O mundo acordou, nas últimas horas, para o reacender de um conflito que estava um pouco esquecido: o Nagorno-Karabakh. Tratou-se de uma erupção armada que, ao momento em que escrevo, parece estar mais acalmada, mas que provocou, entretanto, algumas dezenas de mortos e um crescendo de tensão na região.
Mas de que é que estamos a falar? Trata-se de um conflito na zona do Cáucaso do Sul, num espaço geográfico delimitado pela Rússia, pela Geórgia, pela Turquia e pelo Irão, não longe do mar Cáspio. O Azerbaijão e a Arménia mantêm entre si um estado de tensão político-militar, por virtude do conflito do Nagorno-Karabakh, um território que foi objeto de uma guerra sangrenta no início dos anos 90. Esse território, cercado (e considerado seu) pelo Azerbaijão (atualmente há uma única estrada de ligação à Arménia) é hoje ocupado por populações e forças arménias, situação que os azeris não reconhecem. O Nagorno-Karabakh constitui um dos clássicos "conflitos congelados" que derivaram do fim da União Soviética.
Há 14 anos, coube-me dirigir, em Viena, a presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), sede de tratamento destas questões, razão pela qual passei a seguir estes temas, até hoje, com muita curiosidade e interesse. Em anos mais recentes, desloquei-me mesmo à Arménia e ao Azerbaijão. Mas, embora tenha estado dos dois lados da fronteira e visitado áreas tão estranhas como o enclave azeri do Nakhichevan, nunca até hoje consegui ir ao Nagorno-Karabakh. Mas ainda não desisti...
A reunião final da presidência portuguesa teve lugar no Porto, no edifício da Alfândega, em dezembro de 2002. Portugal tinha como objetivo garantir um consenso entre os 55 países da organização, porque a OSCE decide por unanimidade.
Por ali me competiu, por muitas e longas horas, presidir ao Conselho permanente da organização, onde fui tentando concluir uma imensidão de textos, o que incluía frequentes suspensões de sessão para "confessionários", isto é, encontros individualizados com partes em conflito ou divergência, conversas feitas sob compromisso de não poderem ser reveladas às outras partes (ou tidas precisamente no pressuposto de que iria haver "leaks" e que, por essa via, se passava uma mensagem)...
A esta distância, recordo um episódio que julgo muito significativo daquilo que este particular conflito é e, muito em especial, do ambiente diplomático que o rodeia. No quadro da negociação de um determinado documento, havia uma expressão ("separatismo violento"), identificada como um dos fatores negativos que a OSCE deveria condenar, por ser potenciadora de tensões e quiçá promotora de terrorismo. Era uma proposta que, desde o início, um país como o Azerbaijão considerava indispensável que figurasse no texto. Estávamos no ano seguinte ao 11 de setembro e tudo quanto pudesse ser visto como potenciador de violência era diabolizado.
(Para um leigo nas coisas internacionais, pode parecer que este jogo com palavras é apenas um preciosismo formal, irrelevante e sem consequências. Não é assim: quando, num documento internacional, algo fica acordado por unanimidade, esse conceito e o seu enquadramento normativo convertem-se em doutrina obrigatória, sendo represtinado noutras decisões futuras, passando a referencial orientador da organização, a menos que um outro consenso alternativo, a obter também por unanimidade, o venha entretanto a substituir).
Sem surpresas, a delegação da Arménia opunha-se, desde o início, à inclusão da fórmula. Sendo a Arménia o grande defensor da secessão da região do Nagorno-Karabakh, temia que a condenação no texto do "separatismo violento", pudesse vir a ser utilizado para desequilibrar o futuro tratamento deste "frozen conflict" na ordem internacional.
Quer a Arménia quer o Azerbaijão tinham os seus apoiantes entre os restantes membros da OSCE, embora eles fossem já escassos, tanto mais que existe de há muito um cansaço na comunidade internacional sobre este assunto. Para a nossa presidência, o importante era conseguir "fechar" o documento, com ou sem a inclusão do tal conceito, que considerávamos pouco significativo. Mas a posição do Azerbaijão era vital, porque o país, taticamente, mantinha "refém" desta inclusão o seu acordo face a outros documentos, sem o que o compromisso final da nossa presidência ficava comprometido.
Quer a Arménia quer o Azerbaijão tinham os seus apoiantes entre os restantes membros da OSCE, embora eles fossem já escassos, tanto mais que existe de há muito um cansaço na comunidade internacional sobre este assunto. Para a nossa presidência, o importante era conseguir "fechar" o documento, com ou sem a inclusão do tal conceito, que considerávamos pouco significativo. Mas a posição do Azerbaijão era vital, porque o país, taticamente, mantinha "refém" desta inclusão o seu acordo face a outros documentos, sem o que o compromisso final da nossa presidência ficava comprometido.
A estratégia por nós delineada foi começar por tentar identificar os interesses particulares, em matérias abordadas em outras áreas das conclusões da cimeira, que os Estados que apoiavam a Arménia ou o Azerbaijão tinham. Objetivados , procurámos tentar acomodá-los, obtendo em contrapartida, por um "gentlemen's agreement", a garantia de que deixariam de dar apoio, em intervenções públicas em sessão, às posições arménia e azeri. Tentar enfraquecer, por lêncio de apoios, as partes num conflito é um primeiro passo para conseguir atenuá-lo.
Conseguido assim o conveniente isolamento dos dois países, passou-se à segunda fase: convencer cada um deles individualmente. Como? Obrigando os arménios a aceitar a inclusão da tal expressão considerada essencial pelos azeris, mas dando-lhe, como um "doce", a inserção, noutra parte do texto, de uma outra formulação mais leve, ligeiramente "compensatória" e favorável aos seus interesses. Aos azeris foi dito que tentaríamos que pudessem obter, na declaração final, a inclusão da expressão, mas que, em contrapartida, teriam de concordar com outras fórmulas compensatórias. As versões que íamos testando com eles eram, aliás, bem mais radicais do que aquelas que a Arménia exigia...
O meu colega azeri, Vaqif Sadikhov, cometeu o erro de, desde o início, assumir que a Arménia nunca aceitaria que o tal conceito de "separatismo violento" integrasse o texto. Para essa convicção, diga-se, não fui de todo estranho, em várias conversas que com ele tive, em que lhe fui referindo a "imobilidade" arménia. Por isso, foi-se mostrando aberto a aceitar uma frase "compensatória" potencialmente agradável para a Arménia, porque estava manifestamente convicto de que o compromisso nunca nunca se faria nesse "trade-off", por total relutância do adversário.
Pela Arménia, Jivan Tabibian, o embaixador que era representante permanente do seu país junto da OSCE, dizia-me que tinha estritas ordens de Yerevan para recusar a inclusão da expressão, mas, nas últimas horas de negociação, notei que se sentia fragilizado pelo estranho afastamento público de um seu tradicional aliado, a Rússia, nos momentos em que o tema era discutido.
Mal ele sabia que havíamos "comprado" (caro, confesso) o silêncio russo num dossiê essencial para Moscovo e que a Arménia estava agora praticamente sozinha em jogo. Talvez por isso, fui-o vendo cada vez mais sensível à aceitação das diferentes formulações compensatórias que lhe fui apresentando. Mas foi só cerca da meia noite que, já com o respetivo ministro dos Negócios Estrangeiros ao nosso lado, acordámos numa fórmula final que iriam submeter à sua capital - com necessidade de ser validada pelo próprio presidente da República! E, às seis da manhã (a diferença horária ajudava), Tabibian ligou para o meu quarto, no hotel Pestana da ribeira portuense, a confirmar-me a aceitação do compromisso que eu lhe propusera.
Eu não tinha praticamente dormido durante a noite, mas o dia começava bem. Restava agora "fechar" com o Azerbaijão. O essencial do que pretendiam estava obtido, pelo que o importante era que não objetassem à tal fórmula "compensatória". Porque era decisivo garantir uma forte pressão sobre eles, pedi a Elisabeth Jones, "assistant secretary of State for European and Asian affairs", que chefiava a delegação dos Estados Unidos, para me acompanhar na "démarche" junto de Sadikhov. Os EUA queriam o acordo, tinham mesmo conseguido moderar o tradicional apoio da Turquia à posição azeri. Mas íamos ter uma surpresa.
Sentados em frente a Vaqif Sadikhov, numa sala da Alfândega do Porto, expliquei que tínhamos obtido da Arménia a concessão que queriam e que esperávamos - expliquei que falava também em nome da União Europeia, com os EUA, Canadá e Noruega também de acordo - que o Azerbaijão acedesse então a aceitar a fórmula "compensatória". Sadikhov olhou-me, perplexo: "Mas a Arménia aceita mesmo a inclusão da frase?" Confirmei que sim. A resposta dele desarmou-me: "Bom, então se eles aceitam, o compromisso não nos interessa. Fiquemos então com o texto original, sem nenhuma fórmula". Tínhamos andado mais de 48 horas a negociar para nada...
Quando fui ver o arménio Tabibian, para lhe anunciar que, afinal, voltávamos à "square one", pelo que a sua concessão já não seria necessária, ele olhou-me com um sorriso de quem, lá no fundo, talvez estivesse à espera dessa "novidade". O Cáucaso é um mundo estranho.
Há poucos anos, no hall de um hotel em Baku, no Azerbaijão, caí nos braços de Vaqif Sadikhov, à época embaixador do seu país em Roma. Apesar de, nesses dias do Porto (e antes em Viena), termos mantido grandes discussões, havíamos ficado amigos. E lembrámos o seu antagonista Jivan Tabibian, um homem encantador, infelizmente desaparecido. Na vida internacional, é importante, sempre que possível, garantir um espaço autónomo para as relações pessoais, ao lado das tarefas oficiais que nos incumbem, por mais desagradáveis e tensas que estas possam ser.
É (também) assim a diplomacia.