terça-feira, março 16, 2021

Zero três


“E tens um carro para ti”. Esta frase, que me chegou a Oslo, em cuja embaixada de Portugal eu trabalhava, numa carta, pela mala diplomática, algures no início de 1982, alegrou-me um pouco o espírito. Era escrita por um colega da embaixada em Luanda, para onde eu acabara de ser transferido. Explicava que se tratava de um Volkswagen deixado pela “tropa” portuguesa, que eu ia ter direito de utilizar, quando chegasse ao novo posto. 

Por esses dias, eu não andava muito animado, “to say the least”, pela minha colocação em Luanda.

Três anos antes, sem ser candidato a nada e nem sequer ter sido consultado previamente, como era de regra, o ministério tinha-me enviado para Oslo, para o meu primeiro posto diplomático no estrangeiro. Ao que parecia, tinha sido essa a solução que, no Conselho do Ministério (hoje, Conselho Diplomático), órgão que determina as colocações e promoções, o meu diretor-geral, Alexandre Lencastre da Veiga, havia conseguido descortinar para evitar que eu fosse colocado em Bagdad, para onde o secretário-geral de então, Caldeira Coelho, me queria enviar. No seu entendimento, o meu perfil funcional merecia outro destino. Mas o chefe da carreira, que me “tinha no radar”, ao que deduzi por razões políticas, para utilizar uma expressão um dia ouvida a quem dele esteve próximo, teria mesmo ironizado, em conversa com o diretor-geral, com a proposta que tinha acabado de fazer para eu ir para a cidade de Saddam Hussein: “Ele parece gostar desse tipo de regimes!”

Três anos depois, era Luanda que me surgia no horizonte. Um outro diretor-geral, com o pelouro do pessoal a seu cargo, tinha-me telefonado para Oslo, inquirindo sobre se eu tinha “alguma objeção em ser colocado em Luanda”. Segundo me disse, o meu nome era um dentre quatro que o Conselho estava a considerar.

Quando ele me referiu os restantes três nomes, percebi logo que seria eu o designado: um deles tinha feito o serviço militar por lá, outro tinha crianças pequenas, outro alegava, há anos, uma doença do foro psicológico, o que já lhe tinha permitido escapar a outros postos difíceis. Com o destino marcado, pedi que fosse dito, da minha parte, ao Conselho: “Informo que não tenho interesse em ir para Luanda mas, se me mandarem, vou”. Não sei se ele o disse. E, é claro, fui. Pela pressa com que me enviaram, quase sem me deixarem completar três anos no posto nórdico, quase posso dizer que fui “para Angola, rapidamente e em força”.

A capital angolana era, então, um posto de categoria D, a mais baixa, isto é, aquilo a que os ango-saxónicos chamam um “hardship post”. Em plena guerra civil, com recolher obrigatório, quase sem lojas, com uma extrema dificuldade para se adquirirem bens alimentares, Luanda era então uma cidade muito difícil para se viver. Oslo já tinha sido um posto de categoria C, o que significava que eu começava a minha carreira a andar “pelo fundo da tabela”. Mas o que tem de ser tem muita força.
  
Se tivesse dinheiro ou alternativa, teria saído então da profissão, que parecia estar a tornar-se madrasta para mim, prenunciando um percurso futuro nada promissor. Mas, como vivia apenas do meu trabalho, a necessitar do salário ao fim do mês, com a minha mulher a prescindir da carreira dela para poder acompanhar-me, tive de aceitar. 

Ia para Luanda, aliás, arruinado financeiramente, porque a Noruega tinha sido caríssima e, mesmo com uma vida relativamente modesta, não conseguira aí poupar um tostão, ou melhor, uma coroa. Saí mesmo como uma dívida a um banco norueguês, com o meu embaixador por fiador, que paguei já só em Angola. São estes, para que constem, os salários “dourados” da diplomacia, de que às vezes a inveja fala através da imprensa.

Eu ia levar um VW Golf para Luanda, mas demoraria meses a chegar, por barco, com a minha bagagem. Ter ali um carro, desde o primeiro dia, particularmente indo morar na Avenida Marginal e tendo de ir trabalhar na parte alta da cidade, era essencial.

Mal eu sabia, contudo, que, quando chegasse a Luanda, o apartamento que me era destinado se tinha “eclipsado”, tomado pelas autoridades locais, com estranhas cumplicidades lusitanas à mistura. Iria ser então obrigado a viver, por quatro meses, num hotel próximo do limite do aceitável, para depois ter de ir ocupar, no edifício da embaixada, um minúsculo apartamento, com torneiras na parede... mas sem canos por detrás. 

Mas lá me foi apresentado o carro que me era destinado. Era um carocha preto, com um motor terrível, bancos que tinham sido de napa em tempos áureos, com um buraco do chão, por onde entravam as baratas. Sem chave nas portas, claro. As latas do carro abanavam por todo o lado, conferindo ao diplomata condutor um estatuto de duvidoso prestígio.

Era o “Zero Três”. Porquê esse nome? Porque a matrícula era MX-42-03. E eu era o nº 3 da embaixada. O carro do ministro-conselheiro, o segundo da hierarquia, era um Mercedes a cair da tripeça, com a matrícula a acabar (claro!) em 02, e o do meu colega que se seguia na linha da casa, era outro Carocha, o 04. Tudo óbvio.

Antes da chegada do meu Golf, meses depois de mim, e também ainda antes da ida da minha mulher para Luanda, o 03 iria dar-me imenso jeito, para me transportar pelas ruas de cidade e para ir para a praia, “off-season”. É que eu teimava sempre, para horror dos meus amigos angolanos, em frequentar as praias da ilha de Luanda no tempo do “cacimbo”, gozando, nos fins de semana, de uma magnífica solidão para ler e ouvir música. Para quem vinha da Noruega, o “cacimbo” ali era puro verão...

Por que é que me lembrei disto agora? Porque, há pouco, num número da revista brasileira “Piauí”, que acabo de receber como assinante que sou, relembrei que Jair Bolsonaro designa os filhos, por ordem decrescente de idades, como 02, 03 e 04.

Ao ver esta referência, senti alguma nostalgia daqueles tempos complicados de Luanda. Terra onde, afinal, acabei por ser feliz, porque a felicidade, tal como o Natal para os homens, é onde nós quisermos - e, vá lá!, onde pudermos e soubermos ser.

segunda-feira, março 15, 2021

José Paulo Fafe


Por anos, só o conhecia “de ouvido”: dizia-se, unanimente, ser um “enfant terrible”! Era uma imagem irrequieta, polémica, que me ia chegando por várias vias, sempre a contrastar, nesse registo, com a figura serena e calma do pai, um grande senhor e um imenso democrata, que deixou muito boa fama pelos claustros das Necessidades e que ainda tive o privilégio de cruzar pelo mundo. O António Silva e o Nuno Brederode, dois amigos comuns que o tempo já nos levou, iam-me, entretanto, dando dele uma imagem divertida e risonha. Eu, que o via frequentemente misturado com figuras políticas que estavam longe de ser “my cup of tea”, ia guardando o meu juízo final. Lia-lhe a escrita, trazia “no sapato” uma partida que ele me tinha feito num espécie de “Gente” com que o “Tal & Qual” de outros tempos se divertia, olhava-o sempre à distância - intermediado pelos jornais ou revistas ou pelas redes sociais. Um dia, uma aventura improvável que a pandemia deixou a meio, levou-nos, por iniciativa dele, a algumas almoçaradas e reuniões, com outros comparsas. Foi o bom e o bonito! Só a muito custo conseguíamos, por entre mil historietas e notas contemporâneas, tratar do tema que ali nos convocava. E, nesse caminho de conversa, de gargalhadas e ironias, fomo-nos dando - uma expressão de que gosto muito. Cada vez mais, num percurso de entendimento que chegou à amizade. Desses tempos saiu o convite que me fez para escrevinhar uma introdução a um dos anos de uma recolha da sua escrita no Facebook. 2015, ano do “finis Cavaco”, da Geringonça e do início da nova era socialista-marcelista, coube-me em rifa. O texto lá está, quase a abrir o “Um Homem é um Homem, um Gato é um Bicho” (2015/2020), o livro de José Paulo Fafe que a Âncora agora “deu à estampa” (gosto desta fórmula clássica). Aconselho que o leiam, com proveito, abrindo ao acaso as suas páginas, porque a graça de um produto desta natureza é ser feito de textos, umas vezes curtos outras mais longos, onde se fala de tudo e, principalmente, de mais alguma coisa.

domingo, março 14, 2021

"Lá na rua da Vitória...


"Candeeiros bem bonitos
modernos, originais,
compre-os na Rádio Vitória,
não se preocupe mais.

Lá na Rua da Vitória
quarenta e seis quarenta e oito
satisfaz-se plenamente
o cliente mais afoito.

Porque na Rádio Vitória
Embaixada do bom gosto
Quem lá vai é bem servido
e sai sempre bem disposto"


Eu decorei isto por causa da "embaixada", aposto.

O meu amigo Vidal


"Para o meu amigo, se não há mesa, inventa-se!", dizia-me, em anos idos há muito, o meu amigo Vidal, que nos apresentava pratos de inspiração galega no Muni.

Confirmado hoje ...


 ... que não fazem “take-away”!



“Observare”


Observare: investimento estrangeiro em Sines, EUA reúne com aliados asiáticos, acordo UE-Mercosul e oposição bielorrussa.

Pode ver aqui

Rapidamente e em força

Se acaso eu fosse democrata e adulto nos anos 40 e 50 do século passado, teria sido um orgulhoso colonialista.

Como o haviam sido, desde o século XIX, os republicanos, os combatentes contra a ditadura, os anti-fascistas. Ser colonialista, ser adepto da manutenção do império colonial era um desígnio nacional, patriótico. Os republicanos puseram o país a ferro e indignação porque a “pérfida Albion” nos não deixou executar o sonho do “mapa cor-de-rosa”.

Portugal teimou, depois, em ir para a Grande Guerra para defender as suas possessões ultramarinas, as suas colónias. Cunha Leal, expoente da luta contra Salazar, era um ferrenho colonialista. Norton de Matos, antigo governador-geral de Angola, pedia meças ao ditador de Santa Comba no interesse em manter a nossa África nossa.

Nos anos 50, até o movimento descolonizador ter começado a abalar as anteriores certezas da esquerda portuguesa, as colónias eram “nossas”. Repito o que disse, com total convicção: se acaso fosse democrata e adulto nos anos 40 e 50 do século passado, teria sido um orgulhoso colonialista.

A legitimidade da “posse” colonial só começou a ser posta em causa, em Portugal, pelo PCP. Honra lhe seja! Fê-lo, naturalmente, porque a opinião de quem o guiava (leia-se, Moscovo) tinha entretanto mudado. 

Já havia tido lugar, entretanto, a Conferência de Bandung. A China de Mao, ainda antes do cisma sino-soviético, já tinha cheirado “l’air du temps” e pressentido que o “terceiro-mundo”, a Tricontinental, o suposto “não-alinhamento”, eram a nova fronteira de um Norte-Sul inevitável.

Por cá, bem cedo, os maoístas afirmaram o anti-colonialismo com força e coerência. Honra a Francisco Martins Rodrigues, de quem (quase) todos eles são filhos, por muito bastardos que sejam ou mereçam ser. À parte o PCP e os maoístas, só os católicos “progressistas” os seguiram. Honra também lhes seja.

Os socialistas, presos ainda a um pensamento fora do tempo - que, deles afastados, a Ação Democrato-Social se encarregou de preservar, como num museu, até que se dissolveu no PPD -, demoraram bastante, até perceber que o vento tinha mudado e o império não tinha sentido.

Resumindo: tive a sorte temporal de já poder ser adolescente e adulto a tempo de ter uma atitude anti-colonial. Nunca defendi o “Angola é nossa”, embora saiba de cor a letra do hino, porque o debitava no Canto Coral do liceu. (Como cantava, e ainda sei, o hino da Mocidade Portuguesa - e não tenho a menor vergonha disso, diga-se!) Cada um vive o seu tempo e eu vivi o meu e não o disfarço.

E digo isto, porquê? Porque, nunca tendo sido colonialista - melhor, tendo sempre sido anti-colonialista, porque a isso me ajudou o tempo em que vivi - acho sem o menor sentido, entendendo que não leva a nada e que pode mesmo ser muito negativo para o nosso futuro, a evocação obsessiva das barbáries ocorridas nas guerras coloniais que está a emergir por aí - como a que a “Sábado” desta semana e o “Público” de hoje se dedicam.

A cada tempo corresponde um tempo, uma determinada maturação da consciência, uma certa racionalidade. Pensarmos que a nossa, a do dia que corre, é moralmente superior àquela que outros tinham no passado é mostra de uma arrogância imbecil. Por isso, nunca entendi muito bem o objetivo da auto-flagelação histórica com que alguns se comprazem, como se escavar na memória, de forma divisiva, trouxesse algum bem ao nosso futuro coletivo. O passado foi quando foi. Julgá-lo, à luz dos valores de hoje, é dar ares de possuirmos, só nós, a verdade incontestável, que se lhe sobrepõe. 

Apetece-me dizer a essa gente: coragem era ser anti-colonialiasta quando havia colónias. Sê-lo hoje, retrospetivamente, é uma arrogância saloia.

sábado, março 13, 2021

O cronista

Chama-se Alberto Gonçalves e é um dos mais badalados cronistas do jornal digital “Observador”, pago por esse órgão de comunicação social para escrever coisas como estas:

”Desde há um ano, ou seja, desde que começou esta experiência social, que faço o que me apetece, excepto quando o que me apetece colide com a submissão alheia à repressão em curso. Por exemplo, não posso ir a restaurantes se estes estiverem fechados. Mas nunca me passou pela cabeça respeitar as limitações de circulação e os horários de recolhimento, os quais de resto desconheço. No último fim-de-semana, à semelhança de boa parte dos anteriores, cruzei uns 90 municípios, sem “autorizações” escritas ou desculpas preparadas para criaturas que não têm o direito de as exigir em circunstâncias assim. Se quero “circular”, circulo. Se quero estar com amigos, estou. Se quero ficar em casa, fico – porque é a minha vontade e não porque o prof. Marcelo, o dr. Costa, a orquídea da DGS, uma dúzia de “especialistas” em fancaria estatística e um estúdio de televisão repleto de idiotas o recomendam. Se me apanharem a desobedecer, multem-me. Se me apanharem a obedecer, internem-me. Respeitar ordens implica aceitar a legitimidade das mesmas e de quem as decreta. Há muito que não respeito essa gente, e há muito que as decisões dessa gente são ilegítimas.”

O texto, no antepenúltimo parágrafo, tem a lucidez de dar uma sugestão com algum sentido.

10 sítios de que sinto falta (10)

 


... e da varanda da minha casa, em Vila Real

10 sítios de que sinto falta (9)


Restaurante Cozinha do Manel, Porto

10 sítios de que sinto falta (8)


Restaurante do Rio, em Sol Tróia, na “saison”, e Tasquinha da Arlinda, durante o resto do ano, em Darque

10 sítios de que sinto falta (7)


Pousada de São Bartolomeu, Bragança

10 sítios de que sinto falta (6)


Restaurante São Gião, Moreira de Cónegos

10 sítios de que sinto falta (5)


Miradouro de Nossa Senhora do Folguedo de Cima, Mangalhona

10 sítios de que sinto falta (4)


Restaurante Vallecula, Valhelhas

10 sítios de que sinto falta (3)


Pousada de Santa Luzia, Viana do Castelo

10 sítios de que sinto falta (2)


Restaurante Lameirão, Vila Real

10 sítios de que sinto falta (1)


Pousada de Belmonte

sexta-feira, março 12, 2021

Do meu bairro (6)

 




A fome


Acabo de ler que morreu Carlos Costa, o fundador do Trio Odemira. Desde os anos 50, o grupo musical foi muito famoso entre nós e atuava, com frequência, junto das comunidades portuguesas no mundo.

Não me admirei, por isso, em 1988, em deparar com o Trio Odemira em Kinshasa, no Zaire, onde eu tinha ido integrado numa missão chefiada, pelo jovem secretário de Estado Durão Barroso. Era, recordo-o, a primeira visita de Barroso a África. 

Numa das noites, o embaixador português no Zaire, Álvaro Guerra, oferecia um jantar a Durão Barroso e à delegação. Era uma refeição com várias mesas redondas, naquele imenso edifício da nossa embaixada que, nas vezes em que lá voltei, sempre me dava ares de um Palácio da Justiça do tempo do Estado Novo.
 
Convidados para o repasto estavam alguns dos interlocutores locais de Barroso e figuras da importante comunidade portuguesa no Zaire. Álvaro Guerra tinha perguntado se também podia juntar os integrantes do Trio Odemira, a quem queria fazer um gesto de simpatia. O secretário de Estado anuiu, claro.

A mais ansiada presença no jantar era, contudo, a de um homem poderoso do regime, o ministro das Finanças, com o qual não fora possível marcar um encontro, na agenda da visita ao país então ainda presidido por Mobutu. É que a resolução de uma determinada questão bilateral passava por ele e, por essa razão, tê-lo à mesa seria muito importante, para permitir “deixar cair uma palavra” sobre o assunto, como costumamos dizer nas Necessidades. Lembro-me de que Barroso não queria regressar a Lisboa sem ter um sinal sobre esse dossiê financeiro que muito nos interessava.

Chegada a hora, os convidados lá foram aparecendo, alguns com a costumeira imprecisão temporal africana. Porém, mais de uma hora tinha já passado e o ministro das Finanças não havia meio de aparecer.

Comecei a detectar algum desagrado em Durão Barroso, que era muito avesso a improvisos e a situações que saíam da rotina programada.

A certa altura, constatando o nervosismo crescente do nosso governante, já exausto das conversas preliminares com os seus interlocutores locais, recordo-me de que, quer o chefe de gabinete de Barroso, o meu colega António Monteiro, quer eu, termos dito ao Álvaro Guerra que seria importante passarmos à mesa. 

“Mas falta ainda o ministro das Finanças!...”, retorquia o Álvaro, cada vez mais embaraçado. Era uma pena, de facto, perdermos essa “cartada”, que ele preparara com tanto cuidado, mas tínhamos de acelerar as coisas, de uma vez por todas. O atraso do jantar começava a ser insustentável.

“Vou telefonar ao ministro!”, disse Álvaro Guerra, a certo ponto. Ora aí estava uma excedente ideia! E lá desapareceu para uma sala anexa.

Regressou cinco minutos depois. Trazia na cara algum desânimo pontuado, contudo, por um sorriso enigmático. E anunciou, a alguns de nós, que tínhamos de jantar sem o ministro das Finanças. Barroso mostrou um inicial “carão”, mas era preciso ir em frente.

Recordo que fiquei numa mesa onde também estavam os membros do Trio Odemira, entre os quais Carlos Costa, agora desaparecido, e o meu colega Manuel Lopes da Costa, que também se foi, há pouco tempo. Foi uma mesa com uma conversa extremamente animada!

No final, despachados que foram todos os convidados, restando nos salões apenas a delegação oficial portuguesa, alguém inquiriu: “E então por que diabo é que o ministro das Finanças não veio?”. 

O Álvaro Guerra, já com um amplo sorriso, lá nos contou a sua conversa telefónica com o convidado faltoso.

No contacto, tinha perguntado ao ministro se havia recebido o convite para o jantar dessa noite.

A resposta foi logo surpreendente: que sim, que tinha recebido, que sabia que era para estar com um governante português e que estava muito grato por ter sido convidado.

Desconcertado, o embaixador perguntou-lhe: “Et à quelle heure vous avez l’intention d’arriver, M. le Ministre?”. A resposta foi magistral: « Ah!, mais non, M. l’Ambassadeur, je vais pas. Ce soir j’ai pas faim… »...

quinta-feira, março 11, 2021

Do meu bairro (5)

 


Do meu bairro (4)

 



O pré-anúncio

Os jornalistas não se dão conta do ridículo que é especular, por horas, sobre quais são as medidas de desconfinamento? Não seria melhor deixarem-se de “bitaites” e esperarem pelo anúncio? E acham decente entrevistarem ao acaso sobre a boataria que corre sobre o assunto?

RT

O que esta malta sabe nas televisões sobre o RT ! Parecem as tias do Vasquinho e o esternocleudomastóideu.

quarta-feira, março 10, 2021

Do meu bairro (3)

 



Do meu bairro (2)

 


Do meu bairro (1)

 


O regresso de Lula


Numa conversa na TVI, com Ana Sofia Cardoso, abordo o ressurgimento de Lula da Silva e a sua possível recandidatura à presidência do Brasil.

Pode ver aqui.

“A Arte da Guerra”



Em “A Arte da Guerra” desta semana, no âmbito do “Jornal Económico”, falo com António Feitas de Sousa sobre a situação política alemã, sobre as divergências entre a União Europeia e o Reino Unido no tocante à dificuldade de implementação do acordado no Brexit e, finalmente, sobre o voto suíço contra o uso da burqa.

Pode ver aqui.

terça-feira, março 09, 2021

Palmas a Tomaz


“Queres ir à posse do presidente da República? Posso arranjar um convite para ti”. A pergunta foi-me feita, de forma sorridente e algo desafiante, durante um jantar em casa de família, em Lisboa, por um tio, casado com a irmã da minha mãe, deputado à Assembleia Nacional pelo círculo de Vila Real. 

Estávamos em 1972. Américo Tomaz era o presidente em questão. Tratava-se da sua segunda recondução. Em 1958, em compita com Humberto Delgado, num ato eleitoral, por sufrágio direto universal, de que a História acolheu para sempre as flagrantes fraudes, Tomaz chegara à presidência.

O regime havia aprendido bem as lições desse momento atribulado. E, para evitar sobressaltos democráticos, mudou a lei. O presidente deixou de ser eleito por sufrágio popular e passou a ser escolhido por um “colégio eleitoral” composto pelos deputados à Assembleia Nacional, pelos procuradores à Câmara Corporativa e por algumas figuras mais. O controlo do resultado do exercício ficava assim garantido. Já fora “reeleito” assim em 1965.

A saída de cena de Salazar e a entrada em funções de Marcelo Caetano não mudou as regras do jogo. Por isso, não obstante alguma movimentação por parte da “ala liberal” de Francisco Sá Carneiro, para encontrar um candidato alternativo, Tomas acabaria por ser “reeleito” de novo, em 1972. O irrequieto deputado não tardaria a fartar-se da cinzenta “primavera” marcelista e a resignar ao cargo, regressando ao Porto.

Ir ver a posse de Tomaz?! Tenho, em geral, uma visão muito lúdica das coisas. Ir à posse do presidente seria um “must”. Creio que disse logo que sim. 

Dois anos antes, eu tinha estado bem ativo na campanha da CDE de Vila Real, que combatera a lista da União Nacional, de que o meu tio tinha sido o primeiro candidato. Mas as nossas relações eram, e foram-no até ao final da sua vida, excelentes. A política não nos dividia, minimamente. Foi sempre um dos meus maiores amigos.

A família, à volta da mesa, estava imensamente divertida. Então o proclamado “esquerdista”, que tinha andado nas lides do associativismo universitário (à época, era estudante-trabalhador, como funcionário bancário), sempre a clamar contra o regime, não resistia a ir ser “voyeur” de um evento da “situação”?! A verdade é que a minha curiosidade estava a suplantar, pelo desafio, a minha coerência. Achava deliciosamente divertida, e irresistível, a possibilidade de observar, de perto, aquele espetáculo de pompa e protocolo.

E assim, dias depois, de casaco (tenho impressão de que, à época, não usava fatos) e gravata, com o convite na mão, lá me apresentei na porta lateral de S. Bento, num dia de agosto de 1972. Acabei numa galeria alta, sentado ao lado de gente que, de todo, não conhecia. Apenas me recordo de estar bem de frente para a cena.

O espaço, como toda a Assembleia, estava apinhado. Todo o regime, dos próceres aos turiferários (os dicionários alguma utilidade hão-de ter!), estava ali reunido. A certa altura, Tomaz entrou na sala, com Marcelo e alguns maiorais do regime, tudo de labita e condecorações.

As galerias, unânimes, levantaram-se e, por minutos, aplaudiram. Tal como o iriam fazer no termo dos discursos e das cenas formais que se seguiram, até ao final da cerimónia, de que deixo a única imagem que descobri, cheia de brumas (devem ser as tais “brumas da memória”!).

Deixo à imaginação fértil do leitor o que terei eu feito naquela situação, com toda a gente, à minha volta, a bater as mãos! Quem me tinha mandado a mim brincar com coisas sérias! 

Há horas, ao assistir na televisão à cerimónia de posse, na recondução de Marcelo Rebelo de Sousa, lembrei-me - confesso que era uma cena que já quase tinha esquecido, e eu costumo esquecer poucas coisas - esse meu dia de imenso embaraço, há mais de meio século.

Porém, que fique claro: se esta manhã eu tivesse estado em S. Bento, teria aplaudido. Desta vez, convictamente.

Descobri a cerimónia de 1972, há pouco, nos arquivos da RTP. Não sei se alguém ainda “aguenta” vê-la. Eu aguentei, mas só na época. Agora, se quiser, pode ver aqui.

“Chapeau!”

Que texto tão magnificamente escrito este que a casa real britânica emitiu sobre os príncipes tresmalhados:

The whole family is saddened to learn the full extent of how challenging the last few years have been for Harry and Meghan. The issues raised, particularly that of race, are concerning. While some recollections may vary, they are taken very seriously and will be addressed by the family privately. Harry, Meghan and Archie will always be much loved family members.”

Está ali tudo: falsa ingenuidade, hipocrisia, ”understatement” e um jogo tático extraordinário. Gosto, em especial do delicioso “while some recollections may vary”! Ah! E, claro, a leitura literal também é admissível. Mas quanto profissionalismo lá por Buckingham!

segunda-feira, março 08, 2021

Realmente

Quando os membros das famílias reais, em lugar de andarem a partilhar angústias e a expor desventuras, tiverem de arranjar emprego (ou poderem cair no desemprego), como quaisquer outros cidadãos, sem darem ar de estar sempre em férias na neve ou a bronzear-se de glamour ou a vestir-se de “griffes” finas, sem se pendurarem publicamente nos títulos nobiliárquicos e privadamente nas heranças, sabem o que acontecerá? As revistas “do social”, as televisões “voyeuses” e os tablóides entram em crise.

8 de março


Há 10 anos, neste dia, neste blogue, escrevi isto:

Faz hoje precisamente 10 anos. Lembro-me bem que desci a pé a rampa do palácio de Belém, depois do ato de transição, e fui beber uma bica, ali ao lado. Já sem horas, nem audiências. Acabara uma experiência política de mais de cinco anos. Sentia ter cumprido "com lealdade, as funções que me (haviam sido) confiadas", nesses quase 2000 dias! E voltava a poder fazer o que, decididamente, mais gosto e sei fazer.

Nesse dia, acabavam as infernais horas perdidas em aeroportos e aviões ("ao menos, aqui não há telemóveis"), as refeições à pressa, os insípidos quartos de hotel, a leitura ansiosa dos jornais ("olha! Há aqui uma crítica à nossa política europeia"), as maratonas bruxelenses, a análise, pela madrugada dentro, dos diplomas para aprovar "em Conselho", a agenda diária cada vez mais esgotante. Mas, também, as coisas conseguidas, os magníficos e dedicados colaboradores (em especial colaboradoras, já que a esmagadora maioria foram mulheres, e hoje é o dia delas!), os muitos amigos descobertos e conquistados, a certeza de que as posições portuguesas foram sempre defendidas tão bem quanto sabia e me foi possível, o privilégio de poder ter tido um "outro" olhar sobre o país.

Mas não se confunda nada disto com poder. Na maioria dos casos, neste tipo de posições, em termos de exercício efetivo de poder, o que se pode fazer é relativamente pouco: ou não há dinheiro, ou não há gente adequada e disponível, ou o peso do "sistema" nos impede, ou é a lei que não deixa. E, quase sempre, não se pode aplicar a máxima de Correia de Oliveira: "o que é legal faz-se por despacho, o que é ilegal faz-se por decreto". Não é assim, em democracia.

Olhando hoje para trás, sem a mais leve nostalgia, reconheço que foi um período muito interessante, embora, com toda a certeza, bem mais longo do que teria sido desejável. No geral, não me arrependo minimamente do que fiz, mas, em perspetiva, soubesse eu, à partida, o que sabia à saída, faria algumas coisas de uma forma bem diferente. Mas, em política, tal como no futebol, "prognósticos só no fim do jogo".

domingo, março 07, 2021

Chega?

 


Sarkozy ou a culpa


Há dias, como toda a gente, vi na comunicação social o anúncio da condenação de Nicolas Sarkozy. Outros processos correm contra ele, pelo que o antigo presidente francês não vai ter uma vida fácil, nos próximos anos. Lembrei-me então de um episódio ocorrido com ele.

Numa manhã de 2012, o presidente Sarkozy fazia um discurso num determinado local, nos arredores de Paris, para o qual o corpo diplomático (ou só alguns embaixadores, já não recordo) havia sido convocado. Apenas me lembro de que era um evento de natureza económica.

À entrada, estive uns minutos, de pé, à conversa sobre nada, com um membro do governo francês, a encher o tempo que antecedia a intervenção do presidente. A certa altura, Sarkozy entrou na sala e subiu, rapidamente, ao palanque. Toda a gente se sentou. De imediato, vi-me colocado na primeira fila do auditório, quase ao centro da cena.

Fiz um esgar de embaraço para a pessoa do protocolo que, à distância, comandava a coreografia, mas este encolheu, sorridente, os ombros, como que a dizer “deixe-se ficar por aí!”. E por ali fiquei eu, “sem saber ler nem escrever”, como se dizia na minha terra para os apanhados em ocasiões com que tinham pouco a ver. O meu lugar de regra seria bem lá para o meio da sala.

Por uma qualquer razão, tinha dormido muito mal na noite anterior. No carro, da residência da embaixada até ao local, já tinha passado “pelas brasas”, mas estas não se tinham extinguido por completo.

Sarkozy não costuma ser um orador chato. Nervoso, saltitante, enfático, olhá-lo na ação oferece sempre um lado de espetáculo. E eu, que nunca lhe achei a menor graça política, tinha e tenho um fascínio pelas suas “performances”. E já tinha assistido a algumas bem divertidas, até em contexto de reuniões reservadas, que a deontologia me obriga a guardar para sempre.

Nessa manhã, porém, a minha capacidade de atenção não rimava com o discurso do presidente. De quando em quando, dei comigo a cerrar os olhos, com a lenga-lenga da oração política a embalar-me os ouvidos. Estava desfeito de cansaço e, por muito que tentasse, não conseguia disfarçá-lo.

Julgo que terei começado a fazer o que toda a gente faz nessas circunstâncias, para conseguir despertar-me: mudar as pernas de posição, ajustar-me na cadeira e, o que é um clássico, pôr a mão em frente aos olhos, a dar um ar de reflexão.

Mas a pulsão para o sono revelava-se imparável. De quando em quando, lá olhava para o orador. Mas as minhas pálpebras continuavam declinantes, sentia a cabeça a pingar e tinha aquela espécie de sobressaltos nervosos espevitantes, como se tivesse sido atingido por um pequeno choque elétrico. Já não sabia o que havia de fazer! Não conseguia escapar à sonolência.

Foi então que algo me inquietou, ainda mais: pareceu-me que Sarkozy olhava regularmente para mim! Fixava-me, com aquele fácies sério, grave, “excessivement grave”, expressão que o meu colega Steinbroken crismou, para outras situações, nas noites do Ramalhete, ali às Janelas Verdes.

Com o debitar do discurso, e porque eu estava quase em frente a ele, fiquei com a ideia de que o seu olhar se concentrava, com cada vez mais regularidade, exatamente em mim. Pior: sentia que havia já nessa mirada uma censura, uma personalização severa de desagrado. Seria mesmo pela minha sonolência? Estaria ele a dar conta de que eu estava prestes a mergulhar no sono? Eu, sem êxito, tentava disfarçar.

Nos anos anteriores, tinha estado com Sarkozy em várias ocasiões, mas quase não tínhamos trocado palavras. Tinha-lhe apresentado as cartas credenciais, como tinha acontecido com dezenas de embaixadores. Tinha assistido, numa posição secundária, a algumas reuniões com ele, com dois primeiros-ministros portugueses. Ele deve ter-me dito: “Ça va, monsieur l’Ambassadeur? e eu devo ter “respondido”: “Monsieur le Président!”, sem uma palavra mais, porque é assim que as regras obrigam.

Conhecia ele a minha cara? Duvido. Ou melhor, sim e não. Ele sabia, pela certa, que me tinha visto algures. Se me encontrasse ao lado de um primeiro-ministro português, deduziria que eu representava Portugal por ali. Mas, se me encontrasse na porta do Flore ou à entrada da Lipp, não teria a menor ideia quem eu era.

Sarkozy faz parte daquele género de políticos para quem os diplomatas são figuras inexistentes, constituindo apenas parte do cenário das coisas oficiais. Constatei isso em diversas ocasiões. E, lendo-o, mais tarde, confirmei ser essa a sua postura. Nada que seja incomum na vida internacional, diga-se. Nem sequer criticável, convém notar. Como dizia um velho embaixador, os diplomatas são “expendable”.

Perante o que me parecia ser o olhar fixo que Sarkozy mantinha em mim, passei do embaraço ao sentimento de culpa. Ali estava o chefe "do" Estado (nós, por cá, dizemos sempre chefe “de” Estado, mas os franceses não) a perorar coisas definitivas e, à frente dele, alguém caía de sono, se calhar, de tédio.

E era o embaixador português! Nessas ocasiões, passa-nos pela cabeça que as pessoas sabem quem nós somos: logo o embaixador de Portugal! De Portugal, do país que ali tinha uma vasta comunidade, que passava o tempo “a pedir batatinhas” à França para ajudar a convencer a Europa, nas suas trapalhadas financeiras. Ia ser bonito!

Passei ao estado de aflição. Não me conseguia libertar do sono, por muito que espetasse as unhas de uma mão na outra. O olhos fechavam-se, esperava (mas como podia ter a certeza?) não ressonar ou emitir ruídos de dimensão equivalente, nem ousava olhar de viés o ministro que, à minha ilharga, fora responsável por aquele entorse ao protocolo. Que eu, afinal, “agradecia” assim, adormecendo perante a doutrina emitida pelo mais alto responsável da nação francesa.

E lá me ia tentando eu soerguer do adormecimento físico, procurando olhar nos olhos um Sarkozy que, agora sim, parecia fuzilar-me com a vista. E que olhar tem Sarkozy, quando dá mostras de ira!

Comecei a imaginar que as relações luso-francesas poderiam levar um abalo. Não digo sofrer uma quarta “invasão francesa”, mas não excluía uma retaliaçãozeca qualquer, num contrato que necessitasse do aval político do Eliseu.

O que uma noite mal dormida, como o bater de asas da tal borboleta da história climática, poderia desencadear! Por cólera, por raiva e, no fundo, apenas por sono.

Eu já tinha tido, na vida, duas experiências trágicas nessa matéria.

A primeira, em 1969, num dia em que Adriano Moreira convidou Gilberto Freire (esse mesmo, o da “Casa Grande e Senzala”!) para ir falar ao ISCSP, na Junqueira. Por mais esforços que fizesse, mesmo com cotoveladas do meu colega Hermano Carmo, não consegui evitar adormecer, na primeira fila do anfiteatro, durante a palestra de um dos mais eminentes intelectuais brasileiros no século XX. Há meio século que trago esta angústia “atravessada”. Tenho mesmo uma fotografia desse momento. Ainda acordado, porém.

A segunda, confesso, é bastante mais comprometedora. Fazia parte de um painel, com três outros oradores, num local que nem ouso revelar. O tema devia ser a Europa ou qualquer coisa de internacional, porque é sobre isso, para além da gastronomia, que alguém ainda quer ouvir-me. A cena do palco incluía uns sofás, num dos quais me enterrei. E sobreveio-me, logo, um sono de morte. À minha frente, no anfiteatro, mais de uma centena de pessoas. E eu, progressivamente, a esvair-me em sonolência. Os meus colegas de painel a dizerem coisas inteligentes e eu a dormir sobre elas. Até hoje me pergunto o que terei dito. Será que também contribuí para a assistência dormir? Que embaraço!

Voltemos a Sarkozy. Imaginei que, na semana seguinte, em Bruxelas, num Conselho Europeu qualquer, num daqueles momentos televisionados em que os líderes se tocam nos braços, o “petit Nicolas” (como o desenho, “avant la lettre”, o tinha crismado) agarraria o fato de Passos Coelho, dizendo-lhe: “Alors, Pedrô! Ton ambassadeur à Paris, j’ai remarqué qu’il dort quand je parle!”

E já antevia a cara do ocupante de São Bento, a ver a réstia da boa vontade de Paris a esvair-se pela valeta europeia, por culpa de um diplomata a cair de sono, que passara uma noite sabe-se lá onde, logo ele, um tipo que tinha a mania de pôr no currículo um passado fardado de “homem sem sono”.

Não fora a minha reforma aproximar-se inexoravelmente e já me estava a ver a ser chamado ao gabinete azulejado do “terceiro andar” das Necessidades, com Paulo Portas, a dizer-me, entre a audiência a um sheikh árabe e outra a um amigo de Rumsfeld: “Francisco, o governo acha que você tem o perfil certo para ir abrir a nossa embaixada em Ouagadougou. Mas pode escolher Ulan-Bator, se achar melhor”.

Estaria eu a sonhar com esses pesadelos, quando o discurso de Sarkozy acabou. Toda a sala se levantou. Eu acordei ao som das palmas, também das minhas, claro, com que tentei espantar o sono e perdoar-me. O ministro francês, que tinha estado ao meu lado, dando ares de não ter dado pelo meu declinar de atenção, cumprimentou-me, sorridente, e saiu disparado atrás do chefe.

Todos saímos para a rua. O ar fresco fez-me bem. Até à culpa. Sabia lá Sarkozy quem eu era!

Nomes


Há nomes que procuram óbvios trocadilhos e confusões semânticas.

Mas, há pouco, dei comigo a pensar: o proprietário de “A Reparadora dos Anjos” sabia no que se estava a meter?

sábado, março 06, 2021

Lídia Jorge


Foi anunciado que Marcelo Rebelo de Sousa decidiu convidar Lídia Jorge a integrar o Conselho de Estado, para a vaga aberta pela morte de Eduardo Lourenço.

Uma escolha acertadíssima! 

Olhares noturnos (5)

 


Como vejo o PCP


Nascido em 1921, por transformação em partido de uma organização de raiz anarquista surgida dois anos antes, no auge do entusiasmo gerado no movimento operário pela Revolução russa, o PCP foi uma estrutura sempre muito débil até ao final da I República.

Só o declínio do movimento anarquista, no início dos anos 30, muito atingido pela severa repressão da ditadura militar, que paralelamente exilou o "reviralhismo" e não teve dificuldade em controlar a esquerda intelectual de matriz socializante, permitiu ao PCP vir a ter um papel mais relevante na luta operária que então ainda se conseguia afirmar.

Desde o seu início, o Estado Novo iria ser impiedoso para com os comunistas, tal como o fora com os anarquistas, conseguindo mesmo, por algum tempo, quase anular a sua atividade. Só a partir da década de 40 é que o PCP começou a ter maior expressão na luta oposicionista, conseguindo, muito graças aos seus setores intelectuais, estabelecer pontes com o republicanismo tradicional e com as correntes socialistas, se bem que estas fossem muito pouco representativas.

Internamente, o partido - cuja fidelidade a Moscovo, sem limites ou reticências, o tornou mimético e acrítico face às mudanças que foram ocorrendo na URSS - sofreu entretanto várias convulsões na sua liderança e mesmo alguns "desvios" no seu percurso.

Contudo, desde os anos 40, o PCP nunca abdicou de privilegiar o "frentismo" como forma de ação política, onde sempre procurou fazer prevalecer a sua linha estratégica, que se revelou nem sempre conforme com as dos seus vários aliados. Em especial desde o final dos anos 50, bem cientes da sua força objetiva relativa, os comunistas procuraram assegurar cada vez mais uma liderança firme no seio da oposição, prestigiados como estavam pela sua postura de grande coragem e sacrifício em face da repressão do regime, bem como por uma atitude de forte coerência na luta anti-colonial.

Porém, logo de seguida, com o início da década de 60, e como consequência direta do cisma sino-soviético, o PCP ver-se-ia fortemente contestado à sua esquerda, o que lhe criou a necessidade de dar resposta política a uma multifacetada crítica ideológica, que teve especial expressão nos meios académicos.

O surgimento de uma forte agitação no movimento católico e o surto de crescimento do movimento sindical trouxeram, entretanto, terrenos novos e férteis à ação do PCP, que, até ao 25 de abril, revelou sempre algum interesse em manter um diálogo crítico com a corrente socialista, apenas com um afastamento acentuado, mas pontual, nas "eleições" de 1969.

Porém, de forma incontestável, o PCP iria chegar à Revolução como a força política mais relevante no seio da oposição à ditadura.

Depois, a história é mais conhecida.

“Janela Global”


A convite de Márcia Rodrigues e de Vítor Gonçalves, tive o gosto de ir a uma edição do Janela Global, um excelente programa sobre atualidade internacional da RTP. Adota um modelo diferente do “Observare”, que, semanalmente, ajudo a fazer na TVI 24.

Fazem falta mais programas como estes, dedicados à análise serena e informada da vida internacional, em todas as nossas televisões. E é fácil isso acontecer: há hoje um conjunto de excelentes, na sua maioria jovens, especialistas destes temas, gente muito qualificada e com grande equilíbrio opinativo, que pode ajudar muito à literacia sobre temáticas externas. Eu diria mesmo que, no campo da ideias, esta é talvez a área hoje melhor servida no campo informativo.

Ontem, no “Janela Global” falei com Vitor Gonçalves da visita do papa ao Iraque, do processo judicial que condenou Sarkozy e do “regresso” de Trump.

Pode ver o programa aqui.

Ideias avançadas

“Tem ideias avançadas!”. Demorei alguns anos até decifrar o que o meu pai queria dizer com esta expressão, quando a aplicava a alguém. Com isso, ele pretendia significar que essa pessoa era comunista ou que andava lá próximo. Auto-qualificando-se sempre de “republicano”, querendo com isso deixar claro que era democrata (também não gostava dos monárquicos, é verdade), nunca lhe detetei qualquer simpatia (mas também nenhuma particular antipatia) pelos comunistas. Tinha-lhe agradado, claramente, que os comunistas tivessem atazanado o regime salazarista - a “situação” política que, acima de tudo, ele detestava. Mas as ideias do PCP, depois do 25 de abril, se bem que nunca o tivessem assustado (como aconteceu a muita gente que nos era próxima), ficaram também sempre longe de o entusiasmar. Foi a única pessoa a quem sempre ouvi pronunciar “marxismo” com o “x” a soar a “ch”, como que a querer marcar uma distância (sorria, quando eu pretendia corrigi-lo). E recordo bem a perplexidade com que viu a candidatura de Salgado Zenha, a figura que mais admirava dentro do PS, a merecer a simpatia de muitos comunistas.

Dei comigo a pensar como reagiria o meu pai se, no dia de hoje, eu lhe dissesse que o PCP faz 100 anos. Provavelmente, diria: “Ora essa! Eu nasci antes deles, mais de uma década!”. Mas não posso perguntar-lhe.

sexta-feira, março 05, 2021

A viagem do papa

Pode ter sido uma ideia um pouco doida, em tempos de pandemia. Um papa ir ao Iraque, numa altura destas, não lembrava a ninguém! Mas uma das razões pela quais o papa Francisco tem uma certa graça, para quem, como eu, nada tem a ver com a sua doutrina, é o facto de, por vezes, ele ter atitudes e “saídas” relativamente originais. Este papa parece-me ser, estruturalmente, uma “boa pessoa”. E não tive a mesma opinião de alguns outros. Este gesto, em terra “alheia”, num ambiente em que um discurso de paz, por muito ineficaz que seja, tem sempre um significado positivo, é um gesto digno de apreço e admiração. De vez em quando, embora nem sempre, a igreja católica escolhe bem. Foi manifestamente o caso deste papa.

quinta-feira, março 04, 2021

Doer

Pedro Nuno Santos é um “doer”, palavra inglesa que significa alguém que ”faz coisas”. Mostrou já eficácia na greve dos camionistas e em outras ocasiões difíceis. Mas “doer”, em português, tem outro significado e Pedro Nuno Santos está, por estas horas, a aprender isso mesmo.

Uma questão de acento

Tive um primo, que já se foi há uns anos, que tinha como máxima: “Deus disse que nos amássemos, não que nos amassemos”. Que eu saiba, ele nunca chegou a andar pelas redes sociais.

Um restaurante diferente



A porta fechou, há bastante tempo. O seu dono também desapareceu, há muito. Francisco Queiroz tinha vindo de África, nessa segunda metade dos anos 70, quando muita outra gente também veio de África.

Começou por lançar o “Varina da Madragoa”, na rua das Madres, até que se fixou no “Sua Excelência”, na rua do Conde, não muito longe do Museu de Arte Antiga. Há pouco, tirei esta foto da porta.

Queiroz era uma figura bastante interessante, para alguém que dirigia um restaurante. Fazia parte daqueles donos da casa que fazem gala que não nos esqueçamos de que são... os donos da casa. Há quem se irrite com o estilo, há quem ache graça. Eu, sem um esforço por aí além, procurei sempre sobreviver entre esses dois registos. Não tenho, por feitio e à partida, uma excessiva paciência para aquelas maneiras, mas divertia-me aquela forma de estar, por ser essa precisamente a diferença que marcava a casa. 

Era um restaurante com poucos lugares, com um pátio traseiro simpático e preços um pouco “puxados”. Nesse tempo, ali na Lapa, como no resto de Lisboa, encontrava-se sempre um lugar para estacionar (até no Bairro Alto!).

Reservava-se, entrava-se, havia uma zona para um copo prévio à refeição e, não se sendo íntimo, como nunca fui nem pretendi ser, começava-se, invariavelmente, por ser tratado de uma forma snobe, num estilo muito afetado, criando uma distância quase artificial e, para muitos, ligeiramente intimidatória. Essa era a imagem de marca que Francisco Queiroz deliberadamente queria transmitir. E que colava muito bem à sua pele.

Sejamos justos que era essa rara coreografia, para além da boa comida, a razão um pouco masoquista que ali nos levava. E que também nos motivava a convidar para lá amigos estrangeiros, para apreciarem aquela bizarria, essa aposta restaurativa muito distinta que o “Sua Excelência” representava então em Lisboa.

Para além da oferta culinária, que estava na “média alta” da época, o grande “número” da noite era o enunciar da lista, que não existia em formato de papel e que Francisco Queiroz debitava, se fosse necessário, em várias línguas.

Uma noite, no meio dessa longa recitação, decidi tomar uma nota escrita sobre um prato que ele tinha acabado de referir e que temi esquecer, ao fim da longa lista. Queiroz ofendeu-se, ou fez de conta que se ofendeu, afivelando o carão de desagrado que lhe era muito típico: “O que é que está a fazer?” Expliquei que tinha receio de me esquecer do prato. Ele olhou para mim do alto (ele olhava sempre do alto!), retorquindo: “O menino não tem nada que tomar notas! Ora essa! Pede para repetir e eu repito!” E lá continuou a litania.

Numa outra ocasião, levei por lá um amigo brasileiro que, além de um pouco surdo, tinha dificuldade em seguir os detalhes das descrições dos cozinhados com que Francisco Queiroz se comprazia. E, não reparando que falava demasiado alto, disse-me, pensando estar a fazê-lo em voz baixa: “Não entendo nada do que o “veado” diz!” A noite esteve para acabar por ali, com o dono da casa a dar mostras de ofendido, e com real razão, só não nos pondo com outro dono por consideração por mim, que organizara o jantar e tinha começado por elogiar a casa.

Num outro jantar em que uma convidada, no final da refeição, sem nada a ver com o que tinha comido, se sentiu mal, a conta final, num gesto de grande delicadeza, veio descontada dessa despesa. Nunca esqueci esse gesto.

Nesta memória, deixo um texto, que “apanhei” num artigo de jornal, e que reproduz, ipsis verbis, a apresentação feita das entradas que o “Sua Excelência” num certo dia oferecia. Por ele podem imaginar a riqueza da descrição que se seguiria, no tocante aos pratos principais e às sempre excelentes sobremesas. Noto que, na explicação dos pratos, era vulgar Francisco Queiroz dizer que eram “como a tia Maria do Carmo fazia” ou “como lá em casa a mãe preparava” ou coisas assim.

Aqui vai: 

Temos uma sopa de peixe, que é a sopa do dia, uma especialidade da casa, uma sopa alentejana que se faz num instantinho, se quiserem, e ainda temos um consome com vinho da Madeira que também há todos os dias. (Espere aí que ainda não acabei!). Nas entradas propriamente ditas temos umas gambazinhas deste tamanho chamadas “à moda de Moçambique”, que são abertas primeiro, muito bem temperadas, e depois, na altura de servir, são fritas em manteiga com molho de piripiri. Temos um belíssimo espadarte fumado e também um cocktail de camarão dentro de uma pêra abacate. Além disso, há uns cogumelos salteados com natas e vinho da Madeira, numas caçarolazinhas de porcelana. Uns ovos en cocotte, feitos no forno em banho Maria, com azeitonas, bocadinhos de fiambre e natas. Por fim, temos um funcho gratinado no forno... O funcho? Bem, há uma erva, mas essa erva nasce de um bolbozinho que está debaixo da terra e é essa raiz que nós empregamos na culinária. Parece uma cebola achatada, é muito saborosa. Primeiro, coze-se em água e sal, corta-se em quatro bocados que se põem num tachinho de barro (Espere aí que ainda não acabei!), com uma fatiazinha de fiambre, molho branco e quejo ralado, é uma delícia! Isto é o que nos temos para começar.”

Fazem falta restaurantes destes em Lisboa! Agora, num estilo só aproximado, na melhor das hipóteses, o que se vê por aí, mas felizmente não muito, já não é este tipo de sobranceria afetada a soar, com graça, a uma aristocracia deliciosamente decadente, mas sim atitudes de “confiança” a roçar a má educação ou, então, o estilo “casual arrogant” de uns miúdos que servem à mesa como que fazendo um frete, dando ares de estarem a ganhar umas horas com o “tio”, no meio de um mestrado para encher o tempo.

quarta-feira, março 03, 2021

“A Arte da Guerra”


Num “podcast” do “Jornal Económico”, pode ver e ouvir a análise aos 10 anos das “primaveras árabes”, à crise na Arménia e no Cáucaso do Sul, acabando numa perspetiva sobre a primeira ação militar da administração Biden no Médio Oriente e o modo como poderá evoluir a sua relação com a Arábia Saudita.

Pode ver aqui.

A lua de mel



Joe Biden fez um excelente discurso na Conferência de Segurança de Munique, que anualmente reúne figuras do mundo político-militar europeu e norte-americano. A intervenção poderia ter sido escrita por um europeu, de tão simpática que soou a ouvidos deste lado do Atlântico. Nas menções à União Europeia e à NATO, no tocante ao multilateralismo ambiental, nas equilibradas referências críticas à Rússia e China - tudo o que ficou dito foi ao gosto europeu, por muito que saibamos que nem toda a Europa toca exatamente pelo mesmo diapasão.

Biden é um óbvio anti-Trump e sabe que, ao mostrar sê-lo, ajuda a sarar o traumatismo que o seu antecessor provocou por estes lados. Diplomaticamente, vive-se agora um tempo de “lua de mel”, mas esses períodos têm sempre, como se sabe, um prazo de validade.

O novo presidente americano não disse até onde está disposto a ir se Berlim mantiver a ideia do Nordstream 2, o “pipeline” para abastecimento de gás russo. E também não esclareceu o que irá pedir aos seus aliados europeus em matéria de pressão sobre a China - que se sabe ser, para Washington, muito mais do que um retórico “adversário estratégico”. Neste tema, também não disse o quanto lhe desagradou a pressa na finalização do acordo sobre investimento, firmado entre a União Europeia e a China, num tempo coincidente com a sua posse. E não elaborou sobre o que pensava da “autonomia estratégica” que, no seio da União, alguns anunciam como desejável e que outros acham ser, no limite, menos compatível com os equilíbrios da NATO.

É de regra que, numa eleição presidencial americana, os europeus se sintam tentados a “votar”. Nesta última, quase ninguém se “absteve” e grande parte (nem toda, atenção!) da Europa saiu vencedora.

Mas há uma outra regra que é preciso nunca perder de vista: o presidente americano é eleito para defender os interesses dos Estados Unidos e estes, frequentemente, não são os mesmos dos dos seus aliados, por muito que uma retórica de consenso embrulhe o discurso. Por isso, a prazo, alguns dentre quantos agora aplaudem Biden vão, forçosamente, sentir-se desencantados com parte da sua ação. É da lei da vida.

Biden é uma extraordinária oportunidade para o mundo transatlântico. Mas a América já provou ser uma entidade internacional menos previsível do que aquilo a que nos tinha habituado e a Europa destes tempos é bem mais complexa do que a que se projetou nas décadas da aliança de sucesso no passado. Nem todo o desejável é possível e ser realista poupa muitas desilusões.

terça-feira, março 02, 2021

Moedas

O principal problema com que Carlos Moedas vai ter que se confrontar, na sua candidatura à Câmara de Lisboa, são as figuras que, inevitavelmente, vão aparecer a seu lado e que ele não vai poder “enxotar”.

No “Le Monde”


Então ninguém fala sobre isto?

Eduarda Lima é portuguesa e foi cá que o livro foi originalmente editado. 

Procurem-no!

Populismos


Amanhã, às 16:00 horas, não perder este debate. Promete!

A dança das cadeiras


Foi ontem anunciada a condenação do antigo presidente francês, Nicolas Sarkozy, acusado de corrupção. A sentença prevê um ano de prisão efetiva. Haverá um recurso, mas Sarkozy ficará, por ora, retido em casa, com pulseira eletrónica. O antigo presidente tem ainda outros processos a correr contra si.

Há dias, quando lia um livro sobre o sucessor de Sarkozy, François Hollande, lembrei-me de ambos. De como projetavam imagens que não podiam ser mais contrastantes: Sarkozy tenso e agitado, Hollande calmo e sorridente.

Ainda com José Sócrates como primeiro-ministro, estive no Eliseu algumas vezes, em encontros com Sarkozy. Antes, havia ido lá, em diversas ocasiões, com António Guterres, para conversas e almoços com Jacques Chirac. E também acompanhei Pedro Passos Coelho a reuniões no Eliseu, neste caso com Sarkozy e Hollande.

A reunião de Passos Coelho com Sarkozy, pouco tempo após a posse do nosso primeiro-ministro, teve lugar no “salão verde”, que fica junto ao gabinete do presidente. 

No ”salão verde”, notei que as cadeiras douradas, à volta da mesa comprida, eram todas iguais, com uma exceção: a do presidente francês, mais cómoda, com braços. Achei aquilo um pouco bizarro: o chefe de Estado estava a receber um chefe de governo, seu homólogo no Conselho Europeu, e não concedia ao seu visitante um assento idêntico. Como se Sarkozy fosse ali um “primus inter pares”. Para meu gosto, era tudo demasiado Versailles, demasiado monárquico.

Passou, entretanto, um ano. Regressei ao Eliseu, acompanhando Passos Coelho. O presidente francês tinha mudado. Era François Hollande. A reunião era no “salão verde”. Olhei as cadeiras. A de Hollande, no mesmo lugar onde antes se sentava Sarkozy, era a tal, confortável, com braços. A que estava destinada a Passos Coelho era igual a todas as restantes. 

A França passara da direita à esquerda. Os presidentes eram o oposto um do outro. No entanto, a coreografia do protocolo, no Eliseu, continuava exatamente a mesma.

Como será com Emmanuel Macron? Posso apostar que está tudo igual.

segunda-feira, março 01, 2021

Memória da política

Acabo de saber que saiu um livro sobre as relações entre ministros e secretários de Estado, que assentará no estudo dos fatores de conflito entre essas duas categorias de membros de governo. Estou com alguma curiosidade em lê-lo, confesso.

O livro cobre um período posterior àquele em que eu próprio passei por dois sucessivos governos, exercendo, por mais de cinco anos, as funções de secretário de Estado dos Assuntos Europeus, quando Jaime Gama era ministro dos Negócios Estrangeiros.

A política também é feita de “petite histoire” e, por vezes, acabamos por ser envolvidos nela, queiramos ou não. Comigo isso também aconteceu. Ao longo daquele relativamente longo período de governo, em especial nos últimos anos, correu um persistente boato, com ecos na comunicação social, de que haveria divergências, e até conflitos, entre o ministro e eu. Em algumas ocasiões foi-me colocada a questão, não sabendo se alguém a suscitou alguma vez a Jaime Gama. Pude constatar, aliás, que algumas pessoas se compraziam em difundir o rumor, como se o quisessem consagrar como um facto.

Esta semana, passam precisamente 20 anos - caramba, já! - desde a data em que deixei funções políticas, na opção que então tomei de regressar à minha carreira profissional de base. A minha saída do governo havia sido programada com quase um ano de antecedência, entre mim e o ministro, com conhecimento do primeiro-ministro António Guterres, e teve lugar depois de eu ter deixado concluídas algumas tarefas que tinha a meu cargo, no âmbito europeu, que se considerou que era importante ficarem completas - a principal das quais era a conclusão da negociação do Tratado de Nice. 

Tudo correu sem o menor drama, sem a menor pressa, em total e completo entendimento. Por coincidência, a tragédia de Entre-os-Rios fez com que a minha saída acabasse por ser simultânea com a de Jorge Coelho, com quem, curiosamente, eu entrara no mesmo dia no governo.

Naqueles bem mais de cinco anos, posso hoje revelar, nunca tive, que me recorde, uma única discussão com Jaime Gama, nunca com ele tive a menor divergência de natureza política - pelos vistos, o mote do livro agora publicado. Em duas ou três ocasiões, mas apenas em questões práticas e nunca em qualquer tema de fundo, teremos abordado algum assunto por prismas diferentes, com toda a serenidade, tendo rapidamente chegado a uma conclusão comum, confortável para ambos. O que permitiu, aliás, e constato isso com muito agrado, que até hoje continuemos a ser bons amigos. 

O publicação do tal livro e a coincidência de passarem exatamente duas décadas desde o dia em que deixei a política ativa dão-me um belo ensejo de deixar isto aqui escrito e bem clarificado. Em definitivo, “for the record”, sem aguardar hipotéticas memórias encadernadas.

Notícias do medo

Chegámos a março. Foi no mês de março, do ano passado, que começámos a ter medo. E ainda não saímos disto.

Parabéns, concidadãos !