quarta-feira, setembro 09, 2020

Presidenciais


Por algumas razões, achei que não devia escrever sobre as eleições presidenciais. Por outras, que sobrelevam as primeiras, entendi dever fazê-lo.

Não há, por ora, verdadeiras surpresas no horizonte eleitoral que se aproxima.

A candidatura quase clandestina, sem a menor força nem prestígio, que entretanto surgiu no espaço da direita radical, entre André Ventura e Marcelo Rebelo de Sousa, acaba por servir muito bem a este último. Como praticamente ninguém irá por aí, aos eleitores de direita que vivem desencantados com o atual presidente restam duas opções: passarem um domingo em casa ou optarem pelo candidato do Chega, apostando na antecipada certeza da derrota deste, mas expressando, dessa forma, o seu mal-estar com o atual presidente, aproveitando para lhe dar uma "lição", quiçá na esperança de lhe reduzirem o "score".

No outro lado do espetro, os comunistas terão, como sempre tiveram, o seu nome oficioso, para fazerem as contas às suas fidelidades. Como não haverá segunda volta, terão um dilema a menos.

O Bloco de Esquerda vai a jogo, como expectável, com Marisa Matias, a qual, há cinco anos, foi uma interessante surpresa, que, desta vez, não parece ter condições de se repetir. É que, com Ana Gomes no terreno, o eleitorado do "pintasilguismo" de nova geração, que já esteve com Manuel Alegre, que sempre oscila entre o Bloco e a esquerda do PS, passa a ter uma opção alternativa. Foi claro o afã de Marisa Matias em surgir a terreiro, como o foi a determinação de Ana Gomes em também marcar, desde cedo, o seu espaço. São, de facto, áreas políticas que, de certo modo, se sobrepõem. Haverá, entre as duas, um "womenagreement" de não-agressão, atentas eventuais cumplicidades criadas no Parlamento Europeu? Logo veremos.

Não parece fácil a posição de António Costa, em todo este cenário. Desde o episódio da Autoeuropa que ficou claro que, para ele, uma reeleição, quase oficiosa, de Marcelo Rebelo de Sousa, seria o mundo ideal. Mas, para tal, terá de ultrapassar alguns meses em que sabe que a uma parte, não desprezível e não desprezável, do PS não agrada a ideia de ser dada uma bênção automática a um recandidato ao qual parte importante da direita acabará por se ligar.

O eleitorado do PS é mais rebelde do que foi o do PSD, em 1991, que não tugiu nem mugiu quando Cavaco optou por apoiar Soares. Ana Gomes sabe que a sua candidatura representa o desconforto de muitos socialistas, perante a perspetiva de terem de votar em Marcelo. Pelos vistos, até de setores da direita do PS!

terça-feira, setembro 08, 2020

Vicente


Estou a sair de casa para o velório do Vicente Jorge Silva, com cuja notícia da morte acordei, esta manhã. Nunca fomos íntimos, longe disso, mas tratávamo-nos por tu, desde sempre, desde que, numa tarde de 1990 (caramba, já lá vão trinta anos!), o José Mário Costa me levou à Quinta do Lambert, onde então se preparava o “Público” e ele, Zé Mário, organizava o “livro de estilo” do jornal.

Lembrei então ao Vicente dois artigos que eu tinha escrito no “Comércio do Funchal”, nos idos de 1972/73, que ele dirigia. Claro que ele não se lembrava, mas foi simpático: “Ah! Foste tu quem escreveu isso?”. E passámos adiante. 

A espaços, no último decénio, íamo-nos encontrando numa divertida tertúlia jantante em Campo de Ourique, à qual ele conseguia ser mais relapso do que eu. Vi-o, com a família, por uma última vez, na (sua) Madeira, à saída de um restaurante do Funchal. Exclamou: “O que é que andas a fazer na minha terra?”. 

O que penso de Vicente Jorge Silva está neste texto que escrevi, há seis anos, aquando da saída do livro que Isabel Lucas lhe dedicou: “Em Portugal, goste-se ou não, há um jornalismo antes e outro depois do Vicente Jorge Silva. Para quem, como foi o meu caso, começou a ler o "Comércio do Funchal" logo depois da "revolução vicentina" de 1966, e que, a partir de 1973, o acompanhou no "Expresso", apreciando depois essa aventura que hoje é só saudade que foi a sua “Revista", e, finalmente, que seguiu com admiração a sua criação maior - o "Público" -, Vicente Jorge Silva tem um papel de exceção no mundo mediático nacional. Pelo meio, ficaram os filmes, a "Invista" (onde me recordo de ter escrito algo, de que já me não lembro) e muito texto de opinião, com a política caseira no centro, a cuja momentânea sedução ele próprio não escapou.”

Teresa de Sousa escreve hoje sobre a genialidade do Vicente. É pura verdade! Vicente Jorge Silva era uma personalidade genial, como houve poucas, em Portugal, nestas últimas décadas. E não estou a exagerar, podem crer!

Os “números” do Avante



Sob palavra de honra, por alguns instantes, quando, no sábado, olhei para este título do “Expresso”, não pensei na Festa da Atalaia. Por uma deformação política geracional, imagino que residual, fiquei com a súbita ideia de que o PCP havia decidido, por uma qualquer misteriosa razão, “esconder” números publicados do seu jornal histórico.

O fascínio pelo “Avante!”, mesmo para quem não era comunista, era uma realidade para muita gente, no tempo da ditadura. Aquele jornal de papel muito fino, que escondíamos de olhares curiosos, fazia parte da mitologia da vida de quem detestava o regime e que, mesmo não concordando em muita coisa com o PCP, reconhecia a importância da sua luta política e a inultrapassável dedicação dos seus militantes.
Tenho uma historieta ligada ao jornal “Avante!”, com o seu quê de caricato, ocorrida logo após o 25 de abril.

Estávamos em 6 de Maio de 1974. Num jornal diário, surgiu a notícia de que o PCP iria abrir a sua primeira sede, numa certa noite, na rua António de Serpa (aquela que iria ficar eternamente crismada, na memória política portuguesa, como "a António Serpa", simplificando o nome do poeta), a sede central que viria a ser substituída pela Soeiro Pereira Gomes.

Na notícia, dizia-se que o partido, por essa ocasião, iria pôr à venda exemplares de documentos clandestinos editados durante a ditadura, em especial exemplares do “Avante!” e do órgão doutrinário “O Militante”. 

Eu era, à época, um colecionador dedicado de publicações desse género, não apenas do PCP mas de toda a parafernália de formações políticas anti-ditadura que então existia, dispondo de uma apreciável coleção, a qual, naturalmente, ficaria muito enriquecida com o que o PCP viesse a disponibilizar.

Assim, ao princípio dessa noite, apresentei-me no segundo andar esquerdo do nº 26 da avenida António de Serpa, em Lisboa. 

Atenderam-me com simpatia, dizendo-me que teria de aguardar por alguém, o responsável que ia pôr o material à venda. Os minutos foram, entretanto, passando. As salas, quase vazias de móveis, começaram a encher-se de pessoas, que se iam reconhecendo entre si. 

Eu tentava imaginar os encontros anteriores dessa gente, figurava as suas atividades no mundo clandestino dos comunistas, presumia alguns nas batalhas eleitorais em que se haviam envolvido, do MUD e de Norton de Matos a Humberto Delgado, de Ruy Luis Gomes à CDE. Mas, por muito que procurasse, nessas caras, figuras que tivesse encontrado no II Congresso Republicano de Aveiro, na célebre sessão do Palácio Fronteira ou por ocasião da Plataforma de S. Pedro de Muel, eu não conhecia ninguém. E continuava por ali sozinho. 

A certo momento, dei-me conta do ridículo da situação. Com efeito, ali estava eu, por um motivo mais do que fútil, numa festa que não era minha e que, para aquelas pessoas, era uma verdadeira ocasião histórica. É que aquela era a data em que um partido que entrara na clandestinidade 48 anos antes, cujos militantes haviam sofrido como nenhuns outros a violenta repressão da ditadura, abria, na legalidade, a sua primeira sede. E eu era, nesse evento, um verdadeiro intruso. 

Começava a ter a sensação, porventura exagerada, de que essa minha solidão já deveria estar a ser olhada, com estranheza, por alguns. É que eu não procurava estabelecer contactos, com receio que alguém me perguntasse qual era a minha relação com o partido, que não era nenhuma. Discretamente, fui-me aproximando da porta de saída.

Foi então que dei, de frente, com uma cara conhecida, um antigo quadro do movimento associativo de Medicina, que eu cruzara em várias "guerras" universitárias, que todos dávamos então como ligado ao PCP. Olhou para mim, com algum espanto, sabedor que aquela não era a minha "praia" política, seguramente perplexo com a minha presença no seio dessa festa do seu “Partido" - como, à época, a maioria de nós designava o PCP. 

Imagino a risível figura que eu devo ter feito, quando lhe revelei: "Vinha aqui comprar "Avantes!" antigos, que li que iam ser postos à venda...". E saí, escada abaixo.

segunda-feira, setembro 07, 2020

Força!


“Então tu viveste quatro anos em Londres sem aqui vires?”

Eu estava quase envergonhado. Eu, que me gabava de ter andado todo esse tempo com um guia anotado dos alfarrabistas londrinos no meu carro com volante à direita, que achava que, nesse início dos anos 90, tinha conhecido todas as Dillon’s e Waterstones da cidade, de cima a baixo (diga-se que, na prática, elas eram todas iguais, como o eram as Ryman), que descobrira algumas estantes da Foyle’s onde parecia não ter ido ninguém há anos, que coscuvilhava tudo o que eram casas de livralhada em Charing Cross, que me passeava pela Hatchard’s com a mesma cerimónia com que ia beber chá ao vizinho Fortnum & Mason, eu, afinal, não conhecia aquela formidável John Sandoe.

Uma livraria extraordinária que sempre havia estado ali, ao lado da “swinging sixties” King’s Road, do mais desinspirado mas mais eficaz armazém de Londres, o John Lewis, a dois passos da trotante Sloane Street, a duas ou três esquinas de um hotel (mais do que “de charme”) que, por muito tempo, havia sido um dos meus segredos na cidade, o “11 Cadogan Gardens”, até que lhe deu para disparar nos preços.

Pois é! Foi apenas nessa visita a Londres, para o jantar da Crabtree de 2009, quando já vivia em Paris, que o António me fez descobrir a mais amável livraria de Londres.

Hoje, o António não quer saber nada disso e pensa que a vida lhe pregou uma partida que não estava no “script” da dita.

Eu nunca esqueci que, um dia, perto do Natal de 2011, num hospital público parisiense, comigo saído da anestesia de uma operação delicada, com a minha família impedida subitamente de poder estar por perto, a primeira cara com que deparei foi a do António, que já então vivia, como eu, em Paris, e que me disse, com um sorriso amigo e bom, de que lembro para sempre: “Acorda, homem!”.

Mas ele hoje não quer ouvir falar em hospitais! Força António! Força Carol!

domingo, setembro 06, 2020

A máfia lusa


Uma bela série que passa na RTP2, filmada em Corfu, na Grécia, fez-me recordar uma semana que passei naquela ilha grega, há mais de 20 anos, integrado numa tertúlia política - o Symi Symposium - coordenada por Georgios Papandreou, à época ministro grego dos Negócios Estrangeiros.

Tal como veio a acontecer em outros anos, tinha sido convidado a participar nesse ciclo de debates sobre temas internacionais. Nesses exercícios, pagávamos do nosso bolso as viagens para a Grécia e duas fundações, uma grega e outra sueca, encarregavam-se depois por completo de nós, durante toda a estada no país - viagens internas, hotéis e refeições. Os debates tinham lugar, em cada ano, em locais diferentes do país. Em 1999, foi em Corfu.

Os cerca de trinta participantes, de quase tantas outras nacionalidades, tinham vindo conjuntamente de Atenas, de avião. À chegada ao hotel, os quartos já nos estavam atribuídos, pelo que cada um de nós se ia aproximando do balcão, para receber a chave.

Quando chegou a minha vez, verifiquei que houve uma pequena hesitação: “Senhor Costa? Aguarde um momento, por favor”. Fiquei intrigado. Vi então sair de um escritório um cavalheiro que, rodeando o balcão, se dirigiu a mim, em português, dizendo-me: “Seja bem vindo, eu sou português, diretor do hotel e queria dizer-lhe que tenho muito gosto em que fique instalado numa suite igual à do ministro Papandreou”.

Eu estava um pouco embaraçado pela discriminação positiva de que era objeto, tanto mais que os meus colegas olhavam já com alguma estranheza para aquela abordagem personalizada. Agradeci muito a gentileza e preparava-me para zarpar discretamente para os aposentos - que, vim a constatar, eram, de facto, deslumbrantes - quando o diretor, alto e bom som, no meio de toda aquela gente, chamou com voz forte um empregado para levar “a bagagem do senhor Costa à suite número tal”. Caí então no centro dos olhares, alguns irónicos, outros talvez invejosos, hesitante sobre se haveria de esclarecer que o privilégio era devido à boa “máfia” portuguesa que se espalha pelo mundo. Optei por calar essa cumplicidade.

Às vezes, penso que seria muito bom voltar de novo a Corfu, desta vez sem ter de participar em debates, de manhã cedo ao fim da tarde, durante todos os dias de estada, mas apenas para poder gozar as praias. Com o ambiente em que o mundo entretanto entrou, duvido muito que o venha a fazer. E “suites”, isso nem vê-las!, a menos que o nosso simpático compatriota ainda por ali tenha ficado.

sexta-feira, setembro 04, 2020

Saudades da Gôndola


Hoje surgiu-me na net esta interessante imagem da frontaria do restaurante “La Gondola”. Naquele espaço, quase em frente à Gulbenkian, vão agora surgir escritórios. 

A Gôndola nunca foi um marco gastronómico, longe disso, mas tinha uma indiscutível graça. Lembro-me de que, por ali, operavam umas empregadas de bata preta e avental branco, atavio de que, em Lisboa, só recordo usado em “A Quinta”, uma também “falecida” casa, situada no fim da ligação do alto do passadiço do elevador de Santa Justa para o Carmo.

Num belo dia como o de hoje, almoçar em boa companhia no jardim da Gôndola (lá dentro, o espaço era desinteressante, salvo o esconso bar à entrada) seria bem simpático. Mas nada de nostalgias: há hoje, por essa Lisboa, um mundo de sítios bem agradáveis para se almoçar ao ar livre.

quinta-feira, setembro 03, 2020

Cândida Pinto


A competência suscita sempre forte inveja à mediocridade. 

Um abraço solidário à Cândida Pinto, de um utente do serviço público de televisão.

BB


Gonçalo Pereira Rosa lançou, num artigo no “Público”, a ideia de ser dado o nome de uma rua de Lisboa a Baptista-Bastos.

Nada de mais justo!

Saloios

Se há algo que, pelas piores razões, define um certo país é a corrida de muitos portugueses a mudar as placas de matrícula dos seus carros, para deixarem de ter visível a antiguidade dos mesmos.

Pudor

Há poucas coisas que me irritem mais do que ouvir pessoas falar mal dos partidos que abandonaram. 

É uma atitude que tem a “elegância” de divorciados a falarem mal dos ex-cônjuges. 

A quem se separa do que esteve afetivamente próximo é, no mínimo, exigível o recato do silêncio.

Covid

Ou muito me engano ou a recusa em usar a app Stayaway Covid vai passar a ser, para muitos, uma patética forma de “resistência cívica”. 

Há quem ainda não tenha conseguido perceber que o vírus não tem qualquer ideologia, tal como o seu combate.

Cidadania

Espero que o programa de educação para a cidadania seja equilibrado, embora me pareça óbvio que nunca será 100% consensual. Mas uma sociedade que se preze tem de assegurar que a sua juventude é educada nos seus princípios básicos, desde logo constitucionais.

Venham lá essas teorias!

A questão do dia, para os adeptos das teorias da conspiração, é descortinar a razão pela qual este governo, tão “esquerdalho”, foi afinal o primeiro a autorizar um curso de Medicina numa universidade privada - e logo a Católica! Para malta que pensa assim, nunca nada é por acaso!

Claro está que, fora de questão, fica a hipótese da proposta ter sido aceite com base nos seus méritos. Isso não passa pela cabeça dessa gente.

quarta-feira, setembro 02, 2020

Trás-os-Montes no Avante




Nunca como este ano a Festa do Avante se tornou tão polémica. Tendo o debate começado por boas razões, de ordem sanitária, logo se percebeu que o argumento acabou utilizado como arma de arremesso por quantos diabolizam o PCP.

E se, na primeira questão, alguma razão se poderia reconhecer aos contestatários da festa na Atalaia, já o peditório anticomunista subsequente tresanda a áreas políticas insalubres.

Tendo um grande respeito pela luta dos comunistas contra a ditadura marcelo-salazarista, estive na primeira Festa do Avante, realizada na FIL, em Lisboa, em 1976. Depois, em 1978, voltei à festa, já então no Jamor. E, finalmente, em 1986, a uma outra edição, na Ajuda. Nunca estive no local onde o evento agora tem lugar, na Atalaia.

Mas a que propósito surge o título do artigo, perguntará o leitor? Por três razões.

Da festa no Jamor, guardo na memória uma cena passada no stand transmontano onde, naturalmente, fiz questão de ir jantar. Encontrei então por lá um velho colega de escola primária, de Vila Real, que eu sabia ser responsável do PCP local. Surpreendido com a minha presença, e suspeitando-me - e bem! - como mero "turista político", fez-me a pergunta: "Vieste cá à festa por vir ou vieste porque devias vir?". Saiu-me esta resposta: "Olha! Vim porque me apeteceu. E tu? Foste obrigado?" Não me recordo o que me respondeu.

A segunda nota transmontana prende-se com o pão da excelente padeira de Mirandela, de seu nome Seramota, que, ao que sei, todos os anos assegura uma presença comercial militante na festa comunista. No ano passado, quando, por esta altura do ano, passei por Mirandela para me abastecer do seu produto, fui informado de que a senhora estava de serviço na Atalaia.

A Festa do Avante tem ainda uma interessante nota final, bem ligada a Trás-os-Montes, terra onde as ideias comunistas nunca tiveram um acolhimento eleitoral por aí além. Foi em Tuizelo, no distrito de Bragança, que os comunistas portugueses descortinaram a dança popular que, desde os anos 80, abre e fecha os seus comícios e tempos de antena, a Carvalhesa. A música acabou por se transformar num verdadeiro segundo hino do PCP, muito pela mão de Rúben de Carvalho, uma simpática e dialogante figura, que há mais de um ano saiu da cena da vida e que, por muito tempo, foi a principal cara da Festa do Avante - e não escrevo "alma" por razões óbvias.

Todos os anos, a Festa do Avante termina com toda a gente a dançar a Carvalhesa. Só podemos esperar que, este ano, o façam em total segurança.

terça-feira, setembro 01, 2020

De verde


Foi vestido de verde que conheci o António Franco, que nos deixou há algumas semanas e que hoje vai ser evocado pela família. Ele também estava de verde. Foi em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, na segunda incorporação de 1973.

Não estávamos sozinhos. Éramos umas centenas, creio que 900, todos vestidos do verde da farda, recém tirados à vida civil, por um período que não podíamos prever, mas que podia ir até mais de três anos, com guerra colonial em África pelo meio, para a esmagadora maioria daqueles que por ali estavam, nas lúgubres traseiras do convento que ainda não tinha obtido glória por via literária.

Éramos muito diversos. Havia por ali gente casada, com filhos, curso superior, vida organizada, alguns a aproximar-se dos 30 anos, ao lado de uns miúdos a quem a tropa tinha apanhado cedo, logo após a vintena. O António estava no grupo dos primeiros. Eu estava no meio da tabela etária, já empregado, prestes a casar.

Creio que foi um primo do António - engenheiro, Ribeiro, de seu nome, que perdi de vista desde então - quem nos apresentou. Despachada a “tropa”, saídos com alívio das tarefas castrenses, íamos jogar cartas e roleta para uma casa que o Vasco Bramão Ramos tinha na Ericeira.

O António, ao que recordo, terá trazido a roleta. As cartas existiam lá por casa. Eu levava apenas uma irritada irreverência que disfarçava um mal-estar crónico pela condição militar, que nunca me passaria. Esses fins de tarde só não eram de total diversão porque havia que estudar para os testes “americanos”, sem o êxito nos quais nos arriscávamos a perder a saída do fim de semana. Ali se aprendia que o sargento da guarda “rende e ronda”, decoravam-se magnas questões das temáticas da “ordem unida” (a coreografia militar na parada), inteirávamo-nos das subtilezas do funcionamento da culatra da G3 e de outros temas tão ou menos apelativos do que esses.

Julgo não macular postumamente a folha militar do António se agora revelar que ele tinha conseguido obter, por artes que nunca cuidei em saber, para não ter de partilhar o pecado, os testes do ciclo anterior ao nosso - e facilmente se perceberá que a imaginação militar nunca iria ao ponto de mudar o conteúdo das perguntas, de um ciclo para o outro. Aquele quarteto de soldados-cadete não só comungava esse imenso segredo como era mesmo obrigado, no momento do teste, a errar deliberadamente em uma ou duas questões, para não parecer excessivamente “perfeito”. Para que conste, nunca falhámos um fim de semana em casa.

O António, sem surpresa, era o soldado-cadete (já não me recordo como isso era designado) que sempre coordenava e apresentava o seu pelotão, bando de trinta cadetes em que se dividem as companhias. Ficou famoso pelo garbo com que o fazia, num estilo sempre irónico.

Um dia, creio que nas festas de Mafra ou da unidade, em que todos fomos obrigados a mudar de farda umas quatro ou cinco vezes, para atender à diversidade daa funções, ao ser inquirido na formatura da saída, por um tenente “chicalhão” (dizia-se dos milicianos que gostavam mesmo daquilo, ao ponto de algum sadismo sobre quem era comandado), como é que apreciara a forçada agitação de vestes durante a jornada, o António crismou uma frase que ficou nos anais do ciclo: “Saiba vossa senhoria, meu tenente, que, ao ter de me vestir e despir tantas vezes, no mesmo dia, por um momento senti que esta venerável Escola Prática se assemelhava a uma casa de meninas, sem qualquer ofensa para estas últimas, bem entendido!”

Mafra acabou, depois desses três meses que registei como dos mais sinistros da minha vida, mas que o António, surpreendentemente, achou divertidíssimos. E, sempre de verde, lá marchámos, salvo seja, para a Escola Prática de Administração Militar, no Lumiar, em Lisboa.

É que, dos 900 bravos cadetes de Mafra, nove havíamos sido os felizes eleitos, por testes psicotécnicos, para a simpática especialidade de Ação Psicológica, uma área em que se era “operacional” pela palavra. Desses nove, os primeiros três classificados ficariam garantidamente na “metrópole”, sendo os restantes seis destinados às “províncias ultramarinas”, mas sempre acolhidos no conforto dos respetivos quartéis-generais, onde a “Apsic”, com razão, era uma tarefa muito invejada.

Posso revelar que, ao final desses mais três meses de “instrução”, o António, o Jaime Nogueira Pinto e eu fomos classificados para não pôr os pés nas “possessões ultramarinas”. O Jaime, coerente, não aceitou e quis logo avançar para Angola “rapidamente e em força”, o António foi requisitado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (o que era possível, por não ter sido mobilizado para o “esforço de guerra”) e só eu fiquei pelo Lumiar, a dar aulas de patriotismo oficioso, até que Abril se proporcionou.

Tinham assim terminado os seis meses em que eu e o António Franco andáramos juntos, de verde, quase todos os dias. Ele voltou, entretanto, às gravatas das Necessidades, “farda” que, por sugestão dele, vim também a envergar, tempos mais tarde. O resto é sabido.

Tenho uma forte saudade do António, é tudo quanto se me oferece agora dizer, para usar o gongorismo que ele tão bem manejava, para raiva de muitos e gozo de quem lhe apreciava o humor, que nunca o abandonou até ao fim.

segunda-feira, agosto 31, 2020

Sérgio Godinho


Sérgio Godinho faz hoje 75 anos. Sem qualquer nostalgia pateta mas com um sincero reconhecimento pessoal, noto que a sua música me fez companhia serena por bem mais de quatro décadas. Alguns dos seus temas fazem parte da minha "playlist" íntima, interpretaram, às vezes na perfeição, sentimentos que fui tendo ao longo do tempo, das raivas às ternuras, das esperanças aos desencantos, confirmando-me que a sintonia geracional é uma realidade sem discussão. Godinho, porém, está mesmo um pouco para além disso, porque não ficou colado, como acontece com outros, a uma espécie de gueto etário. E não deu ares de ter feito um esforço especial para isso. A inteligência com que conseguiu fazer evoluir as suas palavras e melodias, dotando-as de uma contínua modernidade, nem artificial nem obsessiva, transformou-o num dos raros autores que mantêm hoje entre nós uma singular transversalidade de públicos. Sérgio Godinho tem 75 anos. Quem nos dera a todos envelhecer, e ver envelhecer aquilo que dizemos e fazemos, dessa mesma e alegre forma. Não conheço Sérgio Godinho. Se o conhecesse, dava-lhe hoje um abraço. Como se dá a um amigo.

domingo, agosto 30, 2020

Flagrantes da vida real


“Dois chás de camomila e um café”. 

Ela tinha um ar de vida próspera. Bem vestida, devia ter sido bonita, até que os quilos da cinquentena haviam chegado para ficar. Estava no início de algum desmazelo.

“Ponho na conta de que quarto?”, perguntou o empregado da Pousada.

Ela hesitou. Voltou-se para o marido, que ia a passar: “Qual é o número do quarto dos meus pais?”

“Não sei. Põe no nosso”.

“Isso é que era bom!”, disse, alto. E lá foi ela, três salas adiante, para poupar nove euros. Regressou com o número do quarto dos pais. 

Poupanças.Há um país de gente assim. Coitados! Devem estar ricos. Mereciam ser deserdados.

Vamos a isso!


Pela fúria organizadora com que me vejo a planear as próximas semanas, confirmo a velha perceção de que os anos começam em setembro e acabam em julho. Aquela coisa do início de janeiro, depois no Natal e no ano novo, é uma vigarice cronológica, sem a menor aderência à realidade. Nem imaginam as listas de coisas para fazer que estou a preparar neste fim de semana! Para mim, já “cheira a setembro”, como escreveu o Ary, embora falando de outra coisa.

sábado, agosto 29, 2020

Os melhores do mundo



 ... no Victor, em São João do Rei.

Lídia Jorge



O prémio de Literatura em Línguas Românicas, da FIL Guadalajara, acaba de ser atribuído a Lídia Jorge. 

Trata-se de uma distinção criada em 1991, que reconhece um escritor vivo com uma obra relevante de criação em qualquer género literário – poesia, romance, teatro, conto ou ensaio – cujo meio de expressão seja espanhol, catalão, galego, francês, italiano, romeno ou português. 

Um beijo de parabéns, Lídia, num ano em que o vírus lhe trouxe uma imensa tristeza familiar.

Um caso sério


Algumas vezes, no passado, por ali parei, para um chá, pela tarde, a meio da viagem entre Vila Real e Viana. O “Turismo”, em Barcelos, era um espaço clássico, com um toque “rétro”, bem “estadonovista”. Mas, no fundo, digamos a verdade, era um local nada de especial.

Almoçar, na bela cidade de Barcelos, para mim, foi sempre sinónimo da clássica e estimável “Bagoeira” ou, a caminho de Esposende, da “Maria”, na Pedra Furada. Em alternativa, havia os “Arcos” ou a “Babette”. Depois, ia-se pelos doces, à “Colonial”. Nada mais, que eu soubesse.

Um amigo falou-me, há meses, do “Turismo”. “Mas come-se, lá no Turismo?”, perguntei, cético. Esse amigo, que também sabe cozinhar e o faz de forma aprimorada, assegurou-me: “Come-se e bem!”. 

Sou um cético, melhor, era, até hoje, ao almoço, ocasião em que, de facto, comi por lá lindamente. O espaço está renovado, arejado de vistas, com um serviço muito profissional e uma cozinha de elevada qualidade, numa lista soberba. Ah! E, para quem queira, há um menu executivo, bem em conta.

A chegada à mesa do proprietário, e chefe de sala, trouxe-me duas evocações. 

O Jorginho, com a máscara da conjuntura, é uma cópia perfeita do Bruno Nogueira. Até nos gestos! Se me tivessem dito que era o humorista que ali estava, teria acreditado, confesso. Perguntei-lhe e ele confirmou-me a regular confusão.

Mas o modo como ele apresentou os pratos, fazendo uma descrição individualizada, com riqueza semântica, cheio de pormenores, trouxe-me à memória uma curiosa figura histórica da restauração lisboeta: Francisco Queiroz, do saudoso ”Sua Excelência”, na rua do Conde, na minha vizinhança. 

Aquele desenrolar do menu, com pormenores pessoais (“como a minha tia fazia lá em casa...”), era um espetáculo que, numa versão mais contemporânea, vim encontrar no Jorginho (Jorge Falcão Bogas, mas gosta de ser conhecido por Jorginho), descrevendo as artes de cozinha do seu chefe Miguel Morgado (não, não é o liberal homónimo!).

Concluindo. Tenho, a partir de agora, no “Turismo”, em Barcelos, um caso muito sério de boa restauração, que me vai obrigar a desviar mais vezes por aquela cidade, nas minhas viagens ao Norte. 

Este fantástico país dá uma imensa trabalheira!

sexta-feira, agosto 28, 2020

Fim de tarde

 




Manel!

 

Numa carreira diplomática onde, historicamente, algum snobismo teima em marcar as formas de tratamento, o Manuel Lopes da Costa foi alguém que cuidou sempre em reduzir a distância face aos colegas mais novos. Senti isso desde o primeiro momento, em que me “ordenou” que o tratasse por Manel, e sempre “por tu”, como todo o ministério se habituou a testemunhar. 

Há dias, neste tempo de pandemia, comentei com alguém da Casa: “Quem deve sofrer imenso com isto é o Manel!”. Porque o Manel era um “físico”, gostava de tocar nas pessoas, agarrava-nos o braço, as mãos. Era a sua forma de demonstrar afetividade, amizade, simpatia. O Manel era a antítese perfeita do conceito de “distanciação”.

Manuel Lopes da Costa afirmava também uma caraterística incomum na Carreira: tinha por “vício” não dizer mal de ninguém. Para minha grande surpresa, uma noite, num bar de um hotel, em Roma, abriu uma exceção e qualificou alguém com um adjetivo duro. Mas tinha imensa razão em assim proceder! Eu teria dito bem pior dessa figura.

Longe de Lisboa, não tenho comigo o Anuário do MNE (uma utilíssima publicação que, por um qualquer mistério, deixou de se publicar neste século), o que me impede de confirmar a perceção de que o Manel, que leio que hoje morreu, aos 87 anos, praticamente nunca teve chefes no estrangeiro: foi “encarregado de negócios” em vários postos, acabando por chefiar embaixadas em Maputo e Dublin, locais onde fui encontrá-lo, sempre à vontade, com ótimo espirito e boa disposição, muito ativo, atento leitor da realidade local.

Percorri alguma África com o Manel - do Congo à Tanzânia, do Zaire ao Quénia, da Zâmbia às Maurícias. Ajudei a libertá-lo, entre gargalhadas coletivas, de uma sarilhada no aeroporto de Addis-Abeba, onde decidiu comprar um facalhão que, com toda a ingénua naturalidade, quis levar para um avião. Com ele e outros compinchas, atravessei o deserto que bordejava o Kelimanjaro, numa carrinha que ele nos convenceu a alugar em Arusha e que, de quando em vez, nos obrigava a parar, para se limpar, por sopro, o carburador (seria isso? não percebo nada de motores), no meio da estrada de terra batida para Nairobi, sob o olhar indiferente das tribos de Masai com que nos cruzávamos (o João Salgueiro não esqueceu isto).

Tenho montes de histórias divertidas com o Manel, uma, incontável, em Londres (o João da Rocha Páris lembra-se), outra, difícil de descrever, em Frankfurt (o António Monteiro recorda-se), sem falar das da caça, arte em que ele era reconhecido como um praticante de elevada craveira. 

Um dia, em Washington, no State Department, o Manel deparou-se com uma sala de reuniões onde, por todo o lado, se viam letreiros de “No Smoking”. Na mesa, de madeira impecável, nem vestígio de cinzeiros. Eram os anos 80, início do fundamentalismo anti-tabaco. 

A “chaminé” que era o Manuel Lopes de Costa começou a agitar-se na cadeira. Alguns membros da delegação portuguesa notavam a sua nervoseira. Ia passada uma dezena de minutos da reunião quando se viu o braço do Manel adiantar-se na mesa e agarrar uma meia dúzia de folhas brancas de A4. “Vai tomar apontamentos”, pensou-se, embora o Manel tivesse à sua frente um caderno de argolas onde escrevinhara já algumas notas.

Foi então que, expectantes, olhos de ambas as delegações viram o Manel dobrar, cuidadosamente, umas faixas laterais do molho de folhas e, com um saber seguramente de experiência feito, criar uma espécie de caixa, com quatro pés assentes sobre a mesa, em frente ao seu lugar. 

De repente, o Manel inclinou-se para a pasta preta, com asas, que sempre trazia consigo e que tinha pousado no chão, ao seu lado. Segundos depois, desse mesmo sítio, no ar daquela sala da sede da diplomacia americana, alçou-se um pequeno fumo, provocatória e libertariamente. Impávido, com o esgar sorridente que era o seu, com a sua barbicha branca, de cabeça sempre levantada, o Manel surgiu com um cigarro incandescente, para cuja cinza - estava desfeito o mistério! - ele havia construído o engenhoso cinzeiro de papel. Alguns americanos, graves, olhavam a delegação portuguesa, com certeza interrogando-se sobre a “lata” de alguém que, com um cigarro, havia raptado a conversa, onde a guerra civil em Angola era o tema. O nosso lado estava divertido. Era o Manel no seu estilo incontrolável!

Tenho muita pena de ver desaparecer o meu querido amigo Manuel Lopes da Costa. Se a diplomacia tem um lado humano insubstituível, esse lado estava bem representado na sua figura, na sua excecional capacidade de relacionamento, de que fui feliz beneficiário. Tenho a certeza de que ele ficaria satisfeito ao saber que o recordei com uma sua história divertida, tão alegre como as muitas horas bem dispostas que passámos juntos. “So long”, Manel!

Um beijo à Maria Cecília e o meu pesar à família.

quinta-feira, agosto 27, 2020

Elogio do turismo


Andando pelo país, do Sul ao Norte, nos últimos dois meses, tenho-me apercebido muito bem do modo como os setores da restauração e da hotelaria estão a procurar reagir à muito grave crise provocada por uma pandemia que ainda não tem data marcada para atenuar os seus principais efeitos.

Com a maior sinceridade, quero dizer tenho vindo a criar um enorme respeito pelo esforço dos profissionais de ambos os setores. Um pouco por todo o lado, quase sempre sem grandes queixas, tenho observado o modo rigoroso como responsáveis e trabalhadores seguem as estritas regras de higiene a que a situação obriga, garantindo as melhores condições a uma clientela que ainda se mostra hesitante e temerosa.

Nos últimos anos, o turismo disparou entre nós, com uma dimensão que, há que reconhecer, por vezes se tornou incómoda para a vida de muitos cidadãos, que viram o seu quotidiano invadido de uma forma bastante agressiva. Mas, ao afirmar-se, a importância do turismo na nossa riqueza ajudou a alguma folga nas contas, facilitando políticas públicas, gerando uma imensidão de empregos. Percebemos melhor agora que não é possível “ter sol na eira e chuva no nabal”.

Houve algum exagero na oferta hoteleira, que parecia imitar as “pirâmides” de lucro? Claro que sim. Mas convém compreender que muito do património imobiliário foi renovado, nomeadamente com o surto do alojamento local, que a vida comercial das cidades foi estimulada e os restantes setores turísticos, com os transportes pelo meio, tiveram ganhos de qualidade que os índices internacionais não deixaram de refletir.

Sei que, no olhar de alguns, um outro aspecto pode parecer de somenos, mas, dada a minha experiência profissional, tenho de destacar o impacto que a onda turística dos últimos anos tem vindo a ter na imagem internacional do nosso pais. Olhe-se o número crescente de obras que, pelo mundo, são publicadas sobre Portugal, sobre os portugueses e a sua História, os filmes que nos tomam como cenário e o muito que, de positivo, se diz sobre a segurança das nossas cidades. Muitos não terão reparado mas, em escassos anos, demos um imenso salto nessa perceção. E quem, mais do que o turismo, fez por isso?

Não sabemos ainda o que o turismo português vai ser, no futuro. Mas uma coisa é certa: se ele não recuperar, as coisas não irão ser nada fáceis para a economia nacional, nos próximos anos. Como o relatório Porter nos ensinava, temos de fazer melhor o que já fazemos bem. E em poucos setores somos tão competitivos como na área turística.

quarta-feira, agosto 26, 2020

“Reaccionaria” (também com “c”)


Andava há anos para lá ir. Tinham-me falado daquele restaurante galego em que a dona, franquista dos sete costados, cantava pelas mesas o “Cara al Sol” (ontem, só lhe ouvi o “Granada”) e alardeava que, na sua casa, não entravam socialistas (e, por maioria de razão, comunas e anarquistas, porque quem pode o mais pode o menos).

É uma marisqueira pequena, numa rua esconsa do porto de La Guardia (A Guarda, para os galegos). Lá chegados, com mesa marcada, surgiu a “facha” (“Ah, Portugueses!”, sem especial nota de afeto ou desafeto). Explicou, logo ali, que, em tempos de pandemia, se cruzam os braços no peito e se vai com um dedo ao nariz, apontando depois para o outro (“Los socialistas son los que saludan con los codos”).

Plano de conversa: dizer bem de Salazar, elogiar o Caudillo, que sempre achei Fraga “muy de esquierdas” (e então o Feijóo!), que nos faz falta um Vox, que em Portugal já temos um genérico “facho”, mas que, a mim, até me parece um pouco esquerdalho, da minha admiração pela vedeta do PP Cayetana Álvares de Toledo (e que fiquei comovido com o artigo sobre ela, do Vargas Llosa, no “El Mundo”), revelando-lhe, como cúmulo de credenciais direitolas, que, num 20 de novembro, tinha mesmo estado a ouvir Blas Piñar, na Plaza de Oriente, “hace muchos años”. À saída, o plano era berrar, à distância, o “La mujer de Paco Franco... de su marido cabrón”, com música do “Ay Carmela”.

“Quer-se dizer”: tinha pensado dizer e fazer tudo o que acabam de ler, mas acabei por não dizer nem fazer nada disso. Já bastam as máscaras que para aí andam...

Comemos bem, bebemos um albariño razoável e pagámos “la dolorosa”, em conta para o consumido

Reaccionário (com “c”)


A distanciação, em tempos de pandemia, colocou-me atrás dele, a uma boa distância. Foi ontem de manhã, na fila para os jornais, na Atenas, na praça central de Caminha. 

Era um homem pequeno, idoso, de cabelos muito brancos. Vestia um casaco (seria fato?) escuro. Verdadeiramente, a minha atenção à figura começou quando o ouvi pedir a conservadoríssima “Valeurs Actuelles”. Logo eu, que vinha pelo “Nouvel Obs” da semana passada, que já não conseguira apanhar no Porto. 

Espera aí! Um cavalheiro daquela idade, a pedir aquela revista, por aquela zona, seria ele? Ele quem? Se o leitor lê o “Correio da Manhã”, pecado comum a muitos portugueses, ter-se-á encontrado já com as crónicas do Dr. António Sousa Homem, autor de quatro livros de compilação de textos, todos com o subtítulo de ”Crónicas de um reaccionário minhoto”. Quando ele se voltou, para me dar lugar junto ao balcão, esperei para ver se o farfalhudo bigode branco se mostrava, mas a máscara não deixou.

Não resisti, para não ter o destino infeliz de dois escribas lisboetas. que falharam o encontro com o homem. Pousei no balcão a revista que levava na mão e fui atrás do cavalheiro. Chegado ao largo, interpelei-o: “Dr. Sousa Homem?” O senhor parou, tirou a máscara, mostrou uma cara levemente sorridente, com o bigode que lhe vemos nas badanas dos livros, e respondeu: “Presume bem!”. Dei por adquirido que fazia uma citação ínvia do encontro de Livingstone e Stanley, e também sorri. 

Tinha pouco a dizer ao Dr. António Sousa Homem, além do que, de facto, lhe disse: que tinha lido todos os seus livros, que apreciava a sua escrita, que estava longe de lhe dar os 99 anos que lhe sabia de vida. Disse-lhe também quem eu era, o que fazia, mas isso em nada o pareceu interessar. Perguntei-lhe se continuava a ir almoçar ao Ancoradouro, embora sabendo que isso lhe era de regra. 

O Dr. Sousa Homem, manifestamente, não estava com jeitos de me dar muito troco. Sim, ia dali a pouco ao Ancoradouro. Como pretexto para arrumar uma conversa que não andava para a frente, pedi-lhe que desse um abraço por mim ao Alfredo, que tutela aquelas mesas de toalhas aos quadrados. “Com certeza que sim”, adiantou, talvez para se ver livre de mim, cujo nome duvido que sequer tivesse fixado. 

Foi então que, de uma mesa na esplanada da Riviera, se ouviu uma voz feminina: “Tio! Estamos aqui!”. Ele olhou, despediu-se de mim com um inclinar de cabeça e foi ter com a senhora ali sentada. Era, pela certa, a sobrinha, a Maria Luísa, a decoradora de interiores em Braga, de que Sousa Homem nos fala nas crónicas, que vem vê-lo com frequência ao Moledo, onde ele vive.

Ao lado da suposta Maria Luísa, refastelado, estava um cavalheiro. Tenho uma memória de elefante. Era a cara chapada de um tipo que eu tinha cruzado, há cerca de três anos, quando o Nova Sintra ainda estava aberto em frente ao meu hotel, na rua do Heroísmo. Eu tinha falhado a hora do pequeno-almoço do hotel, como cada vez mais me acontece, e tinha atravessado a rua para uma bica e um sumo de laranja, a um preço decente. Ouvi então o empregado do café perguntar, para aquele que era, por uma pinta, o acompanhante de Maria Luísa: “O costume, senhor inspetor?”

Agora, eu estava com alguma pressa. Ainda ia almoçar a La Guardia (A Guarda, para os galegos), onde já levavam uma hora de avanço, para experimentar as delícias da Casa Olga (amanhã conto). 

Quando arranquei, cruzei-me com um carro onde, ia jurar!, ia o Francisco José Viegas. Mas foi impressão minha, pela certa. O Francisco anda por Soltróia. Mas lá que parecia ser ele, isso parecia!

terça-feira, agosto 25, 2020

Barto


Por esta altura do ano, nas Escadinhas da Fonte da Pipa, em Sintra, reunia-se uma seita distinta, que invadia o terraço da casa do Bartolomeu Cid dos Santos. 

Íamos comemorar o aniversário dessa grande figura da arte portuguesa, professor da Slade School e ímpar amigo e companheiro de muitas festas. O Bartolomeu teria feito ontem 89 anos.

Foi em Londres que conheci o Bartolomeu - Barto, para os amigos britânicos -, nos idos de 70, através da Fernanda, sua esplêndida companheira. Quando para lá fui viver, nos anos 90, juntávamo-nos com frequência, em longas e bem regadas conversas e comezainas. O Bartolomeu cozinhava uma “shepherd’s pie” como ninguém, mas também tinha a mania da cozinha grega, arrastando-nos, com frequência, para um restaurante da dita, perto de Tottenham Court Road.

O Bartolomeu tinha a curiosidade de uma criança, a vivacidade de um adolescente, a sabedoria da gente com a idade de que ele se aproximava. 

Foi pela mão do Bartolomeu que passei a integrar, em 1991, a Crabtree Foundation, uma prestigiosa associação britânica (de que ele e eu acabámos um dia presidentes) que, vai para sete décadas, comemora - com afinco, pertinácia e, vá lá, com o rigor possível - a figura de Joseph Crabtree (1754-1854), uma personalidade que nem pelo facto de nunca ter dado o menor sinal de vida deixa de ser um expoente em muitas e desvairadas artes, ofícios e saberes. A “oration” do Bartolomeu sobre a suposta passagem de Crabtree por Portugal continua a ser um marco!

As festas de aniversário do Bartolomeu, lá por Sintra, só se equiparavam às noites de passagem de ano no mesmo local, que começavam num jantar e acabavam dentro da madrugada, depois de sessões de revelação de documentação, que o Bartolomeu cuidava em colecionar, coisas magníficas, como cartas escritas de Cabul para ele, por José Cutileiro, na juventude de ambos. Uma das suas preciosidades era uma “cunha” de alguém para tentar proteger o jovem estudante António Sebastião Ribeiro de Spínola. 

O Bartolomeu, homem que nunca renegara o seu amor ao “partido”, guardava, além disso, uma “memorabilia” de imensas coisas com a foice & martelo, uma “cunhalogia” do melhor que vi até hoje. Não sei se, para aquela coleta, tinha tido a ajuda do Ruben de Carvalho, figura que muito animava essas nossas ocasiões.

Nós éramos felizes participantes desses extraordinários “gatherings”. Para além do Rúben e de José Cutileiro, lembro ver por lá o Antonio Tabuchi, o Zé Cardoso Pires, os “londrinos” Luís Sousa Rebelo e Helder Macedo, o Gérard Castello Lopes, o Júlio Moreira e a Ana Viegas, o Alberto Seixas Santos, o Luís Santos Ferro e tantos e tantos outros.

O Bartolomeu, até à morte, nunca largou Londres, mas voltava sempre a Portugal, a Sintra e a Tavira. Algumas vezes, como quando fez a arte magnífica que está nas paredes do Metro de Entrecampos, trouxe consigo, da “pérfida Albion”, umas excelentes “trupettes”, estudantes da Slade, que muito animaram as marmoreiras de Pero Pinheiro. Tenho dele uma gravura dedicada, com a sombra de uma dessas beldades.

O dia de aniversário já terminou. Se fosse vivo, o Bartolomeu iniciaria agora o caminho para os 90. Assim, tem de se contentar com a eternidade.

Um beijo para ti, Fernanda.

segunda-feira, agosto 24, 2020

Cafés do Porto


Passei há pouco no “Piolho". Fez 110 anos e, salvo a pandemia, está de boa saúde, com gente a animar-lhe a esplanada. 

O "Piolho", ou melhor, o "Café Âncora d'Ouro", é uma bela instituição do Porto, estrategicamente situada junto aos Leões, à beira dos Clérigos, de Carlos Alberto e do início de Cedofeita. É um local de profundas tradições culturais e académicas. 

Na segunda metade dos anos 60 do século passado, em que o frequentei, por ali aportava gente do Teatro Universitário, do Orfeão, do Coral de Letras, da cooperativa livreira Unicepe, os pró-associativos (no Porto, a ditadura não dava direito a associação académica), estudantes das Faculdades de Ciências e de Economia, logo em frente, bem como os de Letras e Medicina, então um pouco abaixo. 

Tudo bebia por ali o seu café de saco. É que o "Piolho", durante muito tempo, não teve "cimbalino", essa portuense expressão para o "expresso", derivada das máquinas italianas "La Cimbali", que, à época, já equipavam a modernidade dos cafés da cidade, a começar pelo "Montarroio" e a acabar na "Brasileira".

Tal como em Lisboa, para muitas gerações desaguadas da província para estudar no Porto, sem muito dinheiro, num tempo de escassez de locais de convívio, os cafés representavam um espaço de acolhimento, socialização e convívio. 

O "Piolho" era um expoente desse universo, que também tinha o "Aviz" (algo intelectual) e o "Ceuta" (em frente ao Rádio Clube Português), como fóruns clássicos de conversa. Mas também o "Progresso", no Moinho de Vento, com “o melhor café de saco do mundo” (dizia-se que punham, dentro da máquina, um rabo de bacalhau salgado), mas com professores a mais pelas mesas, o "Estrela", na rua da Fábrica, com os seus belos bilhares no 1.º andar, e o "Bissau", em Cedofeita, um oásis de serenidade onde se concentrava a gente de Engenharia e dos lares universitários da Torrinha e Rosário, ainda antes da abertura do “Latino”, a que assisti.

Para estudo ou a fazer disso, havia o "Saban", em Sá da Bandeira, ou o "Diu", na Boavista, sempre cheio de "pequenas" de Farmácia. Mais para namoro, havia o "Guarany", nos Aliados, ao fim da tarde, o "Orfeu" na Rotunda, o "Pereira" no Marquês, ou os recatados e distantes "Bela Cruz" do Castelo do Queijo e o "Chalet" do Passeio Alegre. 

Na baixa, onde se parava em outras diferentes ocasiões (por exemplo, ao final da tarde dos domingos, à espera do "Norte Desportivo"), ficavam os institucionais "Rialto", "Embaixador" ou "Imperial", embora com a estudantada menos presente, E também o "Astória", no passeio das Cardosas, que abria às 6 da manhã (para “apoio” à estação de S. Bento), meia hora depois de fechar a "Stadium", no Bonjardim. 

Curiosamente, o "Majestic" não tinha então o "glamour" de hoje e, bem perto, na Batalha, preponderava então o "Chave d'Ouro", onde a gente nova não ia muito. Não longe, ficava o “Sagres“, também um lugar “ível”, isto é, onde se podia ir. Resta notar, na Passos Manuel, nesta memória muito breve de cafés do Porto, o ”Santiago”, onde uma intelectualidade menos ortodoxa adubava os finais de tarde.

Hoje, é difícil que os cafés admitam que alguém se eternize por lá, à conversa, com um café e um copo de água à frente, como era frequente no século passado. 

Quando vivi em Viena, aprendi que, durante a guerra, os cafés da cidade aceitavam que quem não dispunha de aquecimento em casa passasse muitas horas dentro deles. 

Nos tempos de esse outro Portugal, aos poucos que tínhamos o privilégio de frequentar a universidade, os cafés também nos ajudavam a “aquecer” os dias e, em especial, as noites.

Francesinha


Ontem à noite, dei por mim a olhar, com clara inveja, para uma francesinha, pousada sobre a mesa ao lado, na Cufra, aqui no Porto. Eu já tinha pedido outra coisa, caso contrário teria marchado, pela certa, aquela bomba calórica, sobre cujo local de melhor confeção a doutrina tripeira sempre se dividiu. Mas não deve ser por acaso que, desde há muitos anos, não me passava pela cabeça pedir uma francesinha num restaurante portuense. É que costuma haver tanta coisa melhor nas ementas da cidade! Infelizmente, não é o caso da Cufra, com pena o reconheço.

domingo, agosto 23, 2020

MNE - os dias quentes da Revolução

Com um sexto e último artigo, Bárbara Reis conclui, no “Público” de hoje, uma série de textos, recheados de testemunhos, sobre o tempo que se viveu no Palácio das Necessidades, em 1974 e 1975, da ditadura para a democracia. Vale a pena ler.

Porto


É das cidades onde me sinto melhor. No Porto, tenho sempre a sensação de estar em casa. Talvez porque, minha infância, ir ao Porto era ir à civilização, pelo Marão curvoso ou pela linha que então desaguava em São Bento. Da varanda traseira da casa de uns tios, na Ramada Alta, avistava o mar ao fundo, olhava aquela imensidão de casas e luzes, via passar um comboio que me diziam que ia para a Póvoa e sentia que aquilo é que devia ser a vida! Um dia, o destino mandou-me mesmo para lá, supostamente para estudar, na prática para usufruir da liberdade que Vila Real não me tinha nunca dado. Perdi-me, claro, nas muitas coisas e nas longas noites. Em dois anos, concluí, com esforço, duas cadeiras de Engenharia, ambas com notas a rasar os mínimos. Não tivesse eu saído a tempo do Porto e aquela cidade seria a minha perdição. Mas voltei lá sempre, todos os anos, sem exceção, para rever amigos, flanar por ruas que conheço como os dedos das mãos, comer em belos restaurantes, folhear nos alfarrabistas. Quando ouço amigos lisboetas dizer que se confundem no trânsito do Porto, gabo-me de saber ali conduzir por quelhas e desvios, pelo meio de bairros de que nem ouviram falar, eles que, na rádio, ao verem referido o Nó de Francos ou Bessa Leite, não têm a menor ideia do que isso pode ser. Nos últimos anos, o trabalho tem-me levado imenso ao Porto. Amanhã, vai ser o lazer. Todo o pretexto é bom para ir ao Porto.

sábado, agosto 22, 2020

A “minha” cozinha

Quando, em 1985, chegado de posto em Angola, fui viver para perto do Campo Pequeno, alguém me disse maravilhas de um restaurante que tinha acabado de abrir, na rua de Entrecampos - o Poleiro. Eram dois irmãos Martins: o Manuel, a chefiar a cozinha, e o Aurélio, a dirigir a sala, então minúscula (não chegava a 30 lugares; depois aumentou apenas um pouco mais). A oferta inicial era eclética: havia espetadas madeirenses e comida minhota, por exemplo. O Aurélio, nos vinhos, converteu-se num constante descobridor de coisas novas e excelentes.

Por muitos anos, o Poleiro foi um “caso” numa restauração lisboeta que estava então muito longe de ter o leque de diversidade que hoje tem. Havia filas à porta. Ao almoço, era o mundo da política, do jornalismo, das empresas. À noite, eram casais e pequenos grupos. As reservas eram feitas com grande antecedência. Havia dias “impossíveis”.

Vivendo a cinco minutos a pé, tornei-me, de um regular frequentador, num bom amigo da casa. E já lá vão 35 anos. Noites houve em que o Aurélio me dizia, pelo telefone: “Pode ir descendo, que a sua mesa está quase pronta”, depois da rodada anterior. E, lá chegado, sabia ter à minha espera os peixinhos da horta e um belo queijo amanteigado, que ainda hoje vejo figurar por detrás dos níveis de colesterol das minhas análises. Grandes noitadas, com a família e amigos, passei no Poleiro.

Quem me conhece sabe que fiz sempre, por todo o lado, imensa “propaganda” do Poleiro. Não por ter a sua gente por amiga, mas porque achava, e continuo a achar, que por ali se servia e serve uma das mais genuinas cozinhas de Lisboa. Sem quebras, sem cedências, sem recuos na qualidade dos produtos. 

Hoje, como é da lei da vida, os dias do “Poleiro” não são os mesmos desse tempo, somada agora a pandemia a tudo o resto. Há muitos concorrentes, diversas ofertas gastronómicas, modas a prevalecerem. Mas o Poleiro ali está, impecável no que nos propõe, como ainda ontem tive ocasião de comprovar, numa visita que fiz à minha “cozinha”, como o Pedro d’Anunciação escreveu, há quase 15 anos, num artigo numa revista que encontrei por lá encaixilhado e de que aqui deixo imagem para memória presente.

sexta-feira, agosto 21, 2020

Giocondas e anjos-maus

Farto-me de me cruzar com as duas espécies, mas nunca me tinha sucedido encontrar uma de cada naipe, ao mesmo tempo. Aconteceu-me, há pouco, nos correios (onde assisti a uma pobre empregada doméstica, com ar de pouco urbana, ser endrominada para comprar um vigésimo de lotaria - mostrando onde chegaram os correios!)

As giocondas, trato-as assim intimamente há anos, são mulheres que entram em lugares públicos com um esgar levemente sorridente, às vezes um pouco sofrido, que prolongam até serem atendidas - nas lojas ou nos serviços. Há nelas um à-vontade natural, um estar-bem naquele espaço, quase sempre num registo de segurança, muito “easy-going”, falando pouco e baixo, dando ares de terem todo o tempo do mundo. Tenho amigas assim e são, em geral, boa gente (se não fossem, também não eram minhas amigas, claro!).

Descobri o conceito de anjo-mau numa canção de Jorge Palma. É a cara fechada, dos modelos de “passerelle”, parece que representando, em geral, uma atitude defensiva, desincentivando a confiança e a aproximação. Há anjos-maus lindíssimas! As anjos-maus são, em geral, muito mais novas do que as giocondas, ou melhor, às anjos-maus mais velhas, ou quando já não vão para novas, não se chama anjos-maus, chama-se apenas trombudas. Ah! E, ao que tenho apurado, não há muitas giocondas novas. (No que eu me fui meter, neste tempos de politicamente correto!)

E fico-me por aqui, nesta caracterologia de trazer por casa, numa Lisboa vazia, onde a tarde rende imenso e só a máscara está a mais. (Já estou a ver os espertos do costume a perguntarem: “E como é que, com as máscaras, viste as caras?”. Aí é que está o poder de observação. São muitos anos...)

A Torre



A casa é hoje a Fundação Maestro José Pedro. No largo Vasco da Gama, em Viana. Foi dos meus avós, não sei se logo que chegados de Ponte de Lima, em 1912. Olhando agora para o edifício, constata-se que nada mais há sobre o segundo andar. Mas nem sempre foi assim. Por ali ficava a Torre.

A Torre era o nome dado na familia a um sótão. Sempre houve a ideia de que nele haveria ratos. Nunca vi nenhum mas, à noite, se bem interpretava uns ruídos estranhos que, nas minhas madrugadas de leitura (a partir de certa idade, montavam-me uma cama num escritório, no andar imediatamente abaixo da Torre, rodeado de livros), escutava por cima do teto, parecia haver. Aliás, as frequentes idas dos gatos por lá indiciavam um potencial petisco dessa natureza, que também existiria na Loja, mas não os vou maçar mais com a geografia descritiva da casa da minha avó.

O sótão, como todos os sótãos, estava eternamente cheio de poeira. Não me consta que a “Seconceição”(a senhora Conceição, na versão fonética da minha infância) ou a sua filha Arménia, que oficiavam no serviço da casa, alguma vez tivessem passado pela Torre a espanejar aquela confusão de móveis velhos, de malas sem préstimo, de caixas e caixotes, de exemplares repetidos dos livros do Domingos Tarrozo (uma figura interessantíssima de Ponte de Lima), amigo da família: “O Monopólio da Sciencia Official”, “A Poesia Philosophica” e “A Forma de Votar”, sendo estes os títulos de que ainda me lembro - e que nunca li, claro.

A Torre tinha, para a frente, um janeluco voltado para o largo, na direção da doca. Se ainda existisse, desse envidraçado esconso ter-se-ia, nos dias de hoje, uma vista magnífica sobre o Gil Eanes, o navio-hospital que, à época, acompanhava a frota dos bacalhoeiros para as costas da Terra Nova. A doca era então fechada, tinha muro de pedra e um belo gradeamento e um portão (de correr, se bem me lembro), que eu só atravessava para ir “à natação”, acompanhado do meu pai (e imagino que da minha mãe, preocupada), para a escola benévola ali montada, no Verão, por uns carolas da cidade.

Da Torre tembém se avistava, ao longe, o caminho para o Cabedelo, com vista desfogada, ainda sem o mar de coisas industriais e portuárias que lá foi parar, já há anos. Espreitando, à esquerda, ali estavam (e estão), na sua solidez granítica, arquitetura muito Estado Novo, os escritórios do João Alves Cerqueira. Estendendo o pescoço, à direita, por muito que tentasse, não conseguia ver a capela da Senhora das Candeias, e a gorda a assomar no janeluco ao lado, mas tinha-se um olhar sobre o edifício comprido, que parece que é hoje um bingo, e que, ao tempo, foi uma fabriqueta de cordas para barcos, que se prolongava, no exterior, também para os lados da capitania, com grandes rodas de madeira.

Logo em frente da janela da Torre, impante, lá estava (e lá está - milagre numa cidade onde as estátuas costumam andar de um lado para o outro, como agora e em boa hora aconteceu ao Caramuru) a figura do Mercúrio, com casquete e âncora, encimando a taça com água. Nunca lhe achámos muita graça: viráva-nos as costas...

Não se via muito mais, da Torre? Essa agora! Da Torre via-se o mundo! Eu, pelo menos, vi.

(Dedico este texto aos meus primos Filomena e António, comigo, nos Verões, felizes, frequentadores dessa Torre da nossa infância)

quinta-feira, agosto 20, 2020

Pousadas de Portugal


As Pousadas de Portugal existem desde 1942. 

Segundo as minhas contas, desde esse ano e até hoje, foram construídas 67 Pousadas, 16 das quais desde 2003, ano em que o grupo Pestana assumiu a gestão. 

O grupo Pestana, que gere a rede de Pousadas desde 2003, manterá 36 unidades em funcionamento. Neste período de pandemia, algumas dessas Pousadas estão fechadas, presume-se que temporariamente.

Foram encerradas (ou deixaram de funcionar sob a égide das Pousada) 31 unidades, algumas antes do grupo Pestana ter assumido a gestão da rede.

Algumas pousadas funcionam em regime de concessão, sendo a sua gestão feita por entidades alheias ao grupo Pestana.

Na pesquisa que fiz sobre a abertura e desativação das Pousadas - tarefa nada fácil, porque não parece haver nenhum estudo de conjunto - não consegui determinar a data de encerramento, enquanto Pousadas, de algumas dessas unidades. Ficarei grato se os leitores puderem ajudar nesta pesquisa, mas sempre com dados seguros.

Unidades em funcionamento (36): 

1. Alijó (Barão de Forrester) (1944)*
2. Óbidos (Castelo) (1950)
3. Marvão (Santa Maria) (1956)
4. Bragança (S. Bartolomeu) (1959) *
5. Murtosa (Ria) (1960)
6. Valença (S. Teotónio) (1963)
7. Sagres (Infante) (1963)
8. Evora (Lóios) (1965)
9. Caniçada (S. Bento) (1968)
10. Extremoz (Rainha Santa Isabel) (1970)
11. Viana do Castelo (Monte de Santa Luzia). (1979)
12. Palmela (Santiago) (1979)
13. Guimarães (Santa Marinha da Costa) (1985)
14. Alvito (1993)
15. Beja (S. Francisco) (1994)
16. Queluz (Dona Maria I) (1995)
17. Crato (Flor da Rosa) (1995)
18. Arraiolos (Nossa Senhora da Assunção) (1996)
19. Amares (Santa Maria do Bouro) (1997)
20. Vila Viçosa (D. João IV) (1997)
21. Alcácer do Sal (Afonso II) (1998)
22. Ourém (Conde de Ourém) (2000)
23. Belmonte (Convento de Belmonte) (2001) *
24. Horta (Forte de Santa Cruz) (2004)
25. Lisboa (Terreiro do Paço) (2005)
26. 
Tavira (Convento da Graça) (2006)
27. Bahia (Convento do Carmo) (2006)
28. Angra do Heroísmo (Forte São Sebastião) (2006)
29. Estói (Palácio de Estói) (2009)
30. Viseu (2009)
31. Porto (Palácio do Freixo) (2009)
32. Cascais (Cidadela) (2012)
33. Covilhã (Serra da Estrela) (2014)
34. Óbidos (Vila de Óbidos) (2018)
35. Câmara de Lobos (Churchill Bay) (2019)
36. Vila Real de Santo António (2020)

(*) Unidades concessionadas

Unidades encerradas ou já não funcionando como Pousadas (31):

1. Elvas (Santa Luzia) (19.4.1942). Encerrou em 2012
2. Marão (São Gonçalo) (29.8.1942). Encerrou em 2007
3. Alfeizerão (S. Martinho) (24.9.1942)
4. Serém (Santo António) (24.9.1942)
5. Madeira (Vinháticos) (1942)
6. São Braz de Alportel (S. Braz) (11.4.1944). Encerrou em 2010
7. Santiago de Cacém (S. Tiago) (10.2.1945). Encerrou em 2001
8. Manteigas (S. Lourenço) (14.3.1948)
9. Berlengas (S. João Baptista) (1953)
10. Castelo do Bode (S. Pedro) (1.1.1954). Encerrou em 2003
11. Serpa (São Gens) (1960)
12. Miranda do Douro (Santa Catarina) (1962). Encerrou em 2002
13. Caramulo (S. Jerónimo) (1962)
14. Vila do Bispo (Forte do Beliche) (1963)
15. Setúbal (São Filipe) (1965). Encerrou em 2014
16. Póvoa das Quartas (Santa Bárbara) (1971) Encerrada em 2003
17. Santa Clara-a-Velha (Santa Clara) (1971)
18. Torrão (Vale do Gaio) (1977). Encerrou em 2007
19. Guimarães (Nossa Senhora da Oliveira) (1980) Encerrou em 2013
20. Vila Nova de Cerveira (D. Dinis) (VII) (1982). Encerrou em 2008
21. Batalha (Mestre Afonso Domingues) (1985)
22. Almeida (Senhora das Neves) (1987)
23. Santiago de Cacém (Quinta da Ortiga) (1991). Encerrou em 2008
24. Sousel (S. Miguel). (1992) Encerrou em 2010
25. Condeixa (Santa Cristina) (1993). Encerrou em 2019
26. Monsanto (1993). Encerrada em 2011
27. Mesão Frio (Solar da Rede) (1998). Encerrou em 2012
28. Vila Pouca da Beira (Convento do Desagravo) (2003). Encerrou em 2017
29. Proença-a-Nova (Amoras) (2006). Encerrou em 2011
30. Braga (S. Vicente) (2007) Encerrou em 2012
31. Madeira (Pico do Arieiro) (?)

quarta-feira, agosto 19, 2020

Os restos de Yalta


No plano geopolítico, a Bielorrússia, de que se fala por estes dias, configura um caso particular. Se bem se notar, o ocidente reclama, muito justamente, pelo comportamento autocrático do presidente Lukashenko, pelo ambiente fraudulento que envolveu a recente disputa eleitoral, pela violência oficial contra a expressão democrática dos seus cidadãos. Mas, ao contrário do que se verificou nos casos da Geórgia ou da Ucrânia, nenhuma voz sensata veio apelar à ideia de que uma Bielorrússia “livre” venha a integrar a NATO ou a União Europeia. Por que será?

Há resquícios dos velhos acordos de Yalta que ainda subsistem na memória do realismo internacional. E embora, no plano dos princípios, ninguém subscreva a legitimidade da tese das “esferas de influência”, é por demais evidente que prevalece, na racionalidade geopolítica do mundo, a ideia de que um país como a Bielorrússia faz parte de um terreno de tutela russa. 

Se Putin decidisse fazer avançar carros de combate pelas ruas de Minsk, caía “o Carmo e a Trindade”, mas não deixa de haver um entendimento implícito no tocante à aceitação de que Moscovo pode ter uma palavra a dizer quanto ao futuro do país. Se a “soberania limitada” faz ainda sentido para alguns cultores da “realpolitik”, é no caso bielorrusso que isso se aplica de forma bem clara.

Os cidadãos que vieram para as ruas, como alguns bem assinalaram, não parece terem pedido para que o país ingresse na Aliança Atlântica ou faça parte das instituições europeias, da mesma forma que, ao contrário de muitos georgianos e ucranianos, não pareceu emergir nesses movimentos uma atitude hostil para com a Rússia. Provavelmente, isso terá ocorrido assim por mero realismo, pela consciência de que o seu futuro, se fará, quase inevitavelmente, num qualquer modelo de relação íntima com Moscovo.

A alguns chocará a frieza desta análise, que parece conceder bondade àquilo que espelha uma mera relação de forças. Porém, estou apenas a refletir sobre como as coisas são, não como deviam ser. É que não é por acaso que os poderes que contam, na ordem internacional, sempre separam as águas, quando abordam os casos nacionais na periferia russa.

A avaliar pelas reações, Putin não sabe muito bem o que há-de fazer com o seu incómodo vizinho. Já terá percebido que Lukashenko é, cada vez mais, um fardo. Não está disposto a deixar que o ocidente intervenha, mas, muito claramente, também ainda não decidiu como utilizará o seu poder de vizinhança. No meio, impotentes, estão os bielorrussos.

Vou ler isto outra vez...