruturas a estragarem-se no inverno e os ex-empregados desempregados. Quem tem culpa? Sei lá! Só sei quem a não tem...

Não tarda muito e ainda ouço a gente da minha terra a cantar a velha canção: "quem me rouba, quem me rouba, quem me rouba é ladrão. Ai, ai, ai, inda ontem fui roubado, ai, ai, ai, nas voltinhas do Marão".

A data

Leio nos jornais que a Samoa vai mudar de data nesta sexta-feira. Isto é, ao final do dia de quinta-feira passará diretamente para sábado. Como é que isto é possível? É muito simples. Por essa zona do mundo existe o meridiano da chamada "linha internacional da mudança da data" e a Samoa "muda-se" para o lado mais ocidental desse meridiano, para alinhar com o ritmo de vida da Austrália e Nova Zelândia.

Há mais de duas décadas, tive de ir a uma reunião internacional (de trabalho, acreditem!) às ilhas Fidji e, no percurso, que fazia na direção EUA-Austrália, tinha de atravessar aquela linha imaginária. Ao pedir as "ajudas de custo", no "4º andar" do MNE, as simpáticas senhoras minhas interlocutoras fizeram-me notar que estava a pedir um dia a menos do que aqueles a que tinha direito. Com efeito, a certo passo, eu saía de Honolulu ao final da tarde de, por exemplo, terça-feira e, meia-dúzia de horas depois, chegava ao aeroporto de Nadi, nas Fidji, já de quinta-feira. Lembro-me bem da pergunta: "mas afinal, o senhor doutor, onde é que dorme na 4ª feira?". Foi complicado fazer perceber que, devido à deslocação de leste para oeste, os meus dias anteriores iriam ser cada vez maiores, ao ponto de um deles ser simplesmente eliminado à chegada à "linha internacional", atravessada a qual se "saltava" um dia.

Sempre imaginei a "tragédia" que teria sido explicar essa viagem ao mundo administrativo das Necessidades, se acaso ela se tivesse feito em sentido contrário...

terça-feira, dezembro 27, 2011

Líbia

No fim deste ano que viu o mundo árabe passar por convulsões cuja resultante final está muito longe de estabilizada, lembrei-me desta história, que contei já algumas vezes a amigos. Mas que nunca tornei pública. Agora, já posso fazê-lo.

Naquele dia, na longa estrada de Misrata para Tripoli, o carro em que eu seguia era conduzido por um engenheiro líbio, formado no Reino Unido. Havíamos feito um desvio para visitar as magníficas ruínas de Leptis Magna (na imagem), a majestosa cidade de colonização romana, situada a mais de uma centena de quilómetros da capital líbia.

Íamos os dois sós, no carro. Falámos bastante, da vida e do mundo, com ele sempre a mostrar-se orgulhoso do seu país e das suas realizações. Não tinha um discurso apologético àcerca de Kadafhi, mas não se lhe notava qualquer pendor para a dissidência. À passagem pela cidade de Homs (homónima da da Síria, da mesma forma que há outra Tripli no Líbano), a densidade de cartazes e "outdoors" com a face do líder líbio, legendados em árabe, tornava-se muito evidente. Ousei então perguntar: "Kadafhi é mesmo popular? As pessoas gostam dele?".

O meu interlocutor, cujo nome devo ter ainda em alguma parte, mas de quem nunca mais tive notícias, ficou silencioso por alguns instantes, olhando a estrada. Depois, retorquiu:

- Se gostam de Kadafhi? Gostam de quem lhes dá casas, como Kadafhi lhes dá. Gostam de quem lhes dá escolas para os filhos, como Kadafhi lhes dá. Gostam dos novos hospitais, que Kadafhi está a construir, bem como destas estradas, que antes não tínhamos. Já andou de avião dentro da Líbia, não andou? Os pobres agora viajam de avião.

De facto, as minhas duas ou três experiências nas linhas internas da Libyan Airlines tinham-me mostrado que os aviões estavam transformados numa espécie de autocarros de província, com imensos beduínos, transportando mesmo gaiolas com galinhas!

Estava a chegar à conclusão que o meu condutor, homem com mundo e um excelente inglês, era, afinal, um fiel apoiante do coronel Kadafhi.

- Kadafhi dá muita coisa ao povo. Paga tudo com o petróleo e há muita gente contente com ele. Você já leu o "Livro Verde"? 

Fiquei num certo embaraço. De facto, havia passado os olhos por aquela "obra", escrita num estilo delirante, de quem tinha "descoberto a pólvora" política, desenhando uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo. Kadafhi era uma espécie de "genérico" de Nasser: abolira uma monarquia corrupta, afastara os americanos da base americana de Wheelus (eu estava alojado no "Beach Hotel", ao lado da antiga base, antes frequentado pelos militares dos EUA) e julgava-se fadado a ser um federador do mundo árabe. Mas estava muito longe da dimensão histórica do líder egípcio. O "Livro Verde" havia aparecido em Portugal pela mão de um jornalista já desaparecido, Cartaxo e Trindade, que cheguei a encontrar, numa outra ocasião, em Tripoli.

Sobre o "Livro Verde", eu não sabia o que dizer ao meu interlocutor. Não queria hostilizá-lo, nem parecer complacente. Devo ter dito uma coisas "redondas" sobre a "originalidade" das ideias expressas no livro. Mas também não era preciso, como verifiquei pelo que me disse a seguir, sempre olhando a estrada em frente:

- Kadafhi é um fanático que se acha mais inteligente que todos os outros. O povo líbio não tem grandes queixas materiais, mas não tem, nem percebe que não tem, uma coisa importante que vocês já têm: a liberdade. Mas se "eles" sonhassem que lhe estava a dizer isto, eu seria preso.

Calou-se. Percebi que tinha ido tão longe quanto lhe era possível. Ficámos longos minutos em silêncio. Voltei a encontrar esse engenheiro líbio em algumas reuniões técnicas posteriores. Todas já há muitos anos. Que será feito dele?

A Rússia e o mundo árabe

Muito se tem falado das dificuldades de alguns países do ocidente para encontrarem um modus vivendi com as instáveis decorrências políticas das "primaveras árabes", depois de, durante décadas, terem tido os ditadores derrubados como amigos públicos. E ainda "a procissão vai no adro". O caso líbio absolveu parcialmente as culpas de alguns e a realpolitik, que não tem apenas cultores deste lado, vai fazendo o resto.

Mais intrigante tem sido a posição russa em todo este contexto. A Rússia é um parceiro histórico na região, desde os tempos da União Soviética. Mesmo num período em que a sua debilidade económica era mais notória, o seu estatuto no Conselho de segurança da ONU, bem como as relações que mantinha com certos atores problemáticos da região, justificaram a sua permanente cooptação para os quadros de diálogo, de que o "quarteto" (com os EUA, a UE e a ONU) sobre a questão israelo-palestiniana é caso mais notório.

É sempre interessante acompanhar a linguagem de Moscovo no tocante ao Médio Oriente alargado. Por ela perpassa uma preocupação em evitar a sedimentação de uma presença intrusiva dos países ocidentais nos diversos processos, na tentativa de contrariar o que lhe parece ser um desequilíbro geopolítico que se possa criar em seu desfavor. Esse cuidado é historicamente matizado por algumas notas de adesão, embora frequentemente em moldes algo equívocos, a temáticas tidas como de interesse comum ou já consagradas no "politicamente correto": o combate ao terrorismo, a não-proliferação nuclear, o livre acesso à rotas de fornecimento petrolífero. Sem surpresas, muito menos enfático é o seu apoio ao "empowerment" democrático dos povos árabes e à preservação, sem relativismos culturais, dos direitos humanos.

O caso sírio é aquele onde a posição russa se revela em todo o esplendor da sua ambiguidade. Colocado perante um caso trágico de violência e repressão, num dos cenários onde tem ainda algum "leverage", Moscovo tem vindo a deixar passar os dias e os mortos, numa frieza descredibilizante do seu papel à escala global. O inaceitável "wording" do seu projeto de resolução na ONU, equiparando o que não é comparável - as ações violentas de setores da oposição com a barbaridade da repressão governamental -, revela bem que o poder russo continua tentado por reflexos de meros jogos de poder.

É pena. Por razões de outros grandes equilíbrios à escala global que não vêm para o caso, o mundo precisava de uma Rússia mais aderente e construtiva de uma agenda multilateral e normativa de princípios, que potenciasse a sua influência e se revelasse bastante menos dependente de uma mercantil lógica de fins, evitando a colagem a regimes a que o destino aponta a inexorável direção do caixote do lixo da História. O que se passou, há precisamente duas décadas, em Moscovo, deveria servir de lição. A Moscovo. 

... e logo se vai ver!

Ver aqui .