O antigo apresentador de televisão Carlos Cruz apresentou ontem em Lisboa umas memórias. Pelo que me foi dado ver, a questão da candidatura portuguesa ao campeonato de futebol Euro 2004 está a converter-se num dos temas polémicos suscitados pela obra. Também eu tenho uma pequena história relacionada com Carlos Cruz (pessoa que não conheço), com o Euro 2004 e, curiosamente, com o terrorismo, de que agora, e por más razões, tanto se fala.
Numa manhã, creio que em 1999, andava Portugal em campanha pela Europa, para garantir que a realização do Euro 2004 pudesse vir a ser atribuída ao nosso país, deparei com uma declaração da figura de proa da nossa candidatura, Carlos Cruz, que procurava valorizar Portugal face a outro concorrente, a Espanha. O apresentador feito promotor, com uma sensibilidade diplomática abaixo de zero, comentava que a Espanha não era um adversário com um mínimo de credibilidade, porquanto era um país "com terrorismo", o que desqualificava como cenário de provas desportivas internacionais.
A Espanha vivia então assolada regularmente por atos de terrorismo, face aos quais a prudência e a solidariedade de um vizinho como Portugal era o mínimo que deveria ser-lhe concedido. Surgir alguém ligado a uma candidatura oficial portuguesa com um discurso como o de Carlos Cruz era um "faux pas" imenso.
Era uma quinta-feira, recordo, porque tinha lugar um Conselho de Ministros. Antes dessa reunião, dei a conhecer a António Guterres e Jaime Gama o teor das infelizes declarações de Cruz. Elas já haviam provocado, em Madrid, uma reação irada do secretário de Estado espanhol para o Desporto, que fora ao ponto de anunciar que o governo espanhol estudava o envio de um protesto ao executivo de Lisboa, de repúdio pela inconveniência dos propósitos de Cruz. Acrescia que, semanas depois, iria ter lugar uma Cimeira Luso-Espanhola e este incidente, a ser explorado, converter-se-ia necessariamente no "issue" do encontro. Guterres e Gama entenderam, num segundo, o potencial disruptor do tema e encarregaram-me de tentar "congelar", de imediato, o assunto. Este trabalho de "trouble shooter" situava-se precisamente na charneira entre o diplomata e o político que era o meu papel no governo.
Telefonei ao embaixador espanhol em Lisboa, Raúl Morodo, e pedi-lhe que tentasse evitar a "nota verbal" que o excitado governante espanhol anunciara. Morodo é um "gentleman", um bom amigo de Portugal e de muitos portugueses, entre os quais eu tinha o gosto de me incluir. Percebeu, com rapidez, o potencial de acidez que estava prestes a ser criado e prometeu-me intervir, ajudando ao "dammage controle".
No dia seguinte, numa chamada para o meu chefe de gabinete, pediu que me fosse transmitido que o assunto estava definitivamente sanado. Avisei Guterres e Gama e nunca mais me preocupei com o tema.
Passaram largos meses. Um dia, estava eu na República Checa, numa visita de trabalho, recebi a indicação, através do assessor de imprensa do MNE, Horácio Cesar, de que estava instalada na nossa comunicação social uma imensa polémica em que o meu nome era envolvido.
O secretário de Estado dos Desportos espanhol, que estava em Lisboa a convite do seu homólogo português, perguntado sobre se ainda subsistia em Espanha algum ressentimento pelas declarações de Carlos Cruz, proferidas meses antes, referiu que, para Madrid, o assunto estava, há muito, encerrado porque, entretanto, "o secretário de Estado dos Assuntos europeus de Portugal já havia apresentado, em devido tempo, as desculpas formais portuguesas ao governo espanhol, através do respetivo embaixador em Lisboa".
O que ele foi dizer! Carlos Cruz veio logo a terreiro afirmar que não admitia ser "desacreditado" pelo governo, ameaçando demitir-se da organização da candidatura. José Sócrates, ministro da tutela, e Miranda Calha, secretário de Estados dos Desportos, fizeram de imediato declarações desdramatizantes mas, como é natural, remeteram o assunto para eu esclarecer. Portugal pedira ou não "desculpas" a Espanha? O governante espanhol mentia ou tinha razão?
Recordo ter dito, creio que à "Lusa", que a minha anterior intervenção não configurava um qualquer "pedido de desculpas" a Espanha. Tinha-se tratado apenas de um esclarecimento, junto do embaixador espanhol em Lisboa, de que o governo português não se revia nas palavras ditas por Carlos Cruz. E reiterei essa posição.
Não retive muito pormenores do que se passou depois. Creio que Cruz não "se ficou", prestou mais declarações, mas ficou na candidatura. Eu, entretanto, regressei a Lisboa, nessa noite. Na manhã do dia seguinte, a caminho do meu gabinete, dei uma vista de olhos à pilha dos jornais, para verificar como é que o assunto fora abordado. Não traziam nada de especial, pelo que deduzi que a questão acabava ali.
Tocou, entretanto, o meu telemóvel. Era um amigo: "Já viste os jornais? A tua polémica com o Carlos Cruz dá-te duas capas!". Essa agora! Eu tinha a imprensa ali ao meu lado, não trazia nada! Erro meu: "A Bola" e o "Record" ofereciam a primeira página à polémica. O meu amigo, homem atento ao desporto, não deixou de acrescentar: "Deve ser a primeira e a última vez na vida que fazes manchete nos jornais desportivos".
Ele tinha razão. Lembrei-me disso ontem, ao ver a cara de Carlos Cruz, agora noutras atribulações bem mais complexas. O que trará hoje "A Bola" sobre o assunto?