segunda-feira, setembro 21, 2020

As Necessidades do Caetano

O meu amigo Caetano da Cunha Reis, homem de barba patriarcal e de humor fino, perdoar-me-á, com certeza, que eu transcreva hoje aqui, a propósito de nada, um post que, há mais de 15 anos, surgiu num blogue que o tempo há muito levou, subscrito por um pseudónimo coletivo que era então usado por alguns. O texto foi-me ontem lembrado e fui às catacumbas de uma “pendrive” para o desencantar.

Viviam-se os primeiros dias (e as primeiras noites, no Procópio) do primeiro governo Sócrates, em 2005. Freitas do Amaral tinha entrado para ministro dos Negócios Estrangeiros e, nessa noite, soube-se na Mesa Dois o Caetano iria assessorá-lo. O Caetano era “one of us” e, por isso, a sua nomeação não passou despercebida. Não assisti à cena que o tal blogue relatou, por viver, à época, no Brasil, pelo que não posso jurar sobre a sua verosimilhança.

Estava a Mesa Dois posta em sossego, de seus copos colhendo doce "fruito", quando a notícia explodiu, como uma bombarda das que o Carlos Antunes costumava pôr nos Unimogs destinados a combater os "turras", perdão, os Palop: o Caetano da Cunha Reis, o nosso Caetano das entradas tardias no Procópio, esse Afonso Henriques (o fundador...) da Juventude Centrista (onde ela vai, não é, ó Caetano ?), havia entrado para o aparelho do governo socialista. A dúvida instalou-se, célere como uma epidemia: "vai para o Ambiente ?" aventou o Luís Coimbra, coroado de inveja; "deve ir para o Desporto", rematou o João Paulo Bessa, ainda não refeito do trauma do Laurentino; "às tantas, dão-lhe alguma coisa na Comunicação Social", editou o João Paulo Guerra, já a ver-se exilado na liberal "Folha de Alvaiázere"; a Graça Vasconcelos ficou numa apoplexia, quase  a entrar de baixa autoridade; "qual quê, ele vai é para a Ciência !", lavrou a Sara, sob o sorriso esfíngico e ferroviário do António, figurando já o Caetano num cenário com o Gago, plantado entre nabos transgénicos. Quebrando este ambiente de angustiante dúvida, o Vilhena resmungou um comentário impublicável e fez mais uma das suas tradicionais retiradas diuréticas. O Zé Vera murmurou uma coisa cifrada a uma juíza de oportunidade, que trazia à ilharga desde a 13ª vara. O Nuno impavidou-se, num eloquente silêncio, por todos lido como assaz significativo. De pé, o Chico não confirmou, com o habitual acenar da poupa que lhe ficou como herança do IPE, se Belém teve alguma coisa a ver com a nomeação. Agitado, o Jójó saltou para telefonar ao Balsemão, o Solnado achou que era piada e, sem surpresas, o Zé Medeiros abençoou com um "não me parece mal, sendo amigo do Cruz..." Afastada por todos a ida para a "Qualidade de Vida", pasta que assentava que nem uma luva ao nosso Caetano (mas que o facto de ter sido assumida em acumulação pelo PM cessante deixava fora do âmbito das hipóteses), a verdade acabou por emergir como o azeite, dita pela sabedoria da Alice, que sempre bebe do fino (ou da imperial, tanto faz) : "O Diogo chamou o Caetano para as Necessidades" !!! A mesa estarreceu ! A Teresa só pôde balbuciar "Ó Luís, traga-me qualquer coisa, seja lá o que for!...", o Durão arfou um inconveniente "Porra ! Por esta é que eu não esperava !", o Zé Augusto deu-lhe uma urgência estefânica, e arrancou com a São e saiu à procura da confirmação da amiga Edite. O Luís, já batido por muitas noites da política da Dois, acantonou-se na "bilheteira" e começou a tirar as contas, porque a debandada crítica estava aí à bica. Aqueles a que alguns, pouco imaginativos e algo sardónicos, chamaram de "diplocópios" (ou pior, os diplomatas do Procópio), cujos nomes não pretendo revelar por razões que a razão óbvia das coisas torna dispensável, reagiram com assinalável garbo e proverbial prudência: "O Caetano no 3º andar ? Ora bem, vamos lá a ver, podia ser pior ...", insinuando logo alternativos tsunamis políticos que poderiam ter ocorrido e agregando de imediato a nova função, com estudada familiaridade, à geografia arquitectónica do poder na "casa". Mas deixemo-nos de histórias: para a História, Caetano da Cunha Reis está, de pedra e cal, no Ministério dos Estrangeiros, assessorando (em quê, Caetano, diz-nos já!) "o Diogo". Quando a classe “Navigator" lhe der folga, o nosso Caetano rumará uma noite da sala VIP da Portela para o Procópio (sempre tarde, que é como se entra...), requisitará um banquinho junto à Dois, dará um gole no JB* da praxe (“em balão, ó Luís!”) e amesquinhará os tais Diplocópios com um "estão vocês bem enganados, quem vai para Pyongiang afinal já não é o Meireles !". Ganda Caetano, agora passaste a "boy" ! Acautela-te nas bordas do Caldas, que os do taxi podem dar-te uma arrochada pela Madalena abaixo, qu'inda vais parar à Mouraria ! Mas olha, filho, ouve o que eu te digo: inda vais ser chorado... Um dia perceberás onde e porquê. Agora é cedo, melhor, já é tarde...

Este é o texto. Algumas referências podem ser crípticas para alguns, mas seria ocioso fazer aqui pés-de-página para explicar muitas das coisas e das pessoas que ali figuram. Fica assim, tal como saiu, esperando que o autor se dê ao trabalho de o reler. 

*Um dia, há muitos anos, perguntei ao Caetano se tinha achado graça ao texto: “Imensa! Tem, porém, um erro imperdoável: eu só bebo Bushmills, com duas pedras, nunca em balão”. Passei o recado ao escriba desatento. Nunca me respondeu.

domingo, setembro 20, 2020

Apoiar os restaurantes portugueses


Nestes tempos de pandemia, os restaurantes portugueses têm feito um esforço extraordinário para sobreviver, adotando regras de segurança sanitária, procurando manter a qualidade da oferta e do seu serviço, assim assegurando postos de trabalho, importantes para o sustento de muitas famílias. Apoiar a restauração portuguesa, que, nos últimos anos, tinha crescido em prestígio e afirmação, é algo que entendo deve continuar ser feito, promovendo quem honra o setor.

No meu blogue “Ponto Come” tenho divulgado alguns restaurantes a que vou regressando, neste período pós-confinamento. Trata-se de casas muito variadas, em várias zonas do país. Passe também por lá.

sábado, setembro 19, 2020

MRPP


Há 50 anos, em 18 de setembro de 1970, nascia o MRPP. 

Com exceção do MRPP, toda - repito, toda - a restante constelação de grupos marxistas-leninistas que viria a surgir em Portugal “descendeu”, por via direta ou enviezada, de um primeiro núcleo de dissidência “de esquerda” do PCP que foi o CMLP - Comité Marxista-Leninista Português. 

Um dos companheiros de Álvaro Cunhal na fuga de Peniche, Francisco Martins Rodrigues, protagonizou essa histórica dissidência que, em Portugal, tal como aconteceu em outros países, refletiu a conflitualidade sino-soviética, que se estabeleceu após o XX Congresso do PCUS, que consagrou a desestalinização.

O organograma dos MLs, como então chamávamos a um conjunto infinito de organizações que por aí andava, era de uma imensa complexidade. Se isso já confundia, e muito, os cudadãos portugueses no pós-25 de abril, a quem era muito difícil perceber a diferença entre o PCP-ML “fação Mendes” e o PCP-ML “fação Vilar”, bem mais confusos estavam, nos tempos da Revolução de 1974, os estrangeiros que nos procuravam, fosse por mero “turismo” político, fosse para reportar profissionalmente a “Revolução dos Cravos”. 

O José Rebelo, à época correspondente do “Le Monde”, em Portugal, recordar-se-á de uma longa e “pedagógica” conversa a que me chamou, num quarto do Hotel Mundial, com esse “monstro” do jornalismo político francês que era Marcel Niedergang, a quem eu procurei detalhar as diferenças e importância real de todas aquelas siglas. À época, eu era um “expert” autodidata nessa área. 

E recordo-me bem da surpresa do celebrado autor dos “Les Vingt Amériques Latines” quando lhe expliquei que o grupo ML mais “na moda”, que era o MRPP, que enchia as paredes de Lisboa com vistosos murais, pouco ou nada tinha a ver com a origem dos restantes grupos, em especial que não recebia qualquer apoio chinês (nem da Albânia), nem político nem em espécie.

O MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado) surgira por uma via diferente. Lembro-me bem de ter detetado, no auge das polémicas emergentes nas reuniões oposicionistas no Palácio Fronteira, no caminho para as “eleições” do “marcelismo” que tiveram lugar em outubro de 1969, uma linha política “de novo tipo” (para usar um termo leninista), cujo discurso já então me soava a diferente do dos MLs tradicionais. 

Daí viria a surgir, como mais tarde se apurou, muito assente na Faculdade de Direito de Lisboa, aquilo que seria designada por EDE (Esquerda Democrática Estudantil), uma organizaçao que, durante muitos anos, o MRPP considerava insultuoso que pudesse ser identificado como sendo a sua origem. Mas foi. 

Era gente que já tinha andado pelo PCP, com atividade nas lutas universitárias e anti-coloniais, na esmagadora maioria dos casos estudantes e alguns escassos operários, numa época em que ter estes últimos nas hostes de qualquer grupo dava imenso “cachet” revolucionário. O MR, como simplificadamente nos referíamos então ao grupo, lá acabaria por ter os seus operários, e até alguma residual presença sindical.

O PCP viria a ser o principal ódio de estimação do MRPP. Nisso não se diferenciava muito dos restantes ML, que igualmente contestavam que o partido de Cunhal pudesse reivindicar o estatuto de ser o “partido comunista”. Mas enquanto alguns MLs já se consideravam a si próprios essa mesma “vanguarda da classe operária”, o MRPP afirmava que ainda não estavam criadas as condições, “objetivas e subjetivas”, para dar o passo para a criação do “verdadeiro partido da classe operária”.

Após ter sido criado em 1970, o MRPP foi progressivamente ganhando força junto de jovens setores intelectuais, bem como de uma juventude universitária, e mesmo liceal, que, “à esquerda” do PCP, se opunha à guerra colonial. O movimento não apenas se tornou na “bête noire” dos comunistas de Álvaro Cunhal como entraria em rápido confronto com os restantes ML, um conflito que chegou a assumir aspetos fisicamente violentos, anos mais tarde. Tinha então o seu famoso jornal “Luta Popular” e, como órgão teórico, o “Bandeira Vermelha” (sou proprietário de um exemplar do seu nº 1). Além disso, as suas múltiplas declinações sectoriais mantinham outros órgãos clandestinos de propaganda.

Por alturas do 25 de abril, o MRPP estava no auge das suas ações de rua. Manteve-se na clandestinidade, como algumas outras organizações congéneres, e confontrou-se com a ala do MFA que mais próximo estava do PCP. Fez então uma aliança tática com setores menos radicais das Forças Armadas e, sempre na sua lógica anti-PCP, assumiu uma prática política que o levou a muito polémicas ligações com setores conservadores (aliás, nada que o PCP-ML “fação Vilar” não tivesse também praticado). No período mais tenso do PREC de 1975, o MRPP esteve do lado do PS e do então PPD, “to say the least”.

Depois, ao ter sido impedido, por decisão política, de concorrer à Assembleia Constituinte, o MRPP iniciou o que viria a ser um percurso de crescente declínio. Daria ainda, no entanto, o passo político de se transformar formalmente em partido - o chamado PCTP-MRPP. 

Desde 1970, o líder incontestado do MRPP, e do partido em que este se transformaria, havia sido sempre Arnaldo Matos, um madeirense, licenciado em Direito, que advogou em Lisboa. Chegou a estar afastado alguns anos do partido, mas acabaria por regressar à respetiva liderança. Até à sua recente morte, manteve um registo de expressão discursiva que se colou à caricatura que a história política portuguesa dele guarda.

Os antigos militantes do MRPP tiveram destinos muito diversos. Como regra que pode ter a suas exceções, mas que a meu ver resiste bem ao teste, pode dizer-se que quem entrou para o MRPP antes do 25 de abril, quando a prioridade da sua luta era a ditadura e a recusa da guerra colonial, está hoje politicamente à esquerda, como é, por exemplo, o caso de Fernando Rosas. Quem se ligou ao movimento após o 25 de abril, e nele foi aculturado na luta contra o PCP, acabou, em geral, à direita. O exemplo mais flagrante deste último grupo de pessoas será Durão Barroso.

Uma coisa é certa: dos partidos que por aí andam, ainda que alguns num registo quase apenas formal, só emergindo nos períodos eleitorais, aparentemente para poderem manter a subvenção financeira estatal anual, o PCTP-MRPP é hoje o segundo mais antigo, depois do PCP. O PS só viria a surgir em 1973.

sexta-feira, setembro 18, 2020

Nos 81 anos de um grande Senhor

 


Conselho sobre a pandemia

Creio nunca por aqui ter dado o menor bitaite sobre o modo de encarar a pandemia. 

Hoje decidi romper com essa atitude e oferecer, finalmente, um conselho técnico: cuidem-se!

Doutrina dividida


De há muito que, cá por casa, a doutrina se divide. Eu gosto de ver folhas secas caídas sobre a relva, ao mesmo tempo que há quem deteste esse cenário de clima declinante, que parece que “polui” o verde. Eu entendo que a chegada do outono e da chuva me dá um alibi mais para gozar o conforto caseiro, essa perspetiva contrapõe-se à de quem gosta do sol e dos dias cálidos, para sair por aí. Às vezes concedo, só que logo se abre um novo “chantier” de debate: há quem prefira andar a pé, eu inclino-me para “andar” bem sentado no carro. É um debate antigo, com décadas. Porém, enquanto as divergências forem só estas...

“Mesa Marcada”


“Mesa Marcada” é, desde há vários anos, o mais importante site de informação e comentário sobre restaurantes em Portugal. 

Dirigido por Duarte Calvão e Miguel Pires, por ali tem sido acompanhada a fantástica evolução que, nos últimos anos, se processou na oferta restaurativa nacional, com particular destaque para a área da “alta gastronomia”, onde Portugal começou a “dar cartas”.

Neste que está a ser um tempo muito difícil para os restaurantes portugueses, parte dos quais fortemente afetada pelo recuo do mercado turístico, o “Mesa Marcada”, com um belo e novo “endereço”, a que pode chegar clicando aqui, ajuda a manter a atenção sobre este importante setor económico nacional, do qual dependem muitos milhares de empregos e a sobrevivência de imensas famílias.

Os restaurantes portugueses estão a fazer um esforço notável, sem recuo na qualidade e no serviço, e tentando seguir, como regra geral, estritas condições sanitárias, para conseguirem atravessar este tempo de crise. 

Continuar a frequentar os restaurantes é ajudar a manter vivo um setor que faz parte da nossa cultura nacional. É imperativo não deixar que a conjuntura da pandemia destrua o processo de afirmação da identidade da gastronomia que hoje se pratica em Portugal, como internacionalmente é crescentemente reconhecido.

Parabéns ao “Mesa Marcada” por ter tido o sentido de responsabilidade de saber renovar-se, precisamente neste tempo complexo e exigente.

quinta-feira, setembro 17, 2020

IV Conferência de Lisboa

 


Gostam do cartaz da IV Conferência de Lisboa? Porque não se inscrevem e participam? 

Saber ler


Há dias, publiquei por aqui uma frase comentando que a mediocridade temia a competência, referindo-me à jornalista Cândida Pinto.

Por misteriosas razões, os chamados “precários” da RTP, um grupo de profissionais que pretende a integração nos quadros da empresa, entenderam (!!!) que o meu comentário lhes era dirigido. E daí a enveredarem por comentários insultuosos o passo foi pequeno.

Se acaso estivessem um pouco mais atentos à realidade, esses “precários” teriam percebido aquilo que eu quis dizer no meu post nem por sombras lhes respeitava. Saber ler é uma virtude.

Zé de Bragança


Zé de Bragança é o pseudónimo que o advogado José Luis Seixas (não, não é parente!) utiliza, desde há muitos anos, para escrever deliciosas crónicas na imprensa. 

São notas do quotidiano e reflexões sobre a sociedade portuguesa, com muito humor e ironia, servidas por uma excelente escrita - culta, rica, ritmada, apelativa. Corajoso na afirmação das suas ideias, muitas das quais fora do “mainstream” do “politicamente correto”, com caricaturas fortes de algumas figuras e figurões da praça, os textos são um retrato, num tom que nem por ser divertido deixa de ser sério, sobre o Portugal que por aí anda. 

Vivendo em Lisboa, com Bragança no coração, o Zé Luís, aliás, o Zé de Bragança, tem um olhar sempre empenhado, e por isso também sofrido, sobre a sociedade em que vivemos - da política ao futebol, dos costumes às ideias em voga.

Agora, decidiu juntar alguns desses textos num livro editado pela Horizonte, prefaciado por Isabel Stilwell, que ontem foi lançado, embora sob fortes restrições pandémicas, no belo jardim do Palácio Galveias. 

Tive um imenso gosto de intervir, ao lado do professor Ernesto Rodrigues, na apresentação deste livro do meu querido amigo José Luís Seixas.

(Quem tiver interesse em ler o texto da minha apresentação pode fazê-lo aqui.)

Governo

A convivência num governo provoca sempre algumas tensões, que o tempo pode potenciar em algumas das equipas ministeriais. Perguntar se algum secretário de Estado quer sair e inquirir dos ministros se os querem manter pareceu-me uma atitude muito inteligente e saudável. E inédita.

Comentários

O “Público” estabeleceu novas regras para as caixas de comentários. As caixas de comentários, que, em tese, poderiam ser um espaço interessante para aferir reações do público leitor, estão hoje transformadas num esgoto impune de alarvidades, sob a cobardia do anonimato.

Ainda a lista

Vieira retira Costa da Comissão de Honra. Pior a emenda do que o soneto. Quem quer alimentar o folhetim aqui tem um novo episódio. Gerir pior tudo isto era muito difícil, convenhamos.

Já era tempo...

 


quarta-feira, setembro 16, 2020

Visitantes

Há já uns bons anos, introduzi por aqui dois “contadores” de visitantes. Raramente os consulto, mas hoje deu-me para tal.

Um é um registo de visitas que oferece números diários ou em outros quadros temporais. Através dele se constata que, nos ultimos tempos, visitam diariamente este blogue entre 1300 e 1800 pessoas, com variações significativas ao longo do ano. Não “trabalho” aqui para inflacionar os números, que aliás já foram muito superiores, mas naturalmente as estatísticas de leitura não são indiferentes a quem aqui escreve.

O segundo registo refere-se aos países de onde o blogue foi acedido. Sendo este escrito em português, é natural que a esmagadora maioria dos visitantes regulares sejam portugueses ou de países de expressão portuguesa. Outros leitores regulares há que são residentes em diferentes países (em especial EUA e países europeus), como se constata da consulta ao respetivo “contador” (basta clicar nas bandeiras para poder consultar). Tendo plena consciência de que muitas dessas visitas foram puramente acidentais (algumas nunca mais se repetiram), constato que, dos 193 países que fazem parte da ONU, se registaram visitas de 177. É próprio “contador” que indica que apenas não houve visitantes, mesmo acidentais, dos seguintes Estados independentes: Tchad, Lesotho, Serra Leoa, Eritreia, Djibuti, Micronesia, Kiribati, Tuvalu, Vanuatu, Nauru, Samoa, Palau, Tonga, Sudão do Sul, Turquemenistão, e, sem surpresa, Coreia do Norte.

Enfim, curiosidades, em especial interessantes para quem por aqui escreve, diariamente, vai para 12 anos.

Sintomas de regime


Andando três décadas para trás, por esta altura do ano, terminava a "saison" social do Algarve. A Comporta ainda não estava na moda, o norte, exceção feita a Moledo, cujo nevoeiro nobilitava, nunca foi muito dado a essas coisas.

A sul, nos clubes e locais badalados, cavalheiros sorridentes, de calças encarnadas (raramente tidas por vermelhas) e camisa aberta, acompanhados de senhoras douradas, surgiam pelas páginas das revistas sociais. 

O regime, que espero que ninguém se ofenda que eu chame de "cavaco-soarismo", espelhava ali o "novo Brasil", a riqueza da Europa, a que o país aportara tempos antes. Ministros, empresários, "socialites", "cromos" e penetras, alguns e algumas servidos por "petits noms", ilustravam, de copo na mão, as páginas da "Olá Semanário", publicação que inaugurou o álbum de glórias efémeras do "star system" à portuguesa. 

Noutro registo, consonante com este, surgiam as quintas, os casamentos e batizados de famílias sonantes, os automóveis de luxo, às vezes os helicópteros e os iates, sinais exteriores de uma riqueza que, nem por invejada, ou talvez por isso, deixava de ser mostrada. Cavalos, golfe, ténis e coisas assim faziam parte do cenário. Uma figura aristocrática ou real à mistura, em especial se estrangeira, ajudava muito a compor o ramalhete.

Regressemos ao presente. Pandemia à parte, olhem-se, nos tempos de hoje, as revistas "sociais": os políticos sumiram, os poderosos entraram na clandestinidade social, a que agora se chama discrição. Futebolistas, apresentadores e atores de telenovela ocuparam o espaço de financeiros, da gente "bem" do "tout Lisbonne". Estes não desapareceram, mas vivem hoje sob um outro perfil: mostram menos piscinas e mansões, "glicerinam" as caras dos filhos nas fotografias, acham mesmo "cafona" quem ostenta uma riqueza recente. 

Mas nada de equívocos: o Portugal social não se democratizou, porque as relações de poder e de riqueza não se alteraram por aí além. O que mudou, e radicalmente, foram os modelos de exposição social. E não há nenhum efeito geringonça neste recolhimento, o qual já vem de há vários anos. 

Aliás, algumas famílias e personalidades com poder sempre cuidaram em preservar a sua intimidade, nunca se deixando seduzir, ao contrário de outros, pela vaidade das revistas sociais. Intuíram que as perceções estavam a mudar, que a inveja, cedo ou tarde, seria um sentimento protegido pelo "politicamente correto", que era preciso respeitar o choque provocado pelos contrastes de riqueza.

terça-feira, setembro 15, 2020

Frase

Somos responsáveis pelo que escrevemos, não pelo modo como os outros nos leem.

domingo, setembro 13, 2020

“Tal & Qual”


A história da imprensa de um pais ajuda muito a percebê-lo. Os jornais, com a sua ocasional ou prolongada popularidade, acabam por ser o reflexo do modo como foi possível encontrar fórmulas para responder mediaticamente às ondas, episódicas ou sustentáveis, de interesse por parte do público, neste caso leitor.

É na novidade, pelo rompimento com o que até então existia, que reside sempre o êxito das novas propostas. Foi assim com o “Expresso”, repetiu-se com o “Independente”, iria ser o caso do “Público”. Mais recentemente, o “Observador”, na era digital, surgiu um pouco nessa linha de rutura. Nuns casos, a neutralidade política é tentada, noutros impera aquilo que já vi qualificado como “jornalismo de seita”.

Se bem que não catalogável no mesmo clube de jornais, o “Tal & Qual” representou também, na sua época, uma forte novidade, em termos de modelo. Assumiu, em regra, uma assinalável independência no sempre rentável terreno “anti-establishment”, o que, com o peso de alguns nomes que surgiam a fabricar o produto, lhe garantiu, logo no lançamento, uma certa credibilidade.

Com um preço apelativo, o jornal era, esteticamente, um produto algo artesanal, tendo como trunfo o chocante das capas e algumas boas e inventivas “caixas”, num jornalismo que então esgravatava nichos nunca antes navegados, pelo menos daquela forma, servido por reconhecidos profissionais e jovens e talentosos jornalistas, à cata de uma oportunidades de realce, nem que fosse pelo chocante das propostas. Sempre me pareceu haver por ali muito do “tabloidismo” britânico, somado à herança implícita da ousadia do “Reporter X”, de muitas décadas anteriores.

Claro que o “Tal & Qual”, até pela própria natureza do jornalismo que fazia, não resistiu a prestar-se, algumas vezes, a ser instrumento de algumas “vendettas” (mas muito, muito longe desse “benchmark” do género que foi “O Independente”) quase sempre enroupadas por algum humor e ironia (sei do que falo, por experiência própria, por mais de uma vez). Mas não hesito em reconhecer que a sua iconoclastia representou, claramente, um tempo marcante no jornalismo português. Valeu muito a pena ter existido o “Tal & Qual”.

Gonçalo Pereira Rosa - cujo nome, neste caso equivocamente, traz memórias da família que foi dona de “O Século” - e José-Paulo Fafe lançaram-se agora à tarefa de recordar a aventura que foi o “Tal & Qual”. Para tal, convocaram memórias de muitos que estiveram ligados ao processo de criação e feitura do jornal.

Pereira Rosa tem-se revelado um prolífico e notável inventariador das memórias do jornalismo português, José-Paulo Fafe é um “vieux routier” da profissão, nela assumindo, como imagem de marca, um temível estilo acerado de escrita. Começou no “Tal & Qual”, daí encetando um percurso por vária imprensa e artes correlativas.

Com apoio das imagens de algumas primeiras-páginas marcantes da história do jornal, o livro - e aqui regresso ao que disse a abrir este texto - ajuda-nos bastante a perceber (ou a recordar) o Portugal desse tempo, da “jovem democracia portuguesa” (para utilizar uma expressão comum no Dr. Cunhal).

Por aquelas páginas, fotografias e textos, andam Soares, Cavaco e os respetivos séquitos e sucessores, os tempos do deslumbre com os dinheiros europeus e as negociatas anexas, os “cromos” da época, os escândalos e alguma coscuvilhice, inócua ou não.

Na minha opinião, sobrevivem hoje, no “Correio da Manhã”, reflexos de alguma herança jornalística do “Tal & Qual”, servida talvez por uma leitura diferente dessa coisa, às vezes despicienda, que é a verdade dos factos. Sei que a frase que acabo de escrever está longe de ser consensual, pelo que fica já aqui um pedido preventivo de desculpas às duas publicações, em especial à “falecida”.

Ao tempo do “Tal & Qual” vivia-se apenas um esboço tímido do ataque aos “famosos” e aos “poderosos” do mundo económico, atitude mediática que agora se banalizou, porque então tudo era feito com muito “respeitinho” por quem tinha “o bago”, termo que João da Ega dizia a Palma Cavalão, diretor de “A Corneta da Diabo”, jornal que, nem pelo facto de não ter existido, não deixou de ser um inspirador do “Tal & Qual”, particularmente em algumas fases deste - e mais não digo! 

(O Zé Paulo Fafe não deve ter gostado mesmo nada, em especial, dos dois últimos parágrafos, mas discutiremos isso numa não-tertúlia que consta que por aí anda).

Este livro, que li de um fôlego, é um interessante testemunho daquilo que foi um fresco jornalístico de um país e de um regime que então andava à procura de um registo para, em paz e democracia, poder “viver habitualmente” (para citar o Dr. Salazar), o que, feliz ou infelizmente, não está na nossa matriz de “um povo que não se governa nem se deixa governar”, como escreveu um general romano que, já desde os tempos da Ibéria, nos topava à légua.

sábado, setembro 12, 2020

Uma nova diplomacia?

 



Creio não ser muito clara, para muita gente, a importância da Assembleia Geral anual das Nações Unidas que, por esta altura do ano, tradicionalmente se iniciava em Nova Iorque. Em 2020, o evento inaugural, preenchido com as declarações nacionais, terá lugar apenas por via telemática.

Para além da própria ONU já suscitar muitas dúvidas quanto à sua real eficácia, sempre imaginei que aquele imenso fluxo de chefes de Estado e de governo, acompanhados de ministros e de séquitos infindáveis, num ambiente prenhe de retórica, conferia alguma imagem de inutilidade àquele exercício ritual. Alguma razão podia existia nesse juízo comum, mas o evento não era, necessariamente, uma mera perda de tempo. Esse período comum em Nova Iorque era regularmente aproveitado para uma imensidão de encontros bilaterais, que poupavam muitas viagens e gasto de tempo, no resto do ano.

O período ministerial da AG da ONU é, em especial para muitos pequenos e médios Estados, que não dispõem de uma rede relevante de relações externas, um tempo importante para objetivarem os seus interesses face a outros parceiros, na ausência de uma máquina capaz de assegurar uma presença contínua e eficaz pelo mundo, no resto do ano.

Mas é uma evidência que os dias da vida internacional estão muito diferentes. Permanecerão assim? Por quanto tempo uma AG da ONU, em forma “física”, estará condicionada? Não sabemos, ainda hoje, em que medida a prática telemática passará a ser a regra e a deslocação a exceção. A diplomacia vai assim mudar os seus métodos? Mesmo que o não faça de forma radical, quantos dos seus modelos tradicionais de operação vão ser afetados?

A pandemia que marca o mundo é uma incomensurável tragédia, mas todos aprendemos que é quase sempre nos momentos de dificuldade extrema, em que a gravidade das situações convoca a agudeza das atenções, que acabam por ser descobertas as soluções mais inventivas para os problemas.

Quem sabe se um aperfeiçoamento radical dos mecanismos de comunicação à distância, que a crise atual seguramente incentivará, não nos poderá vir a trazer, sem perda de eficácia, um salto qualitativo nos instrumentos de representação e de operação diplomática?

Se isso acontecer, vai seguramente acabar, ou atenuar-se muito, algum “glamour” que estava associado ao mundo tradicional da representação externa. Isso, aliás, já vinha a acontecer aceleradamente nas últimas décadas. Se isso puder vir a ser feito sem perda relevante de eficácia, com poupanças interessantes para o erário público, a vida diplomática poderá ganhar novos contornos.

É que, ao contrário do que alguns possam ainda pensar, é a defesa dos interesses nacionais, públicos e privados, que, em derradeira instância, justifica a existência da máquina de relações externas de um país. E em tempos de uma saudável exigência de transparência, cada vez mais a representação externa vai ter de se sujeitar a constantes juízos valorativos de custo-benefício. Uma nova diplomacia pode, assim, estar a caminho.

12 de setembro de 1973


Pela rádio, naquele dia 12 de setembro de 1973, tinham-nos chegado algumas notícias sobre o derrube violento do governo de Allende, no Chile, com a morte do próprio presidente e a tomada do poder pela junta militar.

(Meses depois, quando por cá se ouviu falar de “Junta de Salvação Nacional”, muitos de nós ficámos algo inquietos com o uso do termo).

Longe estávamos então de poder prever a onda de barbárie que iria ocorrer no Chile, nos anos seguintes.

Eu estava então na Escola Prática de Administração Militar, no Lumiar, prestes a concluir o segundo ciclo, logo passando a “aspirante a oficial miliciano”. Seria, aliás, o único daquele grupo que continuaria naquela unidade até junho do ano seguinte, como instrutor militar, com o 25 de abril pelo meio. 

Pelo meio da tarde, como era de regra, os soldados-cadete das especialidades de “Ação Psicológica” e de “Licenciados em Direito”, que somados não chegavam à vintena, “formavam” juntos na parada, antes de poderem ser autorizados a sair da unidade (a imagem reproduz o local). O Miguel Lobo Antunes, que era um de nós, lembrar-se-á bem desse ritual.

Naqueles escassos minutos em que nos alinhávamos antes de poder “destroçar”, dois dos nossos colegas, gente de uma direita radical extrema, crítica ‘pela direita” do regime de Marcelo Caetano, que acusavam de tibieza, manifestaram, em comentários, o seu vivo contentamento com a queda do regime de Allende, rejubilando com a instauração da ditadura militar em Santiago. 

Conhecendo-me, a mim próprio, à época, presumo que lhes terei lançado, como reação, alguns pouco carinhosos impropérios qualificativos. Tudo, diga-se, num ambiente de cordialidade que, não obstante, as profundas divergências políticas, marcava esse nosso convívio.

Um desses colegas foi então ao ponto de convidar quem, de entre nós, estivesse disponível, para ir a sua casa, não muito longe dali, beber uma “taça de champanhe” (ainda não tinha imperado a ditadura das “flutes”), para celebração da chegada dos militares ao poder no Chile.

Aquilo era dito num tom de brincadeira, convocando comentários e gracejos, mas os sentimentos de fundo de cada um de nós eram bem claros.

Nesse mini-pelotão, perfilado em frente à caserna, ouviu-se então uma voz forte, num comentário dirigido ao mais radical daqueles ultra-reacionários: “Tu tens muita sorte, sabes?”. Ele não sabia porquê. “É que se eu não tivesse entregado já a minha G3 no armeiro, não sei se não te dava um tiro!”. Todos sorrimos, até o visado.

Tudo aquilo era retórica. Mas o colega que se saiu com aquela frase quis mostrar como estava chocado com os defensores despudorados do golpe militar. O seu nome era António Franco, viria a ser um dos meus grandes amigos de vida e morreu há muito pouco tempo.

sexta-feira, setembro 11, 2020

A desordem dos trabalhos

Faço parte de uma tertúlia que não existe. Eu explico. Há um grupo de pessoas que, desde há meses (com a pandemia pelo meio), se reunem com o propósito de pôr de pé um determinado projeto. Encontramo-nos num escritório ou almoçamos num restaurante. Como é da lógica destas coisas, a conversa começa por generalidades, com historietas e comentários divertidos pelo meio. Só que a “desordem de trabalhos” é, por ali, a regra do jogo. Isto é: 90% do tempo conversamos, rimo-nos, divertimo-nos e, nos 10% de tempo que, a muito custo, nos resta, vamos levando alguma água ao moinho comum que inicialmente nos juntou. Aquilo é uma tertúlia? Pelo tom dos encontros, é mesmo uma bela tertúlia. Mas, com os diabos!, não devia ser só isso. Que fazer? - como dizia o velho Ulianov, a fingir-se de modesto. Não sei, mas nós lá vamos andando.

“Alô Nuno, passo às Antas!”


Acaba a “Tarde Desportiva” da Antena 1. Para alguns, começou por ser a “Tarde Desportiva da Emissora Nacional”, com a “Semper Fidelis” de John Philip Sousa como música de fundo: https://youtube.com/watch?v=okjN2krWDPw…. “Alô Nuno, passo às Antas!”, dizia quem?

11 de setembro, sempre!

Em 11 de setembro de 2001, eu era embaixador junto da ONU, em Nova Iorque A Assembleia Geral das Nações Unidas, cujos trabalhos deveriam iniciar-se no dia seguinte, sofreu uma forte perturbação e só se organizou quando a cidade e a segurança nos Estados Unidos recuperaram um mínimo de normalidade.

Em data que não posso precisar, mas ainda antes do Natal desse ano, numa livraria numa esquina da Park Avenue, cruzei-me com uma cara conhecida. Era Jose Miguel Insulza, então ministro do Interior do Chile. Três anos antes, ao tempo em que ele dirigia a diplomacia do seu país, eu tinha-o recebido como representante à Expo 98 e, no ano seguinte, como presidente interino, ele tinha-me acolhido no Palácio de la Moneda, numa visita oficial que fiz ao Chile.

Falámos, naturalmente, do trauma que Nova Iorque e aquele país atravessavam, depois dos acontecimentos de 11 de setembro. Nunca esquecerei uma frase que me disse: “Nosotros también tuvimos nuestro 11 de septiembre”. Era verdade. 11 de setembro de 1973 foi a data do sangrento golpe de Estado no Chile. Insulza fora membro do governo de Allende e esteve exilado vários anos, antes dos chilenos recuperarem a sua democracia. Como muita gente da minha geração, eu também não esquecia isso. 

Ao final do dia 11 de setembro de 2001, com as torres gémeas derrubadas, com Nova Iorque sob uma núvem infernal de poeira e o choque da bárbara agressão de que a América acabara de ser vítima pelas mãos do fanatismo, um jornalista português, de Lisboa, que me entrevistava para uma rádio, comentou: “Estou certo que, depois da experiência por que está a passar, o senhor embaixador nunca mais vai esquecer a data de 11 de setembro”. Acho que ficou surpreendido pela minha resposta: “Há muitos anos que eu não esqueço o dia 11 de setembro. Em 1973, foi a data do golpe fascista no Chile”. 

Posso revelar que, nos dias seguintes, recebi de Lisboa, desde logo do MNE, alguns remoques sobre aquela minha inusitada reação. É a vida de quem tem memória!

Pê Ésse

O PS tem por tradição ser extremamente generoso, no que toca a eleições presidenciais: dele emergem vários candidatos, mas ele próprio não tem candidato nenhum.

2020

"Deixa o moleque trabalhar, poxa. Eu trabalhei. Outro dia eu falei que aprendi a dirigir com 12 anos de idade. Eu já engraxei sapatos. Molecada quer trabalhar, trabalha" - Jair Bolsonaro.

2020. O ano em que o Brasil tem um presidente que diz, impunemente, este tipo de barbaridades.

Notícias de Fénix


Na última década, raramente a palavra Europa deixou de estar associada à ideia de crise. A “crise europeia” tornou-se uma expressão corrente, que, ao mesmo tempo, contribuía para absolver alguma impotência dos governos nacionais e associava as instituições comunitárias a um destino marcado pela irreversível incapacidade de estarem à altura daquilo que delas, dessa Europa, se esperava.

O tom dramático das cimeiras europeias, os sinais de desunião e de falta de sintonia entre os parceiros, a lentidão das respostas aos problemas, tudo isso foi dando da Europa comunitária a imagem de um paquiderme irrecuperável, marcado pelo gigantismo da sua máquina, pelo fim dos consensos que suportavam os antigos modelos de solidariedade.

A relativa surpresa que foi Brexit e o surgimento, no seio dos Estados membros, de alguns atores que colocavam em causa os próprios fundamentos do projeto europeu, que eram dados por comummente adquiridos, alimentou bastante essa ideia de declínio inexorável, pelo menos no seu modelo de destino coletivo.

A palavra “refundação” surgiu várias vezes, as sugestões de fórmulas de trabalho com integração diferenciada dos Estados em matéria de políticas foram muitas. A questão sobre se ainda estávamos todos “no mesmo barco” e, em caso de resposta negativa, se não seria oportuno tirar consequências institucionais disso, pairou muito por essa Europa. A bem dizer, ainda anda na cabeça de alguns, podemos ter a certeza.

A Europa tinha sido lenta e pesada na reação à crise financeira de 2007. Em sequência, por falta de vontade política, tomou decisões que muito contribuíram para o desencadear da crise das dívidas soberanas, que fraturou o continente, não apenas em termos de riqueza, mas igualmente no que toca ao discurso sobre a solidariedade, que se foi perdendo, de uma forma quase obscena. Essa mesma crise de solidariedade voltou a estar em causa aquando da questão dos refugiados e continua, aliás, a ser patente na debilidade das respostas face às pressões migratórias.

O Brexit parecia poder vir a ser uma machadada dramática no projeto, e as suas consequências estão ainda longe de medidas. A Europa era amputada de um membro que, nem por ser um parceiro relutante, deixava de ser um componente essencial do seu poder como entidade económica e política à escala global. Um tanto surpreendentemente, contudo, os 27 juntaram-se para responder ao Reino Unido, com uma agenda firme, bem estruturada e, essencialmente, comum.

Mas com as dúvidas sobre a China a adensarem-se no seu seio, com o “amigo americano” a minar décadas de cooperação e a ameaçar o sistema multilateral em que a Europa jogara todas as cartas, com a persistência de sensibilidades divergentes face aos “infratores” internos, com tensões de vizinhança fortes (Rússia, Turquia, Médio Oriente, Líbia) a testarem a sua vontade externa, a Europa mantinha-se num limbo político.

De súbito, surgiu a pandemia. As economias pararam, as sociedades entraram numa crise quase existencial, os medos aceleraram, os governos enquistaram-se no essencial, os sacrossantos limites macro-económicos foram esquecidos, o caleidoscópio das respostas sanitárias ameaçou a própria liberdade de circulação.

E, contudo, acabou por ser no meio desta imensa ameaça, aliás muito por virtude dela, que, quase como um coelho tirado da cartola, a Europa, sob liderança alemã e francesa, promoveu e conseguiu impor um modelo de resposta financeira, com contornos inéditos, que combina instrumentos clássicos com fórmulas inovadoras, rompendo tabus como a mutualização europeia de dívida e a possível criação de novos recursos.

Três mulheres, há que sublinhar, lideraram visivelmente esta resposta: a chanceler alemã, com uma coragem que lhe pode valer a História, uma presidente da Comissão Europeia com a vantagem pontual de ter a nacionalidade certa para dar força às suas propostas e uma líder do Banco Central Europeu que, parecendo embora estar longe do rasgo de um Draghi, soube encontrar soluções no seu âmbito, em consonância com o projeto.

Fénix renasceu?

quinta-feira, setembro 10, 2020

Toponímia


Aqui deixo uma historieta que um amigo português, residente em Londres, me contou um dia. 

Havia decidido oferecer à sua mulher uma estada e um passeio pela zona sudoeste da Inglaterra, por Cornwall. 

Desafiou um casal amigo, também português, a juntar-se-lhes. No "Michelin", ele havia descoberto um hotel que parecia muito simpático, numa pequena localidade, já próxima do cabo mais ao sul do Reino Unido.

Cornwall é uma região com paisagens magníficas, onde ainda nenhum dos quatro viajantes tinha ido. Esse meu amigo, contudo, já se deslocara bastante pela Inglaterra. Durante os meses que haviam antecedido a chegada da mulher a Londres, tinha passeado sozinho, quase todos os fins de semana, por várias zonas do país.

Porém, esse "sozinho" era um conceito que a mulher nunca "digerira" por completo, porque sempre alimentou uma suspeita residual sobre todo aquele afã turístico fora de Londres, a montante da sua chegada. Coisa de mulheres ciumentas, claro!

Nesse tempo sem GPS dos anos 90, as pequenas cartas das localidades que os Guias Michelin traziam eram de grande utilidade, para evitar perdas de tempo. A vilória onde iam alojar-se não era grande e o meu amigo havia-se dado ao cuidado de decorar o caminho que, desde a entrada no pequeno burgo, era preciso fazer para chegar ao hotel. E, por essa carta, até ficou a saber que o hotel ficava à esquerda, no fundo de uma determinada rua.

A viagem foi agradável, com uma conversa divertida, entre casais que, não sendo íntimos, se davam bem. Chegados à localidade, esse meu amigo, que conduzia, começou a cortar à esquerda e à direita, nas esquinas das várias ruas, recordando-se com precisão do mapa para que tinha olhado com atenção, na véspera. Os companheiros de viagem estavam surpreendidos com tanta destreza. A mulher ia em silêncio. A certo passo, o meu amigo teve um derradeiro momento de "glória", ao anunciar: "o nosso hotel fica na segunda rua do lado direito; ao fundo da rua, à esquerda". E ficava mesmo.

O casal acompanhante estava siderado! Como é que ele tinha "dado" com o hotel, conduzindo, rua a rua, sem hesitação, sabendo mesmo de que lado da artéria se situava? Não, não era possível que ele nunca tivesse ido àquela localidade! O meu amigo, para gozar o momento, ia adiando a revelação do truque que tinha utilizado. 

No hall do hotel, a mulher, de cara muito fechada, disse-lhe: "Com que então nunca cá tinhas vindo?" E disparou para o quarto, amuada, antes que ele tivesse tempo de revelar o engenhoso método de orientação utilizado. As explicações que depois lhe tentou dar caíram em saco roto.

O fim de semana havia ficado, em definitivo, estragado. O ambiente do jantar a quatro ressentiu-se também. Ao café, os dois maridos encostaram-se ao bar a tomar um whisky, tendo comentado entre si o incidente. 

Foi aí que o companheiro de viagem do meu amigo, críptico, se saiu com esta: "Será que a sua mulher foi influenciada pelo nome português desta zona?". O meu amigo hesitou um leve segundo, antes de se juntar ao companheiro numas boas gargalhadas, cuja razão não revelariam nunca às cônjuges. É que, em português, Cornwall, traduz-se por Cornualha...

(Já um dia aqui contei esta história. Por uma razão que não vem ao caso, repito-a hoje)

Os que perderam o Norte

A “righteousness” da Europa do Norte é um velho vício arrogante. Vimo-lo emergir nos tempos negros da Troika. Sempre por cá encontrou seguidores, como sabemos. Ressurgiu agora na pandemia, através de uma fauna de neo-libertários, à cata de argumentos políticos auto-flagelatórios

quarta-feira, setembro 09, 2020

As mentiras de Trump

Há uma ingenuidade na Europa quando alguns se admiram pelo facto dos americanos não “cobrarem” a Trump as suas mentiras. Os que “cobram” não votam nele, os que votam nele estão-se nas tintas sobre se ele mente ou não, porque o querem eleito contra a outra América que detestam.

Chega

O homem do Chega aproveita as notícias sobre as outras candidaturas, enche-as de adjetivos qualificativos polémicos e a comunicação social, contentinha, vai-lhe assim dando mais tempo de antena.

Máscaras

Muito embora haja que contar com a provável recusa de muita gente de se transformar em “garoto propaganda”, aposto em como ainda acabará por ser explorado o mercado da publicidade nas máscaras.

Bielorrússia

O autocrata de Minsk, ao raptar opositores (nada que não tenha aprendido com Putin), faz uma fuga em frente da qual dificilmente sairá bem. Mas não há a menor dúvida de que o país mais embaraçado com a situação que se vive na Bielorrússia continua a ser a Rússia.

Ainda o Avante

Admito poder estar a ver mal as coisas, mas acho que o PCP ganhou bastante mais do que perdeu com a “novela” da Festa do Avante. É que o seu “mercado” não são aqueles que nunca votariam no partido, mas, muito mais, os que acham que foi objeto de um “bullying” da direita. E foi.

O modelo sueco

A Suécia tem 10,23 milhões de habitantes e 5842 mortos por Covid. 

Portugal tem 10,28 milhões e 1849 mortos por Covid.

Talvez fosse interessante perguntar aos mortos suecos o que acharam da sua sábia estratégia nacional.

Presidenciais


Por algumas razões, achei que não devia escrever sobre as eleições presidenciais. Por outras, que sobrelevam as primeiras, entendi dever fazê-lo.

Não há, por ora, verdadeiras surpresas no horizonte eleitoral que se aproxima.

A candidatura quase clandestina, sem a menor força nem prestígio, que entretanto surgiu no espaço da direita radical, entre André Ventura e Marcelo Rebelo de Sousa, acaba por servir muito bem a este último. Como praticamente ninguém irá por aí, aos eleitores de direita que vivem desencantados com o atual presidente restam duas opções: passarem um domingo em casa ou optarem pelo candidato do Chega, apostando na antecipada certeza da derrota deste, mas expressando, dessa forma, o seu mal-estar com o atual presidente, aproveitando para lhe dar uma "lição", quiçá na esperança de lhe reduzirem o "score".

No outro lado do espetro, os comunistas terão, como sempre tiveram, o seu nome oficioso, para fazerem as contas às suas fidelidades. Como não haverá segunda volta, terão um dilema a menos.

O Bloco de Esquerda vai a jogo, como expectável, com Marisa Matias, a qual, há cinco anos, foi uma interessante surpresa, que, desta vez, não parece ter condições de se repetir. É que, com Ana Gomes no terreno, o eleitorado do "pintasilguismo" de nova geração, que já esteve com Manuel Alegre, que sempre oscila entre o Bloco e a esquerda do PS, passa a ter uma opção alternativa. Foi claro o afã de Marisa Matias em surgir a terreiro, como o foi a determinação de Ana Gomes em também marcar, desde cedo, o seu espaço. São, de facto, áreas políticas que, de certo modo, se sobrepõem. Haverá, entre as duas, um "womenagreement" de não-agressão, atentas eventuais cumplicidades criadas no Parlamento Europeu? Logo veremos.

Não parece fácil a posição de António Costa, em todo este cenário. Desde o episódio da Autoeuropa que ficou claro que, para ele, uma reeleição, quase oficiosa, de Marcelo Rebelo de Sousa, seria o mundo ideal. Mas, para tal, terá de ultrapassar alguns meses em que sabe que a uma parte, não desprezível e não desprezável, do PS não agrada a ideia de ser dada uma bênção automática a um recandidato ao qual parte importante da direita acabará por se ligar.

O eleitorado do PS é mais rebelde do que foi o do PSD, em 1991, que não tugiu nem mugiu quando Cavaco optou por apoiar Soares. Ana Gomes sabe que a sua candidatura representa o desconforto de muitos socialistas, perante a perspetiva de terem de votar em Marcelo. Pelos vistos, até de setores da direita do PS!

terça-feira, setembro 08, 2020

Vicente


Estou a sair de casa para o velório do Vicente Jorge Silva, com cuja notícia da morte acordei, esta manhã. Nunca fomos íntimos, longe disso, mas tratávamo-nos por tu, desde sempre, desde que, numa tarde de 1990 (caramba, já lá vão trinta anos!), o José Mário Costa me levou à Quinta do Lambert, onde então se preparava o “Público” e ele, Zé Mário, organizava o “livro de estilo” do jornal.

Lembrei então ao Vicente dois artigos que eu tinha escrito no “Comércio do Funchal”, nos idos de 1972/73, que ele dirigia. Claro que ele não se lembrava, mas foi simpático: “Ah! Foste tu quem escreveu isso?”. E passámos adiante. 

A espaços, no último decénio, íamo-nos encontrando numa divertida tertúlia jantante em Campo de Ourique, à qual ele conseguia ser mais relapso do que eu. Vi-o, com a família, por uma última vez, na (sua) Madeira, à saída de um restaurante do Funchal. Exclamou: “O que é que andas a fazer na minha terra?”. 

O que penso de Vicente Jorge Silva está neste texto que escrevi, há seis anos, aquando da saída do livro que Isabel Lucas lhe dedicou: “Em Portugal, goste-se ou não, há um jornalismo antes e outro depois do Vicente Jorge Silva. Para quem, como foi o meu caso, começou a ler o "Comércio do Funchal" logo depois da "revolução vicentina" de 1966, e que, a partir de 1973, o acompanhou no "Expresso", apreciando depois essa aventura que hoje é só saudade que foi a sua “Revista", e, finalmente, que seguiu com admiração a sua criação maior - o "Público" -, Vicente Jorge Silva tem um papel de exceção no mundo mediático nacional. Pelo meio, ficaram os filmes, a "Invista" (onde me recordo de ter escrito algo, de que já me não lembro) e muito texto de opinião, com a política caseira no centro, a cuja momentânea sedução ele próprio não escapou.”

Teresa de Sousa escreve hoje sobre a genialidade do Vicente. É pura verdade! Vicente Jorge Silva era uma personalidade genial, como houve poucas, em Portugal, nestas últimas décadas. E não estou a exagerar, podem crer!

Os “números” do Avante



Sob palavra de honra, por alguns instantes, quando, no sábado, olhei para este título do “Expresso”, não pensei na Festa da Atalaia. Por uma deformação política geracional, imagino que residual, fiquei com a súbita ideia de que o PCP havia decidido, por uma qualquer misteriosa razão, “esconder” números publicados do seu jornal histórico.

O fascínio pelo “Avante!”, mesmo para quem não era comunista, era uma realidade para muita gente, no tempo da ditadura. Aquele jornal de papel muito fino, que escondíamos de olhares curiosos, fazia parte da mitologia da vida de quem detestava o regime e que, mesmo não concordando em muita coisa com o PCP, reconhecia a importância da sua luta política e a inultrapassável dedicação dos seus militantes.
Tenho uma historieta ligada ao jornal “Avante!”, com o seu quê de caricato, ocorrida logo após o 25 de abril.

Estávamos em 6 de Maio de 1974. Num jornal diário, surgiu a notícia de que o PCP iria abrir a sua primeira sede, numa certa noite, na rua António de Serpa (aquela que iria ficar eternamente crismada, na memória política portuguesa, como "a António Serpa", simplificando o nome do poeta), a sede central que viria a ser substituída pela Soeiro Pereira Gomes.

Na notícia, dizia-se que o partido, por essa ocasião, iria pôr à venda exemplares de documentos clandestinos editados durante a ditadura, em especial exemplares do “Avante!” e do órgão doutrinário “O Militante”. 

Eu era, à época, um colecionador dedicado de publicações desse género, não apenas do PCP mas de toda a parafernália de formações políticas anti-ditadura que então existia, dispondo de uma apreciável coleção, a qual, naturalmente, ficaria muito enriquecida com o que o PCP viesse a disponibilizar.

Assim, ao princípio dessa noite, apresentei-me no segundo andar esquerdo do nº 26 da avenida António de Serpa, em Lisboa. 

Atenderam-me com simpatia, dizendo-me que teria de aguardar por alguém, o responsável que ia pôr o material à venda. Os minutos foram, entretanto, passando. As salas, quase vazias de móveis, começaram a encher-se de pessoas, que se iam reconhecendo entre si. 

Eu tentava imaginar os encontros anteriores dessa gente, figurava as suas atividades no mundo clandestino dos comunistas, presumia alguns nas batalhas eleitorais em que se haviam envolvido, do MUD e de Norton de Matos a Humberto Delgado, de Ruy Luis Gomes à CDE. Mas, por muito que procurasse, nessas caras, figuras que tivesse encontrado no II Congresso Republicano de Aveiro, na célebre sessão do Palácio Fronteira ou por ocasião da Plataforma de S. Pedro de Muel, eu não conhecia ninguém. E continuava por ali sozinho. 

A certo momento, dei-me conta do ridículo da situação. Com efeito, ali estava eu, por um motivo mais do que fútil, numa festa que não era minha e que, para aquelas pessoas, era uma verdadeira ocasião histórica. É que aquela era a data em que um partido que entrara na clandestinidade 48 anos antes, cujos militantes haviam sofrido como nenhuns outros a violenta repressão da ditadura, abria, na legalidade, a sua primeira sede. E eu era, nesse evento, um verdadeiro intruso. 

Começava a ter a sensação, porventura exagerada, de que essa minha solidão já deveria estar a ser olhada, com estranheza, por alguns. É que eu não procurava estabelecer contactos, com receio que alguém me perguntasse qual era a minha relação com o partido, que não era nenhuma. Discretamente, fui-me aproximando da porta de saída.

Foi então que dei, de frente, com uma cara conhecida, um antigo quadro do movimento associativo de Medicina, que eu cruzara em várias "guerras" universitárias, que todos dávamos então como ligado ao PCP. Olhou para mim, com algum espanto, sabedor que aquela não era a minha "praia" política, seguramente perplexo com a minha presença no seio dessa festa do seu “Partido" - como, à época, a maioria de nós designava o PCP. 

Imagino a risível figura que eu devo ter feito, quando lhe revelei: "Vinha aqui comprar "Avantes!" antigos, que li que iam ser postos à venda...". E saí, escada abaixo.

segunda-feira, setembro 07, 2020

Força!


“Então tu viveste quatro anos em Londres sem aqui vires?”

Eu estava quase envergonhado. Eu, que me gabava de ter andado todo esse tempo com um guia anotado dos alfarrabistas londrinos no meu carro com volante à direita, que achava que, nesse início dos anos 90, tinha conhecido todas as Dillon’s e Waterstones da cidade, de cima a baixo (diga-se que, na prática, elas eram todas iguais, como o eram as Ryman), que descobrira algumas estantes da Foyle’s onde parecia não ter ido ninguém há anos, que coscuvilhava tudo o que eram casas de livralhada em Charing Cross, que me passeava pela Hatchard’s com a mesma cerimónia com que ia beber chá ao vizinho Fortnum & Mason, eu, afinal, não conhecia aquela formidável John Sandoe.

Uma livraria extraordinária que sempre havia estado ali, ao lado da “swinging sixties” King’s Road, do mais desinspirado mas mais eficaz armazém de Londres, o John Lewis, a dois passos da trotante Sloane Street, a duas ou três esquinas de um hotel (mais do que “de charme”) que, por muito tempo, havia sido um dos meus segredos na cidade, o “11 Cadogan Gardens”, até que lhe deu para disparar nos preços.

Pois é! Foi apenas nessa visita a Londres, para o jantar da Crabtree de 2009, quando já vivia em Paris, que o António me fez descobrir a mais amável livraria de Londres.

Hoje, o António não quer saber nada disso e pensa que a vida lhe pregou uma partida que não estava no “script” da dita.

Eu nunca esqueci que, um dia, perto do Natal de 2011, num hospital público parisiense, comigo saído da anestesia de uma operação delicada, com a minha família impedida subitamente de poder estar por perto, a primeira cara com que deparei foi a do António, que já então vivia, como eu, em Paris, e que me disse, com um sorriso amigo e bom, de que lembro para sempre: “Acorda, homem!”.

Mas ele hoje não quer ouvir falar em hospitais! Força António! Força Carol!

domingo, setembro 06, 2020

A máfia lusa


Uma bela série que passa na RTP2, filmada em Corfu, na Grécia, fez-me recordar uma semana que passei naquela ilha grega, há mais de 20 anos, integrado numa tertúlia política - o Symi Symposium - coordenada por Georgios Papandreou, à época ministro grego dos Negócios Estrangeiros.

Tal como veio a acontecer em outros anos, tinha sido convidado a participar nesse ciclo de debates sobre temas internacionais. Nesses exercícios, pagávamos do nosso bolso as viagens para a Grécia e duas fundações, uma grega e outra sueca, encarregavam-se depois por completo de nós, durante toda a estada no país - viagens internas, hotéis e refeições. Os debates tinham lugar, em cada ano, em locais diferentes do país. Em 1999, foi em Corfu.

Os cerca de trinta participantes, de quase tantas outras nacionalidades, tinham vindo conjuntamente de Atenas, de avião. À chegada ao hotel, os quartos já nos estavam atribuídos, pelo que cada um de nós se ia aproximando do balcão, para receber a chave.

Quando chegou a minha vez, verifiquei que houve uma pequena hesitação: “Senhor Costa? Aguarde um momento, por favor”. Fiquei intrigado. Vi então sair de um escritório um cavalheiro que, rodeando o balcão, se dirigiu a mim, em português, dizendo-me: “Seja bem vindo, eu sou português, diretor do hotel e queria dizer-lhe que tenho muito gosto em que fique instalado numa suite igual à do ministro Papandreou”.

Eu estava um pouco embaraçado pela discriminação positiva de que era objeto, tanto mais que os meus colegas olhavam já com alguma estranheza para aquela abordagem personalizada. Agradeci muito a gentileza e preparava-me para zarpar discretamente para os aposentos - que, vim a constatar, eram, de facto, deslumbrantes - quando o diretor, alto e bom som, no meio de toda aquela gente, chamou com voz forte um empregado para levar “a bagagem do senhor Costa à suite número tal”. Caí então no centro dos olhares, alguns irónicos, outros talvez invejosos, hesitante sobre se haveria de esclarecer que o privilégio era devido à boa “máfia” portuguesa que se espalha pelo mundo. Optei por calar essa cumplicidade.

Às vezes, penso que seria muito bom voltar de novo a Corfu, desta vez sem ter de participar em debates, de manhã cedo ao fim da tarde, durante todos os dias de estada, mas apenas para poder gozar as praias. Com o ambiente em que o mundo entretanto entrou, duvido muito que o venha a fazer. E “suites”, isso nem vê-las!, a menos que o nosso simpático compatriota ainda por ali tenha ficado.

sexta-feira, setembro 04, 2020

Saudades da Gôndola


Hoje surgiu-me na net esta interessante imagem da frontaria do restaurante “La Gondola”. Naquele espaço, quase em frente à Gulbenkian, vão agora surgir escritórios. 

A Gôndola nunca foi um marco gastronómico, longe disso, mas tinha uma indiscutível graça. Lembro-me de que, por ali, operavam umas empregadas de bata preta e avental branco, atavio de que, em Lisboa, só recordo usado em “A Quinta”, uma também “falecida” casa, situada no fim da ligação do alto do passadiço do elevador de Santa Justa para o Carmo.

Num belo dia como o de hoje, almoçar em boa companhia no jardim da Gôndola (lá dentro, o espaço era desinteressante, salvo o esconso bar à entrada) seria bem simpático. Mas nada de nostalgias: há hoje, por essa Lisboa, um mundo de sítios bem agradáveis para se almoçar ao ar livre.

quinta-feira, setembro 03, 2020

Cândida Pinto


A competência suscita sempre forte inveja à mediocridade. 

Um abraço solidário à Cândida Pinto, de um utente do serviço público de televisão.

BB


Gonçalo Pereira Rosa lançou, num artigo no “Público”, a ideia de ser dado o nome de uma rua de Lisboa a Baptista-Bastos.

Nada de mais justo!

Saloios

Se há algo que, pelas piores razões, define um certo país é a corrida de muitos portugueses a mudar as placas de matrícula dos seus carros, para deixarem de ter visível a antiguidade dos mesmos.

Pudor

Há poucas coisas que me irritem mais do que ouvir pessoas falar mal dos partidos que abandonaram. 

É uma atitude que tem a “elegância” de divorciados a falarem mal dos ex-cônjuges. 

A quem se separa do que esteve afetivamente próximo é, no mínimo, exigível o recato do silêncio.

Covid

Ou muito me engano ou a recusa em usar a app Stayaway Covid vai passar a ser, para muitos, uma patética forma de “resistência cívica”. 

Há quem ainda não tenha conseguido perceber que o vírus não tem qualquer ideologia, tal como o seu combate.

Cidadania

Espero que o programa de educação para a cidadania seja equilibrado, embora me pareça óbvio que nunca será 100% consensual. Mas uma sociedade que se preze tem de assegurar que a sua juventude é educada nos seus princípios básicos, desde logo constitucionais.

Venham lá essas teorias!

A questão do dia, para os adeptos das teorias da conspiração, é descortinar a razão pela qual este governo, tão “esquerdalho”, foi afinal o primeiro a autorizar um curso de Medicina numa universidade privada - e logo a Católica! Para malta que pensa assim, nunca nada é por acaso!

Claro está que, fora de questão, fica a hipótese da proposta ter sido aceite com base nos seus méritos. Isso não passa pela cabeça dessa gente.

quarta-feira, setembro 02, 2020

Trás-os-Montes no Avante




Nunca como este ano a Festa do Avante se tornou tão polémica. Tendo o debate começado por boas razões, de ordem sanitária, logo se percebeu que o argumento acabou utilizado como arma de arremesso por quantos diabolizam o PCP.

E se, na primeira questão, alguma razão se poderia reconhecer aos contestatários da festa na Atalaia, já o peditório anticomunista subsequente tresanda a áreas políticas insalubres.

Tendo um grande respeito pela luta dos comunistas contra a ditadura marcelo-salazarista, estive na primeira Festa do Avante, realizada na FIL, em Lisboa, em 1976. Depois, em 1978, voltei à festa, já então no Jamor. E, finalmente, em 1986, a uma outra edição, na Ajuda. Nunca estive no local onde o evento agora tem lugar, na Atalaia.

Mas a que propósito surge o título do artigo, perguntará o leitor? Por três razões.

Da festa no Jamor, guardo na memória uma cena passada no stand transmontano onde, naturalmente, fiz questão de ir jantar. Encontrei então por lá um velho colega de escola primária, de Vila Real, que eu sabia ser responsável do PCP local. Surpreendido com a minha presença, e suspeitando-me - e bem! - como mero "turista político", fez-me a pergunta: "Vieste cá à festa por vir ou vieste porque devias vir?". Saiu-me esta resposta: "Olha! Vim porque me apeteceu. E tu? Foste obrigado?" Não me recordo o que me respondeu.

A segunda nota transmontana prende-se com o pão da excelente padeira de Mirandela, de seu nome Seramota, que, ao que sei, todos os anos assegura uma presença comercial militante na festa comunista. No ano passado, quando, por esta altura do ano, passei por Mirandela para me abastecer do seu produto, fui informado de que a senhora estava de serviço na Atalaia.

A Festa do Avante tem ainda uma interessante nota final, bem ligada a Trás-os-Montes, terra onde as ideias comunistas nunca tiveram um acolhimento eleitoral por aí além. Foi em Tuizelo, no distrito de Bragança, que os comunistas portugueses descortinaram a dança popular que, desde os anos 80, abre e fecha os seus comícios e tempos de antena, a Carvalhesa. A música acabou por se transformar num verdadeiro segundo hino do PCP, muito pela mão de Rúben de Carvalho, uma simpática e dialogante figura, que há mais de um ano saiu da cena da vida e que, por muito tempo, foi a principal cara da Festa do Avante - e não escrevo "alma" por razões óbvias.

Todos os anos, a Festa do Avante termina com toda a gente a dançar a Carvalhesa. Só podemos esperar que, este ano, o façam em total segurança.

terça-feira, setembro 01, 2020

De verde


Foi vestido de verde que conheci o António Franco, que nos deixou há algumas semanas e que hoje vai ser evocado pela família. Ele também estava de verde. Foi em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, na segunda incorporação de 1973.

Não estávamos sozinhos. Éramos umas centenas, creio que 900, todos vestidos do verde da farda, recém tirados à vida civil, por um período que não podíamos prever, mas que podia ir até mais de três anos, com guerra colonial em África pelo meio, para a esmagadora maioria daqueles que por ali estavam, nas lúgubres traseiras do convento que ainda não tinha obtido glória por via literária.

Éramos muito diversos. Havia por ali gente casada, com filhos, curso superior, vida organizada, alguns a aproximar-se dos 30 anos, ao lado de uns miúdos a quem a tropa tinha apanhado cedo, logo após a vintena. O António estava no grupo dos primeiros. Eu estava no meio da tabela etária, já empregado, prestes a casar.

Creio que foi um primo do António - engenheiro, Ribeiro, de seu nome, que perdi de vista desde então - quem nos apresentou. Despachada a “tropa”, saídos com alívio das tarefas castrenses, íamos jogar cartas e roleta para uma casa que o Vasco Bramão Ramos tinha na Ericeira.

O António, ao que recordo, terá trazido a roleta. As cartas existiam lá por casa. Eu levava apenas uma irritada irreverência que disfarçava um mal-estar crónico pela condição militar, que nunca me passaria. Esses fins de tarde só não eram de total diversão porque havia que estudar para os testes “americanos”, sem o êxito nos quais nos arriscávamos a perder a saída do fim de semana. Ali se aprendia que o sargento da guarda “rende e ronda”, decoravam-se magnas questões das temáticas da “ordem unida” (a coreografia militar na parada), inteirávamo-nos das subtilezas do funcionamento da culatra da G3 e de outros temas tão ou menos apelativos do que esses.

Julgo não macular postumamente a folha militar do António se agora revelar que ele tinha conseguido obter, por artes que nunca cuidei em saber, para não ter de partilhar o pecado, os testes do ciclo anterior ao nosso - e facilmente se perceberá que a imaginação militar nunca iria ao ponto de mudar o conteúdo das perguntas, de um ciclo para o outro. Aquele quarteto de soldados-cadete não só comungava esse imenso segredo como era mesmo obrigado, no momento do teste, a errar deliberadamente em uma ou duas questões, para não parecer excessivamente “perfeito”. Para que conste, nunca falhámos um fim de semana em casa.

O António, sem surpresa, era o soldado-cadete (já não me recordo como isso era designado) que sempre coordenava e apresentava o seu pelotão, bando de trinta cadetes em que se dividem as companhias. Ficou famoso pelo garbo com que o fazia, num estilo sempre irónico.

Um dia, creio que nas festas de Mafra ou da unidade, em que todos fomos obrigados a mudar de farda umas quatro ou cinco vezes, para atender à diversidade daa funções, ao ser inquirido na formatura da saída, por um tenente “chicalhão” (dizia-se dos milicianos que gostavam mesmo daquilo, ao ponto de algum sadismo sobre quem era comandado), como é que apreciara a forçada agitação de vestes durante a jornada, o António crismou uma frase que ficou nos anais do ciclo: “Saiba vossa senhoria, meu tenente, que, ao ter de me vestir e despir tantas vezes, no mesmo dia, por um momento senti que esta venerável Escola Prática se assemelhava a uma casa de meninas, sem qualquer ofensa para estas últimas, bem entendido!”

Mafra acabou, depois desses três meses que registei como dos mais sinistros da minha vida, mas que o António, surpreendentemente, achou divertidíssimos. E, sempre de verde, lá marchámos, salvo seja, para a Escola Prática de Administração Militar, no Lumiar, em Lisboa.

É que, dos 900 bravos cadetes de Mafra, nove havíamos sido os felizes eleitos, por testes psicotécnicos, para a simpática especialidade de Ação Psicológica, uma área em que se era “operacional” pela palavra. Desses nove, os primeiros três classificados ficariam garantidamente na “metrópole”, sendo os restantes seis destinados às “províncias ultramarinas”, mas sempre acolhidos no conforto dos respetivos quartéis-generais, onde a “Apsic”, com razão, era uma tarefa muito invejada.

Posso revelar que, ao final desses mais três meses de “instrução”, o António, o Jaime Nogueira Pinto e eu fomos classificados para não pôr os pés nas “possessões ultramarinas”. O Jaime, coerente, não aceitou e quis logo avançar para Angola “rapidamente e em força”, o António foi requisitado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (o que era possível, por não ter sido mobilizado para o “esforço de guerra”) e só eu fiquei pelo Lumiar, a dar aulas de patriotismo oficioso, até que Abril se proporcionou.

Tinham assim terminado os seis meses em que eu e o António Franco andáramos juntos, de verde, quase todos os dias. Ele voltou, entretanto, às gravatas das Necessidades, “farda” que, por sugestão dele, vim também a envergar, tempos mais tarde. O resto é sabido.

Tenho uma forte saudade do António, é tudo quanto se me oferece agora dizer, para usar o gongorismo que ele tão bem manejava, para raiva de muitos e gozo de quem lhe apreciava o humor, que nunca o abandonou até ao fim.

Parabéns, concidadãos !