segunda-feira, abril 04, 2016

A guerra e a diplomacia


O mundo acordou, nas últimas horas, para o reacender de um conflito que estava um pouco esquecido: o Nagorno-Karabakh. Tratou-se de uma erupção armada que, ao momento em que escrevo, parece estar mais acalmada, mas que provocou, entretanto, algumas dezenas de mortos e um crescendo de tensão na região.

Mas de que é que estamos a falar? Trata-se de um conflito na zona do Cáucaso do Sul, num espaço geográfico delimitado pela Rússia, pela Geórgia, pela Turquia e pelo Irão, não longe do mar Cáspio. O Azerbaijão e a Arménia mantêm entre si um estado de tensão político-militar, por virtude do conflito do Nagorno-Karabakh, um território que foi objeto de uma guerra sangrenta no início dos anos 90. Esse território, cercado (e considerado seu) pelo Azerbaijão (atualmente há uma única estrada de ligação à Arménia) é hoje ocupado por populações e forças arménias, situação que os azeris não reconhecem. O Nagorno-Karabakh constitui um dos clássicos "conflitos congelados" que derivaram do fim da União Soviética.


Há 14 anos, coube-me dirigir, em Viena, a presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), sede de tratamento destas questões, razão pela qual passei a seguir estes temas, até hoje, com muita curiosidade e interesse. Em anos mais recentes, desloquei-me mesmo à Arménia e ao Azerbaijão. Mas, embora tenha estado dos dois lados da fronteira e visitado áreas tão estranhas como o enclave azeri do Nakhichevan, nunca até hoje consegui ir ao Nagorno-Karabakh. Mas ainda não desisti...


A reunião final da presidência portuguesa teve lugar no Porto, no edifício da Alfândega, em dezembro de 2002. Portugal tinha como objetivo garantir um consenso entre os 55 países da organização, porque a OSCE decide por unanimidade. 


Por ali me competiu, por muitas e longas horas, presidir ao Conselho permanente da organização, onde fui tentando concluir uma imensidão de textos, o que incluía frequentes suspensões de sessão para "confessionários", isto é, encontros individualizados com partes em conflito ou divergência, conversas feitas sob compromisso de não poderem ser reveladas às outras partes (ou tidas precisamente no pressuposto de que iria haver "leaks" e que, por essa via, se passava uma mensagem)...

A esta distância, recordo um episódio que julgo muito significativo daquilo que este particular conflito é e, muito em especial, do ambiente diplomático que o rodeia. No quadro da negociação de um determinado documento, havia uma expressão ("separatismo violento"), identificada como um dos fatores negativos que a OSCE deveria condenar, por ser potenciadora de tensões e quiçá promotora de terrorismo. Era uma proposta que, desde o início, um país como o Azerbaijão considerava indispensável que figurasse no texto. Estávamos no ano seguinte ao 11 de setembro e tudo quanto pudesse ser visto como potenciador de violência era diabolizado.

(Para um leigo nas coisas internacionais, pode parecer que este jogo com palavras é apenas um preciosismo formal, irrelevante e sem consequências. Não é assim: quando, num documento internacional, algo fica acordado por unanimidade, esse conceito e o seu enquadramento normativo convertem-se em doutrina obrigatória, sendo represtinado noutras decisões futuras, passando a referencial orientador da organização, a menos que um outro consenso alternativo, a obter também por unanimidade, o venha entretanto a substituir).

Sem surpresas, a delegação da Arménia opunha-se, desde o início, à inclusão da fórmula. Sendo a Arménia o grande defensor da secessão da região do Nagorno-Karabakh, temia que a condenação no texto do "separatismo violento", pudesse vir a ser utilizado para desequilibrar o futuro tratamento deste "frozen conflict" na ordem internacional.

Quer a Arménia quer o Azerbaijão tinham os seus apoiantes entre os restantes membros da OSCE, embora eles fossem já escassos, tanto mais que existe de há muito um cansaço na comunidade internacional sobre este assunto. Para a nossa presidência, o importante era conseguir "fechar" o documento, com ou sem a inclusão do tal conceito, que considerávamos pouco significativo. Mas a posição do Azerbaijão era vital, porque o país, taticamente, mantinha "refém" desta inclusão o seu acordo face a outros documentos, sem o que o compromisso final da nossa presidência ficava comprometido.

A estratégia por nós delineada foi começar por tentar identificar os interesses particulares, em matérias abordadas em outras áreas das conclusões da cimeira, que os Estados que apoiavam a Arménia ou o Azerbaijão tinham. Objetivados , procurámos tentar acomodá-los, obtendo em contrapartida, por um "gentlemen's agreement", a garantia de que deixariam de dar apoio, em intervenções públicas em sessão, às posições arménia e azeri. Tentar enfraquecer, por lêncio de apoios, as partes num conflito é um primeiro passo para conseguir atenuá-lo.

Conseguido assim o conveniente isolamento dos dois países, passou-se à segunda fase: convencer cada um deles individualmente. Como? Obrigando os arménios a aceitar a inclusão da tal expressão considerada essencial pelos azeris, mas dando-lhe, como um "doce", a inserção, noutra parte do texto, de uma outra formulação mais leve, ligeiramente "compensatória" e favorável aos seus interesses. Aos azeris foi dito que tentaríamos que pudessem obter, na declaração final, a inclusão da expressão, mas que, em contrapartida, teriam de concordar com outras fórmulas compensatórias. As versões que íamos testando com eles eram, aliás, bem mais radicais do que aquelas que a Arménia exigia...


O meu colega azeri, Vaqif Sadikhov, cometeu o erro de, desde o início, assumir que a Arménia nunca aceitaria que o tal conceito de "separatismo violento" integrasse o texto. Para essa convicção, diga-se, não fui de todo estranho, em várias conversas que com ele tive, em que lhe fui referindo a "imobilidade" arménia. Por isso, foi-se mostrando aberto a aceitar uma frase "compensatória" potencialmente agradável para a Arménia, porque estava manifestamente convicto de que o compromisso nunca nunca se faria nesse "trade-off", por total relutância do adversário.

Pela Arménia, Jivan Tabibian, o embaixador que era representante permanente do seu país junto da OSCE, dizia-me que tinha estritas ordens de Yerevan para recusar a inclusão da expressão, mas, nas últimas horas de negociação, notei que se sentia fragilizado pelo estranho afastamento público de um seu tradicional aliado, a Rússia, nos momentos em que o tema era discutido.

Mal ele sabia que havíamos "comprado" (caro, confesso) o silêncio russo num dossiê essencial para Moscovo e que a Arménia estava agora praticamente sozinha em jogo. Talvez por isso, fui-o vendo cada vez mais sensível à aceitação das diferentes formulações compensatórias que lhe fui apresentando. Mas foi só cerca da meia noite que, já com o respetivo ministro dos Negócios Estrangeiros ao nosso lado, acordámos numa fórmula final que iriam submeter à sua capital - com necessidade de ser validada pelo próprio presidente da República! E, às seis da manhã (a diferença horária ajudava), Tabibian ligou para o meu quarto, no hotel Pestana da ribeira portuense, a confirmar-me a aceitação do compromisso que eu lhe propusera.


Eu não tinha praticamente dormido durante a noite, mas o dia começava bem. Restava agora "fechar" com o Azerbaijão. O essencial do que pretendiam estava obtido, pelo que o importante era que não objetassem à tal fórmula "compensatória". Porque era decisivo garantir uma forte pressão sobre eles, pedi a Elisabeth Jones, "assistant secretary of State for European and Asian affairs", que chefiava a delegação dos Estados Unidos, para me acompanhar na "démarche" junto de Sadikhov. Os EUA queriam o acordo, tinham mesmo conseguido moderar o tradicional apoio da Turquia à posição azeri. Mas íamos ter uma surpresa.

Sentados em frente a Vaqif Sadikhov, numa sala da Alfândega do Porto, expliquei que tínhamos obtido da Arménia a concessão que queriam e que esperávamos - expliquei que falava também em nome da União Europeia, com os EUA, Canadá e Noruega também de acordo - que o Azerbaijão acedesse então a aceitar a fórmula "compensatória". Sadikhov olhou-me, perplexo: "Mas a Arménia aceita mesmo a inclusão da frase?" Confirmei que sim. A resposta dele desarmou-me: "Bom, então se eles aceitam, o compromisso não nos interessa. Fiquemos então com o texto original, sem nenhuma fórmula". Tínhamos andado mais de 48 horas a negociar para nada...

Quando fui ver o arménio Tabibian, para lhe anunciar que, afinal, voltávamos à "square one", pelo que a sua concessão já não seria necessária, ele olhou-me com um sorriso de quem, lá no fundo, talvez estivesse à espera dessa "novidade". O Cáucaso é um mundo estranho.

Há poucos anos, no hall de um hotel em Baku, no Azerbaijão, caí nos braços de Vaqif Sadikhov, à época embaixador do seu país em Roma. Apesar de, nesses dias do Porto (e antes em Viena), termos mantido grandes discussões, havíamos ficado amigos. E lembrámos o seu antagonista Jivan Tabibian, um homem encantador, infelizmente desaparecido. Na vida internacional, é importante, sempre que possível, garantir um espaço autónomo para as relações pessoais, ao lado das tarefas oficiais que nos incumbem, por mais desagradáveis e tensas que estas possam ser.

É (também) assim a diplomacia.

Vermelho


Li ontem no "Público" que, no Brasil dos dias de hoje, se torna arriscado sair à rua vestido com algo de cor vermelha. Quem assim procede é visto, seja ou não seja, como apoiante do PT, ficando, no mínimo, sob o imediato risco de ser insultado, quando não mesmo agredido. Que tristeza! Quando uma sociedade chega a este ponto de tensão, a democracia não pode estar de boa saúde.

Há muitos anos, quando fui trabalhar para a embaixada em Londres, ao final de alguns meses, veio ver-me, numa tarde, um recém-criado amigo inglês, homem bastante mais velho, infelizmente já desaparecido. Suspeitei que queria dizer-me alguma coisa de pessoal, pelo modo como conduziu a conversa. A certo passo, foi direto ao assunto que ali o trazia: "Meu caro, vou ser muito franco. Tenho vindo a reparar que, já por mais de uma vez, em jantares mais formais em que temos estado juntos, você tem por hábito utilizar gravatas vermelhas. Talvez não saiba, mas isso, aqui em Londres, identifica vulgarmente as pessoas com o partido trabalhista. Ora acho que você não quererá que isso aconteça, em especial nestes tempos da senhora Thatcher". Dei uma boa gargalhada! Não fazia a menor ideia dessa subliminar ligação cromática e confirmei que esse amigo me conhecia ainda muito mal...

domingo, abril 03, 2016

Ir para fora cá dentro


Há umas semanas, dei comigo a ter vontade de ir comer uma "bacalhauzada" a um popular restaurante da Baixa lisboeta, especializado em pratos desse produto. Tinham-me advertido para o facto do local se ter tornado demasiado turístico e quase incaraterístico, com a qualidade culinária a ressentir-se disso. Mas decidi arriscar.

Sou teimoso no meu tradicionalismo. Gosto de revisitar, de quando em vez, e um pouco por todo o país, alguns velhos restaurantes que hajam tido renome, mesmo que, à partida, a hipótese de lá ainda se comer bem seja já muito remota. Tenho este vício há muitos anos, com a minha mulher a alimentar a tese de que acabamos por só reincidir num desses locais quando já nos esquecemos de como comemos mal da última vez que por lá fomos.

Mas, enfim, lá nos deslocámos ao tal restaurante, numa noite de sábado. Comecei por não gostar de tentarem "caçar-me" no meio da rua pedonal, por um "recrutador" de clientes, mas isso era o menos. Disse-lhe: "Eu sei onde quero jantar!". Não estava muita gente, eram quase todos estrangeiros. Foi-nos colocada à frente uma lista longa, em português e inglês, com as inevitáveis fotografias dos pratos - a lembrarem os menus de gelados espanhóis, e imagino que utilíssimas para surdos-mudos... 

A minha mulher quis pedir um esclarecimento sobre se o modo como uma determinado prato de polvo era confecionado. O empregado hesitou um pouco ao tentar responder à pergunta. Foi saber. A explicação que trouxe era muito confusa e perguntei-lhe a nacionalidade. Era nepalês. Para além de um vocabulário de meia dúzia de palavras em português, falava um inglês macarrónico, pouco adequado a discutir pormenores sobre o tratamento culinário do bicho. Consciente dessa limitação, chamou então um colega. Este, em lugar da meia dúzia de palavras portuguesas, sabia uma dúzia. Era do Sri Lanka. 

Ambos eram simpáticos, queriam ajudar, mas os bizarros clientes que nós éramos, a quem apetecia falar português em Lisboa, não se limitavam a apontar para a fotografia ou a soletrar o "grilled octopus with boiled potatoes". Queríamos saber algo mais. E eles, coitados, sorriam, impotentes. Comecei a "passar-me" e, devo dizer, senti-me um pouco Marine le Pen quando disse que queria falar com um empregado português. Nunca me tinha acontecido ter uma reação destas, embora nada xenófoba, apenas prática. (Faço parte dos portugueses que gostam que o seu país seja porto de acolhimento de estrangeiros, sentindo-me muito orgulhoso pelo modo como, em geral, os acolhemos). A minha atitude era, no entanto, a única possível, sendo que a alternativa seria sair porta fora. 

E lá veio um empregado português, também simpático, que era a cara "chapada" do Ricardo Araújo Pereira ("dizem que o meu irmão é mais...", esclareceu). O resto do jantar não teve história. Estava tudo "assim-assim", mais para o mau do que para o bom. Não vou lá voltar. Até me esquecer, claro. Até o clássico grão que fez nome à casa já não é o que era...   

Epicur



Já anda pelas bancas a "Epicur" da Primavera, mais uma belíssima revista que se publica em Portugal. 

Pode descobrir, nas suas 120 páginas, saborosíssimas crónicas, de Pedro Marques Lopes a Mário Zambujal, uma conversa entre Clara Ferreira Alves e António Vitorino de Almeida, e textos sobre muitas coisas boas da vida, de lugares a prazeres e belos vícios. 

Modestamente, meto por ali a minha colherada com uma croniqueta sobre uma experiência restaurativa de se lhe tirar o chapéu. Depois digam que não avisei!

Egoísta


Aqui está a capa do nº 57 da fantástica revista "Egoísta", sob a mão de mestre da escritora Patrícia Reis e a direção gráfica do imbatível mestre do design gráfico Henrique Cayatte.

Este número apresenta um excecional conjunto de textos sob o tema da Traição, que vivamente recomendo.

Uma vez mais, tenho o gosto de publicar um texto numa edição da "Egoísta".

sábado, abril 02, 2016

A Constituição

Passaram 40 anos sobre a data de aprovação da Constituição da República. Não obstante a retórica declaratória que emana do seu preâmbulo e de algumas partes do articulado, a verdade é que o texto que hoje rege a vida do Estado português está já muito distante daquele que então mereceu amplo apoio, no termo da Assembleia Constituinte (só o CDS se lhe opôs, num gesto a que hoje não podemos deixar de reconhecer alguma coragem e coerência). 

Há também que convir que foi o PSD (com o CDS) o principal propulsor das mudanças que o texto constitucional sofreu, desde 1976. Ao PS, sem o qual nenhuma revisão constitucional se faria, coube o papel menos glorioso, mas pragmático, de ir cedendo em pontos importantes da matriz socializante do documento original. Os socialistas foram fazendo isso de uma forma que, ao mesmo tempo, acompanhou a sua própria "social-democratização" interna ou, para ser mais claro, à medida que o partido caminhou mais "para a direita". Com o passar dos tempos, ao PS deve ter parecido importante, como partido de governo, ser visto como "market-friendly" e em sintonia com alguns padrões europeus predominantes. A sua, às vezes algo "envergonhada", associação a algumas revisões constitucionais foi sintoma disso.

A formação política que sempre se revelou mais imobilista face à Constituição foi, sem surpresa, o PCP, que nunca se associou ao desmantelamento das "conquistas de abril" e à deriva, no sentido conservador, do texto constitucional. Embora a doutrina do Bloco de Esquerda sobre o tema me escape, estou certo de que não deverá ter uma atitude muito diversa.

A direita, em geral, continua a não gostar desta Constituição e, por sua vontade, "limpá-la-ia" fortemente do seu caráter programático e adoraria transformá-la num simples esqueleto regulador do funcionamento das instituições, neutralizando-a ideologicamente. Para mostrar as suas razões, tenta escandalizar com a revelação (porque ninguém lê a Constituição) da anódina linguagem socializante e quase revolucionária de algumas proclamações e disposições. Não é por acaso que o órgão mediático da direita radical, o "Observador", associado ao reduto do pensamento universitário mais conservador, a Universidade Católica, procurou lançar este ano uma reflexão "científica" sobre a Constituição, com vista a sublinhar os seus alegados anacronismos. 

Devo dizer que só não fico surpreendido com esta iniciativa porque conheço "de ginjeira" a nossa direita e a sua estrutural obstinação em entender que esta Constituição é o produto de uma época, de uma conjuntura histórica específica, pelo que nela sobreviverão sempre dimensões datadas, da mesma maneira que o "às armas!" do nosso hino não nos convoca necessariamente, nos dias de hoje,  para as trincheiras. O que a muita dessa gente irrita na Constituição é que ela continua a lembrar o 25 de abril, uma data com que alguns ainda convivem mal e procuram fazer apagar da memória afetiva do país. Esses setores não entendem, nem entenderão nunca, que o caráter radical do texto original de 1976 (e do que disso ainda resta) se deveu precisamente à necessidade de nele consagrar "o dia seguinte" à 1974, que derrubou um regime que muitos continuam a só criticar "com pinças". Se a ditadura do Estado Novo tivesse evoluído, como aconteceu com o fascismo espanhol, a Constituição que iria substituir a documento congénere de 1933 (aprovado num plebiscito em que as abstenções contaram como votos a favor!) seria, com toda a certeza, bem mais "serena" no seu léxico. 

Tal como hoje está, é para mim mais do que evidente que a Constituição não constitui, em si, um fator bloqueador da modernidade do país, não condicionando minimamente o investimento externo e a sintonia de Portugal com a economia de mercado europeia. E, como os últimos anos bem provaram, foi ela que serviu de escudo protetor a algumas malfeitorias que a direita no poder procurou levar a cabo face aos direitos dos cidadãos mais desfavorecidos, tendo como alibi oportunista a "ajuda externa". Ver o presidente Rebelo de Sousa afirmar-se garante desta Constituição é algo que me agradou e que só posso desejar que venha a ser confirmado ao longo de todo o seu mandato.

Se alguma ideia havia de que fosse possível, a breve trecho, proceder a uma nova revisão constitucional, um simples juízo lógico afastará logo essa possibilidade. Como é de regra, a "modernização" do texto far-se-ia sempre num sentido de um pendor mais conservador. Mesmo na improvável hipótese dos socialistas se mostrarem abertos a isso, em aliança com o PSD e o CDS, é mais do que evidente PCP e Bloco não deixariam de retirar imediatas consequências políticas em termos do apoio ao governo. Por isso, quem pensa que pode haver condições, nos tempos mais próximos, para alterar a Constituição da República, bem pode "tirar o cavalo da chuva".

sexta-feira, abril 01, 2016

Zaha Hadid


Há cerca de três anos, estive numa conferência em Baku, no Azerbaijão. O encontro teve lugar no esplendoroso edifício que se vê na fotografia.

Não fazia a mais leve ideia do nome do arquiteto responsável. Acabo de saber que era uma arquiteta anglo-iraquiana, Zaha Hadid, prémio Pritzker, um espécie de prémio Nobel da Arquitetura, que morreu ontem.

Já agora, convém registar que dois arquitetos portugueses, Siza Vieira e Souto Moura, foram já galardoados com esse prémio.

Ser estrangeiro



Há semanas, em Londres, no caminho para o aeroporto, num “mini-cab”, perguntei ao motorista o que é que ele pensava da possibilidade do Reino Unido vir a sair da União Europeia.

O homem, de tez escura e sotaque iniludível, tinha ideias firmes sobre o assunto: nas últimas eleições tinha votado pelo partido anti-europeu UKIP, por achar que havia toda a vantagem em que o país abandonasse “essa coisa de Bruxelas”. E logo acrescentou: “Não sei de que país o senhor é, mas nós já estamos cheios de estrangeiros, não queremos cá mais”.

“Onde é que nasceu?”, perguntei. O homem confirmou: “No Sri Lanka. Vim há 11 anos para cá. Tenho nacionalidade britânica”. Não me enganara e não resisti a comentar: “Você e a raínha...”

Um cidadão da Comunidade britânica, como era aquele motorista, entendia que, pelo facto de ter obtido a cidadania, se tornara “um deles”. Estrangeiro, para ele, era um português ou um grego que, graças a “essa coisa de Bruxelas”, andava a disputar-lhe os postos de trabalho.

Tenho-me lembrado bastante disto, depois dos atentados na Bélgica.

Desde há anos que, com amigos belgas, venho discutindo a questão do que é “ser belga”. Como é sabido, as tensões comunitárias são ali fortíssimas, entre valõese flamengos. Há mesmo quem diga que o conhecido empenhamento do país no projeto europeu reside na tentativa de, por essa via, tentar diluir as suas fortes clivagens internas.

Mas alguém já se interrogou sobre o que pensarão, sobre isto, os habitantes de Mollenbeek, as comunidades árabes que, desde há muito, povoam as ruas de Bruxelas e de outras cidades? O que se lhes oferecerá pensar sobre a clivagem valões-flamengos? O que será, para eles, ser belga? Dir-lhes-á alguma coisa ser súbditos do “rei dos belgas”, num país em que, por uma razão concreta, o soberano se não intitula “rei da Bélgica”? Provavelmente, a sua pertença à nação árabe, talvez mais do que à Argélia ou Marrocos de onde vieram os seus pais, releva sobre qualquer afetividade à terra que os viu nascer. Imagina-se, aliás, como essa juventude reagiria se, numa guerra, fossem chamados a defender as fronteiras do país de que são nacionais.

Olhando para a sociedade internacional, fácil é concluir que há poucas realidades tão complexas como as que derivam da nacionalidade e do sentimento comunitário de pertença, em especial quando eles se misturam com questões étnicas e religiosas, em caldos de cultura frequentemente explosivos.

Por estranha felicidade, deve haver poucos povos mais mal preparados do que nós para entender essas mesmas realidades: uma população com unidade étnica, sem conflitos de crenças, com fronteiras e nacionalidade fixadas há quase nove séculos.

(Artigo publicado no "Jornal de Notícias" de hoje)

quinta-feira, março 31, 2016

Nostalgias do ofício

Para os nostálgicos das funções oficiais perdidas, já existia a frase clássica, e magnífica, do antigo ministro francês da Cultura, Renaud Donnedieu de Varbes: ""Passer de ministre à promeneur de son chien suppose un énorme travail sur soi-même".

Hoje ouvi outra ótima: "Deixar de ser ministro é sentarmo-nos no banco de trás do carro e darmo-nos conta de que, por uma qualquer razão, ele não arranca..."

Talvez não seja tarde


A propósito de algumas previsões catastróficas sobre o futuro do mundo, sob pressão da desregulação geopolítica que por aí vai, alguém lembrava que é da lei da vida que a solução para os problemas, em regra,  só emerge quando estes se tornam prementes. É então que a “criatividade” surge, nem que para tal tenha de recorrer-se a um “novo normal”.

Recordo-me do tempo em que as “exceções” concedidas ao Reino Unido ou à Dinamarca eram vistas com um horror ortodoxo, por parte da burocracia bruxelense. A ideia de que todos tínhamos obrigatoriamente de caminhar ao mesmo passo era a regra do jogo, porque, de certo modo, subsistia a esperança de que, mais cedo ou mais tarde, esses países “tresmalhados” haviam de ser conduzidos ao “redil” da pureza dos tratados.

Um dia, porém, em especial na perspetiva dos alargamentos, alguém se deu conta de que, para o projeto coletivo poder avançar, talvez fosse sábio estudar mecanismos de integração diferenciada, as chamadas “cooperações reforçadas”, garantindo, numa União cada vez mais diversa, uma flexibilidade que permitisse acomodar vontades e capacidades diferentes. Os tratados europeus passaram a incorporar esses mecanismos e à Comissão, vestal sagrada do património comum, foi conferida a função de velar para que esses modelos heterodoxos fossem compatíveis com o padrão integrador regular.

Nos dias que correm, o  caso britânico parece poder vir a trazer para a União uma nova onda de potencial flexibilidade, introduzindo mesmo o conceito das exceções eternas, isto é, dando a alguns Estados a faculdade de se não obrigarem, para sempre, a compromissos que aos outros são exigidos.

Se hoje trago aqui a questão da  integração diferenciada é para chamar a atenção para uma contradição em que a Europa está a incorrer e que, em certa medida, pode vir a prejudicar fortemente a gestão do seu futuro.

Como atrás ficou expresso, cada vez mais a União Europeia constata que, em determinados casos, na ausência de vontade política ou de condições objetivas, tem sentido dar a oportunidade aos Estados de se colocarem fora da observância de certas políticas. A única limitação será a necessidade dessa sua auto-exclusão não afetar a funcionalidade global do sistema, razão pela qual, como disse, a Comissão europeia funciona como o “árbitro” comunitário na condução desses processos.

Mas, se assim é, se se aceita crescentemente uma adoção diferenciada às políticas, por que razão a União Europeia não procede, de forma idêntica, logo nos processos de adesão? Por que diabo, sempre que a negociação destes se inicia, se parte do princípio de que os novos Estados aderentes têm, obrigatoriamente, que aceitar todo o acervo comunitário? Porque não encarar modelos de integração diferenciada, desde o primriro momento e para sempre?

Alguns objetarão que os “períodos transitórios” são precisamente isso. Não é verdade! Esses modelos derrogatórios temporários continuam a basear-se na ideia de que, um dia, todos adotarão a totalidade das políticas. Ora não é necessário que assim seja, devendo poder formatar-se uma adesão à medida de cada país.

Uma perspetiva deste género poderia facilitar, por exemplo, um processo como o da Turquia. Alguém acredita que será viável algum dia aplicar àquele país, sem imediata rutura do sistema, a Política Agrícola Comum e outras políticas que o gigantismo relativo do país tornam de implausível adoção? Porque não assumir isto e evitar estar a negociar com Ancara uma adesão plena, na lógica tradicional da totalidade dos “capítulos”, que todos sabem impossível? Este “teatro” interessa a quem?

Talvez não seja tarde.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

Comissões parlamentares

Há algo de estranho - entre o masoquista e o naïf - neste interesse público, que começa a tornar-se preocupantemente regular, de ouvir contar, por longas horas (para além do sereno "from nine to five", para dramatizar mais as coisas), as várias versões sobre quem foi, afinal, o principal responsável pelo dinheiro com que, como contribuintes, todos tivemos de "entrar" para compensar os desastres financeiros da nossa banca. A única certeza que podemos ter é que esse dinheiro já não se recupera.

Uns vão dizer que os maus da fita são os banqueiros, outros a supervisão, alguns os governos, outros ainda a Europa. 

Com alguns dos convocados, os deputados mostram-se "engraçadinhos", com outros ríspidos, com uns poucos menos respeitosos, embora com todos se revelem sempre muito "inteligentes". 

Tal como no caso BES, as televisões adubam a criação de vedetas parlamentares, que, pela coreografia usada, se exibem bastante para a "plateia". Os canais informativos "chamam um figo" a esses bate-bola, que para eles funcionam como uma produção gratuita, de audiência garantida. Os generalistas e a imprensa agarram os "sound bites" dos duelos retóricos, em busca do deslize ou do escândalo.

No final, os deputados editam um relatório, talvez apontem uns dedos acusadores (a menos que, para obterem um texto consensualizado, acabem por ser "redondos" nas conclusões) e vão para casa, felizes e contentes, com a sua missão "fiscalizadora" cumprida.

Até ao próximo banco falir e o programa voltar a repetir-se, claro.

Se é um facto que nenhuma consequência jurídica vai resultar deste exercício, alguém ainda me há-de conseguir explicar por que razão, no caso do Banif, todos os grupos parlamentares recusaram essa coisa tão simples que seria uma auditoria especializada internacional, levada a cabo por profissionais independentes qualificados e não por amadores políticos. 

Dava menos espetáculo, era isso?

quarta-feira, março 30, 2016

Dilma - os dias do fim?


Dilma Rousseff, a presidente brasileira, luta hoje para salvar o seu segundo mandato presidencial, que iniciou há pouco mais de um ano.

Não sou um especialista em Direito constitucional brasileiro, mas de tudo quanto li sobre o processo de destituição que sobre ela impende (e já li bastante), não me fica a menor dúvida de que o que se está a passar é uma manifesta distorção do instituto do "impeachment" por parte de quantos, no puro plano político, a querem afastar do poder, a todo o custo. À luz do que se conhece (e conhece-se tudo, creio), se Dilma Rousseff vier a ser destituída de funções apenas com base nas acusações que lhe são formuladas, as instituições brasileiras estarão a enveredar por um precedente muito perigoso. É hoje evidente que a presidente é impopularíssima no Brasil, que a esmagadora maioria da população brasileira gostaria de a ver pelas costas, que um expressivo número dos seus concidadãos consideram que o seu nome está indissociavelmente ligado à cultura político-partidária onde floresceu o patrimonialismo e a corrupção, que hoje escandaliza todo o país. Porém, isso é uma censura política e, em democracia, tal só tem "remédio" nas urnas e as próximas eleições presidenciais no Brasil só estão previstas em 2018. Salvo por renúncia da presidente ou, nas atuais circunstâncias, por destituição com pretextos forçados.

Imagino que muitos (eu diria, a maioria) dos meus amigos brasileiros não concordam comigo, porque os sinto desejosos, a qualquer preço, de se verem livres de Dilma Rousseff e de tudo o que entendem que ela representa. Nesse contexto, essa maioria (porque é uma maioria) pensa que, havendo um "clamor" popular, se torna legítimo utilizar todos os meios ao dispor para conseguir esse objetivo, aceitando que possa haver um "jeito" legal, mesmo se um pouco forçado, para tal. Tenho muita pena que pensem assim.

Alguns (poucos) dirão que escrevo isto por alguma simpatia para com Dilma. Para esses - e para os outros, claro - deixo uma pequena história, que creio que os elucidará 

Nos quatro anos que passei no Brasil, como embaixador, encontrei Dilma Rousseff por diversas vezes, quer como ministra das Minas e Energia, quer como ministra-chefe da Casa Civil. Contrariamente ao que me aconteceu com alguns outros ministros e altas figuras de Estado brasileiro, com quem estabeleci fortes laços pessoais, alguns dos quais mesmo uma boa amizade que dura até hoje, com ela (como com muitos outras dessas figuras, diga-se) isso nunca se proporcionou. Mas cruzámo-nos em ocasiões oficiais, em refeições de trabalho e em algumas ocasiões sociais. Repito: falámos e conhecíamo-nos.

No final de 2008, saí de Brasília para Paris. E, quase no termo da minha missão como embaixador português na capital francesa, Dilma Rousseff fez uma visita oficial a França. Estive presente num dos momentos dessa agenda.

No dia seguinte, enviei a vários e bons amigos brasileiros, muitos deles diplomatas, um pequeno texto que hoje me apetece repescar e de que, sem dúvida, todos eles se recordarão:

"Há dias estranhos. Ontem, com imenso gosto, estive presente na cerimónia no Hôtel de Ville, durante qual a presidente Dilma Rousseff foi recebida numa bela e calorosa recepção pelo maire Bertrand Delanöe. A cerimónia foi muito simpática, porque excelentes e naturais são, como é sabido, as relações franco-brasileiras. Embora todo o corpo diplomático tivesse sido convidado, não eram muitos, infelizmente, os embaixadores presentes. Eu era, entre os presentes, o terceiro em antiguidade (o que significa que já ando por aqui  muito tempo). No termo da cerimónia, o chefe do cerimonial foi apresentando à presidente os embaixadores presentes. Começou pelo Núncio apostólico, ao qual Dilma Rousseff deixou uma palavra simpática. Seguiu-se o libanês: com naturalidade, houve uma referência à sua importante comunidade no Brasil. Chegou a minha vez e o chefe do cerimonial disse, alto: “L'Ambassadeur du Portugal”. Acrescentei: “Seja muito bem vinda a Paris, senhora Presidente”. Dilma estendeu-me a mão, olhou para mim com um olhar translúcido, sem esboçar um sorriso, sem pronunciar uma única palavra, nem um simples “boa tarde”, e passou, de imediato, à frente. Seguiu-se o embaixador de Angola. Aí, a presidente repetiu, alto: “Ah! Angola” e agarrou a mão do embaixador com as duas mãos, afivelando um largo sorriso.  dias estranhos."

terça-feira, março 29, 2016

O novo presidente em dez pontos


  1. Fiquei com a sensação de que foi ainda o "professor Marcelo" quem ontem falou ao país. Estava lá a pedagogia, a apresentação académica e equilibrada das teses e a avaliação neutral da racionalidade das mesmas. Só faltaram as notas... Mas não desgostei, confesso.
  2. António Costa não se pode queixar do PR. A cooperação institucional esteve presente e, de certo modo, uma certa "presunção de eficácia" do executivo também.
  3. Marcelo Rebelo de Sousa foi social-democrata no modo como descreveu as posições em confronto e até no modo subliminar como deixou expressa a sua simpatia pela forte dimensão social do projeto inicial de OGE. E foi visível a ausência de qualquer empatia com a teoria do rigor europeu (que não se coibiu de colar ao anterior executivo), que terá impedido o sucesso da fórmula "inspiradora" portuguesa.
  4. Quem contava com o presidente para poder criar um fácil incidente de percurso ao governo parece poder começar a "tirar o cavalo da chuva". Ele deixou claro que o governo só cairá se quem o apoia assim quiser. Lembram-se dos tempos em que bastava eleger um presidente "de direita" para se poderem marcar logo novas eleições? Eram em julho, não era?
  5. O presidente deu ontem, de forma clara, um "salvo-conduto" ao governo, embora apenas com a validade de um ano. Já se percebeu que isto irá de orçamento em orçamento. Entretanto, sem o dizer, o presidente não deixou de lembrar que o Plano Nacional de Reformas tem de ser aprovado - e convém não esquecer que subsistem dúvidas se ele vai a votos na AR e o que daí poderá resultar.
  6. Os avisos sobre a necessidade de rigor na execução orçamental e sobre o otimismo, talvez excessivo, de algumas projeções vieram bem acompanhados pela (potencialmente desculpabilizante) ideia de que se situam fora do país, e fora do controlo deste, algumas das variáveis que podem vir a ter um efeito sério na equação final. António Costa não esquecerá (e agradecerá) isto.
  7. Quanto à oposição, a vingança serve-se fria (como a "vichyssoise", aliás). Mais do que nunca, o PSD vai ter oportunidade de recordar, durante o seu nostálgico congresso do próximo fim de semana, como MRS lhes raptou idêntico evento anterior: desembarcando inopinadamente na sala, com um discurso galvanizador, remeteu então Santana Lopes à Misericórdia, atemorizou de vez Rui Rio e encostou definitivamente à parede Passos Coelho. O "catavento mediático" venceu-os a todos. Com um sorriso (que eles conhecem bem).
  8. Contudo, o "estado de graça" de Marcelo perante alguma direita mais "caceteira" está a esgotar-se, talvez mais rapidamente do que esperado. O "Observador" já esbraceja desespero pela opinião, alguns colunistas do "Negócios" e certos jornalistas "independentes" ("independentes", na novilíngua mediática, significa "que não são de esquerda") também não disfarçam, os porta-vozes da Santana à Lapa, atrapalhados entre Belém e a "geringonça", esfalfam-se por ora em circunlóquios de advocacia hábil. Quando perderão a cabeça? 
  9. Marcelo Rebelo de Sousa é hoje, como nunca foi um outro presidente, um "one man show", com a força que isso dá e os riscos que acarreta. Ganhou as eleições pela exploração hábil de uma notoriedade que só a si deve. Tem à sua frente um governo no fio da navalha, dependente da gestão das contradições de quem o apoia e de uma multiplicidade de vetores que desafiam a "lei de Murphy" ("se alguma coisa pode correr mal, ela correrá mal, no pior momento possível"). Não deve um voto ao entusiasmo oficioso do seu partido de origem (e este sabe isto). E, ainda à direita, conta com um CDS à procura de razões para existência própria, isto é, em busca de um registo distinto de um PSD que vive em estado de "negação", com as malas prontas para regressar a S. Bento.
  10. Vai ter imensa graça (embora vá ser simultaneamente algo penoso) assistir ao congresso do PSD. Se o partido enveredar por um elogio póstumo a Cavaco Silva, terá dois resultados inevitáveis: cola-se a uma figura que não soube acabar o seu tempo com um mínimo de "dignidade" (mal Cavaco sabia que, ao usar a palavra para Soares, estava a escrever o seu destino) e, a contrario, irá provocar Marcelo, o qual, em Belém, parece estar a escrever uma espécie de manual de "como Cavaco não faria".

segunda-feira, março 28, 2016

Angola e os direitos humanos

A decisão da justiça angolana de punir severamente os ativistas políticos vai, com toda a certeza, suscitar clamores internacionais. 

No plano formal, irá ser argumentado que o processo terá tido irregularidades processuais, que pode haver uma desproporção da pena face à real gravidade dos atos que terão sido praticados, que o facto de se tratar de jovens sem cadastro anterior e com escassez de meios para a prática efetiva das ações que planeariam levar a cabo desqualifica a rigidez da resposta judicial.

Mas não nos enganemos: a grande questão que estará subjacente a essas reações prende-se, essencialmente, com um juízo de valor negativo quanto às garantias políticas e judiciais que as instituições angolanas providenciam aos seus cidadãos. Ora essa é uma questão política de fundo, que, desde logo, começa por dizer respeito aos angolanos, dentro ou fora do país, mas que também é passível de mobilizar a opinião de estrangeiros.

Portugal, onde vive uma importante comunidade angolana, é e continuará a ser um palco natural para tomadas de posição pública face ao regime de Angola. A essas atitudes associar-se-ão, com toda a certeza, figuras portuguesas, políticas ou não, que irão ecoar as muitas reticências que as instituições angolanas lhes merecem, em especial no plano da observância dos direitos fundamentais e das regras do Estado de direito. A liberdade de expressão de que felizmente por aqui somos titulares autoriza isso e só nos devemos orgulhar de viver num país em que tal é, e esperemos que continue a ser, sempre possível.

Outra coisa, porém, são as posições de Estado. 

Pelas minhas contas, mais de 60% dos países com os quais Portugal tem relações diplomáticas têm regimes que estão longe de corresponder a modelos aceitáveis em matéria de funcionamento das respetivas instituições, no tocante à sua democraticidade e respeito pelos direitos básicos dos cidadãos, nomeadamente à observância de "mínimos" em matéria de funcionamento equilibrado e independente da justiça, liberdade da comunicação social, direitos das mulheres, etc. Em alguns desses países há comunidades portugueses, em outros há investimentos nacionais, outros ainda são destino das exportações com que hoje exultam as nossas estatísticas.

Se acaso Portugal decidisse ter relações político-diplomáticas apenas com países cujos regimes merecessem o seu louvor, em razão das suas prática institucionais, a nossa rede diplomática restringir-se-ia imenso e, por exemplo, os nossos emigrantes ficariam sem um mínimo de proteção consular em muitos locais. Se o nosso país comerciasse e investisse exclusivamente em Estados que dessem mostras de respeito pelos direitos humanos, a nossa balança comercial iria, de um dia para outro, "por águas de bacalhau". Quando, nas Nações Unidas ou noutras instâncias multilaterais, anunciamos gloriosamente ter sido eleitos para qualquer importante cargo, convém ter presente que a esmagadora maioria dos países que votaram em nós são ditaduras ou falsas democracias, muitas delas com regimes sinistros, presos políticos e práticas de que todos nos envergonharíamos, se alguém parasse um segundo para pensar.

Na sociedade internacional, o tratamento deste tipo de questões, quando não afetam diretamente os nossos interesses ou os interesses que nos compete proteger, não se processa nunca no plano bilateral. Portugal está presente em diversas instâncias internacionais onde estas temáticas são analisadas, onde a observância de práticas sãs pelos Estados é escrutinada, onde a coerência da nossa posição em matéria de promoção de princípios consensuais é testada. E, ao que a nossa história democrática demonstra, não nos temos saído mal desse teste.

Estou certo que as autoridades portuguesas têm isto presente quando são apeladas a pronunciar-se sobre o que hoje se passa em Angola.

(Em tempo: o comunicado que o MNE português distribuiu sobre este assunto é em tudo conforme àquilo que deixei expresso)

A folga patriótica

Interessante e inteligente o cenário escolhido por António Costa para a declaração sobre a reposição dos feriados: o palácio onde, em 1 de dezembro de 1640, a História nos diz que terá sido restaurada a independência. Na cerimónia, descortinei o descendente longínquo do aristocrata alentejano a quem os seus pares, descontentes com o tratamento que à fidalguia lusa estava a ser dada por parte da corte de Madrid, entregaram então o poder. Curioso isto coincidir com um tempo em que um inusitado patriotismo bancário também faz cara feia às pretensões do capital que se situa para além do Caia. Só que, desta vez, não é só Castela que se "combate". É que o "La Caixa", o banco que anda às turras com a engenheira angolana a propósito do controlo do BPI, é uma instituição da Catalunha, a região cuja guerra com Madrid tanto nos ajudou em 1640.

Para grandes males...


Pelas historietas que por aqui conto sobre Vila Real, pode retirar-se a impressão errónea de que a vida na cidade de então era divertidíssima, que se passavam por ali tempos interessantes, nesses anos 50 e 60 do século passado, em que vivi por lá, a que se somavam as estadas em férias, já nos anos 70.

Nada disso! Sejamos muito francos: Vila Real era uma seca! Lembro-me hoje de alguns episódios curiosos, mas esses eram "os" escassos momentos em que por ali se abanava o quotidiano. Ao recordá-los, magnifico naturalmente a graça que tiveram, na velha lógica de apenas retermos o que nos foi agradável, às vezes "edulcorando" o passado e os figurantes desses dias. Para a juventude de então - em especial, se comparada com os dias de hoje - a vida na cidade era de uma imensa monotonia.

A consciência disso vinha-nos, de forma muito mais clara, quando volvíamos à cidade em férias, depois da nossa vida se ter transplantado para locais bem mais interessantes e movimentados - como o eram Lisboa, Porto ou mesmo Coimbra. Já habituados a outro ritmo de vida, à diversidade da oferta cultural ou à multiplicidade dos espaços de convivência e lazer, o contraste com a imensa pasmaceira da "Bila" (é assim que os vilarrealenses se referem à sua cidade) era algo angustiante, passados que fossem um ou dois dias, logo que esgotadas as saudades familiares e as conversa com os amigos por lá deixados.

Recordo-me bem de que, nesses tempos, a ânsia pela informação escrita "lá de baixo" (leia-se, de Lisboa) passava a ser imensa. Os semanários (de início, "A Vida Mundial", depois o "Expresso" ou "O Jornal") ou os diários mais apelativos ("Diário de Lisboa" ou "A Capital") convertiam-se em âncoras fundamentais para acompanhar a vida do país ou as coisas do estrangeiro, nesses tempos sem internet, com uma televisão sem opções de diversidade. Os diários vespertinos de Lisboa chegavam invariavelmente à hora de almoço do dia seguinte àquele em que saíam, enquanto que os semanários, se tudo corresse bem, apareciam ao fim da tarde do próprio dia. Tudo vinha, em geral, de comboio - nesse tempo em que a linha do Corgo ainda funcionava. Depois, mais tarde, passaram a vir de "ambulância", umas carrinhas vermelhas dos CTT, que aportavam no alto da avenida.

Da estação, os "rolos" de jornais (que vinham embrulhados em edições de dias anteriores - o que dá razão à frase clássica do jornalismo segundo a qual "no dia seguinte à sua publicação, os jornais só servem para embrulhar peixe") eram transportados até às tabacarias, em motocicletas providas de uma caixa posterior. No período mais relevante para o que aqui importa, quem se encarregava disso era o Fernando Cardoso (o "Choco"), que providenciava a entrega na tabacaria do Bragança, ponto essencial que nos abastecia desse "alimento informativo", essa recarga de baterias "de mundo"...

À volta dessas horas em que se previa a chegada dos periódicos (e o atraso dos comboios parecia ser a regra), alguns de nós pairávamos, quais aves de rapina, nas cercanias do Bragança, passarinhando entre a Gomes e o Santoalha. Éramos acompanhados de uma outra "fauna", a desportiva, estes à cata de "A Bola", do "Record", de "O Mundo Desportivo" e, para alguns impenitentes "andrades", de "O Norte Desportivo", de publicação mais variável. E, muitas vezes, quando a motorizada do "Choco" (um homem encantador, diga-se, que conseguiu em grande parte da sua vida manter a tripla atividade de tasqueiro com petiscos, vendedor de jornais e funcionário do Sport Clube de Vila Real) se anunciava na avenida, já nós estávamos junto ao balcão da tabacaria do Bragança (que funcionava por baixo do cabeleireiro da esposa), de moedas na mão, porque os exemplares que chegavam à cidade eram muito escassos e seria uma verdadeira "tragédia" perder um "Lisboa" e, muito mais, um "Expresso".

A história que aqui lhes trago passa-se num fim de tarde de uma sexta-feira de inverno, com a cidade sob uma chuvada impiedosa. Aí pelas seis da tarde, como era de regra, desci ao Bragança para levantar "O Jornal". O proprietário da tabacaria (figura cuja simpatia não era a principal qualidade distintiva) disse-me que havia um problema na estação de caminho-de-ferro. Aparentemente, "falhara a luz" (coisa vulgar, à época) nessa zona da cidade e, como a estação ia fechar daí a pouco, já não havia hipótese de se esperar "pela luz" para "separar os rolos" dos jornais. "E então?”, inquiri. Indiferente à angústia que me atravessava, o Bragança lançou-me, frio: "Então, só amanhã de manhã!"

Isto representava um "drama" duplo: não apenas não ia ter o semanário nessa noite como, pior ainda!, o jornal ia ser vendido logo de manhã - a minha hora sagrada de sono, em férias. Arriscava-me mesmo, no limite, a não conseguir adquirir nenhum exemplar!

Para grandes males, grandes remédios! Inconformado, zarpei de carro para a estação. Ao chegar à Cardoa, à vista da ponte metálica que dá acesso ao outro lado da cidade - "Gaia", para alguns, como hoje se diz - pude notar o bréu que ia por toda a área, entrecortado pelas luzes de escassos carros, com a escuridão agravada pela chuva que não parava de cair.

À medida que me aproximava da estação, vi à porta um vulto, embrulhado num capote longo, prestes a colocar-se sobre uma motoreta. Era o "Choco", que, seguramente, já desistira de levantar os jornais! Parei ao lado dele, abri o vidro e chamei-o com um berro, por sobre o trotear mecânico da Zundapp: "Senhor Fernando!" O homem estacou. Saí do carro e, num segundo, expliquei o meu "plano": se se abrissem as portas da estação eu, de fora, com os faróis do meu carro nos "máximos", conseguia iluminar suficiemente o balcão das mercadorias, permitindo a separação dos "rolos" dos jornais. A minha generosidade esgotava-se, claro, no produto informativo: estava-me "nas tintas" para a restantes mercadorias...

O "Choco" deve-me ter achado um pouco maluco, mas lá acedeu, dizendo uma frase que nunca mais esqueci: "Se o menino me pede, vamos tentar", avançando para negociar a operação com o "fator de primeira" que estava de plantão às encomendas. (O "menino" era o qualificativo pelo qual ele me tratava desde a infância. Se isto hoje configura tráfico de influências ou não, podemos discutir com o “anjo” Paulo Morais). Enfim, dessa forma, graças aos "máximos" do meu Fiat 128, lá se conseguiu "levantar os rolos".

Conduzindo à frente do "Choco", regressei ao Bragança, que já estava prestes a fechar a loja e a recolher a casa. Alertei-o da iminência da chegada dos "rolos". De facto, instantes depois, a escorrer chuva por todos os lados, lá entrou o Fernando "Choco" na tabacaria, informando um Bragança que não me pareceu nada impressionado: "É aqui graças ao menino que hoje temos os jornais!" O "menino", o matulão que eu era com vinte e tal anos, recolheu o seu preciso "O Jornal" e, de imediato, foi devorá-lo, com um fino à ilharga, do outro lado da rua, na "Pompeia" do Neves, até à hora de jantar.

Vila Real podia ser uma seca! Mas sem "O Jornal", tudo se tornava ainda muito pior!

(A fotografia que tirei há pouco da porta da estação não é de antologia. Mas a luz continuava a ser escassa por ali...)                                  

domingo, março 27, 2016

Alain Decaux (1925-2016)


Há mais de seis anos, publiquei isto neste blogue:

O académico Alain Decaux é uma personalidade que gerações de franceses aprenderam a conhecer pela televisão e pela rádio, onde, durante décadas, divulgou a História, com graça e profundidade. Outros reconhecem-no pelas dezenas de livros que publicou sobre essa temática.

Como um dos quinze membros do júri do "Prix des Ambassadeurs", que anualmente atribui o galardão a um escritor francês, autor de um trabalho no domínio histórico-político, tenho o privilégio mensal de ouvir dele os comentários, sempre de grande sabedoria e conhecimento, com que acompanha os relatórios que apresentamos sobre as obras em análise.

Há dias, quando fiz a apresentação crítica ao júri da obra do antigo primeiro-ministro Edouard Balladur, "Le pouvoir ne se partage pas - conversations avec François Mitterrand", todos pudemos beneficiar, com interessantes histórias e comentários a propósito, da excepcional erudição de Alain Decaux, que foi antigo ministro do governo de Michel Rocard e conviveu com François Mitterrand.

É um raro enriquecimento poder usufruir desta interacção com quem andou por mundos que, para nós, fazem já parte da História.

Acabo de saber da morte de Alain Decaux. Era uma personalidade muito agradável, serena, que nos ajudava, com bonomia e indiscutível autoridade, a superar as nossas diferenças e pontos de vista, muitas vezes bem opostos, num júri que debatia obras sobre realidades contemporâneas, nem sempre de leitura unívoca. Devo-lhe a muita paciência que demonstrou em face de certas intervenções mais assertivas que fiz nesses debates. Tenho imensa pena pelo seu desaparecimento.

Um espião falhado

Numa conversa telefónica com um jornalista do "Diário de Notícias", a propósito dos contactos entre diplomatas e espiões, relatei um episódio divertido, de que já quase me havia esquecido, passado em Angola, aí por 1985, quando estava colocado na nossa embaixada em Luanda.

Cuba tinha então uma posição muito importante em Angola, dada a presença de largos milhares de militares que ajudavam o poder em Luanda na guerra civil que o país atravessava. A eles se somavam muitos outros "cooperantes internacionalistas", que prestavam serviço em áreas civis, como a saúde, o ensino e vários outros setores técnicos.

Ao que me recordo, nem o embaixador português nem o seu "número dois" mantinham contactos regulares com a embaixada cubana em Luanda. A esse nível, eventuais encontros teriam um inescapável perfil político, inadequado para as circunstâncias que então se viviam. Assim, essa tarefa estava a cargo de funcionários de nível inferior, como era o caso do meu colega Júlio Vasconcelos e de mim próprio. Cada um de nós tinha um interlocutor cubano, embora não por nossa iniciativa, sempre por aproximações feitas por eles. 

O teor das conversas havidas (como em geral acontecia nos contactos com contrapartes estrangeiros, em especial de países fora das nossas alianças tradicionais) era reportado ao embaixador e, como era de regra, se acaso delas viesse a redundar alguma coisa de interessante, seria depois feita uma comunicação para Lisboa. Tratava-se de uma tarefa de rotina, com a acrescida graça, entre mim e o Júlio Vasconcelos, pelo facto de procurarmos cruzar os discursos dos nossos interlocutores, tentando encontrar-lhes dissonâncias.

O "meu" cubano era relativamente jovem. Negro, muito bem preparado, havia estudado na União Soviética e falava um português magnífico. Nesse tempo, Luanda não tinha espaços "neutrais", como um bar, um café ou outro local onde, discretamente, se pudesse ter uma conversa. No meu caso, o diplomata cubano (que me parecia não ser um "espião" profissional, mas um simples funcionário de carreira) vinha ao meu gabinete, na embaixada, sempre que queria conversar. Nunca me passou pela cabeça ir à embaixada de Cuba. 

As conversas tinham um "menu" pouco variado. Ele procurava obter a minha leitura sobre a situação político-militar, sobre o estado das nossas relações com Angola, sobre incidentes ou operações militares que houvessem sido divulgados e, aqui ou ali, sobre a evolução da situação política internacional. Naqueles tempos algo pesados de Luanda, aquele era um exercício interessante, em que o cuidado por parte dele era muito maior do que da minha parte, comigo sempre a dar-me ao luxo de uma abordagem mais aberta e mais ousada. Porém, embora a minha memória seja bastante boa, não retenho dessas conversas um único episódio ou revelação que tenha por significativo. Exceto um pequeno incidente.

Um dia, tive uma ideia que não correu muito bem. Recebi-o, comigo sentado à secretária, ele numa cadeira em frente. Como o meu gabinete não tinha sofás, essa era a logística natural. A má ideia foi eu ter decidido colocar sobre a mesa, em frente a nós, uma caixa (ou um envelope, já nem sei) de cartão, dentro do qual estava um pequeno gravador, que acionei uns segundos antes da chegada do diplomata cubano. Era uma maneira, pensava eu, de poder ser depois mais preciso no relato que faria da conversa.

Esta decorreu com toda a normalidade, por largos minutos (talvez demasiados...), até um certo ponto. De repente, de dentro do invólucro, ouviu-se aquilo que soou como um breve apito, seguido de um saltar da patilha de gravação. A situação não oferecia o menor equívoco e o meu interlocutor deve ter logo percebido de que estava a ser gravado.

No que me toca, imagino que devo ter ficado bem aflito! Recordo-me de ter aumentado a voz, na ingénua tentativa de cobrir o ruído. Mas era tarde, nada feito! Nenhum de nós se referiu ao assunto, embora a naturalidade com que a nossa troca de impressões estava a decorrer se tivesse alterado, pela mútua consciência de que algo de estranho se tinha passado. Ele teve a elegância de não abordar o incidente, eu fiquei "encavacado" e devo, por instantes, ter perdido toda a naturalidade.

Minutos depois, o cubano despediu-se, tendo-o eu acompanhado à porta. Devo dizer que eu não estava nada orgulhoso do "espetáculo" que, involuntariamente, a minha falta de cuidado "técnico" havia criado. Nunca mais esse cubano me voltou a contactar e só lamento que ele possa ter ficado com má impressão dos "espiões" portugueses...

sábado, março 26, 2016

"Evasões"


Em anexo do "Diário de Notícias" de ontem, sexta-feira, foi distribuída a revista "Evasões", que insere um guia sobre a "terra fria" transmontana que vale a pena guardar.

Neste número da revista, publico mais uma avaliação gastronómica sobre um restaurante, desta vez lisboeta, que também poderá ser consultada aqui.

sexta-feira, março 25, 2016

A Oeste nada de novo?


À exceção de algumas vozes mais inquietas, às vezes tidas como Cassandras, a questão da onda terrorista que assola a Europa parece coisa estrangeira aos olhos da maioria dos nossos concidadãos. Deteto mesmo, passada a solidariedade de regra para com as vítimas, algum saloio contentamento mercantilista, pelo facto de continuarmos a consagrar-nos como beneficiário turístico da confusão instalada a Leste deste “luso-paraíso”.

O PM português, que de outras andanças governativas conhece bem este tema, disse algo que alguns fingiram não ter percebido: que por cada ataque terrorista que tem lugar, muitos outros são evitados. É que, não fora o trabalho policial e de investigação realizado, a situação seria hoje muitíssimo mais grave, face à complexa e insidiosa natureza do radicalismo islâmico

A nossa segurança como país não pode basear-se na ideia de que a perifericidade geográfica nos protege ou de que o rácio religioso interno nos conforta. A segurança está sempre longe de ser um dado adquirido: uma bomba num aeroporto ou numa escola é passível de ocorrer entre nós, face a esta guerra de fins que não olha a meios. De um dia para o outro, a leitura de interesses dos radicais pode vir a enviezar-se em nosso detrimento – e então passará a ser demasiado tarde prevenir. E o risco de isto acontecer é tanto maior quanto as nossas fragilidades securitárias forem mais evidentes.

Neste esforço de proteção, desempenham hoje um papel fundamental os serviços de informação. Por isso, e atento o caráter transfronteiriço dos grupos que nos trazem ameaças, uma cooperação eficaz entre eles é essencial. 

Ora é sabido que Portugal, neste domínio, já tem revelado grandes fragilidades, como o demonstra o facto de terem conseguido ascender a lugares de topo dessas estruturas verdadeiros “cowboys”, cujas aventuras afetaram a credibilidade dos serviços, retraindo a abertura à partilha informativa por parte dos congéneres mais relevantes.

Espero que o senhor presidente da República, que transmite sinais de se não querer furtar a dar às grandes questões de Estado uma atenção com público destaque, possa também induzir em todos os agentes políticos um forte sentido de responsabilidade neste âmbito específico. 

Em particular, importa garantir que os nossos serviços de informação venham cada vez mais a estar preservados das lutas de poder, nomeadamento no quadro da patusca conflitualidade entre as sensibilidades dos ritos organizados, os quais, por um insondável mistério, cuja lógica sempre me escapou, parece terem obtido, desde há muito, um direito natural de tutela e influência neste setor.

quinta-feira, março 24, 2016

Desonestos ou burros: escolham!

Ontem, publiquei um post em que ironizava, como tanta gente tem feito, pelo facto de Pedro Passos Coelho se passear por aí em pose de "primeiro-ministro". E, para tal, brinquei com o facto de Salazar ter, por algum tempo, julgado ocupar ainda o cargo de chefe de governo. 

O que sucedeu depois? Um bando de patetas - desonestos ou burros, eles que escolham! - desatou, em periódicos, blogues, facebook ou twitter, a afirmar que eu tinha "comparado" Passos Coelho a Salazar. Daí a terem "deduzido" que eu chamara "fascista" a Passos Coelho foi um curto passo. 

Quando o sectarismo se liga à iliteracia, com uns pozinhos de má fé, a combinação fica irresistível.

Costumes


Ontem, numa conversa, um convicto vilarrealense adotivo, nascido lá para o centro do país, dizia-me temer que a abertura do túnel do Marão, ao facilitar os acessos, venha a afetar a magnífica segurança de que a cidade hoje dispõe.

Com efeito, a criminalidade, em matéria de roubos ou de furtos, que por aqui às vezes se verifica, é quase sempre produto de "know-how" importado. Para reforçar a sua ideia, o meu interlocutor referiu que, atualmente, a polícia local sabe bem o que fazer, quando ocorrem pequenos delitos: "A polícia vai logo à procura dos cinco ou seis do costume". 

Não consegui deixar de me lembrar da celebérrima frase do capitão Renault, na cena derradeira do  "Casablanca", no "princípio de uma bela amizade" com Rick: "prendam os suspeitos do costume!"

Carlos Cruz, o terrorismo e "A Bola"


O antigo apresentador de televisão Carlos Cruz apresentou ontem em Lisboa umas memórias. Pelo que me foi dado ver, a questão da candidatura portuguesa ao campeonato de futebol Euro 2004 está a converter-se num dos temas polémicos suscitados pela obra. Também eu tenho uma pequena história relacionada com Carlos Cruz (pessoa que não conheço), com o Euro 2004 e, curiosamente, com o terrorismo, de que agora, e por más razões, tanto se fala.

Numa manhã, creio que em 1999, andava Portugal em campanha pela Europa, para garantir que a realização do Euro 2004 pudesse vir a ser atribuída ao nosso país, deparei com uma declaração da figura de proa da nossa candidatura, Carlos Cruz, que procurava valorizar Portugal face a outro concorrente, a Espanha. O apresentador feito promotor, com uma sensibilidade diplomática abaixo de zero, comentava que a Espanha não era um adversário com um mínimo de credibilidade, porquanto era um país "com terrorismo", o que desqualificava como cenário de provas desportivas internacionais.

A Espanha vivia então assolada regularmente por atos de terrorismo, face aos quais a prudência e a solidariedade de um vizinho como Portugal era o mínimo que deveria ser-lhe concedido. Surgir alguém ligado a uma candidatura oficial portuguesa com um discurso como o de Carlos Cruz era um "faux pas" imenso.

Era uma quinta-feira, recordo, porque tinha lugar um Conselho de Ministros. Antes dessa reunião, dei a conhecer a António Guterres e Jaime Gama o teor das infelizes declarações de Cruz. Elas já haviam provocado, em Madrid, uma reação irada do secretário de Estado espanhol para o Desporto, que fora ao ponto de anunciar que o governo espanhol estudava o envio de um protesto ao executivo de Lisboa, de repúdio pela inconveniência dos propósitos de Cruz. Acrescia que, semanas depois, iria ter lugar uma Cimeira Luso-Espanhola e este incidente, a ser explorado, converter-se-ia necessariamente no "issue" do encontro. Guterres e Gama entenderam, num segundo,  o potencial disruptor do tema e encarregaram-me de tentar "congelar", de imediato, o assunto. Este trabalho de "trouble shooter" situava-se precisamente na charneira entre o diplomata e o político que era o meu papel no governo.

Telefonei ao embaixador espanhol em Lisboa, Raúl Morodo, e pedi-lhe que tentasse evitar a "nota verbal" que o excitado governante espanhol anunciara. Morodo é um "gentleman", um bom amigo de Portugal e de muitos portugueses, entre os quais eu tinha o gosto de me incluir. Percebeu, com rapidez, o potencial de acidez que estava prestes a ser criado e prometeu-me intervir, ajudando ao "dammage controle".

No dia seguinte, numa chamada para o meu chefe de gabinete, pediu que me fosse transmitido que o assunto estava definitivamente sanado. Avisei Guterres e Gama e nunca mais me preocupei com o tema.

Passaram largos meses. Um dia, estava eu na República Checa, numa visita de trabalho, recebi a indicação, através do assessor de imprensa do MNE, Horácio Cesar, de que estava instalada na nossa comunicação social uma imensa polémica em que o meu nome era envolvido.

O secretário de Estado dos Desportos espanhol, que estava em Lisboa a convite do seu homólogo português, perguntado sobre se ainda subsistia em Espanha algum ressentimento pelas declarações de Carlos Cruz, proferidas meses antes, referiu que, para Madrid, o assunto estava, há muito, encerrado porque, entretanto, "o secretário de Estado dos Assuntos europeus de Portugal já havia apresentado, em devido tempo, as desculpas formais portuguesas ao governo espanhol, através do respetivo embaixador em Lisboa". 

O que ele foi dizer! Carlos Cruz veio logo a terreiro afirmar que não admitia ser "desacreditado" pelo governo, ameaçando demitir-se da organização da candidatura. José Sócrates, ministro da tutela, e Miranda Calha, secretário de Estados dos Desportos, fizeram de imediato declarações desdramatizantes mas, como é natural, remeteram o assunto para eu esclarecer. Portugal pedira ou não "desculpas" a Espanha? O governante espanhol mentia ou tinha razão?

Recordo ter dito, creio que à "Lusa", que a minha anterior intervenção não configurava um qualquer "pedido de desculpas" a Espanha. Tinha-se tratado apenas de um esclarecimento, junto do embaixador espanhol em Lisboa, de que o governo português não se revia nas palavras ditas por Carlos Cruz. E reiterei essa posição.

Não retive muito pormenores do que se passou depois. Creio que Cruz não "se ficou", prestou mais declarações, mas ficou na candidatura. Eu, entretanto, regressei a Lisboa, nessa noite. Na manhã do dia seguinte, a caminho do meu gabinete, dei uma vista de olhos à pilha dos jornais, para verificar como é que o assunto fora abordado. Não traziam nada de especial, pelo que deduzi que a questão acabava ali. 

Tocou, entretanto, o meu telemóvel. Era um amigo: "Já viste os jornais? A tua polémica com o Carlos Cruz dá-te duas capas!". Essa agora! Eu tinha a imprensa ali ao meu lado, não trazia nada! Erro meu: "A Bola" e o "Record" ofereciam a primeira página à polémica. O meu amigo, homem atento ao desporto, não deixou de acrescentar: "Deve ser a primeira e a última vez na vida que fazes manchete nos jornais desportivos".

Ele tinha razão. Lembrei-me disso ontem, ao ver a cara de Carlos Cruz, agora noutras atribulações bem mais complexas. O que trará hoje "A Bola" sobre o assunto?

quarta-feira, março 23, 2016

A entrevista de Passos Coelho ao "L'Aurore"

Algures em 1969, António de Oliveira Salazar, o ditador derrubado pela doença e entretanto substituído por Marcelo Caetano, mantinha-se a viver na residência oficial de S. Bento. Por um lapso inexplicável, atenta a redoma censória e de vigilância do regime, um jornalista do diário francês "L'Aurore" teve acesso ao debilitado antigo chefe do governo e recolheu uma entrevista que ficou célebre no mundo (por cá, foi proibida). Nela, Salazar revelava estar convencido de que ainda exercia funções governativas, ficando-se a saber que alguns ministros se prestavam ao piedoso teatro de "ir a despacho", para alimentarem a ilusão do antigo ditador.

Nas últimas semanas, a avaliar pela coreografia do dr. Passos Coelho, com a bandeirinha na lapela dos tempos do "governo de Portugal" e a fazer inaugurações em autarquias de amigos, fica-se com a sensação de que terá sido afetado pela síndroma do seu longínquo antecessor. Algum antigo ministro ainda irá "a despacho", para lhe atenuar o desgosto da perda do poder para a "geringonça" - que devia durar apenas uns dias, mas que, afinal, é mais resistente do que parecia ser? 

Teria graça ver o antigo primeiro-ministro entrevistado pelo "L'Aurore", para percebermos se, tendo ele saído definitivamente de S. Bento, S. Bento já saiu dele. 

O tempo é implacável. O "L'Aurore" já não existe, desde há já bastantes anos. Da mesma forma que o primeiro-ministro Passos Coelho já não existe, desde há já cada vez mais meses. Ele saberá?

(Reparei agora que o site informático de um periódico diz que "comparei" Passos Coelho a Salazar, como se a analogia irónica que fiz quisesse significar que estava a equiparar um político democrático a um ditador. A capacidade saudável de entender o humor continua, infelizmente, muito distante deste país.)

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...