quinta-feira, junho 18, 2020

O carimbo


Raro era o dia, nesses anos 80, em que Portugal não era zurzido pela imprensa angolana. O antigo colonizador funcionava como o bombo da festa de uma Angola política radical que atravessava um penoso quotidiano de guerra, com o ”imperialismo americano”, inimigo principal, e os “racistas sul-africanos”, que fustigavam militarmente o sul do país, responsabilizados pelo apoio aos seus “lacaios” da Unita. Portugal, e, em particular, Mário Soares, eram uma “bête noire” de estimação, um país erigido em adversário colateral, denunciado como estando ao serviço da estratégia “yankee”. O nosso país era punido pela História e, no imediato, pelo facto de acolher os inimigos do MPLA. 

Ser diplomata português em Angola, por esses dias, não era coisa fácil, podem crer. Tentar ter uma relação normal com entidades oficiais ou oficiosas angolanas era coisa bem difícil, por muito que a empatia pessoal com os nossos interlocutores locais tentasse, e às vezes conseguisse, impor-se. Contudo, quase tudo o que oferecêssemos, como gestos de simpatia e cooperação, era sempre objeto de grande escrutínio, e quase sempre rejeitado.

O “Jornal de Angola” e a agência noticiosa Angop eram as pontas de lança de uma campanha contínua, que tentávamos desarmar, quase sempre sem grande sucesso, dado que ambas as entidades funcionavam como o braço escrito da máquina de propaganda do regime. Os editoriais inflamados, aliás escritos, quase sempre, num irónico português imaculado, as diárias notícias sobre a cumplicidade lusitana com os inimigos do regime (sinónimo de inimigos do país), tudo isso era matéria para um muito difícil “combate”, por parte da embaixada de Portugal.

Por uma qualquer razão, eu acabava por ser, de entre os diplomatas da pátria que por ali andavam, aquele que tinha melhor relação com os jornalistas angolanos. Alguns iam a minha casa, outros acompanhavam-me em eventos públicos, talvez absolvidos pela imagem “de esquerda”, de “homem do 25 de abril”, que eu ainda projetava. Usufruia assim de um estatuto ambíguo, de que eu disfrutava junto de algumas entidades mediáticas angolanas. Ainda hoje estou para perceber como isso “funcionava” realmente, nos setores oficiais angolanos.

Um dia, consegui o ensejo de almoçar com um dos responsáveis da agência oficial de notícias, a Angop. Era um homem ideologicamente férreo, nada aberto a concessões na ortodoxia oficial, que defendia e projetava. Durante a refeição, referi a “cooperação”, palavra muito em voga, que Portugal podia prestar à agência. Ficou, desde esse momento, muito claro que estava fora de causa um intercâmbio informativo com a nossa Anop. A linguagem, a orientação, o estilo - tudo impossibilitava um entendimento.

A certa altura da conversa, falou-se de materiais de trabalho. E referiram-se os dicionários, um dos meus eternos “vícios” (sou um colecionador, quase imbatível, de dicionários de língua portuguesa, portugueses e brasileiros). “Não têm necessidade de dicionários, lá na Angop?”, lancei, como isca. Vi os olhos do meu interlocutor interessados e logo fui a jogo: “Se quisessem, estou certo que a Cooperação portuguesa poderia oferecer-vos uma dúzia de dicionários, para a vossa redação”.

Vi que o nosso homem estava a ficar verdadeiramente interessado. Não sei que dicionários haveria pela Angop. Talvez um Torrinha ou um Lello, seguramente que não um esplêndido Moraes ou mesmo um Cândido de Figueiredo. E o que é que poderia haver de mais “neutral” do que um dicionário? Nunca a aceitação dessa oferta poderia ser interpretada como uma cedência ao “lacaio do imperialismo” que Portugal era, oficialmente, para a Angola de então. Ouvi, então, com prazer: “Seriam muito bem vindos uns dicionários de língua portuguesa”. Não deixei “cair a bola” e inquiri: “Que dicionário gostariam de ter?” O da Porto Editora foi a escolha.

Regressado ao escritório, informei logo o embaixador António Pinto da França e, de imediato, seguiu um “telegrama” para Lisboa a pedir a dúzia requerida de dicionários. A bem dizer, era uma “lança em África”, na verdadeira aceção da palavra, uma brecha hábil na recusa empedernida, por parte de Angola, de aceitar gestos de simpatia por parte da Cooperação portuguesa.

Semanas mais tarde, pela mala diplomática, lá chegaram os dicionários da Porto Editora. E logo seguiram para a Angop, embora com uma pequena “pausa” na embaixada. Já explico...

Desde há uns meses que, numa iniciativa que tinha saído da genialidade do meu colega José Stichini Vilela, conselheiro da embaixada, nós distribuíamos, todas as semanas, pelas empresas portuguesas sediadas em Angola, exemplares dos jornais “A Bola” e o “Record’, que nos chegavam pela mala diplomática.

A “fome” local de imprensa desportiva portuguesa era imensa, entre os expatriados nacionais, vindo a alargar-se a setores angolanos que, por muito que se obstinassem em atacar Portugal nas conversas do dia a dia, acabavam por ter um inescapável tropismo afetivo pelos principais clubes de futebol portugueses, que ultrapassava todas essas barreiras. 

Ao final de algumas semanas, tivemos mesmo de reforçar a “dose” de jornais desportivos portugueses. No dia da mala diplomática, ao final da manhã, criava-se, à porta da embaixada uma multidão de “utentes”, à espera dos exemplares dos jornais. 

Sabíamos que, em algumas empresas e entidades, era aposta uma folha nominativa de consulta, circulando cada exemplar por várias pessoas em Luanda, “migrando” depois para localidades da província. Alguns gabinetes de ministros fizeram discretas diligências para serem beneficiados com um exemplar. Foi um êxito!

Na minha qualidade de responsável na embaixada pela área da Cooperação, eu tinha entretanto “inventado” um imenso carimbo, em fortes maiúsculas, que era aposto nas primeira, última e páginas centrais dessas dezenas de exemplares da imprensa desportiva nacional, com os seguintes dizeres” “Oferta da Embaixada de Portugal”.

Nos dias em que a mala diplomática chegava, os jornais iam logo para a sala do Silva, um funcionário da embaixada, que era quase cego, e que, por uma boa meia hora, quase sem olhar, fazia ressoar por toda a casa o batimento imperativo daquele carimbo, para que o nome da embaixada ficasse indelevelmente associado àquela distribuição benévola. Para que dali pudéssemos retirar algum subliminar crédito político.

Mas voltemos aos dicionários. Confesso que não resisti. Pela minha própria mão, antes de os enviar para a Angop, enchi várias (dezenas, confesso!) páginas de cada dicionário com esse imenso carimbo: cada vez que um jornalista da Angop viesse, no futuro, a verificar o significado ou a grafia exata de uma palavra, na nossa língua comum (em Angola, o português é o de Portugal, pelo que o Aurélio ou o Caldas Aulete, dicionários brasileiros, eram menos práticos), ali estava a menção inapagável de que isso se tinha ficado a dever à simpatia da embaixada do país que a produção informativa da agência continuava diariamente a diabolizar. 

A vingança serve-se fria, embora, com o clima de Luanda, a metáfora fosse ali de mais difícil aplicação.

quarta-feira, junho 17, 2020

Jerónimos


Junho de 1985. Eu estava colocado na nossa embaixada em Luanda. A última coisa com que a televisão angolana se preocupava, com toda a certeza, era com a cerimónia que reuniu então, nos claustros dos Jerónimos, os líderes europeus, para a assinatura do tratado de adesão de Portugal às Comunidades Europeias. Os pormenores do evento só me chegaram dias depois, pelos jornais portugueses, que me vinham pela ansiada mala diplomática semanal, num país onde estava proibida a venda da imprensa internacional.

Não tenho a menor dificuldade em confessar: eu não era um grande entusiasta da adesão. A minha perspetiva política dessa época levava-me a ser muito reticente quanto às perdas de soberania que essa integração já então significava (e coloco o "já" porque a densidade das políticas europeias da época era ínfima, comparada com o que é hoje). Temia, em particular, que entrássemos, por essa via, num espartilho político-económico que limitasse a capacidade de decidirmos sobre o destino da nossa vida interna, que colocasse em causa os valores constitucionais plasmados, menos de uma década antes, numa Constituição que eu tinha por barreira sacrossanta às investidas liberais e anti-sociais.

Não me recordo, por isso, nesses dias cálidos de Angola, de ter sentido uma particular emoção ao saber do ato que teve lugar nos Jerónimos. A aventura europeia não me animava. Temia mesmo o pior. Enganei-me, redondamente.

Na década seguinte, fiz a minha aprendizagem prática da Europa: em cargos técnicos em Lisboa, em frequentes deslocações para negociações em Bruxelas, em anos de vida no ambiente anti-europeu de Londres, como subdiretor-geral dos Assuntos Europeus, até integrar o “grupo de reflexão” para a revisão de Tratado de Maastricht. Quem me diria, nesses dias em que o meu endereço luandense era a rua Karl Marx, que, logo no fim dessa década, iria ser, por mais de cinco anos, membro do governo encarregado das relações com a Europa. As voltas que o mundo dá!

Na passada segunda-feira, ao intervir naqueles mesmos Jerónimos, numa cerimónia em que saudámos a data de há 35 anos, evoquei, com alguma ironia auto-flagelante, o europeu reticente que havia sido, até chegar ao europeísta convicto que hoje me sinto.

Naquele ambiente que bem recorda quantos nos abriram os caminhos marítimos para o mundo, não pude deixar de lembrar uma pessoa de quem, há pouco mais de três anos, ali mesmo nos tínhamos despedido, que nos ensinou o caminho político para a Europa das liberdades: Mário Soares.

terça-feira, junho 16, 2020

Um nó na garganta


Sou um pouco hipocondríaco. Costumo dizer que sou um hipocondríaco “feliz”, porque, às vezes, vou tendo umas maleitas que dão alguma razão às minhas preocupações. Por sorte, tenho estado, ao longo da vida, quase sempre errado quanto à gravidade daquilo de que acho que padeço. Pelo menos, tem sido essa, até hoje, a conclusão dos médicos. Ainda bem para mim, ainda mal para a minha hipocondria.

Um dia, vai para trinta anos, num hotel campestre na Isle of Skye, na Escócia, acordei com um nó na garganta, com dificuldade de engolir. Entrei em pânico e comecei a “empreender”, como se diz na minha terra. Liguei logo para o meu médico, em Londres.

Era um clínico geral, com consultório na, à época na moda, Sloane Street. Fora-me recomendado por alguém da embaixada. Era (então, porque passaram 30 anos) um homem novo, simpático, sempre com um sorriso cordial, com quem estabeleci, desde o primeiro dia, uma fácil empatia, a qual, contudo, não dava direito a descontos. E não era um médico barato, mas o seguro de saúde da Bupa (do que eu ainda me lembro!) cobria boa parte do preço das consultas. 

Angustiado, expliquei, o melhor que pude, o que sentia. “O que é que o meu amigo anda a fazer na Escócia?”, perguntou-me o médico. Expliquei que tinha alugado um carro e andava, há uns dias, num circuito, meio turístico, meio gastronómico. Do outro lado da linha, veio uma questão terrível: “Você está convencido que tem qualquer coisa de grave na garganta, é isso?” Confessei que sim, notando, contudo, que a pergunta tinha alguma ironia associada.

“Olhe, Francisco! Ainda me lembro da nossa última conversa, aqui no meu consultório. Falou-me de um restaurante que tinha aberto em Notting Hill. Já lá fui e é bastante bom. E de outro, com cerveja “trappiste”, que tinha descoberto em Camden Town. Ainda não consegui ir. Imagino que, tendo estado em Edimburgo, tenha ido ao Martin. Acertei? E tem também andado a visitar destilarias de whisky, não é? (Era). O que você tem, meu caro, é o produto de um refluxo do estômago. Vá a um Boot’s, peça um anti-ácido qualquer e, em meia dúzia de horas, fica fino. Está na Isle of Skye? Ó homem, não perca a destilaria do Talisker! Se gosta de whiskies com “peat”!”

Também gostava. Fui ao Boot’s, fui à destilaria e fui gozar a Isle of Skye. E, de facto, não era nada.

segunda-feira, junho 15, 2020

A Europa nos Jerónimos


Costumo dizer que sou um europeísta pela razão. Não faço parte de quantos, desde muito cedo, sentiram essa pulsão agregadora, em torno da bondade essencial de um projeto comum, vocacionado para abranger o continente em que vivemos, sob uma filosofia salvífica de concórdia, de paz e de progresso. Não tive essa fé. Pelo contrário, fui educado e, conscientemente, vi-me por muito tempo como um soberanista, porque essa era a geografia do meu patriotismo.

E por que é que isso acontecia comigo e com outros que pensavam como eu? Porque o espaço nacional era aquele onde sentia mais protegida a capacidade de, com os meus, com os cidadãos com quem partilhava este retângulo, poder ajudar a definir o nosso destino coletivo. Era a questão do peso da voz nacional nas decisões que então me preocupava: sermos nós a autodeterminar o nosso futuro. Para lá do Caia, os interesses eram outros, só pontualmente coincidentes com os nossos. E os nossos interesses é que contavam. Só esses.

Imagino que o primarismo desta leitura, que deliberadamente repito nesta cerimónia, quase em sentido contrário àquilo que ela própria simboliza, possa chocar alguns. Mas quis trazer aqui esta perspetiva, porque, tal como o Senhor Ministro costuma dizer em relação às ideologias que no passado frequentámos, não renego as minhas origens e sou mesmo herdeiro delas.

É essa mesma perspetiva que me permite relevar duas importantes lições que entretanto aprendi. A primeira, é uma lição de vida.

Há mais de meio século, numa aula, tive a ousadia de perguntar ao professor Adriano Moreira se ele via como possível, dali a três décadas, que as então províncias ultramarinas pudessem vir a ser independentes. Adriano Moreira disse-me que me daria uma resposta se acaso eu lhe pudesse definir, ali e agora, qual era o real significado do conceito de independência, ao fim dessas três décadas. Era uma hábil fuga à pergunta, mas era também a constatação de uma imensa verdade.

A independência mede-se hoje por padrões muito diferentes daqueles que então delimitavam a autonomia decisória do Estado-nação. Ser um Estado soberano, à luz do Direito Internacional, não é um certificado de independência, a menos que nos contentemos com a formalidade. Portugal seria hoje mais independente se não fosse membro da União Europeia? Qual seria o futuro do nosso país fora da União Europeia?

A capacidade de gerir o nosso destino, ao contrário do que alguns poucos ainda teimam em pensar, foi bastante potenciada por aquela que foi a mais importante decisão tomada pelo nosso país, na ordem externa, no último século - o pedido de adesão às Comunidades Europeias. 

Como iríamos sobreviver, como país, fora da União Europeia? Embora me pareça quase um exercício de ficção científica imaginar o que isso seria, sempre poderemos dizer, com orgulho patriótico, que não são 35 anos que mudam o destino de quase 900. Mas todos sabemos que nunca seria a mesma coisa.

Estamos aqui num ambiente de convertidos, pelo que não preciso de explicar o óbvio: e o óbvio é que, se não tivéssemos aderido em 1986, teríamos, sem a menor sombra de dúvida, estado a bater à porta da Europa comunitária alguns anos mais tarde, em condições bem menos favoráveis. Aliás, devo dizer-lhes que, por vezes, sinto calafrios históricos, só de pensar na tragédia que teria sido esse cenário alternativo.

Foi essa a minha lição de vida: ao longo destes 35 anos, primeiro com alguma indiferença, seguido de algum interesse, depois com crescente empenhamento e, finalmente, com grande entusiasmo, tornei-me, de um europeu racional num europeu de coração. Para mim, nos dias de hoje, a Europa é o outro nome da minha liberdade. Tenho mesmo dificuldade em conceber a vida de um Portugal, moderno e livre, sem a sua integração neste magnífico projeto comum de convivência política.

Mas tal como nem tudo foram cravos na Revolução que, numa noite, nos mudou os dias, nem tudo são hoje rosas na Europa que, entretanto, fomos ajudando a criar, porque o caminho, como dizia Machado, faz-se caminhando.

Essa foi a segunda lição que recebi: ao contrário do que muitos pensam, a Europa comunitária não é um seguro de vida. Pode tê-lo sido para alguns, em tempos de Guerra Fria. Já não o é mais, num tempo de paz morna em que vivemos. A Europa é um ideal mutante, a que temos de nos dedicar dia após dia, no qual é necessário que nos empenhemos e, muito em particular, cujos princípios e valores há que aculturar, melhorar e socializar.

Ninguém espere que a bondade do projeto europeu se imponha por si mesma, sem que haja um esforço de pedagogia por parte dos cidadãos e dos Estados, uma ação que não pode deixar de estar ligada a algum proselitismo, que possa ajudar a contrariar as campanhas de denegrimento da ideia europeia.

A Europa é hoje refém dos medos: do medo ao estrangeiro, do medo ao diferente, do medo ao futuro, do medo ao desemprego, das ameaças à segurança e à própria identidade. As nossas vidas, e a paz em que as queremos viver, sentem-se hoje ameaçadas por um conjunto difuso de riscos. Não vou ao ponto de dizer, tornando extensiva uma conhecida fórmula paroquial, que os europeus gostam de viver habitualmente. Mas gostam, como a maioria das pessoas de bom senso gosta, de viver com alguma previsibilidade, sem ter grandes surpresas, ao virar as esquinas do futuro. Ora a previsibilidade é hoje, mais do que nunca, como sabemos, um bem escasso, no mercado da felicidade coletiva dos povos. Foram os medos acumulados, racionais e outros, que geraram o Brexit. São os medos que alimentam os populismos, a informação distorcida, a aceitação fácil da mentira.

Aliás, já que estamos em tempos de pandemia e de testes, gostava que fizessem um teste fácil: onde é que prosperam as maiores reticências sobre o projeto integrador?

O denegrimento obsessivo da Europa, que afeta e vai bloqueando as próprias instituições europeias, tem hoje a sua sede naqueles países onde os grandes princípios do “template” democrático da União Europeia têm vindo a ser desafiados: os que não respeitam a separação de poderes, os princípios do Estado de direito, a liberdade dos media, a proteção das minorias e os princípios básicos de solidariedade, abrangendo refugiados e migrantes. E mesmo em outros Estados, onde, felizmente, as instituições ainda funcionam com total legitimidade, observe-se com a atenção que tipo de ideologias sustentam as forças políticas que mais reticentes se mostram em cumprir, com rigor, aquele corpo de princípios. O teste do algodão não engana.

Muitos dizem que o futuro do projeto europeu é incerto. Contudo, há que convir, não obstante todas as debilidades que resultam do facto de ser um projeto democrático de congregação de vontades nacionais muito diferentes, a Europa não se tem portado mal, se pensarmos naquilo que lhe tem caído sobre o quotidiano. A crise financeira foi um desafio, o Brexit e a hostilidade do antigo parceiro certo do outro lado do Atlântico foram outros, a surpresa da pandemia ajuda a desenhar um cenário sem precedentes.

E agora?

Podendo eu estar enganado, tenho uma fundada convicção de que não será pelos cifrões que a Europa se desagregará, por muito que alguns olhem esses mesmos cifrões como o alfa e o ómega do seu europeísmo. 

A falência da Europa, a ocorrer, terá lugar no dia em que os europeus - Estados e cidadãos - abdicarem do património de valores que consagra a autoridade moral do projeto. Nessa altura, o tal soberanismo de que lhes falei no início desta minha intervenção, ressurgirá em todo o esplendor, sob a forma dos nacionalismos que, no passado, conduziram a tragédias de que parece que já ninguém se quer lembrar.

Portugal teve, desde a data que hoje celebramos, uma presença construtiva e de grande dignidade na construção do projeto europeu, não obstante ter vivido ciclos políticos internos muito diferentes, com variados atores, em conjunturas nem sempre fáceis e, muito em especial, raramente eufóricas. Dentro desse projeto, estivemos sempre e continuamos a estar onde devíamos ter estado, às vezes com alguma ousadia, noutras expondo algumas fragilidades que são as nossas, mas nunca – e quero deixar isto aqui bem sublinhado – nunca pondo em causa a nossa partilha desta comunidade de valores e vontades à qual ancorámos o futuro.

Antes, proclamava-se, por cá, enfática e um pouco ingenuamente, que “a Europa está connosco”. Acho que estes 35 anos também provaram, sobejamente, que nós estamos com a Europa.

No início destes 35 anos, neste belo espaço, que lembra as viagens que outros fizeram por nós, pelos caminhos marítimos para o mundo, foi assinada a nossa adesão às Comunidades Europeias. Também neste mesmo espaço, há pouco mais de três anos, muitos de nós viemos prestar a última homenagem àquele que nos ajudou a descobrir o caminho político para a Europa. Permitam-me, assim, que termine lembrando a insigne figura de estadista, de homem da liberdade e de europeu que foi Mário Soares.

(Intervenção na cerimónia comemorativa do 35° aniversário da assinatura do Tratado de Adesão às Comunidades Europeias, no Mosteiro dos Jerónimos, em 15 de junho de 2020)

A roleta russa

Porque, com coisas sérias, entendo que não se brinca, continuo a ser extremamente cuidadoso, por estes tempos, nos contactos sociais, preservando distâncias e usando máscara, onde e quando necessário. E não me coíbo de alertar os outros, quando assim não procedem.

Para minha surpresa, alguns dos meus amigos e conhecidos adotam um estilo de desconfinamento “a modos que” gradual: já se aproximam mais e dispensam o uso de máscara mais vezes, como se o vírus, “cansado”, tivesse diminuído a sua agressividade, com a passagem do tempo... 

Tenho mesmo constatado que algumas dessas pessoas se mostram quase ofendidas quando insisto em manter uma distância física, como se intimamente dissessem: “então este tipo está a insinuar que eu posso estar infetado?”

Também lhes acontece ou os leitores fazem parte da brigada da “roleta russa”, dos que acham que “aí vai disto e depois logo se vê”?

sábado, junho 13, 2020

Santos populares



O Santo António comemora-se no dia de Santo António. Foi o que fiz, com bons amigos, com todos os cuidados recomendados (e eu sigo as recomendações!), numa jantarada muito divertida. Uma bela noite!

sexta-feira, junho 12, 2020

O meu nome

Muitos amigos e outras pessoas que me não conhecem bem terão visto e ouvido hoje o meu nome citado num contexto de polémica. Sinto-me no dever de lhes dar uma satisfação. E faço-o sem menor embaraço, porque as coisas são bem simples e claras.


A história que agora de novo emerge a público é uma efabulação requentada, que há anos anda pelas redes sociais, alimentada pelos cultores habituais das teorias da conspiração.


Convém assim contá-la de forma completa, para que dela não fique apenas a caricatura distorcida pelo viés. É mesmo por essa razão que entendo que uma investigação judicial sobre este assunto é bem vinda. Pena é que ninguém me tenha chamado até hoje a esclarecer quaisquer dúvidas que existissem, de que só vim a saber agora pela imprensa.


Por isso, vamos aos factos.


Em inícios de 2012, fui informado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de que, num processo de contenção orçamental, o governo de então havia decidido terminar com a existência de um embaixador junto da Unesco, função que passaria a ser desempenhada, em acumulação, pelo embaixador em Paris, cargo que, à época, eu ocupava. Não foi caso único: o mesmo iria ocorrer em Viena, onde o embaixador bilateral passou também a acumular com a delegação junto da OSCE.


Semanas depois, fui chamado a Lisboa, onde a ministra da Agricultura, de um governo PSD/CDS, que tinha então responsabilidades na área do ordenamento do território, me informou de que, no quadro das novas funções que eu ia desempenhar na Unesco, existia um sério problema para o Estado português: uma missão enviada pela organização, que, no ano anterior, tinha estado em Portugal, alertada por associações ambientais que se opunham à construção da barragem Foz Tua, tinha produzido um relatório em que suscitava dúvidas sobre a compatibilidade da construção da barragem, então já em adiantado curso, com o estatuto do Douro como “património mundial” da Unesco. Esse relatório continha, no entanto, vários “remédios” que deveriam ser executados, para que fosse possível manter essa compatibilidade. Segundo a ministra Assunção Cristas, Portugal tinha já em curso um conjunto de medidas para corrigir as deficiências apontadas.


Qual era, então, o problema? É que a Unesco tinha a intenção de levar à reunião anual do Comité do Património Mundial, que iria ter lugar tempos depois em São Petersburgo, uma proposta para que as obras da barragem fossem entretanto suspensas. Se Portugal assim não procedesse, iniciar-se-ia um processo de retirada do estatuto de “património mundial” ao Alto Douro Vinhateiro.


O governo português estava, assim, seriamente preocupado. No cenário limite do projeto da barragem não poder ir por diante, para preservar aquele valioso estatuto, o Estado teria de pagar à concessionária, a EDP, uma indemnização se orçava em cerca de 400 milhões de euros.


Foi-me pedido que tentasse negociar com a Unesco uma fórmula que permitisse assegurar uma continuidade dos trabalhos, mesmo que a ritmo mais lento, até que uma nova missão pudesse apreciar se as obras de correção, entretanto feitas, eram suficientes para acomodar as preocupações da organização. Foi isto que me foi solicitado.


E foi isso que fiz. Chegado a Paris, elaborei, durante semanas, com os membros do Comité do Património Mundial, uma fórmula que permitia a continuidade dos trabalhos que estavam a ser desenvolvidos em profundidade, até uma nova missão da Unesco viesse a ter lugar, ficando suspensa toda a obra à superfície - porque era precisamente o efeito sobre a paisagem que era contestado.


Esse acordo veio a ser aprovado na reunião anual do Comité, que teve lugar em São Petersburgo, em que intervim em nome do governo português.


De regresso a Paris, requeri, com caráter de urgência, a deslocação ao Douro de uma nova missão da Unesco, por forma a poder aquilatar do cumprimento das recomendações que haviam sido feitas pela primeira missão. Pedi, expressamente, que essa segunda missão incluísse a relatora da primeira, porque ela seria a melhor testemunha da nossa transparência, abertura e boa vontade.


Essa segunda missão deslocou-se ao Douro, algumas semanas depois. Reuniu com ambientalistas opositores da barragem e com autarcas favoráveis à obra, além de fazer, durante alguns dias, uma detalhada observação do que fora, entretanto, executado, respondendo às anteriores objeções.


Algumas semanas mais tarde, a Unesco anunciou que, como consequência desse segundo relatório, que avaliara positivamente o que fora entretanto feito por Portugal, era permitida, no essencial, a continuidade das obras da barragem.


A Unesco concluía, assim, que a construção da barragem Foz Tua era compatível com o estatuto de “património mundial” do Alto-Douro Vinhateiro.


Uma das melhorias feitas, recordo-me, havia sido o “enterramento” da central elétrica, obra que, há poucos anos, valeu um prémio arquitetónico ao arquiteto Souto Moura.


Dei assim o meu trabalho por encerrado neste assunto.


Faço aqui um parêntesis para referir que o problema da construção da barragem e a consequente afetação do vale do Tua é um tema sério, que mereceu e ainda merece discussão pública. Será que a barragem era mesmo necessária? A sua construção teve ou não efeitos negativos na conservação do rio e do seu vale, com as várias consequências que a subida das águas provocou?


São questões respeitáveis, mas, como se compreenderá, a um funcionário como eu era, não sendo minimamente perito na matéria técnica em causa, não competia ter estados de alma, mas apenas levar à prática as determinações que havia recebido de quem geria, com legitimidade democrática, o Estado. Foi o que fiz. Em idênticas circunstâncias, e em total consciência, faria hoje exatamente o mesmo. Como qualquer outro colega meu o faria, estou certo.


Pelo trabalho profissional executado, recebi então felicitações do governo e de outras entidades públicas nacionais. No entanto, havia-me limitado a cumprir mais uma tarefa de Estado de que fora incumbido, como outras que levara a cabo no passado, da melhor forma que sabia e podia.


Recordo-me que, por parte das associações ambientais, que pretendiam evitar a construção da barragem, passei a ser fortemente criticado, pelo que chegou a ser considerado o meu “excesso de zelo diplomático”! Pelas redes sociais, cheguei a receber ameaças de morte.


O trabalho diplomático desenvolvido pela nossa delegação junto da Unesco, sobre a barragem Foz Tua, desenrolou-se entre Março e Agosto de 2012.


Por ter atingido o limite de idade para o exercício de funções públicas no estrangeiro, regressei definitivamente a Portugal em janeiro de 2013. Aposentei-me em março desse ano.


A partir de então, isto é, nos últimos sete anos, recebi inúmeros convites para colaborar com empresas, fundações, universidades e outras entidades. Uns aceitei, outros recusei. Algumas dessas atividades foram e são remuneradas, muitas outras foram e continuam a ser exercidas pro bono.


Não sou, com certeza, o melhor julgador das razões que motivaram o interesse dessas entidades, mas imagino que a experiência que colhi na minha longa carreira diplomática, para aconselhamento em áreas de consultoria estratégica, possa ter justificado esses convites.


Faço um parêntesis para notar que só em Portugal é que parece estranho que um embaixador, encerrada a sua carreira pública, passe a trabalhar no setor privado. Em países como o Reino Unido, a França, a Espanha e tantos e tantos outros, esta é uma prática generalizada. É considerado perfeitamente natural que os conhecimentos recolhidos pelos diplomatas possam ser postos ao dispor dos operadores económicos, em especial em análises de risco de mercados externos e juízos de evolução geopolítica.


Igualmente absurda é a ideia, que por cá parece prevalecer, de que um diplomata não pode ir trabalhar, no final da sua carreira pública, para uma empresa privada com a qual haja porventura contactado, durante o seu percurso profissional. Ao longo da minha vida, nos diversos postos em que estive colocado, como acontece com qualquer outro colega da minha profissão, lidei com muitas dezenas de empresas portuguesas, nomeadamente dando-lhes apoio nas suas diligências e negócios. Fi-lo, sempre, em consonância e em cumprimento de instruções recebidas dos 21 ministros dos Negócios Estrangeiros de quem dependi, no âmbito da execução da diplomacia económica que me era determinado desenvolver.


Em 2016, isto é, quatro anos depois de ter atuado em representação do Estado português junto da Unesco, recebi um convite para o cargo de administrador não-executivo da EDP Renováveis, em empresa dedicada à energia eólica e solar. Nessa altura, a minha experiência de administração em outras empresas com forte ação internacional já tinha mais de três anos.


Aceitei esse convite com o orgulho de poder ficar a colaborar, na área de aconselhamento estratégico, precisamente com as três maiores empresas portuguesas que, operando em setores muitos diferentes, atuam hoje no mercado internacional - no seu conjunto, estando ativas em 42 países e neles gerando um total de cerca de 150 mil postos de trabalho.


Só pode derivar de uma doentia teoria conspirativa, configurando, além disso, uma insinuação altamente ofensiva, a ideia de que a aceitação do convite para o exercício de funções na EDP, a partir de 2016, possa ter tido alguma relação com o trabalho que, alguns anos antes, em nome do Estado português, e exclusivamente para defesa dos interesses desse mesmo Estado, eu havia desenvolvido junto da Unesco, nos escassos meses em que aí desempenhei funções. É que essa foi uma tarefa que, relembro, terá evitado que o Estado tivesse de indemnizar fortemente... a EDP!


Perceba-se, de uma vez por todas: a ação desenvolvida não beneficiou a EDP. Se a construção da barragem tivesse parado, a empresa teria direito a receber uma forte compensação, por uma obra que não iria concluir. O trabalho diplomático em que estive envolvido terá, isso sim!, ajudado a evitar que os contribuintes portugueses pudessem ter de pagar cerca de 400 milhões de euros à EDP. O argumento da calúnia que tem vindo a ser lançada funciona precisamente ao contrário.


Estou certo que os governantes de então, que me deram as instruções que rigorosamente cumpri, com a lealdade funcional que sempre foi a minha, bem como o Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde repousa a nossa memória profissional, podem prestar o testemunho necessário sobre este assunto.


Quem possa andar lançar este tipo de insinuações revela uma profunda falta de respeito pelo percurso de quem dedicou mais de quatro décadas ao serviço público, a cujo topo profissional chegou por um mérito que nunca viu contestado por ninguém e que, talvez por isso, acabou por ser reconhecido com a atribuição da mais elevada condecoração do país a que um servidor público pode ambicionar.


Alguns dirão que esta explanação é longa, desnecessária e, provavelmente, não convencerá, em nenhuma circunstância, quantos têm já as suas ideias feitas. Não penso assim. Achei ser meu dever fazê-la. Quem não se sente, não é filho de boa gente. E eu sou-o.

Na hora de Centeno


Não “bebo do fino” o suficiente para me permitir interpretar, com foros de certeza, as várias peripécias ocorridas nesta saída de Mário Centeno do governo. Os sinais em torno do ministro cessante, nos últimos tempos, não foram unívocos. Por não saber nada disto, por não fazer parte do serralho, posso permitir-me à liberdade de ter uma opinião livre, embora porventura especulativa.

Como uma grande maioria dos portugueses, tenho uma excelente opinião sobre o trabalho desenvolvido por Mário Centeno. O país fica a dever-lhe grande parte da credibilidade externa adquirida em tempos mais recentes e a sua prestação marca um grande momento da história financeira portuguesa.

Diz-me quem com ele colaborou no desenho do cenário macro-económico que serviu de base ao programa económico do PS, nos idos de 2015, que ele já ai revelava uma autoridade “soft”, feita de uma simpatia pessoal que não dispensava firmeza perante o essencial. É um homem determinado, com ideias bem claras, que os factos acabaram por constatar como realistas.

Por muito que, na hora da sua despedida do Eurogrupo, algumas vozes, até tristemente portuguesas, se afoitem a menorizar o seu trabalho europeu, quem é que acreditava, em 2015, que o ministro das Finanças de uma das economias mais endividadas da zona euro, com um record de incumprimento dos objetivos do défice, ia ser eleito para coordenar o trabalho dos seus colegas europeus? Muito poucos e, confesso, eu à época não estava entre esses poucos.

Centeno merece, na hora da sua partida, um preito de admiração e gratidão. Mas, porque gosto de ser justo, quero deixar expresso que o excelente trabalho de Mário Centeno nas Finanças não pode ser desligado do papel central, às vezes ligeiramente esquecido, de António Costa. Foi Costa, e não Centeno, quem, desde a primeira hora, tomou a decisão, que não era técnica e que foi política, de vir a cumprir estritamente os compromissos europeus a que Portugal estava ligado. Do outro lado da moeda estava a Geringonça. Costa percebeu que era nesse equilíbrio que residia a sua credibilidade. Centeno foi o ministro escolhido por Costa para implementar essa sua diretriz.

Foi Centeno quem desenhou a acomodação orçamental das concessões políticas necessárias para assegurar o apoio parlamentar ao governo. Depois, vinha o resto: o quadro dos impostos, do lado da receita, as cativações e a barganha inter-ministerial, do lado da despesa.

Alguns conhecemos, e os que não conhecem imaginam, o que é o comportamento de um ministro das Finanças nas vésperas de um orçamento, que é sempre uma manta demasiado curta para cobrir as ambições dos ministros. Mas quem é que dá a liberdade ao ministro das Finanças para poder satisfazer, ou não, os outros membros do governo? O primeiro-ministro, claro. Mário Centeno foi, indiscutivelmente, um excelente ministro das Finanças. Mas esquecer o papel de António Costa na gestão política dessas mesmas Finanças não ajuda a perceber a realidade objetiva das coisas.

Uma Alemanha europeia



Por mais de uma vez, falei aqui nesta coluna no papel único que a Alemanha representa na Europa. O projeto integrador criado no pós-guerra, ou melhor, durante a Guerra Fria, só existiu pela consciência das democracias ocidentais, apoiadas pelos EUA, de que era indispensável ancorar definitivamente a Alemanha, nesse caso as três zonas de ocupação, a um modelo de liberdade, tutelado por um chapéu de segurança que se chamava Nato, isto é, América. A França, cooptada para os vitoriosos, funcionava como o parceiro central dessa aposta política.

Por muitos anos, a Alemanha teve a inteligência de manter um “low profile”. À esquerda e à direita, a sua classe política entendeu que lhe competia, essencialmente, projetar confiança e ganhar credibilidade. Fê-lo com grande cuidado na sua forma europeia de estar, nunca se mostrando demasiado “pushy”, aproveitando habilmente a sua insuperável prosperidade para assegurar meios que permitissem ir consolidando o projeto. O “tandem” com a França funcionou bem, em especial pelo facto da fragilidade desta ter contribuído para lhe retirar o papel preeminente que, nas primeiras décadas, tinha assumido.

O fim da URSS, a libertação das “democracias populares” que viviam sob a tutela e/ou sob o temor a Moscovo, mudou tudo. O fim do muro, com a reunificação da Alemanha, trouxe, como contrapartida, o “empréstimo” do antigo marco para a credibilitação da nova moeda única. Mas algo mais aconteceu: a fronteira divisória da guerra fria, que passava pelo território alemão, agora reunificado, trouxe uma “buffer zona” de segurança a Berlim (e já não a Bona), com o alargamento da Nato a ser um fator decisivo.

Os alemães passaram a sentir o direito de afirmarem uma maior assertividade no processo interno europeu e só o não conseguiram fazer no plano externo, com a gestação de uma nova “ostpolitik”, porque a atitude de Moscovo, somada à polarização em sentido contrário dos seus antigos “satélites”, o não permitiu. Para ser mais claro: o sonho de Berlim é criar uma relação de estabilidade sustentada com a Rússia. O que se passou na Ucrânia, com a imbricação irritante dos EUA, não ajudou a isso. Mas a “aposta” da Alemanha num entendimento durável com a Rússia permanece nas cartas.

Não vou ao ponto de dizer que a Alemanha é hoje o “gigante bom” da Europa, mas quero afirmar, sem a menor hesitação, que me parece óbvio que a Alemanha é hoje um fator incontornável de qualquer solução europeia. E ela sabe isso.

No passado, Adenauer, Brandt e Schmidt garantiram as credenciais europeias do país. Kohl percebeu a oportunidade da falência da URSS, reunificou o país e firmou o euro. Merkel, que parecia um sucedâneo de Kohl, mostrou, nos últimos anos, que tem uma visão para a Europa.

Merkel cometeu erros importantes. Na crise financeira, deu, com Sarkozy, passos que muito ajudaram à crise das dívidas soberanas. Fê-lo por razões “democráticas”: a sua opinião pública não se sentia predisposta a gestos concessionistas, face à falta de rigor financeiro da orla norte do Mediterrâneo.

Mas Merkel mostrou o seu lado humanista na questão dos refugiados e, na crise económica gerada pela pandemia, ajudada por uma presidente da Comissão Europeia que, talvez não por acaso, é também alemã, está a tentar forçar soluções de solidariedade intraeuropeia que, há poucas semanas, pareciam impossíveis. Desafia o seu próprio Tribunal Constitucional, promove uma verdadeira mutualização de dívida e encara impostos europeus – tudo tabus há muito pouco tempo. Alguns dirão que ainda falta convencer os “frugal four”. É verdade, mas não creio que a chanceler e a presidente da Comissão, com o apoio do BCE, tivessem ido até ao ponto a que chegaram se não tivessem gizado já fórmulas de recuo para fazerem passar as reformas que ousaram propor, sem as descaraterizar.

Gosto desta Alemanha europeia, tanto quanto nunca gostei da ideia de uma Europa alemã.

quinta-feira, junho 11, 2020

Que vivam os restaurantes!


Pelas experiências que tenho tido, os restaurantes portugueses são hoje, a grande distância, dos lugares públicos mais seguros, em termos de saúde, que se podem frequentar.

Sem uma única exceção, os dez restaurantes a que já fui mostraram um elevado sentido de responsabilidade, sabendo além disso manter, praticamente sem exceção, o seu nível de serviço e qualidade.

Deixo registados os nomes dessa dezena de casas, pela ordem exata por que as visitei, cada uma com brevíssimas notas.

Acho que é justo que os clientes voltem a frequentar os nossos restaurantes, por forma a eles poderem garantir a sua continuidade.

Os restaurantes fazem parte do nosso património como sociedade.

Consulte aqui.

Lisbon Speed Talk


Ponham na agenda. É já no dia 18 de junho, a terceira ”Lisbon Speed Talk”, organizada pelo Clube de Lisboa. São 30 minutos de debate, sempre às 17 horas. Desta vez será analisada a posição do Tribunal Constitucional alemão, uma atitude que, a vingar, poderá bloquear a ação do governo alemão na Europa.

Estatísticas


“Olha lá! Não é possível mobilizar por aí uns arrebentas para estragar as estatísticas a estes gajos?”

quarta-feira, junho 10, 2020

Jornaleiros

Tivesse eu responsabilidades numa redação e demitiria, no instante, o repórter que, nos próximos minutos, me aparecesse com um trocadilho com o nome do Corona, autor do golo do Porto contra o Marítimo.

Seguidores

Este foi o dia em que percebi, definitivamente, que não tenho seguidores de Portimão e do Funchal. Só dos outros.

Aristides

Fosse eu de direita, Aristides Sousa Mendes seria o meu herói. Aristides foi um apoiante do 28 de maio, da Ditadura Militar e do Estado Novo, nunca teve a mais leve simpatia pela esquerda e, nem por isso, deixou de protagonizar um gesto quase ímpar de revolta contra a indignidade.

“Em Portalegre cidade...”

Há um ano, em Portalegre, percebemos que há portugueses que, coitados!, sofrem desse triste destino de terem nascido num país onde há portugueses, essa gente cheia de defeitos que, felizmente, alguns dos seus compatriotas mais lúcidos conseguem redimir com um arremedo de discurso.

Cruzes!

Ouvi há pouco, numa mesa ao lado, num restaurante, uma pessoa pronunciar a palavra “hodierno”. Pedi logo a conta!

Isto está bonito!

A HBO retirou o “E tudo o vento levou” da sua lista, por perpetuar o racismo. Isto está bonito, está!

Os dias de Portugal


O presidente da República decidiu associar à data de hoje uma cerimónia sóbria, com a palavra, sempre interessante, de uma destacada figura da igreja católica. Num tempo em que, por razões fortes, as manifestações públicas têm estado em discussão, a opção do presidente parece sensata. E simbólica.

Os dias que Portugal atravessa não são dias comuns. Vivemos tempos estranhos, nos quais entrámos todos da mesma maneira, com práticas de vida basicamente similares, mas de que estamos a sair de forma muito diferente. Naquilo a que se chama o “desconfinamento”, descobrimos agora vários países: desde aquele que continua a privilegiar o recolhimento em sua casa, até ao que, cansado de máscaras e de distanciamentos, opta pela via do risco. Pelo meio, revelam-se formas diferentes de maior ou menor ousadia. É mesmo interessante observar que, nesta diversidade de “saídas de casa”, se desenham hoje filosofias de atitude, até com ressonâncias políticas associadas.

Neste leque de comportamentos, destapam-se insuspeitados caráteres, mas fica evidente uma realidade: foi-se erodindo a confiança inicial nas recomendações de origem oficial, por estar criada a sensação - certa ou errada, é indiferente - de que alguns desses conselhos têm vindo a contradizer-se e que o que era verdade ontem deixa de ser válido amanhã. Provavelmente, estarei a ser injusto mas, em saúde como em política, o que parece é.

Todos entendemos que, nesta pandemia, o mundo andou numa navegação à vista. Aprende-se num dia o que até então não se sabia, as “lessons learned” são muito importantes. Mas isso nunca é frontalmente assumido. Por mim, gostaria muito de ter ouvido, num certo momento, com humildade: “Fizemos isto desta forma mas, olhadas as coisas em perspetiva, temos que concluir que nos enganámos. Devíamos ter seguido outro caminho, que teria, provavelmente, conduzido a melhores resultados”.

Com os anos, e com alguma prática direta, aprendi que o discurso do poder tem uma tendência a assumir-se como afirmativo, sem dúvidas e, geralmente, sem a humildade do recuo. No desejo de tornar eficaz a mensagem, quem a envia só em raras ocasiões se retifica a si mesmo, como se corrigir-se fosse sinal de fraqueza, como se a verdade acabasse por ser autoflagelatória.

Neste Dia de Portugal, estamos, como é óbvio, um pouco mais divididos do que nos sentíamos no início da pandemia. Olhemos as coisas pelo lado positivo: ser livre e manifestar essa liberdade de forma diversa é apenas a prova provada de que vivemos em democracia.

terça-feira, junho 09, 2020

Estátuas

A questão da destruição de estátuas de figuras do passado, representativas de realidades que, na sua época, eram lidas de forma diferente pela sociedade, levanta uma questão de base: será que a atual geração assume a arrogância de ser ela a avaliar toda a História?

Finanças

Tenho muita pena pela saída de Mário Centeno de ministro das Finanças, onde fez um trabalho notável, que o país reconhecerá para sempre. E é bom sinal que seja um Leão a substituí-lo!

segunda-feira, junho 08, 2020

Crocodilo


É notório o embaraçado silêncio do PAN quanto à cruel caça ao crocodilo no Douro...

A resposts europeia à crise


Hoje, 2ª feira, às 17 horas, no Facebook e no YouTube, dois reconhecidos especialistas aceitaram o convite do Clube de Lisboa para, em 30 minutos, esclarecerem sobre a resposta da União Europeia às consequências económicas da pandemia. Pode participar, colocando questões.

domingo, junho 07, 2020

Ora bem!

“O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas e as pessoas idiotas estão cheias de certezas” - Bertrand Russell

Um belo nome!


Manifestação


Uma manifestação que, nas atuais condições de pandemia, não respeita as mais elementares regras de distanciação social (sabendo-se hoje que o mero uso de máscaras não dispensa a observância dessas regras) não deixa de ser um ato de irresponsabilidade e passa a ser uma cerimónia digna, apenas pelo facto de ter sido dedicada a uma causa justa.

Repito, para quem tenha dificuldade em entender: estou a falar de uma manifestação que se processou em termos inaceitáveis. Não é para aqui chamado o tema do evento.

Ai Brasil !


Todos os países do mundo, com a transparência exigida por um pandemia de dimensão global, apresentam diariamente os seus números, como contribuição para um rastreamento de interesse coletivo. Todos? Todos, não. A Coreia do Norte não fornece esses dados. E, agora, também o Brasil?

sábado, junho 06, 2020

Faça férias portuguesas...


... ou, pelo menos, fins de semana. Aqui fica uma “pedra” que encontrei perto do meu quarto...

Depois, queixem-se!


Lisboa, hoje! Depois, queixem-se!

Ferreira Fernandes

‪Gosto muito, mesmo muito!, de Ruy Castro. Mas a contracapa do DN sem a crónica do José Ferreira Fernandes não é a mesma coisa.‬

Palma


Sou, com toda certeza, das últimas pessoas que aparecem a saudar os 70 anos de Jorge Palma. Mas o facto de chegar tarde não me impede de ainda ir a tempo de o fazer.

Sou um grande admirador do trabalho de Jorge Palma. Para mim, com Sérgio Godinho e com Fausto, Palma faz parte do “trio maravilha” da música portuguesa de que mais gosto. Depois, vêm Zeca Afonso e José Mário Branco, também figuras cimeiras do meu palco preferido. E, confesso, como “cantautores”, as coisas ficam por aqui.

Sei que esta ordenação não é consensual, mas se eu quisesse ser consensual não andava nas redes sociais...

Sabe bem!

Está um cidadão a fazer o seu zapping retrospetivo de madrugada, quando, de repente, ouve o seu nome pronunciado, de forma altamente crítica, por alguém com quem raramente concorda. O dia não poderia ter acabado melhor! Boa noite!

sexta-feira, junho 05, 2020

O post do dia


Que eu recorde, nunca por aqui houve um único dia sem um post. Era só o que faltava que isso acontecesse hoje!

quinta-feira, junho 04, 2020

Desperdício

A polícia portuguesa deve, com certeza, ter coisas muito mais úteis para fazer do que estar a perder tempo e dinheiro público a controlar o fanatismo de gangs coloridos.

Câmara dos Comuns


Há sempre uma primeira vez para tudo. Esta foi uma cena incomum, na tarde de hoje, na Câmara dos Comuns. Ver aqui.

Judiciária

Aos protagonistas da nossa Polícia Judiciária - instituição com elevado mérito e qualidade - no caso Madelaine McCann recomendar-se-ia alguma contenção, neste tempo do processo que lhes não pertence. Parece não se darem conta que assim arrastam a imagem do país para o ridículo.

Biden

Obama fala bem, é a voz da sensatez e até deve gerar alguma saudade em muitos americanos. Mas quando é necessário ouvi-lo para mostrar um contraponto sério a Trump, ele acaba por ser a prova subliminar de que Biden pode estar longe de ser a alternativa ganhadora. É pena!

Decidam-se!

Tenho muita pena, mas não gosto desta esquizofrenia oficial que tanto nos diz que vem aí uma ”batelada“ de dinheiro como nos avisa que os efeitos da pandemia sobre a economia vão ser terríveis.

O governo não se dá conta de que estas duas mensagens, podendo não sê-lo, são lidas como contraditórias?

Américas

Mais do que as fortes acusações feitas a Trump pelo antigo responsável pela Defesa, James Mattis, acusando-o de ser um fator de divisão do país, impressionou a declaração do atual titular, que se afastou da leitura do presidente sobre o uso das Forças Armadas no plano interno

Brasil

Há sinais de que o ministro da Educação do Brasil, apanhado no vídeo da “infamous” reunião ministerial de abril a proferir insultos contra o Supremo Tribunal Federal, pode ser sacrificado para aplacar a ira dos juízes. Se assim acontecer, haverá alguma “desescalada” nas tensões.

Nakhchivan


Quando entrei naquele quarto de hotel em Nakhchivan, daqueles que têm um aspeto que nos leva a hesitar em sequer vir a utilizar a roupa da cama, tive um rebate de consciência. Dei comigo a pensar que vários dos embaixadores junto da Unesco, que tinham ido comigo de Paris a um congresso a Baku, no Azerbaijão, haviam sido por mim convencidos a alinhar na aventura que era fazer uma surtida a Nakhchivan.

Comecemos pelo princípio. O Azerbaijão organizava com regularidade um congresso cultural, nesse ano de 2012 em torno de uma temática central que já não recordo. Decidi nele participar, confesso, porque, desde as descrições de Calouste Gulbenkian, tinha uma forte curiosidade em ir a Baku. Havia pago do meu bolso a hospedagem, sendo a viagem, desde Paris, oferecida pelo governo local, dada a minha qualidade de “keynote speaker” convidado num dos painéis.

Na papelada que, à chegada, nos foi entregue, vinha uma oferta: o governo azeri dava-nos a escolher uma de duas viagens de dois dias, na parte final do congresso. As alternativas eram uma ida de autocarro ao Azerbaijão profundo, com comezainas, folclore e visitas culturais, ou uma ida de avião a Nakhchivan. Qualquer das deslocações só se faria se houvesse um quorum mínimo de participantes.

Dos meus colegas, fui quem mais “puxou” pela deslocação a Nakhchivan. Porquê? Porque aquela tinha sido uma das mais misteriosas repúblicas soviéticas, com uma história bem curiosa, que sempre justificara o seu estatuto institucional muito atípico. Como bem atípica ainda se mantinha a sua situação presente.

O Nakhchivan - de que muitos dos leitores nunca terão ouvido falar e que duvido algum tenha visitado - é um território autónomo do Azerbaijão, tão “autónomo”, nos dias de hoje, que não tem qualquer ligação por terra com o resto do país. Trata-se de um enclave isolado, com uma curta fronteira de menos de oito quilómetros com a Turquia, outra com o Irão, uma outra ainda com a Arménia, tendo o território do Nagorno-Karabakh (disputado pelo Azerbaijão e pela Arménia) a tapar-lhe o acesso ao resto do Azerbaijão, de que faz parte. O Nagorno-Karabakh é uma área “neutralizada” pela disputa territorial, onde, nos anos 90, teve lugar uma guerra muito mortífera, sendo ainda palco de regulares incidentes armados. Para chegar de Baku a Nakhchivan é, pois, necessário ir sempre de avião, pedindo os azeris de empréstimo o espaço aéreo iraniano, dado que tentar voar sobre o Nagorno-Karabakh ou sobre o país seu arqui-inimigo, a Arménia, seria um suicídio garantido. Por todas estas razões, pode perceber-se que uma ida àquele bizarro destino não fosse uma coisa tida por cómoda para alguns dos diplomatas que comigo viajavam.

Muitos desses meus colegas inclinavam-se para aceitar o convite para o passeio sereno, de autocarro, pelo território, oportunidade para comprar tapetes e fazer belas fotografias. Fui eu, numa noite de conversa, em Baku, quem conseguiu juntar um grupo que tornara aquela ida a Nakhchivan possível. Invoquei a História e também devo ter inventado histórias que lá os convenceram.

Daí a minha preocupação culposa: o hotel era sinistro, a comida pouco menos, todo o ambiente parecia saído de um filme soviético dos anos 50, com uma coreografia teatral a envolver aquela que devia ser uma rara visita de uma delegação de diplomatas estrangeiros. À nossa volta, havia umas lojas “fake”, com coisas para um turismo que manifestamente não existia, salvo para aquele grupo de maduros, de várias nacionalidades, que o embaixador português conseguira arrebanhar, para poder concretizar o objetivo de uma ida a um local que o seu vício por lugares estranhos motivara.

A cidade de Nakhchivan, capital do território do mesmo nome, não é muito grande. Foi-nos proposto um passeio de autocarro. Eu trazia de Paris um raro guia com um mapa da cidade e, com base nele, comecei por pedir para passarmos junto da mesquita iraniana. Assisti então a uma conversa embaraçada entre o guia, que falava um péssimo inglês, e o motorista, tendo ambos concluído que... não sabiam onde era! Voluntariei-me: “Eu indico. Vai-se por esta avenida abaixo, corta-se na 3ª rua à esquerda e a mesquita fica numa praça ao fundo”. Qual quê! Novo conciliábulo, concluído pela recusa absoluta, com um argumento definitivo: a zona estava vedada, por obras. Pois...

E lá fomos, como é de regra nestes regimes, apenas aos locais a que eles nos queriam levar. Desde logo, para grande excitação de alguns dos meus colegas, àquilo que se diz ser o tumulo de Noé. Três anos mais tarde, fui de Lisboa a um congresso na Arménia e, perto da capital, Ierevan, lá fui ver ... os restos da Arca de Noé. Noé está muito presente no Cáucaso do Sul, sempre ligado ao monte Ararat, que ali prepondera na paisagem!

O ponto alto da visita seria, no entanto, a ida ao museu em honra de Heydar Aliyev, o filho mais ilustre de Nakhchivan, presidente do Azerbaijão por uma década, pai do atual líder. A visita foi longa, com uma explicação detalhada da vida da figura, desde o berço à morte. A certo ponto, a guia do museu esclareceu mesmo que fora Aliyev quem “livrara o Azerbaijão do comunismo”.

Aí, passei-me. Um diplomata, ainda por cima convidado, deve conter-se, mas a minha irritação foi mais forte do que eu: “Mas o presidente Aliyev não foi membro do Soviete Supremo da União Soviética?”. Aliyev havia sido, aliás, muito mais do que isso: foi uma figura destacada do KGB e da governação comunista no Azerbaijão. O seu conflito foi com a “perestroika” de Gorbachev, isto é, com quem quis “democratizar” o comunismo. Mas não entrei nestes detalhes, claro.

A guia sorria, perdida, não sabendo o que fazer: não ousava contraditar-me, mas a minha questão estava fora do seu roteiro. Recordo-me que as minhas colegas do Omã e da Albânia, duas boas amigas, imploraram, em voz baixa, que eu não embaraçasse a senhora e eu lá “deixei cair” os meus preciosismos históricos. E a palestra prosseguiu, para grande alívio dos nossos acompanhantes.

Não vou maçar quem aqui me lê com muitos mais detalhes dessa viagem, que também incluiu uma longa deslocação à fronteira iraniana, junto da qual havia uma espetacular mina de sal, transformada em clínica para doenças pulmonares.

A noite acabou, divertida, com uma refeição bem regada a vodka, como é de regra naquelas paragens. No final, um responsável local, com ar de autoridade política, aproximou-se de mim e disse, num tom cujo sentido não era de leitura unívoca: “Já vimos que é bastante interessado pela nossa terra. Esperamos vê-lo por cá de novo. Nessa altura, poderá ir ver a mesquita iraniana. E até o poderemos levar a outros lugares, que nem imagina que temos, para os estrangeiros curiosos...” A conversa acabou por ali. Desafiar ditaduras pode ter um preço.

Para o que me importa, nesse dia cumpri o meu objetivo de ir a Nakhchivan. Como costumava dizer alguém que já tive como amigo: “Você gosta de fazer ‘vezinhos’ em várias coisas bizarras, pelo mundo”. É verdade. Cada um é como é.

quarta-feira, junho 03, 2020

A “Visão” de Portugal


Porque há mais vida para além da pandemia, amanhã, na “Visão”, dou algumas ideias sobre onde fazer turismo em Portugal. 

Aproveitem, se puderem.

Europa


A força de Trump


O fenómeno Trump, qualquer que venha a ser o seu saldo final, tem já garantido um lugar na história política americana. Não o vai ser, com toda a certeza, pelas melhores razões, mas os Estados Unidos que sairão da sua passagem pela Casa Branca serão bastante diferentes daqueles que herdou de Obama. Não sabemos ainda é quanto.

Depois de Trump, todos iremos perceber se o corpo institucional americano permanece preservado no seu papel de gestor essencial dos “checks and balances”, ou se o desgaste induzido por um presidente que fez das roturas uma doutrina de ação acabou por se consagrar como um fator descaraterizador, com efeitos duradouros.

Trump chegou ao poder com uma intenção evidente: mudar a América de Obama. Fazer o contrário do seu antecessor foi a estratégia definida desde a primeira hora, numa linha que, tendo bastante de primário e de impressionista, traduzia o que ele pressentiu ser a vontade maioritária da sociedade.

Percebeu que havia uma parte do país violentada por uma leitura urbana, reverente a causas filosóficas da modernidade, que, na ordem externa, dava ares de fragilizar a imagem do país, colocado a jeito da satisfação de interesses que essa parte da América não via como americanos. A nostalgia de um país com um poder respeitado, que os oito anos de Obama teriam deixado banalizar, com compromissos económicos dependentes de um sistema multilateral globalizante, tido como responsável por desemprego e falências, conduziu ao “Make America great again”. Simples como slogan, eficaz como leit-motiv.

Como aquelas equipas de futebol que abrem o jogo “ao ataque”, que fazem do “pressing” a tática permanente e vivem as semanas, nas redes de televisão, a insultar os adversários e a proclamar que são “os maiores”, a onda Trump é uma espécie de “bullying” político permanente.

Curiosamente, se olharmos em perspetiva, estamos, desde o primeiro momento, perante um puro “one man show”, onde os atores secundários são mesmo secundários e descartáveis, à menor tentação de dissenso. 

O debate eleitoral que se aproxima, depois de uma pandemia com mais de 100 mil mortos e um rasto económico trágico, não vai ser entre Trump e Biden. Vai ser entre os que acreditam que, depois do vírus, é Trump quem tem mais força para afirmar a América no combate mundial de interesses, nomeadamente contra a diabolizada China, e os que entendem que a solução é recolocar no poder um “genérico de Obama”, da tal América fraca e dialogante. Espero estar enganado, mas os dados parecem lançados.

terça-feira, junho 02, 2020

Forte Príncipe da Beira


Várias foram as pessoas que, antes da minha ida como embaixador para o Brasil, em 2005, me falaram no Forte Príncipe da Beira, a maior edificação militar portuguesa construída fora da Europa. Todas essas pessoas, sem exceção, tinham “ouvido falar” do forte, mas nenhuma lá tinha ido. A fortaleza de São José de Macapá, de que há dias aqui falei, segue-se-lhe, em dimensão e importância estratégica.

Intimamente, prometi a mim mesmo que tudo faria para conseguir fazer aquela visita, durante a minha estada no Brasil.

O Forte Príncipe da Beira fica localizado no Estado brasileiro da Rondónia, numa zona remota, junto ao rio Guaporé, que faz fronteira com a Bolívia.

O forte teve várias utilizações, desde a sua inauguração, em 1783, até aos últimos anos do século XIX, quando era presídio militar, altura em que foi abandonado. Foi “descoberto” em 1913, mas a sua planeada recuperação não foi então avante. Só em 1930, o marechal Rondon, que daria o nome ao Estado em que a estrutura militar se situa, já com o forte uma vez mais tapado pela vegetação amazónica, conseguiu recuperá-lo. Em 1983, o presidente brasileiro João Figueiredo e o embaixador de Portugal, Adriano de Carvalho, visitaram o forte, lançando as bases para uma recuperação que a Fundação Calouste Gulbenkian viria, posteriormente, a ajudar a concretizar.

Hoje, a fortaleza, com os seus belos canhões com as armas portugueses, mantém-se preservada, na estrutura essencial, graças a uma pequena guarnição militar, que cuida da sua conservação. Se assim, não acontecesse, a mata amazónica “tomaria conta”, de novo, do forte.

Em 2008, a meu pedido, o nosso Adido de Defesa, coronel Jorge Santos, conseguiu montar uma “operação” de ida-e-volta ao forte, a partir da capital da Rondónia, Porto Velho, numa visita de trabalho que fiz a esse Estado e ao vizinho Acre. Junto ao forte, existe uma curta e improvisada pista, a que os aviões da Força Aérea brasileira conseguem aceder.

A viagem fez-se sobre uma imensa paisagem amazónica, tendo-nos acompanhado a figura magnífica do cineasta e historiador Beto Bertagna, um gaúcho que tem dedicado a sua vida à história da Rondónia. Foi um dia inesquecível, que guardo nas minhas memórias para sempre.

A entrada no forte, belíssimo e com uma construção muito curiosa, no conhecido modelo Vauban, foi para todos nós um momento emotivo. E sê-lo-ia mais quando deparei, na parede, com uma placa onde se lê um extrato de uma carta de junho de 1776, enviada por D. Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, governador e 4º capitão-general da capitania de Mato Grosso.

O que está escrito nesse texto passou para mim a consubstanciar o verdadeiro conceito de Serviço Público:

"A soberania e o respeito de Portugal impõem que, neste lugar, se erga um Forte, e isso é obra e serviço dos homens de El-Rei nosso Senhor e, como tal, por mais duro, por mais difícil e por mais trabalhos que isso dê, é serviço de Portugal. E tem que se cumprir".

Em honra do embaixador de Portugal, a guarnição fez disparar na ocasião um velho canhão português. (Anos depois, o meu sucessor em Brasília, numa viagem idêntica, teve menos sorte do que eu, tendo então ocorrido um acidente durante a mesma cerimónia.)

Regressado a Brasília, consegui (sem encargos para o Estado, diga-se), reunir meios para enviar um jovem e talentoso fotógrafo brasileiro ao Forte Príncipe da Beira, tendo sido organizada, em dezembro desse ano, no Instituto Camões, em Brasília, uma belissima exposição com fotografias dessa visita. Foi, aliás, no ambiente dessa exposição que organizei a minha despedida oficial da capital brasileira.

Passaram entretanto alguns anos e, já em Portugal, fui uma noite dormir a um palacete, transformado em unidade hoteleira, em Penalva do Castelo (hoje incluído na rede dos Paradores espanhóis), a Casa da Ínsua. Qual não foi a minha surpresa quando descobri que o primeiro proprietário daquele belo solar fora D. Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, o responsável pela edificação do Forte Príncipe da Beira, lá longe, na atual Rondónia brasileira.

O mundo é pequeno, mas o mundo português é grande.

segunda-feira, junho 01, 2020

Hoje, na TVI


Hoje, durante o “Jornal das 8”, da TVI, estive à conversa com Pedro Pinto e Miguel Sousa Tavares sobre a situação nos Estados Unidos e no Brasil. Pode ver estas conversas, respetivamente aqui e aqui.n

Notícias da aldeia

Nas aldeias, os cartazes das festas de verão, em honra do santo padroeiro, costumam apodrecer de velhos, chegando até à primavera. O país pa...