sábado, dezembro 19, 2020

“Long drink”


No ano de 2004, aquele pobre país da Ásia Central, tal como os outros com o nome a acabar em “ão”, mantinha, no essencial, todos os reflexos típicos da época comunista, tal como eu os recordava dos anos 80.

O único hotel disponível, marcado pelas autoridades, era mais do que espartano, com o elevador avariado e uma desfuncionalidade geral irritante. Só os preços tinham um mínimo de "elevação", provavelmente inflacionados para estrangeiros.

Os quartos estavam decorados de uma forma inenarrável, as casas de banho eram dignas de pensões portuguesas do tempo do Estado Novo, as camas suscitavam insuperáveis dúvidas de limpeza. Como era só por uma noite, não valia a pena fazer de tudo aquilo um drama.

Logo que instalado, desci para o "hall", juntando-me aos quatro colegas que comigo vinham de Viena, cúmplices desse périplo de "fact-finding mission", que nos faria fez atravessar todas as cinco Repúblicas da região. É um mundo estranho, com a Rússia a norte, que vai da Turquia às fronteiras com o Irão, o Afeganistão e a China.

Porque, de outras paragens, já trazíamos algumas experiências divertidas, rimo-nos um pouco da situação, sob o olhar patibular de uma matrona mal encarada que, na receção, era um modelo acabado de inospitalidade.

Perguntámos se podiamos beber qualquer coisa, dado faltar ainda algum tempo para o jantar oficial que nos aguardava. Com um gesto displicente, apontou-nos um bar ao fundo da sala. Encostados a um canto do balcão, estavam dois personagens de blusão de couro, manifestamente ali colocados para observar os nossos movimentos.

Os meus colegas pediram refrigerantes, mas eu tive a ideia de querer um vodka tónico, honrando o álcool preferido daquela parte do mundo. Recordo que sempre bebi, ali na Ásia Central, magníficos vodkas!

O barman, que tinha sido educado na mesma escola de simpatia da rececionista, respondeu-me, em macarrónico inglês, que só serviam "long drinks" depois das sete horas. E eram aí seis e picos.

“Long drink”! Achei curioso aquele preciosismo, que ia das “Cuba libre” aos “gin tónico” e a tudo o que diluísse bebidas fortes. Mas o que tem de ser tinha muita força, em especial nesse “Absurdistão” pós-soviético.

Pedi, assim, uma água tónica. Depois, pedi algum gelo. Deixei passar uns minutos. Como eu suspeitara, os dois matulões da segurança bebiam vodka, em pequenos copos. Quando os vi pedir outra dose, disse ao barman que também queria, para mim, uma vodka. Hesitou por um segundo, mas não tinha nenhuma razão para recusar o que acabara de dar aos seguranças. E lá me trouxe um copo com vodka. Dose generosa, para me calar.

Aí, não resisti: com um gesto largo, verti a vodka sobre a água tónica com gelo e exclamei: "Vodka tonic!". Os meus colegas desataram às gargalhadas e tenho a impressão que os seguranças também sorriram. Só temi que o barman tivesse uma Kalashnikov, para poder concretizar o ódio com que me olhava. 

sexta-feira, dezembro 18, 2020

O bom estado da União


A pandemia abateu-se sobre a Europa, como se abateu sobre todo o mundo, de uma forma devastadora: com imensas mortes diárias, com uma tensão inédita sobre os serviços de saúde, com uma disrupção das atividades económico-sociais, com impactos nos mercados de trabalho, com falências e suspensão de atividades produtivas, com a indução de um ambiente de pânico, de desânimo e de desesperança. 

Acresce que os governos nacionais viriam a revelar uma surpreendente diversidade de reações, algumas delas tributárias de abordagens filosóficas e científicas que, pelo menos durante algum tempo, criaram uma espécie de competição entre modelos. Para muitos cidadãos, entre os quais me incluo, foi estranho ver Estados que se pensava marcados por uma cultura sanitária obedecendo a “protocolos” comuns, quiçá desenhados no quadro multilateral, à luz das melhores práticas de casos passados, enveredarem por caminhos diversos, às vezes contraditórios.

Neste ambiente, que assumiu de início proporções de algum desvario, foi interessante assistir a uma atitude crescentemente afirmativa por parte da Comissão Europeia, que tinha então poucos meses de exercício, no esboçar de respostas à crise. E foi reconfortante perceber que, à fragilidade comum, perante uma ameaça de perfil inédito, sucedia uma abordagem sensata, responsável, construtiva. 

A presidência alemã, depois de 1 de julho, revelou uma excelente liderança na coordenação dos Estados membros, funcionando como aliada operativa da Comissão, com o Banco Central Europeu, num novo esforço “whatever it takes”, a mostrar-se como uma base essencial de confiança para os mercados.

O resto, com diálogo e pertinácia, veio de seguida. Foi o estímulo para a produção rápida das vacinas, o trabalho coordenado para as garantir, logo que possível, para todos os cidadãos residentes nos Estados membros. Foi a gestão prudente dos problemas criados à livre circulação de pessoas no espaço europeu. Foi a suspensão da rigidez da condicionalidade macro-económica, com vista a permitir aos diversos governos efetuarem os desembolsos de emergência essenciais para sustentar os impactos nacionais do congelamento das economias, sem com isso serem acusados de estarem a violar as regras europeias. Mas foi muito mais: foi a imediata reflexão, mediada pela Alemanha, sobre a necessidade de ser promovida, a prazo, uma forte injeção de capitais nas economias nacionais, suportados - “hélas”! - por empréstimos europeus, garantidos pelas instituições da União, daí não decorrendo, na parte essencial dessas ajudas, um encargo para as dívidas soberanas. 

No meio disto, a Europa teve de enfrentar a hostilidade celerada do outro lado do Atlântico, o vai-e-vem ciclotímico de Londres, o oportunismo meliante de alguns dos seus próprios Estados. E muitos outros dossiês complexos. Não sei, no momento em que escrevo, onde estamos no Brexit. Mas, aparte esta incógnita, a herança que a presidência portuguesa recebe é séria e responsável.

Suecas



A propósito daquilo que ontem disse o rei sueco, confessando os erros cometidos pelo seu país no combate à pandemia, lembrei-me da primeira vez que fui à Suécia.

Portugal nem sempre teve, em matéria de turismo, a onda cosmopolita que por aí andava nos últimos anos, até à chegada da Covid. Num passado um pouco mais distante, os estrangeiros que nos visitavam eram muito poucos e o Algarve, com a costa do Estoril reservada para os mais abastados, era o nosso destino mais popular.

Terá sido nos anos 60 que se criou o mito das suecas. Desciam das neves e descascavam-se nas nossas praias. Eu não sei se as suecas eram mesmo suecas, ou se as dinamarquesas, noruegueses e outras vizinhanças nórdicas cabiam no conceito. Mas só se falava nas suecas. Liberais nos costumes, bem desenhadas nos corpos, loiras como as imperiais, faziam as delícias de quem, por cá, lhes caía no goto.

O que eu não sabia, confesso, é que essa fama do êxito sueco nas nossas praias era conhecido na própria Suécia.

Um dia, no final dos anos 60, cheguei à Suécia, ido de Portugal, “à boleia” (iniciada na Rotunda do Relógio, em Lisboa, até chegar à fronteira da Noruega. Faria uma idêntica aventura um pouco mais tarde).

Eu tinha saído nesse dia de Copenhague, de mochila às costas, depois de ter passado pela embaixada da China para obter um volume das obras do Mao que me faltava (e que nunca leria). Da capital dinamarquesa, consegui chegar a Helsingør, onde queria conhecer o castelo do Hamlet. Recordo-me ter sido uma “visita de médico”, apenas para marcar o ponto turístico. Tomei depois o ferry para Helsingborg, a cidada sueca em frente, e, dali, tentei arranjar uma boleia para o norte, pela estrada a acompanhar a costa.

Por qualquer razão, a boleia não estava fácil. Depois de quase uma hora de seca, com o tempo a passar, lá parou um carro, guiado por um tipo nas casa dos 40 anos. Disse-lhe que pretendia ficar em Falkenberg. Aleluia! Ele passava mesmo por lá, no seu percurso!

Na conversa, em inglês, vi-o supreendido com o meu “esforço”, de vir de tão longe até à Suécia. “Porquê a Suécia?”, perguntou.

Eu não tinha uma boa explicação, salvo que me apetecia conhecer o mundo. Que razão haveria para ir à Suécia? Os filmes do Bergman eram então, para mim, uma imensa seca, ainda não tinham surgido os ABBA e a única Greta que de lá se conhecia tinha então muito mais Garbo, mas também muito mais idade, do qua aquela de que toda a gente hoje fala (a quem um amigo meu diz que nunca perdoará, por ter destruído a imagem glamorosa das adolescentes suecas que cultivara desde a sua juventude).

A certa altura, depois de termos falado alguma coisa sobre Portugal, ele pareceu ter “descoberto a pólvora” (logo ele, que era contemporâneo de Alfred Nobel, o dos prémios, que inventou o dinamite): “Ah! Já percebi! Você é português! Está tudo explicado: veio por causa das suecas. Nós sabemos que, lá em Portugal, vocês são doidos pelas suecas. Vem na nossa imprensa! É isso! Você veio à Suécia por causa das nossas raparigas! Agora percebi tudo!”

Num instante, eu tinha-me transformado, aos olhos de ele, num sátiro latino, um bárbaro vidrado no pequename nórdico, que tinha atravessado um continente para concretizar alguns sonhos lúbricos.

Eu já não sabia o que havia de lhe responder, tanto mais que, mesmo com muito boa vontade e imaginação, não me ocorria nenhum grande motivo para andar por ali a passear. O tipo, entre gargalhadas, insistia, comigo cada vez mais enterrado no banco do carro: “Mas gosta das suecas, não?”.

A mim, que nunca conhecera nenhuma sueca, mas que também não queria dar parte de fraco, no inglês macarrónico que era então o meu, e porque estava a ficar um tanto saturado por aquele preconceito,  que tresandava a “righteousness” pontuada com risadas, saiu-me então esta pérola: “Ainda não conheci nenhuma sueca. Quando conhecer, logo verei se gosto ou não”.

O homem não terá apreciado excessivamente a minha resposta “grossa”. Passou a falar menos, mas lá me deixou na pousada de juventude de Falkenberg.

Já era tarde, mas continuava imensa claridade. Essa era a “midsummer night”, o dia mais longo do ano, em que a luz, por essas zonas do mundo, não chega a desaparecer por completo e a noite acaba por não se passar como esperaríamos que ums noite normal se passasse.

Na pousada, estava a preparar-se uma ceia coletiva, a ter lugar - recordo-me, porque nunca tinha visto nada assim - num cemitério que era simultaneamente um jardim (descobri agora uma imagem desse espaço).

Conheci, nessa inesquecível e estranha noite, gente de diferentes nacionalidades, que enchia a pousada de juventude. Mas, bolas!, nenhuma delas era sueca.

quinta-feira, dezembro 17, 2020

Vidas


Soube que morreu, há meses. A morte esteve sempre ligada à sua vida. Dirigia a mais reputada casa funerária da cidade. Era um homem de uma imensa delicadeza, o senhor Euclides.

Por quatro vezes, bem contadas, recordo bem, naquelas horas, fora do dia normal, em que, por regra, as tragédias familiares se consumam, tive com ele as curtas conversas telefónicas que sempre é necessário ter.

Em todas, sem exceção, recordo a sua serenidade, a sua atenção e, em especial, a disponibilidade imediata para nos libertar de tudo o que pudesse pesar sobre o momento, sempre penoso, que atravessávamos. “Não se preocupe. Vou já para aí. Eu trato de tudo.” E tratava, com discrição, educação, sem o menor alarde, com um profissionalismo exemplar.

Quando ia a Vila Real e passava junto da sua loja, e se acaso o vislumbrava no interior, sempre trajando entre o negro e o cinzento, entrava a cumprimentá-lo. Fazia-o com gosto, porque era a retribuição mínima que a sua sempre delicada atenção justificava.

Um dia, perto de um Natal, para lhe dar Boas Festas, assomei à sua porta, ali em frente ao Santoalha, ao lado da montra com figuras religiosas e anúncios de alguns mortos que o meu longo afastamento da cidade me faz já desconhecer.

Eu estava, ao tempo, embaixador em Paris e, ao ver- me, o senhor Euclides saiu de trás do balcão, para cumprimentar-me: “Ainda hoje falei do senhor embaixador a um colega de Portalegre. Ele foi a França buscar um cadáver e queixou-se-me das demoras consulares por lá".

Burocrático, tentando mostrar a utilidade da minha função, recordo-me de ter reagido: “Esteja à vontade, senhor Euclides! Quando lhe puder ser útil, é só dizer!”.

Ao virar a esquina, olhando a montra do ourives e com o Bragança ainda com jornais, dei comigo a pensar: entra-se para uma carreira diplomática com o sonho de fazer parte de grandes negociações internacionais para acabarmos a disponibilizar-nos para agilizar negócios da morte.

Enfim, é a vida!

quarta-feira, dezembro 16, 2020

António Correia de Campos


Quando uma amizade nos liga a alguém, tendemos a subsumir todo o resto nesse sentimento, porque a afetividade cria a natural suspeição de que nos podemos deixar levar pelo exagero. Ora isso é muito injusto. Pode, por exemplo, esconder a grande admiração e o respeito, intelectual e político, que essa figura nos merece.

É esse o caso de António Correia de Campos. Lembrei-me disto, há pouco, quando me dei conta de que ele havia recebido um doutoramento “honoris causa” pelo ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa.

Um forte abraço de parabéns, António!

A presidência e o governo


Não, não é sobre a relação entre os poderes que ocupam Belém e S. Bento que venho aqui falar. Teremos muito tempo para isso, no futuro. Hoje, gostava de refletir um pouco sobre o desafio que Portugal enfrenta, nos seis meses que aí vêm, na presidência da União Europeia.

Como tem sido referido, esta é a quarta presidência das instituições comunitárias, embora todas tenham decorrido em condições políticas nacionais diversas.

Em algum imaginário, estará ainda fixada a imagem da festa de 1992, em torno do então recente Centro Cultural de Belém, com Cavaco Silva a navegar no mar de fundos desse novo “brasil” em que a Europa se tinha convertido. O ciclo declinante da sua década de poder estava ainda por surgir.

Oito anos mais tarde, em 2000, depois da Expo e de um tempo de grande otimismo, António Guterres fez um brilharete que lhe conferiu fortes créditos internacionais. No termo do exercício, porém, já não conseguia disfarçar as dificuldades de continuar a governar sem maioria, num quotidiano de compromissos mais ou menos “limianos”.

Em 2007, José Sócrates, embalado por uma rara maioria absoluta socialista, conseguiu colocar o nome de Lisboa num tratado que (na minha modesta opinião) não merecia a inglória desse nome. Entusiasmado por essa tarefa, que concluiu com todo o rigor que a Portugal era exigido, não terá visto chegar os ventos da crise financeira, a qual acabaria por fazer entrar o país numa nova espiral de dívida, que ainda aí ronda.

António Costa avança para esta presidência em piores condições políticas internas do que qualquer dos seus antecessores. Governando com alianças erráticas, com um orçamento aprovado à custa de remendos, numa sociedade política muito crispada, onde a direita disfarça, no combate à esquerda, o facto de estar feita em frangalhos, o primeiro-ministro vive um desgastante quotidiano de mini-crises.

Na Europa, se um eventual caos do Brexit lhe não cair em cima, vai ter dar a cara pelo plano de vacinação, terreno hoje minado por um ambiente de esperança misturada com incerteza. Com a crise económica nas ruas, com a “bazuca” a ter ainda de esperar e as falências a dispararem, António Costa tem escasso espaço para mostrar “obra” europeia. Em especial, não pode esperar que quaisquer louros nesse domínio consigam compensar o malsão ambiente que afeta o seu governo. Sou daqueles que, com grande sinceridade, acham que tudo isto é bastante injusto para o mais bem preparado político da sua geração. Mas a vida raramente é justa.

terça-feira, dezembro 15, 2020

Observare


Análise dos resultados do último Conselho Europeu e perspetivas para a Presidência Portuguesa da União Europeia, no primeiro semestre de 2021. Falo também das eleições na Venezuela e de uma interessante vitória de Portugal na OSCE.

Pode ver aqui.

Boas Festas!


Pode ser minha impressão, mas fico com a sensação de que, este ano, as pessoas estão muito mais contidas ao desejarem Boas Festas aos outros, muito provavelmente pela consciência de que, para quase todos, os dias que aí virão, até ao início de 2021, não serão o que costumam ser, na alegria familiar que os costuma marcar.

Há que ter serenidade. Temos de saber resistir à nuvem de depressão que a pandemia criou sobre as nossas vidas. Driblar o virus, tomando todas as medidas de precaução (mesmo as que pareçam exageradas e quase ridículas!) para que ele não nos derrote, não correndo riscos desnecessários (para que, para o ano, o nosso Natal seja mesmo a sério) e tendo consciência de que o menor erro que fizeremos pode pôr em causa a saúde dos outros, neste caso, dos que nos estão mais próximos, é a melhor (se não mesmo a única!) receita para o período que aí vem. 

Lembrem-se: só se vive uma vez... e esta é a última!

Por isso, boas e muito cuidadosas Festas para todos! Esta é uma mensagem assumidamente egoísta: em 2021, quero ter por aqui todos os meus “amigos” e leitores, com saúde e bem estar!

Negócio da China


Era um tipo grande, cordial. Eu tinha acabado de estacionar o carro, numa vaga milagrosa, numa das Avenidas Novas. Preparava-me para ir a uma livraria. Cruzou-se comigo, quando eu já atravessava a rua, lançando-me um amável "Boas Festas, embaixador!". O facto de o não ter identificado não garantia que o não conhecesse, de algures. Mas a cara, de facto, não me dizia nada. Retorqui, agradecendo e retribuindo os votos. Já quase o tinha esquecido quando, do outro lado da rua, ouvi: "Embaixador! Tenho uma prenda para si!". Era ele. Voltou a atravessar a rua na minha direção e, enquanto se encaminhava para um carro que estava próximo do meu, perguntou: "Que número calça?". Perplexo e um pouco contrariado lá lhe disse. ("Deve ser de alguma empresa, é com certeza pessoa com quem me terei cruzado numa feira ou numa embaixada", pensei para comigo. "Se calhar, são sapatos! Só me faltava mais esta!"). Ele abriu a mala do carro e tirou um saco de plástico transparente, dentre vários que lá estavam, com meias de diversas cores (não eram feias, mas algumas das cores nunca as usaria). Continuava a falar, não se calava, agora sobre a qualidade do produto, sobre a quantidade de algodão, sobre o facto daquelas meias não terem costura. Confirmou: "É mesmo a sua medida! Que sorte! Onde está o seu carro?". Um pouco aturdido, lá atravessei a rua outra vez, coloquei a saca de meias sobre um dos banco e balbuciei um agradecimento, cumprimentando-o, tentando libertar-me. Fui-me afastando, pelo passeio adiante. Sentia uma sensação estranha, de algum incómodo, indefinível. Curiosamente, como se fosse na mesma direção, ele ia-me acompanhando pela faixa de rodagem, com os carros estacionados de permeio, continuando, por cima dos carros esstacionados, a dizer coisas sobre as meias, sobre as fábricas, nem sei bem o quê. Algumas pessoas com quem nos cruzávamos deviam estranhar aquele monólogo em voz alta, comigo calado e morto por me ver livre do homem. Por instantes, ele dava ares de que ia afastar-se, mas logo depois aproximava-se, como que ziguezagueando, no seu andar largo e algo desengonçado. Já estávamos aí a uns vinte metros do meu carro quando ele perguntou: "Sabe quanto estão a pedir por aquelas meias nas lojas? Diga um número?". Eu sabia lá! Eu nem sabia quantas meias o saco tinha (eram dez pares). Ele sabia: "Oitenta euros! Imagine! Bom, para um produto daquela qualidade, também se justifica...". E continuou a acompanhar-me, agora juntando-se a mim no passeio. "Para o meu amigo, são só vinte euros, claro! Tenho imensa consideração por si, como sabe!" Eu sabia é que tinha acabado de cair no conto do vigário. Pensei para comigo, com a auto-absolvição dos tolos: "É Natal. Isto até teve graça!" Não teve, eu sentia-me pateta, mas incapaz de rumar ao carro, já distante, e devolver o saco das meias ao homem. Parei, abri a carteira e tirei uma nota de vinte euros. Agarrada a ela veio uma nota de cinco. Ele estava atento e, com um sorriso, advertiu, generoso: "Atenção! Esses cinco euros não são meus!" Fui à vida. Quando regressei, meia hora depois, vi-o ao longe encostado a uma parede, a olhar a sombra. Entrei no carro, olhei as meias. Era chinesas. Péssimas! Medida "40-46". Era mesmo a "minha" medida, claro! (Isto passou-se há precisamente seis anos).

segunda-feira, dezembro 14, 2020

Os senhores do tempo


Aquele meu amigo, numa graça de ínvia solidariedade, reagia a um desabafo irritado que, horas antes, eu tinha deixado, nas redes sociais: “Vê lá se tens um bom alibi para a noite do desaparecimento da Maddie! E onde é que tu estavas quando o avião caiu em Camarate? Olha que ainda se lembram do teu nome!”.

Eu não estava na melhor das disposições, não sabendo exatamente o que iria aparecer, no dia seguinte, na notícia sobre a qual um jornalista me contactara, horas antes. Ri-me, mas sem vontade de rir.

Pela segunda vez, em escassos meses, o meu nome ia surgir em parangonas de imprensa, associado a supostas suspeitas - sublinho, supostas, porque ninguém me confirmou se existiam - por parte da nossa Justiça.

No primeiro dos casos, era uma requentada efabulação relativa à barragem Foz-Tua, ecoada por boateiros da calúnia, que fazem disso o seu “fond de commerce”, sem, no entanto, conseguirem alguma vez adiantar a menor prova de nada. Não obstante, televisões, jornais e redes sociais logo se encheram de referências à tal “intenção” da Justiça de me ouvir sobre o assunto.

Como julgo que, lá na Justiça, sabem o meu endereço, fiquei a aguardar. Sentado. Até hoje. Continuo à espera da oportunidade de poder explicar, aliás com assumida vaidade, que, em grande parte graças à intervenção que protagonizei, como embaixador junto da Unesco, o contribuinte português pode ter sido poupado a pagar centenas de milhões (leram bem!) de euros de indemnização a várias empresas. Querem saber como? Chamem-me, que eu conto!

Agora, na insídia, o cenário mudou. Agora é o Brasil, a Odebrecht, o rescaldo do Lavajato, serão luvas pagas sabe-se lá como e a quem. Ficou-se a saber – pela imprensa, sempre pela imprensa – que a Justiça portuguesa enviou o meu nome, entre outros, para que a sua congénere brasileira inquirisse se figuro nos ficheiros da Odebrecht – curiosamente, uma empresa com a qual nunca tive o menor contacto, onde não conheço uma única pessoa. Nem uma! A Justiça portuguesa pediu isso quando? Em 2017. Estamos quase em 2021. Não houve resposta? Então a imprensa passa a ser testemunha da curiosidade insatisfeita dos nossos operadores de Justiça.

Nessa altura, o leitor, em especial o leitor de títulos, começa a matutar: “Este tipo aparece mencionado em dois casos! Não deve haver fumo sem fogo!” E, desta forma, sem que ninguém alguma vez me tenha acusado do que quer que fosse, sem que alguém me tenha sequer colocado a mínima questão sobre nada, a minha cara, o meu bom nome, aparece posto em causa.

Os justiceiros que vivem nas sombras, sem cara nem nome, podem semear suspeitas, impunemente, sobre quem muito bem lhes aprouver, quando lhes der na real veneta, durante os anos que quiserem. São os verdadeiros senhores do tempo. Mesmo do tempo dos outros.

domingo, dezembro 13, 2020

Le Carré


Numa conversa, há muitos anos, disse a António Pinto da França que achava que Le Carré tinha um perfil de cara que era a mistura do dele com o de Álvaro Barreto. “Que disparate!”, reagiu ele, com uma gargalhada, na reação típica de toda a gente: nunca o próprio se acha parecido com outra pessoa. 

Agora, já desapareceram os três. Le Carré morreu hoje, aos 89 anos. 

Há meses, escrevi por aqui isto: 

“Um dia, recém-colocado em Londres, adquiri um dos poucos “audio-livros” que tive em toda a minha vida: foi “Tinker, Tailor, Soldier Spy”. Num passeio pelo sul de Inglaterra, ouvi essas “cassettes” (julgo que eram ainda cassettes). Porquê? Porque, durante algum tempo, confesso que tive alguma dificuldade em conseguir ler, no original, as obras de Le Carré. “Ouvir” o livro ajudou-me assim a “entrar” na narrativa do autor, de quem julgo conhecer hoje praticamente toda a obra - e não é pequena. (Já tenho saudades de quando lia muita ficção, coisa que hoje não acontece).

Le Carré é, a meu ver, o mais notável cultor de um estilo de romance de espionagem que assenta, precisamente, naqueles serviços secretos que sempre me interessaram mais: a “intelligence” britânica, que continua a ser, para mim, o mais fascinante desses mundos de “sombras”, a que o fim da Guerra Fria colocou um (apenas relativo) ponto final. O “Tinker, Tailor, Soldier, Spy” é, a meu ver, o romance mais bem construído da chamada “trilogia de Karla”, dentro de uma série bem mais longa, em que surge a extraordinária figura de George Smiley. Voltar a obras já lidas de John Le Carré é algo que tento fazer com regularidade e, como me acontece com outros bons romances, não é que continuo a descobrir por ali coisas que antes me tinham escapado?“

O segredo


Eu tinha acabado de entrar, há poucos meses, para a universidade, num tempo em que a minha família (que não eu, confesso) vivia convencida de que, cinco anos depois, iria dali sair um engenheiro como deve ser.

O meu tio Humberto, engenheiro (como eu ia ser!), deu-me boleia de carro, numa manhã, de Vila Real para o Porto. Ainda antes de me deixar no lar universitário, levou-me a almoçar a casa do seu pai. 

Este era um homem muito simpático e delicado, com uma figura elegante e fala serena. O senhor Pedro de Carvalho era um pedagogo, autor de muitos livros editados pela Porto Editora. Casara, em Cabo Verde, com a dona Guiomar.

O meu tio Humberto era caboverdeano pelo nascimento, sentia-se um portuense dos sete costados e, em Vila Real, onde foi tudo o que alguém poderia ser, da política à vida associativa, acabou por ser um dos melhores cidadãos locais que por ali houve, como bem sabe quem disso se lembra.

Nesse dia, no fim do almoço com os seus pais e comigo, ali ao Moinho de Vento, no Porto, o meu tio perguntou-me: “Alguma vez tomaste café no Progresso?”. O Progresso era ali ao lado, ao virar da esquina. Nunca lá tinha entrado. Eu frequentava mais o Bissau, em Cedofeita, e, um pouco menos, o Piolho, ao pé dos Leões.

À minha resposta negativa, ouvi-o dizer: “Então não conheces o melhor café do mundo!”. Café de saco, claro, como, à época, era regra maioritária nos cafés do Porto, embora o café de máquina, a tal “La Cimbali”, que crismou o portuense “cimbalino”, estivesse já a fazer, nessa segunda metade dos anos 60, a sua entrada triunfal no mundo dos cafés. Constava, então, que o melhor “cimbalino” era servido no Montarroio, na baixa da cidade.

E lá fomos os três (nesse tempo, as senhoras não iam aos cafés) ao Progresso, depois do almoço, beber “o melhor café do mundo”.

A casa hoje desapareceu e a pandemia tirou-lhe mesmo o honrado destino, que lhe estaria fadado, de ser mais um restaurante da cadeia Avillez, depois de um interregno em que por ali se vendia crepes.

Convencido ou não, nesse dia lá devo ter concordado, para contentar o meu tio, que aquele café é que era!

Mas, afinal qual era o segredo do café do Progresso? Ao que se dizia, mas isso nunca foi confirmado, na máquina do café era diariamente colocada uma lasca de bacalhau (um “rabo de bacalhau”, era exatamente o que constava), que dava o tal toque especial à bebida. Alguém, anos depois, explicou uma coisa simples: não era o bacalhau, mas era, afinal, o sal, que comporia o sabor do café.

Por que diabo trago isto aqui? Pela simples razão de que, ao fazer hoje café em casa, numa máquina de balão que há poucas semanas adquiri, com todos os matadores a cujo luxo um reformado em pandemia se pode dar, me lembrei do Progresso e coloquei, com o café em pó, moído a preceito, uns cristais de sal. E o café saiu soberbo!

Como eu gostava, no dia de hoje, de poder discutir com o meu tio se este meu café era, ou não, melhor do que o do Progresso! Mas o andar da vida é, cada vez mais, feito de conversas que já não podemos ter.

Retratos





Há dias, uma pessoa amiga notou: “Não vejo, na tua sala, fotografias com alguns “grandes”, autografadas por eles, como é normal nas casas dos diplomatas. Mas tens, não tens?”

Claro que tenho, com gosto, do “tutti quanti” que contou na minha vida profissional e política, algumas até com dedicatórias bem simpáticas, outras apenas com uma formal assinatura. E dos atos formais de apresentação de credenciais. Porém, abandonada que foi a vida oficial, a memória fotográfica desses tempos está hoje recolhida em áreas menos visiveis da casa ou, na maioria dos casos, anda por gavetas e caixas, lá por Vila Real.

Não rejeito, longe disso!, a importância desses retratos, e dos tempos que eles marcaram, mas, no que me toca, acrescentam hoje muito pouco à minha maneira de estar na vida. Embora perceba, e respeite muito, que outros - a maioria dos meus colegas de profissão, por exemplo - tenham uma perspetiva diferente das coisas. Cada um é como é, não é?

Há muitos anos, em Serajevo, no final de uma reunião do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu, onde acompanhava António Guterres, este falou por uns minutos, comigo ao lado, com Bill Clinton, a quem me apresentou. Da delegação que vinha com o nosso primeiro-ministro vi uns gestos, simpáticos, da parte de alguém, para eu me pôr em posição para tirar uma fotografia com a “vedeta” americana. Não me mexi. 

Gostava de ter tirado uma fotografia com Clinton? Não sei, talvez, mas nada fiz por isso e, claro, não foi por timidez, que é coisa que nunca senti na vida pública. Ao ver hoje esse tipo de instantâneos perdidos por gavetas ou a encher buracos em estantes remotas entendo melhor aquela minha reação.

sábado, dezembro 12, 2020

“Observare”


Nesta noite de sábado para domingo, à meia noite e quinze, estarei no “Observare”, programa de relações internacionais da TVI 24 com Luís Tomé e Carlos Gaspar, sob a moderação de Filipe Caetano. Falaremos, nomeadamente, da cimeira europeia e da presidência portuguesa da União Europeia, em 2021. No meu caso, abordarei também a situação na Venezuela e uma vitória portuguesa obtida na Organização para a Segurança e Cooperação Europeia (OSCE).

sexta-feira, dezembro 11, 2020

Tenho de reler Franz Kafka

O telefonema de um jornalista, esta tarde, foi correto e profissional. A questão era “simples”: o que é que eu tinha a dizer perante o facto, que havia chegado ao seu conhecimento, de que, num processo que envolve a empresa brasileira Odebrecht, o meu nome terá surgido, ao que parece entre outros, como suspeito, nem percebi precisamente de quê, numas inquirições feitas entre as autoridades judiciais portuguesas e brasileiras. “A Odebrecht?”, reagi. Por curiosidade, a Odebrecht é talvez das grandes empresas brasileiras a única com a qual, ao tempo em que fui embaixador naquele país, nunca tive o menor contacto. Não conheço ninguém da Odebrecht! Nunca, pelas minhas mãos, passou algum assunto que tivesse a ver com essa empresa. E sou acusado exatamente de quê? Alguém da Justiça me chamou, alguma vez, para me perguntar fosse do que fosse? Envolve-se o nome de um cidadão num “processo” e deixa-se que, com uns títulos, se crie a ideia do “não há fumo sem fogo”. Para gozo da rapaziada das caixas de comentários? E, depois, haverá alguém, responsável e disponível, no dia em que este tipo de insinuações cair no ridículo, em que obviamente cairão, para vir apresentar um pedido de desculpas? E irá isso ainda a tempo de desfazer os preconceitos entretanto criados ou o objetivo, afinal, era esse mesmo?: tentar enlamear o nome da pessoa, antes mesmo que ela tivesse possibilidade de fazer um mínimo de contraditório. É que isto tem precedentes. Há tempos, correu por aí, tentando envolver-me, um alarido sobre a barragem de Foz-Tua. Uma questão muito fácil de explicar, mas só se alguém quiser ouvir. Tive então direito a fotografias na imprensa, peças nas televisões, à esperada especulação pelos caluniadores profissionais. Fiquei, naturalmente, à espera de que alguém me chamasse. É que a questão é simples: há uma investigação ou não há? Se há, o meu nome está envolvido ou não? E, se sim, em quê? Ninguém me diz nada? É tudo em segredo? A senhora Procuradora-Geral da República nada tem a dizer, publicamente, sobre esta forma de atuar dos seus serviços? Já vale tudo? Por mim, com a total serenidade de quem nada tem a temer, apenas gostava que quem tem a mínima das dúvidas - qualquer, por menor que seja! - me chamasse a esclarecê-la. Querem o meu endereço? “Não digas nada! Só vais agravar as coisas!” dizem-me as vozes amigas e da prudência. Mas vou agravar o quê? O que é que posso agravar, se não me foi colocada a menor questão, se não sei sequer do que estão a falar? Tenho de reler Franz Kafka. 

Voos

Há três anos, quase dia por dia, publiquei por aqui este post:

“ A propósito de todos os sucessivos azares que têm vindo a surgir, nos últimos meses, no percurso do governo de António Costa - alguns por culpa própria, outros gerados pelos acasos da vida e todos potenciados pelos seus adversários -, lembrei-me de uma (sábia) máxima de Jacques Chirac: “les emmerdes, ça vole toujours en escadrille”...”

Era bom que trocássemos umas ideias


Reduzi o título deste artigo, que deveria ser “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”. Não que a frase seja original: é o nome de um livro de Mário de Carvalho. Lembrei-me dele, há dias, ao assistir a um “webinar” em que se analisava a política externa americana, na era pós-Trump. E por ter então sentido, com assumida sinceridade, que não me revia em muito daquilo que por ali se dizia e pensava. Mais do que isso: que não estava solidário com os pressupostos na base dos quais a discussão estava a ter lugar. Pelo que achei que era necessário falar abertamente sobre o assunto.

A nuvem negra que foi a administração Trump, que projetou uma postura egoísta e nacionalista dos EUA pelo mundo, quebrando ou criando tensões nas alianças tradicionais e, pior do que isso, reduzindo as margens de previsibilidade e estabilidade que são essenciais à relação entre os Estados, criou uma inédita “frente comum” de bom senso. Isto é, juntou todos aqueles que comungavam a leitura de que a postura do presidente americano ofendia a razoabilidade e era provocatória de interesses que mereciam ser respeitados. Ao longo dos últimos quatro anos, todos nos encontrámos, em grupos de pessoas que, à partida, tinham perspetivas diferentes do mundo, com uma rejeição muito alargada do estilo “bully” do conjuntural líder americano.

Isso acabou. Trump vai-se embora e cada um de nós regressará ao seu ponto de partida. É natural, é normal, diria mesmo que é saudável. É bom separar as águas. E, ao fazê-lo, é importante que fique claro que o fim de uma administração americana hostil e a provável chegada de outra diferente não deve fazer esquecer à Europa a sua própria autonomia estratégica.

Estivemos sempre com a América no que era essencial. Ela foi um parceiro para a nossa estabilidade e segurança. E deve continuar a sê-lo.

Mas a Guerra Fria acabou e a Europa é hoje uma coisa bem diferente. A União Europeia, se quiser ser digna desse nome, deve saber assumir uma estratégia de interesses própria, autónoma, a qual, muitas vezes, coincidirá com a dos EUA. Mas não necessariamente. A Europa, aliás, é um concorrente objetivo dos Estados Unidos em vários planos – e deve assumi-lo sem complexos. É-o no plano económico, mas também em áreas geopolíticas de concorrência de influências, como a África ou a América Latina. E, partilhando embora as mesmas preocupações de estabilidade, como é o caso das ambições nucleares do Irão, nada obriga a que olhemos as coisas da mesma forma no Médio Oriente – desde logo, na relação com Israel e na complacência face ao medievalismo prevalecente no Golfo Arábico. Ou no caso do desafio que a China representa.

Estamos e devemos continuar, quase todos os europeus, aliados na NATO. Mas a NATO, neste pós Guerra Fria, não tem de continuar a ser um heterónimo dos Estados Unidos e, em especial, não pode aparecer como uma espécie de cobertura, sem baias geográficas, para a leitura estratégica que Washington quiser fazer dos seus interesses pelo mundo, que se habituou a identificar como sendo também os dos seus aliados.

Não esqueço, quero mesmo lembrar, os riscos que uma aventura radical, titulada por uma administração democrática dos EUA, aliada a alguma irresponsabilidade europeia, fez correr a todos nós na Ucrânia, com um saldo que Kiev está hoje a pagar, com Moscovo a rir-se na Crimeia. A NATO do futuro não pode ser uma mera alavanca da liberalidade de afirmação estratégica americana. E o seu alargamento não pode servir de instrumento para aventuras.

Uma administração Biden é mais do que bem vinda, depois do trauma que Trump representou. O grande teste à sua benignidade, contudo, será o modo como souber respeitar a vontade dos seus aliados. No fundo, na forma como preservar o mundo multilateral que a própria América a todos nos ensinou a acreditar como sendo a forma mais democrática de gestão global.

quinta-feira, dezembro 10, 2020

Lusofonias


Hotel numa antiga colónia portuguesa, no início dos anos 80. Telemóveis era uma coisa, à época, inexistente.

Tinha chegado de Lisboa, lá para as 10 horas da noite. Do quarto, liguei para a telefonista e pedi uma chamada para Portugal.

- O camarada necessita de vir aqui preencher boletim de "registro" de chamada, para a mesma se poder "efetivar".

Lá desci os quatro andares a pé, porque o elevador estava em dia não, e preenchi o boletim, que tinha a curiosidade de ser em triplicado, com papel químico pelo meio, herança burocrática do colono. Perguntei se demorava muito. "Vai ser verificado", foi-me dito.

Como a "verificação" não chegava, lá para a meia-noite, liguei de novo, a insistir.

- O camarada aqui tem que ter paciência. Não tem linha. Aqui há muita falta de linha.

- Então, esqueça! Já não quero chamada nenhuma. Muito obrigado.

- O camarada tem de vir anular boletim.

- Faça isso por mim, por favor, rasgue o boletim.

E desliguei.

Lá para as quatro da manhã:

- Foi o camarada que pediu uma chamada para Lisboa?

- Fui!!! Mas eu tinha-lhe pedido para cancelar a chamada!

- Tinha, mas não efetivou cancelamento. O camarada não veio cá destruir pessoalmente o boletim.

- Ó minha senhora! Mas então eu não lhe tinha pedido para rasgar o boletim?

- O camarada devia saber que, depois de "registrado", um boletim só pode ser anulado pelo próprio.

- Pronto, esqueça! Não quero a chamada...

- Mas já tem gente na linha! É voz de senhora. Parece que a acordei e, pela fala, não está nada contente, camarada!

E ouvi a minha interlocutora telefonista a rir!

A língua portuguesa é falada por 240 milhões de pessoas, não é? Mas isso não significa que todos nos entendamos sempre.

quarta-feira, dezembro 09, 2020

Vergonha e pânico


Senti vergonha, no caso de Tancos. Senti vergonha ao constatar que uma instalação militar portuguesa, com paióis de armamento e explosivos, instrumentos ideais para terrorismo e delinquência, esteve à mão de semear de uns gatunos de trazer por casa e que autoridades do meu país entraram, depois, numa ridícula competição clandestina de competências sobre quem devia tomar conta da aferição criminal daquela indignidade. Que tristeza foi ver Portugal a ter de explicar, lá fora, na Nato, aos parceiros, que não era grave, tudo se iria remediar...

Há muitos anos, já havia sentido vergonha – vergonha maior, porque estava ao tempo no governo - ao constatar que uma querela, envolvendo governantes, deputados e jornalistas, tinha fragilizado fortemente os nossos serviços de informação, pondo em causa a segurança física de operacionais e cobrindo-nos de ridículo internacional, de que ainda hoje – para quem não saiba! – a imagem de Portugal não se recompôs.

Sinto hoje vergonha quando constato a complacência objetiva, por muito disfarçada que seja, perante atos de racismo e de violência que, ciclicamente, teimam em manchar a imagem da nossa polícia, transformando uma esquadra, que deve ser um espaço de segurança, num local perigoso para a integridade de alguns – quer se trate de bandidos ou de meros suspeitos.

Contudo, nada me envergonhou mais, devo dizê-lo, nos últimos anos, do que o ato que terá sido cometido por uns sujeitos que, utilizando a autoridade que o Estado lhes havia conferido, assassinaram, bárbara e cobardemente, um cidadão estrangeiro que estava confiado à sua guarda - à guarda de forças policiais que supostamente estão especialmente treinadas para lidar com casos deste tipo.

Passamos anos a orgulharmo-nos por louvores que o país recebe, lá por fora, pelo humanismo das nossas políticas de acolhimento de estrangeiros e refugiados, para depois, por falta de liderança e de capacidade para separar, a tempo e horas, as “maçãs podres” do resto, ocorrerem situações destas. E, sempre, ao lado da decisão para clarificar rapidamente as coisas e tirar consequências exemplares, fica a ideia de haver um arrastar corporativo de pés, no fundo, uma cobardia institucional.

Um “botão de pânico” – que todos imaginamos que, se tivesse existido ao tempo do assassinato do cidadão ucraniano, seria por este “facilmente” utilizável ... – começa a ser necessário para o cidadão comum, como forma de poder reagir perante o espetáculo que lhe é proporcionado por algumas das suas instituições.

terça-feira, dezembro 08, 2020

Alguma luz...

 


Londres, hoje à tarde, no site do Guardian.

Anonimato e decência

De há uns tempos a esta parte, embora com honrosas exceções, os comentários aos posts deste blogue, a esmagadora maioria dos quais feitos sob um “corajoso” anonimato, revelam um crescente estilo de acidez crítica, não raramente insultuosa, que acho incompatível com a serenidade daquilo que por aqui se traz. E notem que o que tem sido publicado já é objeto de uma triagem! Para verem do que a casa gasta! 

Assim sendo, “para grandes males, grandes remédios”: por algum tempo, pelo tempo que eu vier a achar mais adequado, os posts deixam de aceitar comentários de quem não tenha, pelo menos, uma conta Google.

Se um dia mudar de opinião, aviso. Também por aqui. E desde já agradeço as Boas Festas que alguns pensavam poder mandar-me por aqui. 

segunda-feira, dezembro 07, 2020

Geoeconomia


Os compreensivos

Alguns intelectuais, ao “compreenderem” que Ventura “dá voz” a anseios de quem se não sente representado pelos partidos tradicionais, legitimam alegremente, nesse caminho, as pessoas que, ao lado desse fulano, assume sentimentos racistas, xenófobos e a linguagem populista rasca que atulha as caixas de comentários.

TAP

Há uma imensa desonestidade por parte de quem quer comparar a situação que se vivia na TAP, ao tempo em que foi tentada a sua privatização, e este tempo, em que tem lugar a reestruturação da companhia. Como se, entretanto, a pandemia não tivesse posto de pantanas o mercado das companhias aéreas.

Guerras

Por virtude desta pandemia, morreram já mais de 50% de pessoas do que em combate nas três frentes das guerras coloniais (1961/74)

Coros

Pode ser que seja deformação de quem integra um Clube de debates que é muito cioso da sua diversidade opinativa, mas acho muito pouco saudável ver por aí anunciados webinars com gente que pertence toda ao “mesmo lado” ideológico. Já sabem tudo? Não precisam de ouvir mais ninguém?

O pânico

A colocação de um “botão de pânico” nas instalações do SEF no aeroporto não é um insulto à nossa inteligência é um atestado da falta dela de quem teve tão peregrina ideia.

Vergonha própria

Nos últimos anos, houve dois momentos em que senti vergonha pelo meu país: na palhaçada de Tancos e no assassinato de um imigrante ucraniano por membros do SEF.

E se...?

Desculpem a pergunta: mas, em lugar de se sobrecarregarem instalações do SNS, não seria de fazer a aplicação intensiva da vacina em pavilhões gimnodesportivos, com mobilização de meios militares? Poder-se-ia fazer dezenas de milhares de aplicações por dia. É só cá uma ideia...

domingo, dezembro 06, 2020

Alguém sabe responder?

A pergunta que seria óbvia, se não fôssemos todos hipócritas: se, em Portugal, é proibido - em qualquer lugar, em qualquer circunstância - conduzir a 121 km/hora ou mais, por que razão é autorizada a venda de viaturas que podem ultrapassar essa velocidade?

“Observare”


Sob a moderação de Filipe Caetano, Carlos Gaspar, Luís Tomé e eu analisámos a agenda do próximo Conselho Europeu, em especial os problemas decorrentes da posição assumida pela Hungria e pela Polónia na questão financeira, e avaliámos os sinais que as recentes eleições municipais no Brasil trouxeram para os equilíbrios políticos internos naquele pais.

Pode ver o programa aqui.

sábado, dezembro 05, 2020

O Sousa


O Sousa não gostava de mim. Notava-se, à légua, há muito. O Sousa era, julgo, o contínuo mais velho do liceu. Não tinha o estilo futebolístico do Rocha, nem o ar desengonçado do Marques, nem o jeito comercial do Carminé. Mas cabia-lhe essa função inigualável de prestígio que era a gestão da entrada principal do liceu. Essa era uma zona que, por definição, nos era quase interdita, reservada aos trânsito dos professores ou para o cerimonioso acesso à secretaria, onde, atrás do balcão, nos olhava, com ar severo, o senhor Agarez. Contudo, num certo ano, por algum tempo, creio que por virtude de obras de construção de uma das alas do edifício, a entrada de todos os alunos passou a ser feita por esse átrio central, o tal que cabia ao Sousa controlar. (O Alfredo Branco, de bata branca, nesse 1° de Dezembro, cantou, no palco do Teatro Avenida, para a posteridade: “A entrada pró liceu / desta linda capital / já é feita como dantes / pela porta principal. / Por causa das confusões / p’ra evitar mais maçadas / à entrada para o átrio / está o código das estradas”). Eu tinha, confesso que por vício antigo, a mania de chatear o Sousa. Não me perguntem porquê! Nem como! Inventava coisas para o atazanar. Um dia, caiu neve na cidade. Como, ao que me dizem, hoje aconteceu. (Nesses tempos, nevava mais em Vila Real, acho eu). Desde a avenida, já desde o pelourinho (que, à época, estava em frente à Câmara, para quem não saiba), todos chegámos ao liceu, nessa manhã, a atirar bolas de neve uns aos outros. Nesse dia, sei lá bem porquê, entrei no átrio com uma bola de neve na mão. E, da porta grande da entrada, por sobre a cabeça de quem estava no átrio, lancei essa bola de neve, em percurso circular, jogando com a lei de Newton. E ela foi aterrar onde? Num olho do Sousa. Esquerdo? Direito? Tenho boa memória, mas nem tanto! Quase seis décadas depois, ainda me pergunto: terá sido de propósito? Era mesmo num olho do Sousa que eu queria acertar? Esquerdo? Direito? Não sei. Mas, se foi, a minha pontaria, há que reconhecer, foi excelente, magnífica, única, certeira, impecável. Melhor era impossível, se acaso foi (foi?) deliberado. Mas, repito, ainda hoje não tenho a certeza e isso, como é óbvio, absolve-me, em absoluto, de quaisquer culpas. O Sousa, recordo, recuou, sob o impacto do pedação de neve prensada saído da minha mão e, desestabilizado, foi visto a chocar contra uma daquelas vitrines envidraçadas nas quais, em manhãs de angústia, surgiam afixadas as nossa notas. Eu, imagino agora!, intimamente impante pelo indisputável êxito do arremesso, mas ao mesmo tempo temeroso de ver consagrado em fúria o meu rigor de precisão no alvo, ter-me-ei esgueirado para dentro do liceu, a caminho das aulas, contando (creio!) que ninguém bufasse ao Sousa que fora eu o autor de tão apurado, porém genial, feito. Mas alguém disse, porque a cidade, como bem sabemos, nunca foi de total confiança! E, ao final da tarde desse dia, no topo da escadas da minha casa, com quem é que eu deparei? Com a figura pesada e sombria do Sousa. A um oportunista “boa tarde, senhor Sousa!”, não obtive réstia de resposta. Tive logo um mau pressentimento. E tinha razão. O Sousa tinha ido a minha casa, apurei logo por uma criada, para falar com o meu pai. E falou. Um quarto de hora mais tarde, lá levei eu um bufardo na cara, dado pelo meu progenitor, como paga direta pela minha excecional pontaria matinal. Era assim a lógica das coisas nesse tempo. (E, valha a verdade, por muito que a pedagogia contemporânea me queira contrariar, essa bofetada não me traumatizou nada. Ou terá traumatizado? Por que razão lhes estou a contar isto agora?). O Sousa, confirmava-se, não gostava de mim. E eu, vou ser sincero, não gostava nada do Sousa. Pronto! Estamos pagos!

sexta-feira, dezembro 04, 2020

Na Farmácia Campos

Há uns anos, em Pipa, no Rio Grande do Norte, no Brasil, tive um almoço de confraternização com a comunidade portuguesa que aí trabalhava.

Era um tempo em que uma nova geração de empresários portugueses tinha rumado para as praias do Nordeste brasileiro, onde estava a ter imenso sucesso, num Brasil em que o turismo de qualidade começava então a despontar. "Resorts", hotéis, "pousadas" e restaurantes contribuíam para renovar a própria imagem de Portugal naquele país.

Confesso que não faço ideia de como as coisas hoje andarão. quinze anos passados desde o início das minhas funções como embaixador português por ali.

Lembro-me de que, ao entrar no restaurante, fiquei surpreendido com o seu nome: "Farmácia Campos". Mal fui apresentado ao proprietário, perguntei-lhe: "É de Matosinhos?" Era. O seu pai era ou tinha sido dono de um restaurante daquela cidade que, por uma qualquer razão (que me deve ter sido explicada, mas que já esqueci), era conhecido por "Farmácia Campos".

A "Farmácia Campos" de Matosinhos, onde só comi uma vez, tinha-a bem na memória.

Estávamos ali com uma amiga a jantar, numa noite, quando entrou pela casa dentro, um pouco desaustinado, um fulano que pediu ao proprietário para "pôr o rádio alto". Lembro-me de que havia, à esquerda de quem acedia da rua ao espaço do restaurante - uma adega típica, sem grandes requintes de decoração, mas onde se comia bastante bem, para os padrões da época - um longo balcão. O homem disse qualquer coisa para o dono da casa, que levou este a aceder, de imediato, ao pedido para colocar som num aparelho de rádio.

E foi então que ouvimos, no imenso silêncio que se fez, a notícia que o homem já trazia da rua: que o avião onde viajava aquele que, há menos de um ano, era primeiro-ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro, tinha caído perto do aeroporto de Lisboa. Mal nós sabíamos que a viagem tinha como destino o aeroporto de Pedras Rubras, perto do local onde estávamos a jantar. E muito menos nos passou pela cabeça que esse mesmo aeroporto acabaria por vir a ter o seu nome. As notícias da rádio, então parcas em pormenores, não deixavam dívidas de que não ia haver sobreviventes daquela tragédia.

Faz hoje precisamente 40 anos.

quinta-feira, dezembro 03, 2020

Respeito

 


90 anos


Jean-Luc Godard comemora hoje os seus 90 anos. Foi realizador de um filme que inspirou o nome de um blogue que talvez conheçam. 

Giscard e a Europa

Morreu ontem o antigo presidente francês, Giscard d'Estaing.

A Europa comunitária é uma ideia que tem a França no posto de comando. A Alemanha foi essencial para dar músculo económico ao projeto, mas o vetor político assentou sempre em Paris. Escrevi "no comando" porque a França nunca se viu numa outra posição. Desde De Gaulle, a França só aceita uma Europa traduzida na sua língua, sentindo-se alheia a tudo o que assim não for.

Tive o número suficiente de "accrochages" com os meus colegas franceses, quando andei pelo governo, para saber, de ciência certa, que há uma política francesa para a Europa - o que, nem sempre, é sinónimo de uma política europeia da França - que é relativamente independente de que estiver no poder, à esquerda ou à direita. Com os meus amigos Michel Barnier, um orgulhoso gaullista, ou Pierre Moscovici, um socialista "moderno", tive confrontos abertos nos quais senti, às vezes, que eles estiveram à beira de me não perdoarem a minha franqueza. De outras vezes, tive a embaixada francesa em Lisboa a queixar-se nas Necessidades disso mesmo.

Nos quatro anos que passei na embaixada em Paris, tive oportunidade de rever o muito que tinha aprendido, desde a adolescência, sobre a sociedade política francesa. No essencial, confirmei o que julgava saber sobre o modo como a França olha a Europa, como se coloca nela, o que dela quer. Para dizer as coisas em poucas palavras: a França percebe que precisa da Europa para se afirmar no mundo. Por essa razão, alguns políticos franceses estiveram por vezes disponíveis para diluir, num projeto europeu mais "avançado", parte do seu poder nacional, na certeza que o iriam recuperar nesse quadro mais integrado. Isso, porém, até hoje, nunca aconteceu.

Mitterrand, com Maastricht e a moeda única, ficou na soleira dessa audácia. Macron parece ter hoje a consciência de que seria uma opção tentar ir por esse caminho. Mas só Giscard d'Estaing, já depois de sair do Eliseu, revelou rasgo para tentar dar esse mesmo salto em frente.

Em 2002, Giscard d'Estaing presidiu à Convenção sobre o Futuro da Europa, da qual saiu o projeto de Tratado Constitucional Europeu, ideia que o referendo negativo holandês veio a condenar ao insucesso. Parte dessas propostas, mas não as essenciais, ressurgiriam no Tratado de Lisboa, o qual, na minha (muito negativa) opinião, ficou com o pior e recusou o melhor do projeto original.

Tenho tentado lembrar-me, sem êxito, por que diabo, algures no primeiro semestre de 2002, vim a estar presente numa sessão em Nova Iorque onde Giscard d'Estaing falou sobre a Convenção a que presidia. Eu era embaixador na ONU e só por eurofilia militante ali devo ter ido parar. E o que terá levado Giscard a Nova Iorque?

Tendo ao lado o vice-presidente do exercício, o antigo primeiro-ministro italiano Giuliano Amato, Giscard d'Estaing explicou, no seu bom inglês, o que pretendia fazer sair da Convenção.

No final da apresentação, houve algumas perguntas e uma delas foi minha. 

Questionei Giscard sobre se os representantes dos governos dos então Quinze, que estariam presentes no exercício, iriam ter, no final, algum voto qualificado, isto é, se a sua luz verde seria necessária para o processo poder avançar. 

Giscard como que se abespinhou e perguntou por que razão eu entendia que isso seria necessário. Respondi-lhe uma coisa deste género: "Porque os governos é que foram eleitos, porque são eles quem tem legitimidade política, porque são quem responde perante os cidadãos dos respetivos países e a sua anuência, como aconteceu com as Conferências Intergovernamentais que deram origem a todos os anteriores tratados, tem sido essencial para ajudar a um "soft landing" dos projetos junto das opiniões públicas e dos parlamentos". 

Com aquele ar de desdém aristocrático que lhe era caraterístico, a que juntou um sorriso condescendente, Giscard pôs um ponto final no assunto: "Não, caro senhor, o parecer dos governos não será por mim pedido no final dos trabalhos". Ao sentar-me, não deixei de lhe enviar, em francês, um irónico "Bonne chance!".

Um ano e pouco depois, o governo português de então, sendo eu embaixador na OSCE, convidou-me a fazer parte do grupo de aconselhamento do primeiro-ministro Durão Barroso para a negociação do Tratado Constitucional. Entendi dever aceitar.

Quando li os projectos daquilo que estava em cima da mesa como matéria já em vias de ser acordada, percebi que Giscard d'Estaing tinha ido longe demais na sua ambição legislativa para a Europa. E também me dei conta - e disse-o na primeira reunião no "bunker" de S. Bento, na presença de um silencioso Barroso - que o texto já se afastava bastante dos interesses portugueses. Para algum desconforto dos presentes, e levando mais tempo do que parecia ser esperado da minha intervenção, pormenorizei, alto e bom som, as razões por que achava isso. Sem falsa modéstia, o facto de ter sido o principal negociador português dos últimos dois tratados europeus dava-me alguma autoridade para falar.

À saída, Ernâni Lopes, que tinha representado Portugal na Convenção, e que entretanto havia sido objeto de uma atitude de grande indelicadeza por parte do governo, meteu-me o braço e, com um imenso sorriso e a atitude amiga do homem de bem que era, disse-me, na voz mais baixa que o seu vozeirão permitia: "Tiveste-os no sítio!"

Para o que interessa. Giscard d'Estaing tinha-se equivocado. O seu Tratado Constitucional foi rejeitado.

Giscard


Quando emergiu para a grande política, era uma espécie de personagem “à americana”, num género que, depois de Kennedy e de Trudeau, seduzia muitos europeus. Tinha o vigor de uma nova geração, renovadora da V República, coveira assumida da IV. Falava bem (falava inglês, hélas!), com um discurso competente, ágil nas contas, sedutor na eficácia apregoada. Era, ao seu modo, um liberal, ideia mais velha do que antiga e que confere sempre um ar desempoeirado a quem, ciclicamente, a proclama. Mesmo em França, onde o liberalismo foi sempre um receita garantida para o insucesso político. Depois de o ter usado como degrau para as suas legítimas ambições, como ministro da Economia e Finanças, Giscard acabou por provocar um De Gaulle já em declínio, a quem deixou o seu, para sempre tido como oportunista, “oui, mais”. Após demarcar-se do gaullismo (o seu verdadeiro inimigo de estimação), mas conseguindo domesticá-lo por algum tempo em seu proveito, veio a derrotar, na primeira corrida à presidência, François Mitterrand, lançando-lhe, com genial precisão, o magnífico “vous n’avez pas le monopole du coeur”. Cavalgou, entretanto, a conhecida atitude francesa de tentar dominar o processo integrador querendo mostrar o país como mais europeísta do que os outros. Com Helmut Schmidt, com quem fez um dos “tandem” franco-alemão, foi o “inventor” do Conselho Europeu, nesse tempo uma estrutura ainda fora dos tratados. Giscard foi uma figura indiscutivelmente brilhante, uma estrela no firmamento político francês, mas parece também pacífico que era um homem deslumbrado consigo mesmo, ao mesmo tempo que projetava um modo aristocrático, quase monarquista, de afirmação política, um elitismo snobe e distante. A questão dos diamantes que lhe terão sido oferecidos pelo facínora centro-africano Bokassa perseguiu-o sempre e, de certo modo, contribuiu para acelerar o seu fim político. Teve um único mandato presidencial, somando, na derrota que Mitterrand lhe inflingiu em 1981, muitas culpas próprias, conjugadas com uma conjuntura internacional que lhe foi adversa. Manteve sempre o seu prestígio público e viria a ser recuperado para presidir à Convenção Europeia, em que desenhou o Tratado Constitucional, ideia que acabou por morrer na praia, mas que acabaria por ressurgir travestida daquilo que ficou conhecido como o Tratado de Lisboa. Giscard, recorde-se, foi contra o “timing” da abertura da Europa a Espanha e Portugal. Perdeu. Como, mais tarde, foi bastante culpado pelo modo agressivo como a Turquia se sentiu rejeitada na aproximação que pretendia ao projeto. Nesse caso, Giscard, mas não só, contribuiu para que perdêssemos todos. Escreveu, além obras estimáveis e bem construídas, um livro desagradável e desnecessário, a rescender a decadência pessoal, insinuando, numa ficção inconveniente, uma sua hipotética relação com a princesa Diana. Em Paris, Giscard era vizinho da nossa embaixada. Goste-se ou não dele, temos de reconhecer que foi uma grande figura da política francesa. E europeia. Morreu ontem. De Covid.

quarta-feira, dezembro 02, 2020

Pé ante pé


Vale a pena olhar para trás, observar com atenção o percurso que foi fazendo, num ritmo de quem só dava um passo após ter firmado bem o anterior, depois de ter a certeza do que tinha acabado: de fazer, de dizer, de escrever. Foi assim a obra de Eduardo Lourenço.

O perfil físico, a voz beirã, o humor amalandrado, a gargalhada contida, a forma, só aparentemente hesitante, de expressar, em palavras simples, ideias originais, como que presumiam uma quase modéstia. À medida que o fui conhecendo, fui criando, de Eduardo Lourenço, a imagem de um sábio sereno, que se foi ele próprio construindo, quase sem precisar de se impor, uma figura que foi entrando pela alma deste país um pouco pé ante pé, nela acabando por se firmar como o melhor ilustrador daquilo que somos.

Lourenço, ao contrário de alguns bonzos, nunca parou para pensar. Foi pensando ao longo do caminho, sobre o que esse caminho lhe trazia à razão, porque viu sempre Portugal como uma entidade mutante, na consciência clara de que a mudança faz parte da natureza das coisas. E aí, ao contrário desses outros, que se agarram à identidade como a um padrão do império, assentava a sua genialidade.

Devo a Lourenço muitas coisas. Desde logo, a Europa. Foi com ele que comecei a refletir o quanto este retângulo geográfico com gente, para além de uma história, de uma língua, talvez de uma idiossincrasia comum, necessitava da Europa para cumprir mais uma etapa do seu destino, depois da aventura trágico-marítima do império.

Lourenço ensinou-me a perceber a riqueza de conseguirmos ser, com dupla e não contraditória lealdade, portugueses e europeus. Com ele percebi que a Europa nos completava e que, com alguma assumida sobranceria, devíamos também ter a ousadia de pensar que, sem nós, a Europa também seria outra coisa.

Fez-me também perceber que ser português é isto mesmo – a soma do que outros já foram, em nome daquilo a que chamamos Portugal, com o que hoje realmente somos, sem complexos nem gongóricas vaidades. Mostrou-me que esse é o outro lado, simples mas verdadeiro, de um país que é um sobrevivente da História, por entre os escolhos dos seus fracassos e das caravelas que deixaram de existir. Um país que sempre foi mais rico, como entidade histórica com boas razões para ser orgulhosa de si mesma, quando teve pelas suas ruas gente que nem sequer tem de chamar-se a si mesma de portuguesa para nos ajudar a ser o melhor que somos.

Eduardo Lourenço parte com uma imensa glória: ter ensinado o um país a ver-se ao espelho.

terça-feira, dezembro 01, 2020

Em Paris, com Eduardo Lourenço (3)


Ao tempo em que dirigia a delegação em Paris da Fundação Calouste Gulbenkian, João Pedro Garcia organizou um interessante ciclo de conferências sobre a Europa. Figuras portuguesas e francesas diversas intervieram nessas jornadas, sempre muito concorridas, nos tempos em que a antiga residência de Gulbenkian na avenue d’Iéna acolhia esses eventos,

Um dia, coube a vez a Marcelo Rebelo de Sousa de dizer o que pensava da Europa. Ao tempo, o atual presidente da República era um conhecido comentador televisivo. As suas charlas dominicais, sobre tudo e sobre todos, eram acompanhadas pelo país, mesmo por aqueles setores que com ele não concordavam.

Coube a Eduardo Lourenço, ao tempo administrador não executivo da Fundação, fazer a apresentação de Marcelo Rebelo de Sousa. Fê-lo com imensa graça, trabalhando a figura académica, política e mediática de Marcelo. A certo ponto, saiu-se com esta tirada lapidar: "Hoje em dia, em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa é como aquelas figuras que, numa vila ou numa cidade pequena, estão à janela, a ver as pessoas passar na rua e vão comentando cada uma delas. Só que, no seu caso, ele acaba, por vezes, por ver “passar” nessa rua o cidadão político Marcelo Rebelo de Sousa e, claro, não se faz rogado e também faz comentários sobre ele”. Marcelo, como todos nós, riu-se imenso.

Em Paris, com Eduardo Lourenço (2)


Tenho boa memória, mas não a suficiente para me lembrar do nome do intelectual caribenho que, num final de tarde, na casa antiga da Fundação Calouste Gulbenkian, na avenue d’Iéna, em Paris, fez parelha com Eduardo Lourenço, num debate sobre uma determinada temática, organizado pelo diretor da Delegação, João Pedro Garcia. 

A sala estava cheia, quer pelo interesse no intelectual francófono, um homem já idoso, com voz forte e presença imponente, mas também para ouvir Lourenço, que os portugueses “viciados” nas sessões da Gulbenkian e muitos “lusófilos” muito apreciavam. Prometia ser uma bela sessão.

Começou o homem do Caribe. E fê-lo lindamente, de improviso, arrebatando a sala. Passou mesmo o limite de tempo que lhe era destinado. A seu lado, Eduardo Lourenço ouvia-o com visível interesse. Sentado em frente a ambos, na primeira fila (alguma vantagem haveria em ser embaixador...), notei que Lourenço passou os dedos, por mais de uma vez, por algumas folhas que tinha diante de si.

E chegou o momento de Eduardo Lourenço falar. Começou por referir-se ao que tinha acabado de ouvir, citando dois livros do orador, elogiando a sua notável prestação. E, depois, no excelente francês que era o seu, disse mais ou menos isto: “Eu tinha-me preparado para vos falar sobre o tema que, a ambos, hoje aqui nos convocou. Tinha mesmo escrito um texto, para vos ler. Mas ao ouvir o que, de magnífico, nos trouxe o meu colega de painel, surgiram-me novas ideias e decidi dispensar a leitura desse texto. E, tal como ele fez, vou-vos falar livremente sobre o assunto.”

E falou. Durante bem mais de meia hora, de improviso, num francês de estilo, a que o sotaque beirão dava uma nota curiosa, Eduardo Lourenço encheu a sala de erudição e encheu-nos, a todos os portugueses que por ali tinham o privilégio de estar, de um imenso orgulho por termos como compatriota uma figura daquele calibre. 

Em Paris, com Eduardo Lourenço (1)


Um dia, ao tempo que era embaixador em França, decidi organizar um jantar em honra de Eduardo Lourenço. Por uma qualquer razão, estavam também nesse jantar, recordo bem, Vasco Graça Moura e Guilherme de Oliveira Martins.

O jantar estava marcado para as oito e meia, mas o convidado principal atrasou-se. Já se aproximavam as nove horas quando, afogueado, o Eduardo chegou, pedindo imensas desculpas. E explicando a razão do atraso.

Tinha ido a um estúdio de cinema, em Saint Denis, na periferia de Paris, onde Manuel de Oliveira estava a filmar uma obra, ali tendo construído, em cenário, uma rua do Porto. E apanhara imenso trânsito no regresso, de táxi.

Perguntei a Eduardo Lourenço o motivo da deslocação ao local das filmagens. Fora para estar com Oliveira? Alguma curiosidade de ver a rodagem o filme? 

Íamos na sala, a caminho da mesa de jantar, quando o Eduardo me puxou pelo braço, baixou a voz e fez uma confissão: “Vou-lhe contar por que é que fui!” E deu uma gargalhada marota, de que quem o conhecia se lembra bem. “É que eu sabia que o Oliveira tinha no filme a Jeanne Moreau e a Claudia Cardinalle. Ora dei comigo a pensar que esta era uma boa oportunidade de, por uma vez, conhecer aquelas duas mulheres, duas belezas do meu tempo. E, como tinha algumas horas, meti-me a caminho e fui ao estúdio”. “E esteve com elas?”, perguntei-lhe, já meio invejoso. “Qual quê! Quando lá cheguei já tinham saído. Acabei por pagar uma conta calada de táxi e, ainda por cima, chego atrasado ao seu jantar. Desculpe-me, sim?”

Lourenço

No aparente consenso nacional que rodeava a sua figura, é necessário notar que certas ideias de Eduardo Lourenço foram sempre bastante incómodas para alguns. Porém, por estas horas, eles acham mais prudente manterem as garras recolhidas. Ouçam-se, com atenção, alguns silêncios.

Os EUA, a ONU e Gaza

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