domingo, novembro 27, 2011

O que tu queres...

"Gostei do teu post de ontem sobre o fado. Bem subtil, hum...", diz-me um amigo, críptico, há minutos, de Lisboa. Já um comentador tinha ido pelo caminho do "ele não dá ponto sem nó...", ou "ele tem alguma na manga...", como poderão verificar.

Caramba! Será que não se consegue escrever uma coisa sem que alguém dela possa intuir apenas o que lá está escrito? Por que diabo cresce, dia a dia, em muita gente, esta ideia peregrina de que o que se escreve, o que se diz ou o que se faz tem sempre, necessariamente, "alguma coisa por detrás"? O que leva a este mundo de teorias conspirativas, de segundas intenções, de "hidden agendas"? O que aduba este Portugal do "o que tu queres sei eu!"?. 

Só se for... cala-te boca!

Ponto de encontro

Há dias, um amigo tinha-me dito que o "Fio de Prumo" tinha falado, uma vez mais, deste blogue. A minha visita à blogosfera é muito errática e nada regular. Mas, como diria o Augusto Gil, fui ver... e por lá encontrei uma peça bem simpática, que muito agradeço e que dá conta que este "Duas ou Três Coisas" desencadeou, entre algumas das suas comentadoras "residentes", encontros pessoais e a descoberta de afinidades. 

Ora aí está um "side effect" com que eu não contava, mas com o qual, naturalmente, muito me regozijo. 

Voltem sempre e sintam-se bem nesta vossa casa.

O nosso fado

O nosso fado já é património da humanidade. As vozes que se erguem a cantá-lo, as letras que nele exprimem os nossos desalentos e alegrias, as guitarras e violas que o choram e a música que tudo isso envolve, fazem parte de uma cultura que agora já não é só nossa, já pertence ao mundo. Um mundo que, contudo, dificilmente entenderá alguma vez esta "estranha forma de vida" e por que é que, neste nosso fado, a lua rima sempre com a rua, o Tejo com o desejo e o amor com a dor. Vai bem longe o nosso fado.

sábado, novembro 26, 2011

Solidariedade

Alguém notava, num evento caritativo a que assisti na noite de hoje, o caráter "sazonal" do nosso compromisso com a solidariedade e com as carência que afetam os outros, afirmando que essa atitude não deveria surgir apenas na época natalícia, mas ser praticada ao longo de todo o ano - porque os sofrimentos e a fome não entram de férias. Talvez essa pessoa tenha razão, mas a experiência e a vida mostraram-me que mais vale estimular a preocupação com os outros em tempos como as festividades de Natal, mesmo que esses gestos surjam como pontuais absolvições de consciência, do que corrermos o risco da indiferença permanente, sem resultados materiais que permitam atenuar as dores alheias.

Vem isto a propósito do jantar em que hoje participei na "Rádio Alfa", com mais de 300 pessoas, destinado a recolher fundos para a Santa Casa da Misericórdia de Paris, cujo dinamismo desinteressado faz com a Embaixada se mobilize, com regularidade, em favor das causas que promove. A preocupação desta instituição com os mais carenciados dentro da nossa comunidade, com aqueles a quem a sorte não tocou na onda de assinalável sucesso da generalidade dos portugueses em França, com as dificuldades da nova emigração, com os idosos e doentes sem meios, com os presos portugueses e com aqueles para quem é necessário encontrar sepultura digna - eu sei que estas temáticas não são confortáveis, mas elas existem e, como se vê, há quem delas cuide com desapego material - deveria merecer um maior empenhamento de solidariedade coletiva dentro da nossa comunidade.

Uma boa ocasião para tal será dar uma colaboração, ainda que pequena, para o "cabaz de Natal" em que a Santa Casa recolhe produtos não perecíveis ou outras contribuições materiais, para ajuda daqueles nossos compatriotas que se sabe estarem mais carenciados. Neste tempo em que todos somos chamados a pensar, cada vez mais, nas dificuldades do nosso próprio futuro coletivo, talvez fosse apropriado termos um gesto em favor daqueles para quem a crise já faz parte do respetivo presente.

sexta-feira, novembro 25, 2011

As "estrelas" do Michelin

Foram hoje revelados dos nomes restaurantes portugueses que, na edição de 2012, terão as desejadas "estrelas" nos guias franceses Michelin, numa avaliação da sua qualidade gastronómica. A "estrelas" podem ir de uma a três, sendo que Portugal nunca teve, até hoje, qualquer restaurante a que hajam sido atribuídas três estrelas.

Em 2012, com duas "estrelas" aparecem o Ocean e o Vila Joya, ambos no Algarve. Com uma "estrela": o São Gabriel, o Willie's e o Henrique Leis, todos também no Algarve, o Il Gallo d'Oro, no Funchal, o Tavares e o Feitoria, em Lisboa, o Arcadas da Capela, em Coimbra, o Yeatman, em Vila Nova de Gaia, e a Casa da Calçada, em Amarante.

Portugal é um país que só muito lentamente tem vindo a "ganhar estrelas". Será isso importante? Claro que é! A profusão de restaurantes com referências positivas nos guias da Michelin é um fator de atração turística e induz mais deslocações ao nosso país. Além disso, estimula outros restaurantes a melhorarem e a colocarem-se em posição de poderem vir a conquistar "estrelas" ou, simplesmente, a concorrer com aqueles que as têm.

Devo dizer que não me recordo de ter comido nenhuma vez mal num restaurante assinalado com "estrelas" nos guias Michelin, embora algumas vezes apenas "assim-assim". Mas, com grande frequência, tenho comido bem melhor noutros restaurantes, alguns dos quais estão e estarão longe desta "corrida às estrelas" - e são quase sempre bem mais baratos.

Um aviso da parte de alguém que acompanha com alguma atenção estas coisas: em geral, pode confiar -se nos restaurantes assinalados com "estrelas" nos guias Michelin, mas não se deve confiar, necessariamente, nas listas dos restantes restaurantes que os guias mencionam para cada localidade. Sei do que falo: está lá de tudo, do bom ao medíocre (embora raramente do mau).

E, agora, permitam-me que vá jantar... a casa de amigos!

quinta-feira, novembro 24, 2011

America! America!

Não está muito na moda citar Elia Kazan. Mas quase que me apetece colocar pontos de admiração no seu admirável "America, América" para expressar a minha perplexidade em face da pobreza (chamemos as coisas pelo seu nome) do nível do debate, sobre temáticas de política internacional, que se processa entre os candidatos à investidura republicana. O que tem sido dito nesse contexto é, no mínimo, surpreendente e chocante, no tocante à impreparação da maioria dos atores políticos que se perfilam para a corrida à Casa Branca.

Alguns dirão que isso não tem a menor importância, que, a seu tempo, o mundo republicano produzirá "wise men" que darão conteúdo programático em matéria de política externa às candidaturas e que, como se viu no passado, por menos habilitados em temas internacionais que os candidatos inicialmente se mostrem, acabarão por ser enquadrados por "think tanks" que produzirão doutrina sólida, para o caso de virem a ascender ao poder. Alguns lembrar-se-ão de Reagan, outros de George W. Bush. A alguns, isso sossegará, a outros isso preocupará.

Confesso que, com anos desta vida internacional, e com os riscos que hoje existem, o panorama atual não me sossega. Kennedy disse, em 1963, face à fronteira da Guerra Fria que eram as portas de Brandeburgo, "Ich bin ein Berliner" (um amigo meu sempre apostou em como, se estivesse em Hamburgo, ele não se atreveria a dizer "Ich bin ein Hamburger"...). Dada a importância que os Estados Unidos têm para a nossa vida, pelo peso que as suas decisões no plano internacional têm sobre todos nós, eu atrever-me-ia a dizer que, meio século depois, quando um novo presidente entrar em funções, "todos seremos americanos". Uma vez mais. Queiramos ou não. E, por essa razão, a substância dos debates a que me refiro neste post está longe de me ser indiferente.

Júlio Resende

O nome lembra o do pintor recentemente desaparecido. Trata-se de um jovem pianista português que tem o jazz no sangue e que ontem tocou, e foi muito apreciado pelas largas dezenas de presentes, num concerto que organizámos na Embaixada, que hoje se reproduzirá na Casa de Portugal, na "Cité Universitaire" de Paris, com a qual entrámos mais uma vez em parceria. Com os recursos a escassearem, e como se dizia no maio68, é preciso levar "a imaginação ao poder".

O fim da tarde de ontem trouxe-nos um percurso musical muito diverso, desde temas que se colavam a Jarrett e, em certo ponto, a uma sonoridade minimalista que lembrou Steve Reich, mas onde figuraram outras referências, de Gershwin a Jobim, não esquecendo tonalidades de fado. Uma surpresa foi o convite feito pelo Júlio Resende a Elisa Rodrigues, uma nova e curiosa voz portuguesa.

A Europa e os jovens

Ontem à tarde, estive a falar, em Saint-Germain-en-Laye, a uma dezenas de jovens sobre a Europa e os seus problemas. Procurei ser simples, numa questão que é (e está, cada vez mais) muito complicada. Longe vão os tempos em que alguma regularidade no processo de construção europeia nos dava a segurança de poder afirmar certas certezas e de poder testar algumas alternativas plausíveis. É quando procuro alinhar ideias sobre os tempos que estamos a viver, sobre as opções que podem ter de ser tomadas amanhã, que melhor me dou conta da imensidão de dúvidas que eu próprio hoje alimento. E isso deve transparecer, com naturalidade, daquilo que digo. Por isso, por mais "sábios" que possamos ser sobre o passado da processo integrador e por mais lições que dele queiramos tirar para o seu destino, a verdade é que os dias que correm nos tornam, a todos, simples prisioneiros de um futuro bastante incerto.

quarta-feira, novembro 23, 2011

Greve geral

No início da minha carreira, creio quem em 1978, houve em Portugal uma greve geral. Nesse dia, por coincidência, eu estava convocado  para ir a tribunal, por excesso de velocidade - embora com um imbatível e verídico alibi da ocorrência ter tido lugar quando levava uma pessoa ao serviço de urgência de um hospital. 

Na véspera, informei a minha chefia de que teria de deslocar-me ao tribunal, enviando cópia da convocatória. Fui informado que o secretário-geral de então, embaixador Caldeira Coelho, considerava "pouco aceitável" a minha desculpa e que, se havia greve, provavelmente o tribunal estaria encerrado, pelo que não valia a pena eu ir lá. A resposta que pedi que fosse transmitida ao secretário-geral, e que não sei se lhe chegou, foi a de que, a proceder dessa forma, estava a presumir que o juíz era um dos grevistas. E que quem não poderia arriscar essa hipótese era eu. Lá estive no tribunal. Não houve audiência.

Hoje, um significativo grupo de professores portugueses, sindicalmente organizados, alguns vindos da Alemanha, em dia de greve geral a que presumivelmente aderem, pediu ser recebido hoje por mim. Julgo que todos eles têm a consciência do facto curioso e irónico de que é precisamente por não estar em greve que posso conceder-lhes a audiência. 

Lisboa em Pessoa

Desenho de João Beja

Ontem, fui inaugurar, na Sorbonne (Paris 3) uma exposição fotográfica, organizada no âmbito da deslocação de cerca de 40 alunos a Lisboa, que retratava o seu olhar pelos lugares de Fernando Pessoa na capital portuguesa.

Confesso que, por vezes, ainda me impressiona a força desta internacionalização do poeta, a sua universalidade e o modo como a sua mensagem (neste caso, em sentido lato) toca mundos muito diferentes. Tenho visto isso, em diversos lugares do mundo.

Sou de um tempo em que Pessoa, em Portugal, era lido através de umas pouco apelativas edições de capa branca da Ática, já com bastante interesse, mas sem o fulgor que a sua consagração internacional viria a acarretar. Pode não ser confortável reconhecer isto, mas há que aceitar que o Portugal menos erudito "aprendeu" a apreciar Pessoa muito graças ao modo como o mundo exterior o começou a tratar.

Há dias, dei comigo a pensar em Fernando Pessoa, ao olhar para as magníficas paisagens do Douro. Sempre fizeram parte do meu cenário de infância, sempre lá estiveram, mas não éramos educados a atentar nelas. Às vezes, olhamos e apreciamos melhor aquilo que temos quando os outros, de fora, a isso nos conduzem. É pena, mas é verdade. 

terça-feira, novembro 22, 2011

Danielle Mitterrand (1924-2011)

Alguém disse, um dia, que Danielle Mitterrand, que agora desapareceu, era a consciência de esquerda do seu marido. Mulher de causas, atenta à vida e às injustiças internacionais, nunca deixou de ser uma personalidade bastante discreta na vida pública francesa, onde media as suas aparições com grande parcimónia. Apaga-se agora o sorriso daquela cara com olhos felinos, atrás do qual se adivinhavam os segredos de uma relação complexa com um dos homens mais misteriosos da história francesa contemporânea.

segunda-feira, novembro 21, 2011

Edgar Morin

A vida tem destas coisas. Ando há anos para ouvir Edgar Morin, de quem li muito e sempre com proveito. Ao final da tarde de hoje, ele faz uma conferência do centro cultural da Fundação Gulbenkian, aqui em Paris. Estava a deliciar-me com a possibilidade de o escutar sobre a crise, a Europa e a crise na Europa. Pois não é que essa é a única hora que consegui para uma visita de urgência a um dentista?! Há dores que são duplas.

domingo, novembro 20, 2011

Ovos com bacon

Foi já há muitos anos. Posso imaginar que a conversa ia solta entre aquele velho embaixador e o seu secretário, numa tarde talvez sombria, quiçá à volta de dois maltes, numa periférica capital europeia, cujo nome ora me escapa. 

Falava-se de política portuguesa, tema que era caro ao jovem diplomata mas para o qual o seu chefe olhava com alguma distância, tantas as coisas que vira e outras que preferiria não ter visto.

O tema era uma figura política então na oposição, que o diplomata mais novo incensava nas conversas, desde há meses, apostando numa sua subida aos terrenos do poder como a chave para a superação dos males pátrios. O embaixador era, porém, muito mais cético quanto às virtudes daquele político e às suas reais qualidades pessoais.  Em especial, os insistentes rumores sobre as suas ligações a determinados lóbis deixavam-lhe muitas dúvidas quanto as reais razões pelas quais tanto se encarniçava nos seus esforcos de ascensao na vida publica.

Mas o secretário insistia: "Senhor embaixador, eu tenho acompanhado com atenção o perfil dele. É um homem comprometido com o destino do país", saiu-lhe a certo passo, um tanto grandiloquente. 

O embaixador interrompeu-o: "Comprometido ou interessado?"

- Não vejo a diferença, senhor embaixador, retorquiu o jovem.

- É imensa, meu caro, é imensa! Já pensou nos ovos com bacon?

- Nos ovos com bacon?!

- Claro! Nos ovos com bacon, a galinha é interessada, o porco é comprometido...

sábado, novembro 19, 2011

Pascal Lamy

Na passada sexta-feira à noite, estive presente numa palestra-debate com Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), a convite da associação "Notre Europe", criada por Jacques Delors, a que agora preside António Vitorino.

Lamy é um homem brilhante. Foi chefe de gabinete de Delors e, anos mais tarde, comissário europeu com a pasta do comércio exterior. Com ele tive então algumas "accrochages", quando se discutia a fixação do mandato europeu para a reunião ministerial da OMC, a ter lugar em Seattle, em fins de 1999. Nada que fosse muito diferente dos problemas que já tivera com o seu antecessor, o britânico Leon Brittan, na preparação das duas anteriores reuniões ministeriais da OMC, cuja delegação nacional me competiu chefiar - em Singapura (1997) e Genebra (1998).

Portugal atinha-se então fortemente à defesa de alguns produtos "sensíveis" para a nossa indústria, pelo que tentava salvaguardar certas "posições pautais", nomeadamente relativas a produções têxteis, dado que o nosso país se recusava ter de pagar, através da total abertura do mercado europeu a produtos idênticos oriundos de países terceiros, certas vantagens que outros nossos parceiros mais avançados pretendiam obter nesses mercados.

Recordo longas e penosas horas de negociação passadas nas salas de Bruxelas, com Portugal a terminar o processo praticamente isolado, comigo a fazer "bluff" com a ameaça de abandono da sala e, simultaneamente, pressões a serem feitas pelo telefone junto de Lisboa, queixando-se da minha intransigência.

Um dia, contarei aqui como não pude evitar o sentimento de algum gozo ao testemunhar, semanas depois, nas manifestações nas ruas e no caos das salas de trabalho da reunião de Seattle, o ruir fragoroso dessa negociação. Ia pagando caro, em termos europeus, uma declaração que então fiz à SIC, dizendo "não poder deixar de ter uma certa simpatia nostálgica pelos manifestantes, que haviam criado um ambiente anos 60, que recordava Berkeley e o Maio 68". Recordo que essa foi, talvez, a primeira grande movimentação de massas anti-globalização.

A reunião de sexta-feira parecia de "amigos de Alex", gente de um outro tempo europeu. Por lá encontrei Niels Ersbøll, antigo secretário-geral do Conselho das Comunidades Europeias, Philippe de Schoutheete, representante permanente belga, e Elisabeth Guigou, antiga ministra francesa - todos membros do "grupo de reflexão" no seio do qual, em 1995, havíamos discutido e preparado a revisão do tratado de Maastricht. Mas, igualmente, os portugueses Maria João Rodrigues e Vitor Martins, duas figuras a quem a política europeia portuguesa muito ficou a dever. E, também, os meus amigos espanhóis Enrique Barón Crespo, antigo presidente do Parlamento Europeu, e Eneko Landaburu, que agora chefia a representação da UE em Rabat, uma figura que foi sempre de uma grande correção para conosco, como diretor-geral da Comissão encarregado dos fundos estruturais.

A charla e o debate processavam-se de acordo com a consagrada "Chatham House rule", o que significa que o conteúdo do que foi dito não deve ser passado cá para fora (embora eu visse dois jornalistas conhecidos a tomar afanosamente as suas notas...). Por isso, apenas aqui anoto a ironia de Pascal Lamy quando afirmou que os países do antigo G8 parece não terem ainda decidido muito bem como deverão tratar os chamados "emergentes" (que muitos consideram já "emergidos"): ou como países ricos com muitos pobres ou como países pobres com muito ricos.

Porturegale-se

Aqui.

sexta-feira, novembro 18, 2011

As contas da Europa

No meio de toda a turbulência que afeta a generalidade da União Europeia, por via da crise que está instalada em torno do euro (que, curiosamente, continua a revelar-se uma muito sólida moeda, no contexto mundial...), há uma discussão séria que se aproxima: a das "perspetivas financeiras", isto é, o quadro orçamental plurianual que será fixado para vigorar de 2014 até 2020.

Esta não vai ser - nunca foi... -  uma discussão fácil, particularmente num contexto de restrições orçamentais como aquele que todos os Estados membros da UE atravessam. A Comissão Europeia já apresentou algumas linhas de reflexão. Algumas movimentações no terreno deixam claros interesses que pretendem ser preservados no futuro, nomeadamente com vista a fazer escapar algumas políticas comunitárias ao esforço global de contenção que terá de ser feito. Nada de surpreendente.

Pela nossa parte, com a serenidade de um país que, em todas as negociações de anteriores quadros financeiros revelou sempre uma atitude de firmeza responsável, e em particular porque estamos num contexto em que consideramos que não há condições para um reforço do orçamento, Portugal defende que todas - mas todas! - as políticas da União devem contribuir para o necessário esforço de contenção. 

quinta-feira, novembro 17, 2011

Viva o Estado!

"Nisto não se mexe, isto é do Estado!". Tenho esta frase no ouvido desde a minha infância. Eu devia ter 7 ou 8 anos e o meu pai, chefe de um serviço público numa cidade de província, havia-me levado, uma tarde, a assistir à abertura de uns caixotes de madeira que, uma vez por ano, chegavam, "de Lisboa", com o material de papelaria, para ser utilizado pelos funcionários, nos 12 meses seguintes. Eram resmas e blocos de papel, lápis, cartolina, borrachas, elásticos e tinta para canetas. Para quem, como eu, vive, desde que se conhece como gente, fascinado pela "stationery", a visão desse material deve ter-me criado imensa água na boca. Mas o meu pai, nas coisas do Estado, era inflexível: nunca tive, pela sua mão, um lápis ou uma borracha "do Estado" e, recordo-me muito bem que, quando passei a poder usar uma velha máquina de escrever da família, o meu pai trazia para casa fitas já usadas, consideradas demasiado gastas para o serviço.

Foi assim que, em minha casa, aprendi, para vida, o que era o Estado. Dessa forma me foi ensinado o que era ser servidor público, como o meu avô já o fora, este mostrando-me, pelo exemplo constante de vida, que servir o Estado era sinónimo de servir o país. Com ele aprendi a recusar uma dualidade pessoal com o Estado, porque, como sempre lhe ouvi, "o Estado somos todos nós".  

Faz hoje, precisamente, 40 anos, dia por dia, em que "entrei para o Estado". Passei, num concurso com muitas centenas, a ser funcionário público, uma designação que os meus amigos estranham que eu sempre escreva e diga, em lugar de "diplomata", quando tenho de declarar a minha profissão. Faço-o porque tenho uma imensa honra em ser servidor público, em ser funcionário do Estado, porque continuo a pensar que essa é a mais nobre forma de servir Portugal.

Os tempos que correm - eu sei! - não vão fáceis para o Estado e para quantos o defendem. Diabolizado por muitos, o Estado passou a ser o bode expiatório de todos os males e de todos os défices, com alguns a apelar por "menos Estado e melhor Estado", quase sem esconderem o desejo de colocar ao seu serviço o que dele sobrar. Os professores, as forças de segurança, os servidores da Justiça, os militares, os funcionários da saúde pública, os técnicos e administrativos de imensas áreas e, por maioria de razão, essa casta irritantemente snobe que são os diplomatas - tudo isso não passa, no discurso dos turiferários das virtudes angelicais da "sociedade civil", de um bando de inúteis gastadores, de preguiçosos absentistas, de mangas-de-alpaca que pilham o erário e o que foi criado pelo suor de quem "produz a riqueza". 

É claro que sei que vou contra "l'air du temps", que vou correr o risco de eriçar alguns sobrolhos e de excitar alguns blogues ou colunistas desses novos "libertadores", mas deixem-me que aqui diga hoje, quatro décadas depois de ter começado a servi-lo, sem uma ponta de arrependimento, com um imenso orgulho e com a liberdade a que o 25 de abril me deu direito: viva o Estado!

Sobre as águas

Em tempos complexos, vogam por aí novas "Velas e navios sobre as águas". 

Os dias não vão para luxos, mas, c'os diabos!, ainda podemos gozar um certo Fausto.

François Bayrou

François Bayrou é um dos mais experientes políticos franceses. Antigo ministro e presidente do partido centrista MoDem, obteve mais de 19% dos votos nas eleições presidenciais de 2007. Em 2012, irá de novo a votos. Entretanto, vai publicando, pelo seu punho, alguns livros que são tão polémicos como admiravelmente bem escritos.

Ontem, Bayrou almoçou com os embaixadores da União Europeia e, num tom solto e bem humorado, disse-nos o que pensa da situação política interna francesa, explicando também a sua visão sobre as mais importantes temáticas europeias. Fê-lo num tom franco e "sem papas na língua", o que me levou a dizer-lhe, em jeito de elogio, numa questão que lhe coloquei, que, ouvindo-o, ninguém diria que a expressão "langue de bois" era francesa...

Aproveitei este encontro com François Bayrou para pôr com ele algumas contas em dia.

Alguns se lembrarão que, em 2000, no início da presidência portuguesa da União Europeia, ocorreu o chamado "caso austríaco". 14 dos 15 países da então União, descontentes com o facto de estar iminente a entrada no governo austríaco de um partido tido como de extrema direita, resolveram impor algumas "sanções" às autoridades de Viena.  Tratava-se de medidas de natureza bilateral, que não afetavam os direitos austríacos como país membro da União, mas que significavam o descontentamento dos parceiros europeus da Áustria pelo facto do paradigma governamental do país poder conflituar com a ordem de valores pelo qual a Europa comunitária se deveria pautar. Mal sabíamos nós, à época, o que o futuro nos traria noutras paragens do continente...

O tema era muito polémico, por toda a Europa. Como polémica foi a necessidade de Portugal ter sido colocado, pela generalidade dos seus parceiros europeus, no centro do problema, como "coordenador" da posição dos 14. O Parlamento Europeu também não escapou a ele e, numa tarde de fevereiro, em Bruxelas, com o areópago a abarrotar, a presidência portuguesa, que tivera de assumir as "dores" dos 14, esteve no centro de um longo debate. Coube-me assegurar as nossas "cores" e defrontar um ambiente muito tenso, com centenas de deputados a vaiar a posição que nos competia defender, lado a lado com outros que hostilizavam a opção austríaca.

A base de argumentário de que eu dispunha para o debate era muito escassa: um mero comunicado de alguns parágrafos, laboriosamente acordado entre os 14, com aquela linguagem ambígua que esse tipo de textos fortemente negociados sempre tem. Era muito pouco, para cerca de duas horas de debate, mas era essa a minha margem, pelo que tive de improvisar em torno do texto comum, cuidando em o interpretar criativamente, correndo o risco de alguém me poder dizer que estava a ir longe demais. 

Acresce que a Comissão europeia, na bancada em frente, escudada na prudência, havia decidido tomar um caminho de retração opinativa num tema em torno dos valores, aguardando talvez que o vento soprasse de forma clara num qualquer sentido. Pela voz do presidente Romano Prodi, assumiu uma posição equívoca, a qual, a partir de certo momento, me deixou numa situação algo embaraçosa. Nem uma intervenção mais "assertive" do comissário Neil Kinnock em nosso apoio, a quem eu fizera entretanto chegar uma nota do desagrado por essa tibieza inicial, foi suficiente para reverter o ambiente de isolamento em que a presidência portuguesa se encontrava.

No plenário, o "ping-pong" entre a esquerda e a direita foi-se processando, com a presidência a ser considerada, ora tímida e complacente, ora demasiado agressiva com Viena, sendo raros os que se reviam na "craftly worded" linguagem do comunicado dos 14. 

Por razões que só a "petite histoire" acolherá um dia, a maioria dos deputados portugueses dispensou-se de intervir em defesa a posição da "sua" presidência, pelo que, sozinho, tive de fazer as "despesas da conversa". Nada que fosse impossível, mas era uma posição bastante difícil de ir sustentando sem apoios claros no plenário. Mas estes eram raros. Contra nós, por exemplo, falaram figuras como Jean-Marie Le Pen, que vociferou graves coisas denunciando a atitude que titulávamos - repito, não em nome de Portugal, mas de 14 dos 15 países da União cuja posição e razões nós ali tentávamos sustentar.

Foi então que uma voz do centro do espetro político europeu se ergueu, com grande vigor e determinação, apoiando as razões assumidas pela presidência portuguesa, destacando que ela estava a representar os princípios de ética democrática da União e uma linha justa de abordagem do problema: essa voz era a de François Bayrou. Com as suas reconhecidas qualidades de tribuno, colou-se às nossas posições e foi uma preciosa ajuda para equilibrar o ambiente.

Ontem, tendo com ele coincidido numa das mesas do almoço organizado pelo meu colega polaco, tive o ensejo de lhe relembrar a ocasião e o seu gesto. Ainda que com mais de uma década de atraso, foi-me grato poder expressar esse agradecimento que estava a dever a François Bayrou.

... e logo se vai ver!

Ver aqui .