sexta-feira, julho 10, 2020

Não sei o que te diga


Não sei o que te diga, Mena. Hoje, 10 de julho, uma data muito triste para ti, tu que colecionas tantas datas tristes. Viste partir uma filha, viste desaparecer o teu filho e, há não muito, também, o teu companheiro de vida. Já os teus pais e um irmão tinham saído de cena. Resistir à dor, sublimando-a à tua maneira, passou a ser a tua forma de vida. Às vezes, estranhamos aquilo que parecem ser os teus delírios, os teus mundos algo míticos e oníricos, algumas reações que nos chocam. Mas nenhum de nós ousa sequer pensar o que seria, como reagiria se estivesse no teu lugar, se fosse o protagonista desse teu mundo de tristezas, feito de tantas perdas acumuladas, de futuros não cumpridos. Eu, que te conheço de toda a vida, desde a infância comum, que acompanhei todos esses tempos, que assisti à tua transformação por todas essas dores, que aprendi a ler as sombras que estão por detrás desse teu sorriso tão bonito, quero deixar-te aqui, hoje, dia 10 de julho, um beijo fraterno de grande admiração pela tua imensa e ímpar coragem.

Primeiro livro para férias


A esperança europeia


Quando falamos de Europa, referindo-nos à atual União Europeia, tendemos a esquecer que as instituições do processo integrador são uma realidade mutante com o tempo - desde as políticas à sua própria abrangência geográfica. Se a ambição última - paz, liberdade e desenvolvimento – permanece, basicamente, a mesma, o modo de a materializar e de lhe conferir densidade mudou imenso.

Também o olhar dos europeus sobre esse processo passou a ser outro, e isso explica muitas coisas. Quando a Europa iniciou o seu percurso de integração, vinha de uma guerra que deixara o continente devastado. A recuperação das economias, com a ajuda do Plano Marshall, fez muito pelo bem-estar dos integrantes do projeto e o óbvio sucesso deste constituiu-se como o seu melhor cartão de apresentação. A melhor prova disso foi, aliás, o interesse do Reino Unido de se juntar aos países fundadores, superando as suas reticências e a sua óbvia relutância de se inserir num processo de partilha de soberanias, bem contrário à sua arraigada matriz institucional.

Os trinta anos “gloriosos” trouxeram um prestígio imenso à ideia europeia, com uma forte adesão a um modelo consubstanciado em bem-estar, num contexto de liberdade e democracia.

Com a vitória ocidental da Guerra Fria, a Europa integrada acabou por ser vítima do seu sucesso e da ambição que este desencadeou. Os Estados saídos da tutela soviética vieram bater à porta do projeto que lhes tinha sido mostrado, do lado “de cá”, como miragem a que então já podiam aspirar. E a euforia da conjuntura levou os Estados mais integradores à ideia de que um salto de aprofundamento era compatível com a absorção do Centro e Leste do continente. Maastricht foi a tradução institucional dessa ambição – moeda, política externa, união política.

Muita água correu depois sob as pontes, com sucessivas reformas dos tratados a tentarem conferir funcionalidade a uma Europa simultaneamente alargada e mais densa de políticas. Um espaço que, não obstante a sua excecional vitalidade, como potência comercial e expoente económico, estava a perder competitividade e a ficar para trás na corrida global.

O contexto, não sendo de estagnação, passou a não ser já de euforia. Em muitos Estados, o crescimento reduziu-se, o desemprego subiu, as deslocalizações foram incompreendidas, algum recuo soberanista começou a fazer o seu caminho.

As novas gerações, frustradas com a falta de oportunidades já não olham hoje o pós-guerra desolador, como os seus pais haviam feito. Ao invés, passaram a comparar as suas limitadas expetativas com os tempos fartos que tinham, entretanto, deixado de existir.

A globalização converteu-se no bode expiatório dessas frustrações, os choques com o estrangeiro que ameaça os empregos e fere a identidade cultural passou a ter um terreno fértil, com o terrorismo e as pulsões securitárias daí derivadas a provocarem tropismos nacionalistas. A falência ou a rotura do projeto europeu, como se recordarão, chegou então a ser anunciada.

Ora a Europa, não obstante todas as suas clivagens, foi bem resiliente. Conseguiu superar a crise financeira de 2007, acabou por resolver, “tant bien que mal”, a crise das dívidas soberanas, uniu-se para afrontar o fantástico desafio que é o Brexit, suportou estoicamente a pressão da crise dos refugiados e dos migrantes económicos e, no fim da linha, mostra agora uma insuspeitada vitalidade para contrariar, com imaginação económica e vontade política, os embates da crise pandémica. Tudo isto, nos anos mais recentes, sem poder contar com o tradicional “amigo americano”, que põe em causa o sistema multilateral que é a sua matriz de ação internacional.

O vírus maligno que por aí anda vai ser um desafio imenso para a estabilidade do projeto europeu. Contudo, se este souber encontrar os anti-corpos, em matéria de políticas, para lhe fazer face com algum êxito, a Europa pode acabar por sair reforçada, à escala global, deste desafio. E, no plano interno, pode ter encontrado um novo sopro de estamina e coesão política. Será isto “wishful thinking”? Talvez, mas não há futuro sem esperança.

quinta-feira, julho 09, 2020

Melros e coisas assim


Neste tempo de confinamento, passei a notar mais nos melros que pousam no meu jardim. 

Sou um insuperável nabo quanto às coisas da natureza: reconheço uma pereira ou um pessegueiro, mas apenas quando neles estão pendurados peras ou pêssegos; se lá estivessem ameixas ou cerejas, a minha conclusão seria outra e já se imagina qual. 

Não identifico um pardal ou uma águia, não me atrevendo, como é óbvio, a chamar pardal àquilo que pode ser uma águia, embora fique na dúvida sobre se trata de uma águia ou de um milhafre ou de qualquer outra coisa parecida. Mas, a sério!, fico sempre na dúvida sobre se o pardal não será uma andorinha...

O meu pai era um imbatível ás em questões de passarada: conhecia-lhes os nomes, identificava as aves mais diversas. Até pela forma de voar! E, então, em matéria de árvores, era um perito, delas sabendo mais do que muita gente que vivia no campo. Como, no caso dele, sempre habitou em cidades, ficou-me a dúvida eterna sobre a origem dessa ciência. Que, como se vê, não passa pelas gerações.

Voltando aos melros. Até à pandemia, andei convencido de que aquelas aves de bico amarelo que me visitavam eram (acreditem!) corvos! Disse isso a um amigo e ele deu-me um berro amesquinhante: “Estás maluco?! São melros, homem! Se tiverem bico amarelo são machos, se o bico for mais escuro são fêmeas”. Há dias vi um que tinha um bico que não era bem amarelo nem escuro, mas tive receio de mandar um bitaite politicamente incorreto, nos tempos que correm...

Arquivei a sapiência e, um destes dias, fui mesmo honrar a memória poética de Guerra Junqueiro, relendo “O melro”, um poema que o meu pai “recitava” em família (imagino agora que só uma parte, porque aquilo é longo e, aqui entre nós, bem chato). O meu pai adorava a arte do criador da bandeira da República e ficava furioso quando eu o qualificava de “poeta menor”. (Tinha idêntica reação quando eu me atrevia a dizer o mesmo sobre Pedro Homem de Mello. A nossa sintonia nunca foi lírica). 

Às tantas para me absolver da minha ignorância sobre os melros (ou por ter pouco que fazer), passei a alimentá-los, diariamente. Dava-lhes pão, bolachas e o que estivesse à mão. Por bastantes dias, tudo correu bem. A escada para o jardim passou a estar cheia de melros, que se aproximavam bastante, à hora das refeições. Depois, eles começaram a pousar dejetos, o que levantou objeções familiares sobre a justeza da minha generosidade alimentar. Um dia, chegaram os pardais, sempre aos pares (os tais que eu não sabia se eram andorinhas). Constatei então que os melros, naquele seu porte simpático e frágil, eram afinal egoístas e lhes davam bicadas, para eles se não aproximarem das vitualhas, embora elas chegassem para todos. Até que, finalmente, vi surgirem as pombas, avisadas da fartura da zona, sabe-se lá por quem. Comecei mesmo a temer a chegada das gaivotas (sempre as confundi com as pombas, confesso!). Depois, li na net que havia o risco do surgimento de gatos da vizinhança. E decidi então fechar o “restaurante”. 

Ontem, deu-me para pôr no meio do jardim uma ave metálica que, há muitos anos, comprei no sul de França, e que tem estado, desde então, a criar patine de ferrugem. Coloquei-a na relva. Mas os melros não lhe ligaram peva, nem se aproximaram, não se deixaram enganar. Cheguei à conclusão de que eles sabem muito mais de aves do que eu. O que já terão percebido que não é difícil.

Alfredo Tropa


Foi-se o Alfredo Tropa, uma grande figura da RTP e um nome importante do cinema português. Conhecemo-nos em 1974, durante os dias ”épicos” que se sucederam à ocupação da televisão pelas tropas da EPAM, unidade militar em que eu então fardava os meus dias. Uma década mais tarde, congregados pelo Alfredo Magalhães Coelho, juntámo-nos numa tertúlia que assentava praça aos fins de tarde no “Metro e Meio” e refeiçoava, com regularidade, na “Travessa”, na sua primeira “versão”, também na Madragoa. Ali criámos, sob a direção “estratégica” do José Emílio Amaral Gomes, um infausto “clube” de investimento na bolsa. Voltámos a ver-nos, anos mais tarde, por acasos da vida. Ficou a combinação de um almoço que já se não fará.

quarta-feira, julho 08, 2020

Amigos, amigos


Durante os anos em que vivi em Londres, alguns portugueses inquiriam-me sobre o modo como os britânicos olhavam a velha Aliança com Portugal.

A questão não estava entre as que, minimamente, preocupavam quem quer que fosse, por esses tempos. O tema só surgia na retórica dos discursos oficiais ou vocalizada por britânicos que, simpaticamente, queriam um pretexto de conversa, alternativo à estafada menção ao Vinho do Porto.

Aos meus interlocutores portugueses , eu procurava dizer a verdade. E a verdade é que a generalidade dos britânicos com quem falava, além de raramente referirem esse tratado do antanho, quando o faziam colocavam-no num patamar de mera curiosidade histórica e, sem exceção, a nenhum passava pela cabeça a plausibilidade da sua menor invocação nos tempos que corriam. Um dia, numa palestra em Londres, perante uma questão sobre se ainda cria na Aliança, respondi, por entre britânicos sorrisos amarelos: “Acredito! Acredito tanto como os ingleses...”

Vale um belo livro nunca escrito o histórico das relações luso-britânicas, ao longo de séculos. Tratados, entendimentos, desencontros, perfídias, interesses comuns ou contraditórios – há um pouco de tudo. Aliás, uma pequena amostra de tudo isso guardo na minha memória profissional, fruto daquilo de que fui testemunha presencial em vários momentos.

Às vezes, diz-se que devemos aos britânicos a nossa independência. É um erro: talvez lhes devamos uma ajuda pontual à preservação histórica da nossa soberania, mas isso custou-nos, por séculos, precisamente a nossa independência, que ficou sob a sua tutela.

Para tempos recentes, fica a imagem de uma relação bilateral a que a nossa comum presença nas instituições europeias só trouxe maior distância e um crescente afastamento do padrão de interesses. Salvo no sublinhar da importância em manter a Europa num laço transatlântico forte, raramente detetei pontos de aproximação entre Londres e Lisboa, que pudessem configurar eixos de ação comum na esfera comunitária.

A decisão britânica de excluir Portugal das rotas turísticas, levantou por aí um “Mapa Cor-de-Rosa” de indignações. Com razão, protestámos, alto e bom som, para inglês ouvir. Esse tempo passou: agora, com serenidade, discutamos com eles os nossos comuns interesses.

É que já Palmerston dizia que “a Inglaterra não tem amigos, tem interesses”. Às vezes, contudo, a História provou que Londres também tem interesse em ter amigos. Lembremos-lhes isso.

terça-feira, julho 07, 2020

Vírus


Se a nova recomendação da OMS, no sentido de serem evitados os espaços fechados, pela possível transmissão do vírus pelo ar, vier a ser seguida com algum rigor, podemos estar perante um caso com fortes implicações negativas na recuperação económica.

segunda-feira, julho 06, 2020

Jogos com fronteiras

O “Expresso” perguntou-me, na sua edição de sábado, se faz sentido não impor um controlo sanitário na fronteira com Espanha. Respondi isto:

”Há um registo de otimismo que é imanente a todo o discurso do poder. As dúvidas, mesmo que intuídas, passam quase sempre para segundo plano, porque elas não devem poluir o objetivo de criação de confiança que é pretendido com a mensagem. 

Lembrei-me disto ao ouvir os responsáveis políticos, dos dois lados da fronteira do Caia, no anúncio da reabertura da passagem entre Portugal e Espanha. Pelo que foi dito, perpassou a ideia de que o pior já passou, que caminhamos para um tempo novo, exigente mas superável. 

Por razões óbvias, Portugal nunca foi adepto da invocação reiterada de excecionalidades na livre circulação europeia. Mas adotámo-las, com indiscutível lógica, no auge da pandemia, numa modelar articulação pública com o nosso único vizinho terrestre. Na “exit strategy”, a consonância foi menos brilhante, mas a recente cerimónia com os poderes de Estado tudo acabou por disfarçar.

Agora, vive-se o dia seguinte. Terá sido prudente adotar uma abertura de fronteiras sem prever, ao menos temporariamente, controlos de segurança sanitária? 

Percebo bem o sentido estratégico do risco assumido, pelo dramatismo das consequências económicas desta crise. Não estou seguro, contudo, de que a solução adotada tenha sido a melhor, esperando poder vir a ser convencido pelos factos. 

A situação sanitária que se vive em Portugal e em Espanha está bastante longe de estabilizada. Confie-se ou não nas estatísticas que nos chegam de Madrid, a verdade é que o curso da pandemia, na península, continua preocupante. E que uma segunda onda não pode ser descartada.

Neste contexto, nos últimos meses, aprendemos que os sinais públicos são de extrema importância. Não quero fazer chover no molhado, mas é mais do que óbvio que as imagens do 1° de Maio ou a manifestação contra o racismo foram momentos infelizes que ajudaram a potenciar algum laxismo, que todos estamos a pagar.

Em matéria de luta contra a pandemia não podemos continuar a viver numa espécie de “banho escocês”, em que tanto nos dizem que é possível ter fronteiras abertas como ouvimos, das mesmas autoridades, que temos de recuar em algumas aberturas do desconfinamento. Dir-me-ão: uma coisa não é contraditória com a outra, desde que haja cuidados. Para a generalidade da opinião pública as coisas não são lidas assim. E, em política, como diria alguém que curiosamente tinha da relação com a Espanha uma visão desencantada, o que parece é.”

domingo, julho 05, 2020

Fim do dia


Sempre apreciei os dias de verão em que, depois do jantar, sentadas as cadeiras confortáveis, as pessoas têm conversas sem agenda, com a luz a desaparecer, numa varanda ou numa sala de janelas largas. O dia ainda lá estava quando se sentaram e vai desaparecendo, quase sem darem por isso, até entrarem numa quase escuridão.

Na casa das minhas tias, nas Pedras Salgadas, no belo terraço arredondado com cadeirões de verga ou de madeira, com largos braços, guardo a imagem dos mais velhos a porem a conversa em dia, comentando os casos da vida.

Na varanda que torneia o pátio da casa dos meus avós maternos, não muito longe, em Bornes, com as pessoas no escano ou nas muitas cadeiras que por lá havia, formava-se um cenáculo de belas conversas, com gente da família ou amigos a juntarem-se, vindas de outras casas, a quem era oferecido um cálice de “vinho fino”.

Eram também assim as noites em Viana do Castelo, nas férias grandes, em torno da minha avó paterna, na casa do largo Vasco da Gama, com os filhos no ritual da visita diária. Recordo-me que a claridade declinava, quase subitamente, e, se alguém, inesperadamente, entrasse na sala, ficaria com a ideia de que todos tinham para ali ido às escuras.

Esse é o segredo desses momentos. Se uma luz se acende, e cedo ou tarde isso acontece, toda a magia de penumbra desaparece. As conversas já não voltam a ser as mesmas.

Bolton


Escorreito na escrita mas, às vezes, demasiado “notarial”, traz muito poucas verdadeiras novidades, embora revele curiosidades sobre a liturgia do poder americano.

Falo do “The Room Where It Happened”, de John Bolton, antigo Assessor para a Segurança Nacional de Trump. https

Faz Figura


Almoçar com vista para o Tejo - e almoçar bem!  - é um privilégio. Uma varanda arejada, com espaço e toda a “distanciação” necessária, com um menu criativo, uma das melhores listas de vinhos de Lisboa. 

Eu sou fã do “Faz Figura”. Estacione junto à Feira da Ladra e aproveite! Façamos figas contra o vírus!

sábado, julho 04, 2020

Diplomacia

A anunciada atitude britânica face ao turismo com Portugal revela o que parece ter sido um lamentável viés, isto é, a utilização de índices que abertamente desfavoreceram o nosso país, em paralelo com outros. A ironia, que poderia ser utilizada se não se tratasse de um caso com sérias implicações económicas, é que, comparativamente com o Reino Unido, a situação sanitária portuguesa, sendo menos brilhante do que já foi, continua a ser bem mais positiva do que a que por lá se vive.


Tudo indica que Portugal tem toda a razão do seu lado e que o Reino Unido a não tem. Percebo assim perfeitamente que o ministro dos Negócios Estrangeiros tenha tido a reação que teve, porque era importante fazer chegar a Londres um sinal político forte da nossa insatisfação. Ele ficou dado e bem, como Augusto Santos Silva sabe fazê-lo. E o mesmo foi ecoado, com brilho, por um alto responsável político do principal partido da oposição.


Mas isto não é o Mapa Cor-de-Rosa! Haja bom senso e não se enverede por movimentos públicos de desagravo patrioteiro. Agora, começa um novo tempo: pelo menos por quinze dias (tempo em que se fará a eventual revisão da medida), tudo continuará nos termos que Londres anunciou. Há que encetar - e estou certo que isso já está a ser feito - um rápido trabalho de sensibilização, com base num diálogo sereno, para demonstração rigorosa das nossas razões, com base em critérios técnicos e científicos, credíveis e insofismáveis. É assim, e só assim, que se poderá conseguir reverter a situação. A diplomacia é isso.

sexta-feira, julho 03, 2020

Ainda existe “a mais velha aliança”?

Muita da tradicional proximidade entre Lisboa e Londres esbateu-se fortemente após a nossa entrada nas então chamadas Comunidades Europeias, em 1986. 

A partir daí, e enquanto o Reino Unido continuou a ser um parceiro relutante do processo europeu, Portugal tentou dar um salto "centrípeto", colocando-se no eixo da União, com a deliberada intenção de evitar cair num novo ciclo de perifericidade na sua história contemporânea. Salvo o interesse em manter viva na Europa a relação transatlântica, quase tudo, a partir de então, nos fez afastar dos britânicos. 

Será que a "mais velha aliança", nomeadamente no contexto da sua singularidade britânica perante a Europa dos 27, tem condições para poder ter um novo fôlego? 

Para aquilo que verdadeiramente nos importa no quadro externo, estamos estritamente ligados ao quadro europeu, que tanto nos condiciona como nos protege e amplifica a nossa capacidade de defesa de interesses. Tudo o resto, podendo ser interessante de explorar no terreno bilateral, acabará por ter uma dimensão menor e residual. 

Acredito na "mais velha aliança"? Acredito, tanto como os ingleses...

quinta-feira, julho 02, 2020

Aos bonés


O mundo anda esquisito. Agora, já nem os porteiros dos hotéis têm bonés parecidos com os dos generais ou ditadores “graduados“ do Leste.

Direita, extrema

Um excelente teste para medir o pulso à democraticidade de alguns, na direita portuguesa, é verificar quem, descomplexadamente, qualifica o Chega como de extrema-direita e quantos enveredam por um contorcionismo semântico, para evitar terem de dizer isso. É tão divertido!

Putin

É interessante observar como Putin e a sua “democratura” servem hoje de sucedâneo afetivo a muitos que, no passado, adoravam a União Soviética. Quase sempre, o seu “alibi” é a reação contra os EUA, que o tempo Trump facilita. Tudo isto é tão previsível...

Amália


Sempre achei perfeitamente ridícula a questão da relação entre Amália e a política. A arte de Amália torna-se melhor ou pior, dependendo da sua “lateralização” ideológica? Que palermice!

Durante anos, para alguns, Amália era “fascista”, bandeira do Estado Novo, misturada romanticamente com a plutocracia, com fábulas noturnas no chafariz do Rossio. 

Depois, foi a sua recuperação pelo lado intelectual, dos poetas “bons” que cantou à parceria com Alain Oulman, um esquerdista que a Pide prendeu. As noites “chez Amália”, com nomes sonantes por lá, consagraram um cenáculo prestigiante.

Agora, parece que se descobriu que Amália apoiou gente perseguida pela ditadura. 

Pelos vistos, a julgar pela incessante coscuvilhice à sua volta, o passado de Amália está ainda cheio de futuro.

E se, muito simplesmente, ouvíssemos a fantástica voz de Amália e deixássemos em paz a sua vida?

A esperança verde

Ser sportinguista é sempre ter esperança. Mas ter a menor esperança de colmatar a distância pontual existente face ao Benfica, para poder chegar ao segundo lugar, é, não um sinal de esperança, mas de um insensato irrealismo.

quarta-feira, julho 01, 2020

O futuro do Turismo



Na minha vida como diplomata, a divulgação das virtualidades do turismo em Portugal fez parte, com a promoção do comércio e a captação do investimento estrangeiro, do "triângulo" permanente da nossa ação económica externa. Em quase quatro décadas de profissão, com ciclos políticos muito diferenciados, esse módulo de interesses permaneceu constante, com maior ou menor alocação de meios para o impulsionar.

Devo confessar, contudo, que a explosão turística da última década constituiu, para mim, uma imensa surpresa. Se bem que, teoricamente, pudéssemos conceber que Portugal estava a reunir um conjunto invejável de atrativos para captar turistas estrangeiros - da segurança pública à qualidade da rede hoteleira, da afabilidade à gastronomia e vinhos, do sol & praia à rara especificidade dos novos destinos (Douro, Açores, turismo verde) - havia sempre a ideia, felizmente errada, de que outros conseguiriam suplantar-nos nesse campeonato.

Ainda há menos de uma década, como embaixador em Paris, tutelei várias campanhas para conseguir motivar os franceses a visitarem o nosso país. Os números de crescimento eram prometedores, mas nada que indiciasse o "surto" que veio a verificar-se.

Desde o início do desconfinamento, tenho visitado algum Portugal turístico. Já estive instalado em hotéis, fiz algumas refeições em restaurantes. Mas, como produto de essa experiência, quero dizer que estou cada vez mais apreensivo com os efeitos da pandemia na nossa indústria turística.

Olho, com profunda admiração, a reconversão estoica das unidades hoteleiras, que ousam abrir portas num mercado rarefeito, quase sem estrangeiros. Tenho apreciado o esforço fantástico de muitos restaurantes, não obstante os custos de adaptação ao rigor das exigências sanitárias. E posso imaginar o efeito que a atual situação acarreta para setores como os transportes, as indústrias de lazer e um conjunto de muitas outras atividades colaterais.

A prolongar-se o presente estado de coisas por muito tempo, é quase certo que vamos ter um recuo muito forte num domínio que representava já uma fatia muito importante da nossa riqueza nacional. E da nossa identidade.

Sei que alguns apoucam e desprezam o setor turístico português, que o olham com sobranceria, que acham agora graça às ruas desertas de estrangeiros. Talvez esses "génios" pudessem informar-nos onde Portugal pode ir buscar um produto substituto para captar recursos para o país.

PS - Deixo aqui uma palavra de saudade pelo fim da "Casa Aleixo", um marco histórico na restauração do Porto.

terça-feira, junho 30, 2020

Requiem para o Aleixo


Há dias, de passagem pelo Porto, recebi a notícia: o Aleixo fechou. O Aleixo, ou melhor, a Casa Aleixo, para quem ande menos atento a estas coisas da restauração, era o nome de um restaurante muito antigo do Porto. 
Começo por transcrever parte de um texto que, faz agora precisamente quatro anos, escrevi na revista “Evasões”, onde, até me cansar da tarefa, mantive, por algum tempo, uma crónica gastronómica. O artigo sobre o Aleixo tinha o título provocador de “O polvo é quem mais ordena”.
No Porto há vários restaurantes clássicos, mas eu arriscaria dizer que, nos dias de hoje, nenhum tem os pergaminhos históricos do Aleixo.
O Aleixo fica em Campanhã, a dezenas de metros da mais movimentada estação ferroviária da cidade. Contudo, nem por isso sofre da banalização que, muitas vezes, afeta os lugares de restauração próximos dos centros de transportes coletivos. Ao longo de toda a sua existência, com altos e baixos, somados a crises e dissídios, a casa tem conseguido sustentar uma qualidade muito apreciável, sendo procurado por uma clientela fiel local e, em especial nos últimos anos, também pelos turistas que enxameiam o Porto. E, claro, por forasteiros como eu, que mapeiam o país das boas vitualhas.
O espaço do Aleixo é típico de um restaurante sem grandes sofisticações, mas com um ambiente acolhedor, quase caseiro. Não fora a pressão de clientes em dias de maior procura e seria tentado a dizer que recorda as saudosas pensões de província, nos tempos imemoriais do “bom e barato”. Estamos um pouco longe disso, isto é, continua bom mas, como não podia deixar de ser, porque a qualidade dos produtos tem de ser paga, já não é um restaurante qualificável como barato – muito embora, a meu ver, tenha uma relação qualidade/preço muito boa.
Sou cliente antigo do Aleixo. Nem me recordo de quando por lá parei pela primeira vez, seguramente saído de um comboio ou a fazer horas para ele. Creio que sou ainda do tempo em que nem café era por ali servido, como também lembro o período, menos agradável, em que, para o tomar (mas de saco), éramos obrigar a deslocar-nos para uma sala feita bar, em bancos incómodos, onde se acertavam as contas finais. Hoje, esse espaço passou a ter mesas e foi aí que, há dias, almocei.(...)”
O Aleixo foi propriedade do senhor Ramiro e da dona Inês. Conheci-os a ambos, em especial a senhora, que sobreviveu ao marido. Tinham um casal de filhos, mas não foram muito imaginativos nos nomes que lhes deram: Ramiro e Inês. O Ramiro, um dia, decidiu separar-se e criou o restaurante “Pai Ramiro” (que nunca visitei). A iniciativa fracassou e o Ramiro regressou. Depois, foi a vez da Inês, que criou a Casa Inês (visitei e não fiquei cliente). Fracassou e disseram-me que ainda regressou à casa mãe. Agora, fechou, de vez, a Casa Aleixo. 

Depois de ter escrito aquele texto, ainda voltei algumas vezes ao Aleixo. Não obstante o brio do meu amigo Ramiro, senti algum declínio na constância da qualidade da casa. Talvez por isso, a frequência das minhas visitas diminuiu. A grande escola do Aleixo, um restaurante criado por um galego e que, dentro de nove anos, passaria a centenário, desaparece. 

Para trás, fica a memória das placas nas paredes que indicavam a “Sala de Operações”, onde se comia, o “Laboratório”, isto é, a cozinha, a “Farmácia”, onde se guardavam os álcoóis, e a “Sala de torturas”, onde antes se faziam as contas. Sem o Aleixo, é um certo Porto que desaparece. Nada de nostalgias! Olhemos em frente, com otimismo, porque por aquela cidade continua a comer-se muito bem.

domingo, junho 28, 2020

Corrida

Conversa social, há dias. O outro, ribatejano: “Você gosta de touros?” Eu, transmontano: “Gosto”. Um sorriso despontou. Até que eu disse: “Por gostar deles é que detesto que lhes façam mal”. O sorriso fechou-se e mudámos de conversa.

A água estará boa?


sexta-feira, junho 26, 2020

Gerações


Há pouco, ao selecionar pastilhas da minha rotina medicinal diária, lembrei-me de como as gerações são diferentes, no tocante aos “hábitos” medicamentosos.

O meu pai morreu com 97 anos. Seis anos antes, foi passar comigo umas semanas a Nova Iorque. Perguntei-lhe se levava alguns medicamentos: sim, duas pastilhas de “Melhoral” e duas de “Rennie”, para “qualquer emergência”...

Fronteiras

Em questões de segurança há dois conceitos que nem sempre coincidem: a insegurança e a perceção de insegurança. A segunda pode ser injusta, à luz da estatística, mas tem de ser respeitada. Estou a falar, claro, dos países reticentes à entrada de portugueses, por virtude do vírus.

Pin Pan Pum

O PAN parece estar a implodir. Ainda não é desta que Portugal consegue ter um partido ambientalista a sério.

Posso estar errado...

As pessoas não falam muito disso, mas certas medidas de recuo no desconfinamento só parecem legais desde que cobertas por uma nova declaração do estado de emergência. Por mim, não vejo nenhum inconveniente nisso.

Haveis...

Quando vejo gente (com um ar nojento) de máscara no queixo ou como cachecol a falar para outros a palmos de distância, não consigo deixar de pensar na expressão cruel que, na minha terra, se dizia para os inconscientes que, por qualquer motivo, arriscavam a vida: “haveis de ter um lindo enterro!”

quinta-feira, junho 25, 2020

Dilema


E, agora, o que é que faço? Continuo a ler o livro de John Bolton sobre as suas andanças na Casa Branca como “National Security Advisor” ou passo para a edição de junho da “Piauí”, a fantástica revista brasileira, acabadinha de chegar, com um imenso artigo sobre a efémera aventura de Regina Duarte no país de Bolsonaro?

Banco de Portugal

Prometeram arranjar-me uma lista de nomes de pessoas mais competentes do que Mário Centeno para o cargo de governador do Banco de Portugal. Mas, por qualquer razão, a lista teima em não chegar. Alguém a tem?

Um adeus especial


Há semanas, tomei a decisão de entregar ao espólio bibliográfico que, com o meu nome, existe, desde há uns anos, na Biblioteca Municipal de Vila Real, um conjunto de livros que, há mais de meio século, tinha começado a organizar. 

Já estavam, pela Biblioteca, muitos e muitos livros, que lhes fui, aperiodicamente, encaminhando, desde que regressei definitivamente a Portugal. 

Mas esta era uma coleção muito especial. Comecei-a quando tinha menos de 20 anos. Trata-se de obras políticas sobre a I República e, em especial, sobre o Estado Novo (tenho orgulho de dizer que está lá quase tudo o que foi publicado, em livro, sobre a luta da Oposição contra a ditadura), complementadas por bastante daquilo que saiu do prelo sobre o 25 de abril e a sua sequência imediata. A luta anti-colonial tem também ali farta representação. Particularmente curiosos são livros publicados no estrangeiro sobre Portugal, quer por adeptos de Salazar, quer pelos seus exilados opositores ou por críticos estrangeiros da ditadura colonialista. Em muitos países descobri coisas interessantes sobre esse tempo de Portugal. Com franqueza, creio que nenhum daqueles livros é particularmente valioso, mas alguns são hoje muito raros, difíceis de encontrar no mercado.

Neste lento processo de “desligamento” voluntário de parte da minha biblioteca (ainda fico com uns milhares de volumes para me entreter, para além do que vou comprando), devo confessar, aqui entre nós, que este foi o único momento verdadeiramente traumático. Quantos anos andei eu, pelos alfarrabistas, a tentar encontrar alguns daqueles livros! Quanto prazer tive em ler aqueles textos bem datados, desde memórias ingénuas a coisas mais elaboradas, alguns com mensagens cheias de esperança, outros cheios de prosápia politiqueira. Mas está ali a História contemporânea de um país que é o nosso.

“Mas, se teve tanto trabalho a coletar esses livros, a que se sente afetivamente tão ligado, por que os não conserva consigo? Já não tem lugar para eles nas suas estantes?”, perguntarão alguns.

Tenho espaço (embora em dupla fila...), mas acho que dar-lhes um destino institucional acaba por ser a solução mais racional, até para proteger a sua integridade física e a sua integralidade como conjunto. Ao longo destes meses de confinamento, olhando para eles, dei-me conta de que só se tivesse sete vidas, como os gatos, é que conseguiria reler tudo aquilo (e alguns, dei-me conta, não cheguei nunca a ler, admito sem o menor problema).

Não sou, em geral, dado a grandes nostalgias. Mas, ao olhar aquelas centenas de volumes que agoram partem para Vila Real, algo em particular me tocou. Mas, adiante!

quarta-feira, junho 24, 2020

O Brasil em discussão



Durante meia-hora, a partir das 17 horas desta quarta-feira, dia 24 de junho, a jornalista Sandra Weiss e Leonídio Paulo Ferreira, diretor do Diário de Notícias, discutirão as Dinâmicas Políticas no Brasil. O acesso pode ser feito pelo Facebook ou pelo YouTube.

Que se passa no Brasil?


Mergulhados nas especulações sobre a pandemia, que arruina rotinas e abala certezas, os portugueses, quando, pela noite, olham as televisões, ouvem falar do Brasil. E o que é que fixam? A ideia de um país dirigido por um “doido”, com pulsões anti-democráticas, rodeado de figuras “sulfurosas”, amparado pelos militares, que dia a dia dá mostras de não estar à altura das responsabilidades exigíveis a um líder de um grande país, agora sob uma imensa tragédia sanitária. Com mais ou menos nuances, este é o retrato que nos chega do outro lado do Atlântico.


Durante muitos anos, Jair Bolsonaro foi um deputado risível, que obtinha destaque mediático pelos ditirâmbicos elogios que fazia à ditadura militar (1964-1985). Mau orador, “despreparado”, como por lá se diz, sem obra parlamentar, era uma “nonentity” no panorama político local. O sistema brasileiro, por mecanismos de representação uninominal que não cabe aqui descrever, dá aso à eleição de alguns “cromos”. E Bolsonaro era isso mesmo, um cromo. Até um dia.


Foi um conjunto muito excecional de circunstâncias, que teve essencialmente a ver com a rejeição profunda dos tempos do PT, visto como o centro do processo de corrupção política que marcou a gestão do Brasil, que acabou por polarizar o voto naquela figura de discurso primário e populista.


Mas foi também o descrédito da direita democrática tradicional, sem candidatos tidos como capazes de afastarem o “petismo” da área do poder, que levou gente sensata e equilibrada a optar pela escolha de uma figura com o recorte de Bolsonaro. Era a lógica do “depois logo se vê!”


Para muitos, e conheço alguns, foi um assumido ato de desespero, perante o desiderato maior que era afastar o PT e evitar um regresso ao poder de Lula ou um seu títere. Estou em crer, contudo, que a maioria dessas pessoas nunca pensou que Bolsonaro revelasse uma inadequação tão grande para o exercício das funções. Outros acreditavam, talvez, que seria possível rodeá-lo de figuras que permitissem um mandato marcado por alguma razoabilidade. A realidade acabou por superar as piores expetativas.

E agora? Apesar de tudo, há que reconhecê-lo, o Brasil tem revelado manter uma malha institucional com separação de poderes, com um imprensa e uma vida política livres. A questão está em saber: conseguirá a democracia brasileira sobreviver, não necessariamente a Bolsonaro, mas a este tempo trágico, de polarização e forte desgaste social, sem uma liderança prestigiada, em que tem uma figura como Bolsonaro na presidência?

terça-feira, junho 23, 2020

Duas pessoas


 

Falamos do final dos anos 50 do século passado.

A primeira pessoa. Recordo-me de lhe chamar senhora Gilberta. Na realidade, o nome dela era Maria, mas era conhecida por Gilberta, por ser a “Maria do Gilberto”, sendo que o Gilberto era o marido (ou seria o pai?). Morava depois dos Quatro Caminhos, lá para São Mamede. Vinha a nossa casa, em Vila Real, algumas vezes por semana, para trabalhos mais pesados, complementando aqueles que a “criada de dentro” fazia.

A Gilberta, recordo-me, tinha buço e um cabelo muito preto, apanhado atrás. Andava com um passo rápido.

A segunda pessoa. Convenhamos, para o que aqui conto, que se chamava Laurentino. Era meu colega de escola primária. O Laurentino era mais alto do que a maioria de nós e o professor, o Pena, tomou-o de ponta, sendo objeto das regulares reguadas nas mãos que, com evidente sadismo, ele nos distribuía com abundância.

Um dia, foi anunciado que um subsecretário de Estado da Educação ia visitar a nossa escola - que se chamava Escola Conde de Ferreira, o nome de alguém que tinha feito fortuna no tráfico de escravos e que, talvez para se absolver, tinha oferecido algumas dezenas de edifícios idênticos pelo país.

Para a visita do governante, foi pedido que os alunos tivessem uma bata. Nenhum de nós tinha bata. Os meus pais mandaram fazer uma para mim. Foi usada um dia, só nesse dia, apenas para o subsecretário nos ver, no breve minuto que passou na sala, connosco de braço estendido em saudação dita romana (outros diriam fascista). Nunca mais a usámos.

O Laurentino não esteve presente nesse dia. Os pais não tinham dinheiro para lhe mandar fazer uma bata. Aliás, não tinham dinheiro para muitas outras coisas.

Quer o aqui chamado Laurentino, quer a Gilberta, andavam, o ano todo, descalços. Fizesse sol ou neve, que às vezes também fazia, lá por Vila Real. Não me recordo dos pés do Laurentino, mas lembro-me bem de notar que a parte dos pés da Gilberta que andava em contacto com o chão tinha adquirido uma espécie de espessura, que funcionava como uma segunda pele.

Esta é uma conversa desagradável? Imagino que seja. Mas essa era a realidade do país da forte pobreza de alguns. O salazarismo era isso. Era desagradável.

segunda-feira, junho 22, 2020

Uma questão de decibéis


Ontem, falei por aqui de quanto me irritam as motos pela noite. Há pouco, lembrei-me que já estive do "outro lado". Não que eu tivesse alguma vez uma moto, mas porque já fui obrigado a defender o ruído das motos produzidas em Portugal.

Estávamos na segunda metade da década de 90. Eu representava Portugal no conselho de ministros do "Mercado Interno", em Bruxelas. A agenda dessas reuniões incluía a análise de uma imensidão de diplomas, relativos a questões técnicas para nós de grande complexidade, até porque diziam respeito a áreas muito diversas entre si. As temáticas ambientais e de proteção dos consumidores eram então as mais vulgares, num tempo em que se procurava legislar para que o "Mercado Interno" intracomunitário pudesse melhor funcionar (e, hoje, talvez valesse a pena completá-lo, como bem perceberá quem me ler e conhecer algo da matéria). A harmonização legislativa era essencial para proporcionar a livre circulação das mercadorias no espaço europeu. Por essa razão, era necessário produzir legislação à escala da Europa, que depois teria de ser transposta para a ordem interna de cada país. E, a partir daí, ser respeitada pelos operadores económicos.

Era isso que íamos tratar nessa reunião. Na véspera, no "hall" do Hotel SAS, com a Maria José Salazar Leite, a Lénia Real e a Regina Quelhas Lima, num ritual que iria durar alguns anos, eu tinha passado a pente fino a posição portuguesa sobre todos os diplomas que iam estar sobre a mesa do Conselho de ministros, neles identificando eventuais interesses nacionais a salvaguardar, alterações a propor e, em geral, o nosso sentido de voto na decisão final sobre as "diretivas" em causa. A nossa posição era baseada nas opiniões recolhidas junto dos "ministérios sectoriais" (fórmula algo pedante que o MNE utiliza para se referir aos outros departamentos governamentais), que deveriam ter auscultado previamente a nossa indústria interessada. Era assim que as coisas se passavam e, julgo, ainda se passam.

O grande berbicacho para nós, nessa reunião, era um diploma que incluía regras muito estritas sobre o ruído máximo permitido às motos e motorizadas. Recordo-me que, dentre os Estados dessa Europa então apenas a 15, Portugal e a Itália estavam em clara minoria, na defesa de um nível elevado de decibéis, que entendíamos deverem ser permitidos ao funcionamento dos escapes das viaturas dessa natureza produzidas pelas suas indústrias do setor. Ao ler a papelada à minha frente, lembro-me de ter pensado na barulheira que as "Zundapp", as "Pachancho" e as "Famel" faziam pelas ruas da Vila Real da minha juventude e, por um momento, senti-me representante dessa bárbara produção lusa de ruído e fumarada.

O assunto começara por ser analisado nos "comités" da Comissão europeia, onde os setores técnicos são ouvidos, mas o projeto de "diretiva" não contemplou os nossos interesses. A discussão do texto, nos meses anteriores, no seio dos "grupos de trabalho" do Conselho, também não acomodara as nossas pretensões e o diploma passara no "Coreper I" (comité dos representantes permanentes, versão representantes adjuntos) com as nossas "reservas". Porém, as objeções de Portugal e da Itália estavam longe de ser suficientes para construir uma "minoria de bloqueio", pelo que nos restava politizar o tema em Conselho de ministros, afastada, no entanto, a hipótese de invocar o chamado "interesse vital", para bloquear o diploma. É que um interesse só é "vital" quando os outros o reconhecem como tal.

Aquele era o primeiro Conselho de ministros em que eu participava, como secretário de Estado dos Assuntos europeus (quatro anos depois, havia de presidir a esse mesmo Conselho, durante um semestre). Como alguém dizia, "não há uma segunda oportunidade para se criar uma primeira impressão". Isto era válido perante os meus colegas de governos estrangeiros como o era perante a delegação portuguesa. Por isso, com base em sínteses, estudei o assunto tão bem quanto pude, a fim de bem defender as nossas "cores". A certo passo da reunião, pedi, para a fila de trás, onde estavam os técnicos, o texto completo do projeto legislativo: passaram-me um imenso "tijolo", com resmas de anexos, que devolvi discretamente, ciente de o não conseguir ali descobrir nada.

Chegado o momento na discussão da diretiva sobre o ruído das motos e motorizadas, intervim cedo, lendo uma "speaking note" que me havia sido preparada pelos serviços, texto que, na noite anterior, eu "oralizara" com umas expressões menos técnicas, para dar um tom mais político ao meu discurso. Fui solene e grave. Expliquei, com falsa sapiência e escudado em argumentos técnicos especiosos, que, em absoluto, era impossível à nossa indústria baixar de X decibéis, com os motores a operar a Y por cento da sua potência. Detalhei, com números catastróficos, os impactes sobre o desemprego que um grau de exigência maior na diretiva iria ter, com o encerramento de fábricas e crise nas regiões onde elas se situam. Em apoio às teses que defendia, disse (em português, porque nos Conselhos de ministros fala-se, em regra, a língua nacional) frases técnicas que eu só a custo havia entendido - e que, imagino hoje, devem ter chegado "lindas" aos ouvidos dos meus colegas holandês ou finlandês, retraduzidas através do inglês. Porém, acabei a minha prestação com a perceção, lida na cara das outras delegações, que a minha argumentação não os comovera minimamente. O "tour de table" foi, de facto, esmagador: constatava-se que Portugal e Itália estavam isolados.

Com simpatia e imensa ironia, o presidente da sessão, o secretário de Estado espanhol Carlos Westendorp, dirigiu-se então às delegações, dizendo qualquer coisa parecida com isto: "Agradeço as vossas intervenções, as de quantos apoiaram com veemência as virtualidades da diretiva como as de quantos ainda discordam de alguns aspetos que ela comporta. Mas, meus caros amigos, sejamos honestos connosco próprios: nenhum de nós sabe rigorosamente nada do que está a falar! Isto é uma matéria de alta tecnicidade, que somos chamados a decidir politicamente, mas sobre a qual a nossa opinião é apenas a que nos é dada pelos especialistas, que prepararam as "speaking notes" que, de forma tão esforçada, todos vocês leram. Verifico que a Itália e Portugal alegaram ter problemas com a diretiva e, a crer no "dramatismo" das suas declarações - em que todos somos obrigados a acreditar -, isso pode ter implicações para as suas indústrias. Convido, assim, a Comissão europeia a estudar, com essas delegações, a instituição de um "período transitório" para as mudanças a introduzir na sua respetiva legislação, dando às suas indústrias algum tempo mais para se adaptarem. E espero que, quando o assunto aqui voltar no próximo mês, todos me poupem à sua "sapiência" sobre os ruídos das motos".

A sala caiu em risos e, já não me recordo bem como, o assunto lá foi encaminhado. Por mim, e para o futuro, aprendi para sempre em não ser muito enfático sobre assuntos cuja tecnicidade desconheço.

A vida é feita de irónicas contradições. E pergunto: será que, um quarto de seculo depois, a diretiva está a ser cumprida? Ou ainda perdura alguma "derrogação" que dá liberdade a quem me estraga a noite? E será culpa minha, desses tempos, de algo que me tenha escapado? Terei razões para ter algum peso na consciência, desses (demasiados) anos nas lides europeias?

domingo, junho 21, 2020

Esta varanda



Conheço esta varanda há tanto tempo quanto me conheço a mim. Lembro-me de correr por ela, quando o soalho era ainda de madeira, preocupando os mais velhos, pelo risco de poder cair pelas escadas de pedra. Ser, então, neto único, sobrinho único e filho único era um privilégio que nem lhes digo! Por ali adubei depois os “blues” da adolescência, tocando (pessimamente) viola, como baladeiro de trazer por casa. Nas décadas seguintes, foram centenas as horas de leitura e conversa, naquelas e noutras cadeiras que por ali foram estando, em verões que tenho por felizes. Na memória, ficou-me para sempre o chiar dos carros de bois que subiam do Fundo de Vila para o Cruzeiro. E, em especial, o quase silêncio das muitas madrugadas em que ali fiquei a pensar “na morte da bezerra” (não, não havia mosquitos!), ouvindo a água que corria pelo rego lateral da rua, no calendário de distribuição da rega pelos terrenos da aldeia. Ah! E lembro-me bem das imprecações íntimas contra as Zundapp, as Famel e as Pachancho que, ao longe, vindas das Pedras ou de Eiriz, me rompiam a quietude. Na imagem, não se vê ninguém? Pois olhem que esta varanda está, para mim, cheia de gente: avós, pais, tios, primos e amigos.

Suicídio

Hoje, na comunicação social, falar-se-á muito de um suicídio. No mundo em vivemos, e tratando-se de figura com destaque mediático, é quase inevitável que isso aconteça, embora fosse desejável que quantos são próximos da pessoa desaparecida pudessem chorar, sem serem perturbados, a perda sofrida. Conheci pessoas que se suicidaram, tendo sido muito amigo de uma delas. Por mais que tentemos entender as razões desse gesto extremo de alguém, não creio ser possível a outrem conceber o cúmulo insuportável de pressão interior que poderá conduzir uma pessoa a essa desistência de tudo. Por isso, a ocorrência de uma situação como esta, mais do que provocar qualquer juízo valorativo ou interpretativo da nossa parte, deveria apenas convocar o nosso respeito. E, desejavelmente, o silêncio.

sábado, junho 20, 2020

Lula no Real Gabinete


Foi em 2008. O presidente Cavaco Silva visitava oficialmente o Brasil, no quadro das comemorações da chegada da corte portuguesa, que tinha tido lugar 200 anos antes. Um conjunto de cerimónias teve lugar no Rio de Janeiro.

Pelo que me dizia respeito, como embaixador de Portugal, desde o primeiro momento, insisti muito em incluir, no programa da visita, uma deslocação do presidente Lula ao Real Gabinete Português de Leitura.

O Real Gabinete é uma instituição “sui generis”. Num edifício de desenho eclético, onde prevalece um neomanuelino com distorção transatlântica, que recorda um pouco a estação do Rossio ou o hotel do Bussaco, aí repousam centenas de milhares de livros em língua portuguesa, sendo aliás o maior repositório bibliográfico existente fora do nosso país.

Mas o Real Gabinete é bastante mais do que um edifício e uma biblioteca: é uma expressão simbólica do extraordinário esforço da comunidade portuguesa para conseguir erigir um monumento representativo da dignidade da sua presença no Brasil, da empenhada contribuição dada por muitos milhares de portugueses para a construção daquele país.

Alguns Gabinetes de Leitura, bem como outras bem antigas instituições criadas pela nossa comunidade, nomeadamente na área da saúde e da solidariedade social, continuam a existir, ainda hoje, no Rio e em outras cidades do Brasil, grande parte, contudo, já sem a aura de outros tempos.

Infelizmente, o Real Gabinete continua a não ser muito conhecido dos brasileiros, nem sequer dos muitos turistas portugueses que, no Rio, lhe preferem o Calçadão, Ipanema ou o Leblon. Situado numa zona que veio a tornar-se algo periférica, só lentamente terá começado a surgir, nos últimos anos, em alguns itinerários turísticos e culturais.

Em tempos idos, para os portugueses desafetos ao regime ditatorial português, o Real Gabinete representava também uma certa "colónia" de matriz salazarista, que tendia a confundir o respeito pelo nosso passado com a adesão ao padrão político autoritário que preponderava em Lisboa.

Sou um "fã” do Real Gabinete, confesso. Visitei-o, a primeira vez, em 1989. Fui lá bastantes vezes, durante o tempo em que fui embaixador no Brasil. A instituição, para mim, transcendeu sempre qualquer conotação política que lhe tivesse estado associada.

Uma visita do presidente Lula ao local, acompanhado pelo chefe de Estado português, parecia-me ser uma excelente forma de sublinhar a força da relação luso-brasileira, em especial naqueles dias em que o Brasil nos estava a ajudar a melhorar a imagem que dom João VI conservava na nossa própria memória coletiva nacional.

Além disso, posso agora revelar que procurei utilizar essa visita como uma homenagem, indireta e subliminar, do poder político brasileiro à matriz fundacional daquele país. E isso tinha ainda maior significado porquanto seria feita por um presidente oriundo de uma área político-ideológica onde tradicionalmente se não acolhem, por ali, os maiores amigos de Portugal.

A minha sugestão foi facilmente aceite em Lisboa. Nas autoridades brasileiras, no entanto, a questão foi muito mais complexa, tendo a minha ideia sido resistida durante algum tempo. Porém, com algum esforço de convicção, ajudado por alguns amigos que consegui mobilizar no Itamaraty (obrigado, Ruy Casaes) e no Planalto (obrigado, Marcel Biato), ela acabou por ter sucesso. E, ao que sei, em derradeira instância, Lula, que tinha uma afeição evidente por Portugal, terá ajudado a essa decisão.

Quando a hora chegou, eu estava com uma imensa curiosidade para ver a reação de Lula. Insisti que fosse recebido à porta por Cavaco Silva, decisão que também deu muito trabalho para ser aceite. Porquê? Porque o Real Gabinete é uma instituição de direito público brasileiro e o presidente português não podia, formalmente, ser o anfitrião no local. Mas lá se conseguiu também isso, depois de algumas conversas!

Vi que Lula vinha já impressionado com o aspeto exterior do edifício. Depois, no trajeto que havíamos cuidado que evitasse a passagem pela sala onde está o busto do ditador de Santa Comba, seguiu, acompanhado de Cavaco Silva, até uma espécie de palanque, no centro do majestoso “hall”, encimado por uma cúpula de vitrais, cercado de varandas de estantes, com a imensidão bibliográfica ali recolhida. Aguardavam os dois presidentes, nesse espaço, algumas dezenas de pessoas, maioritariamente da comunidade portuguesa e de meios empresariais e culturais do Rio.

Lula não deixava de olhar em volta, claramente deslumbrado. Naqueles segundos, em que defrontou e prescrutou a imensidão de estantes, recheadas com o quase meio milhão de livros, naquele espaço belíssimo, com uma dimensão grandiosa, fiquei com a sensação de que terá entendido mais sobre o papel que os portugueses tiveram no Brasil do que em todo o resto da sua vida. A sua cara não iludia, os comentários que trocava com os colaboradores próximos eram de um genuíno deslumbre. Fiquei confortado com a sugestão que tivera de ali o levar.

Ao lado de Cavaco Silva, Lula tomou lugar na tribuna. Continuava, incessantemente, a olhar em torno. Começaram os inevitáveis discursos. Lula encerraria. Na primeira fila, onde eu estava sentado, via-o distraído, a mirar aquela peça arquitetónica, que imagino que até ali nem sequer suspeitara que existia, com semelhante dimensão.

A certo ponto, vi Lula acenar, levemente, para alguém que devia estar num dos varandins superiores, onde se situavam muitas das estantes com livros, situadas atrás da audiência. Discretamente, como algumas outras pessoas, voltei-me para tentar perceber a quem se dirigia o gesto: Lula estava a dizer adeus a um grupo de empregadas, com bata de trabalho, que se haviam colocado, lá no alto, para verem o seu presidente. Era Lula no seu melhor...

sexta-feira, junho 19, 2020

35 anos na Europa comunitária


Intervenção no Mosteiro dos Jerónimos, em 15 de junho de 2020, hoje divulgada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Pode ser vista aqui.

Viana


Este ano, as Festas da Senhora da Agonia não podem decorrer da forma tradicional. Mas, com virus ou sem ele por aí, havemos de ir a Viana.

Cooperação e política externa


Publicada há pouco, na net, surgiu a intervenção que fiz no Seminário anual do Camões. Pode ser vista e ouvida aqui.

Histórias de Babel


Com um grupo de técnicos portugueses, oriundos de vários ministérios, eu integrava a delegação nacional a uma reunião internacional, numa cidade europeia. Iam ser cerca de três semanas de trabalho. A chefia formal da delegação competia ao ministro de um determinado setor, que apenas tinha de estar presente por um período de 24 horas. A coordenação dos trabalhos era assegurada pelo embaixador português na cidade,

A cada um de nós correspondia acompanhar um comité, onde assegurávamos a representação portuguesa e no qual intervínhamos, de acordo com a nossa especialidade, algumas vezes por iniciativa própria, na maioria dos casos sob instruções recebidas de Lisboa, em função do andamento dos debates.

O titular do primeiro comité a entrar em funções era uma pessoa muito agradável, tido por conhecedor da matéria em causa. Por mera curiosidade, talvez porque não houvesse muito mais que fazer a essa hora, eu e o Frederico Alcântara de Melo, que representava o Ministério da Indústria, acompanhámos o homem à reunião inaugural, sentando-nos em cadeiras por detrás dele. 

A reunião iniciou-se, vimos o homem colocar os auscultadores, notando que ele procurava acertar com os botões, para escolha da língua. A certa altura, voltou-se para trás e, em voz baixa inquiriu: “Qual é a posição para ouvir a interpretação?”. Havia duas posições possíveis: uma era para francês e outra para inglês, as duas línguas de trabalho. Explicámos-lhe. “Não é isso”, disse ele, “o que quero saber é a posição para ouvir em português”. 

Eu e o Frederico olhámos um para o outro e um de nós esclareceu: “Não há português nestas reuniões!”. O homem, fitou-nos com um ar espantado, olhos arregalados e, com uma imensa candura, confessou: “Mas eu não falo línguas!”. Estava convencido de que podia falar em português e que tinha assegurada a interpretação das intervenções dos outros.

Nessa noite, numa discreta reunião, o embaixador, um homem suave e compreensivo, fez uma reafetação de funções, com sacrifício da cobertura do trabalho de alguns comités. E lá passou o homem três belas semanas de férias junto ao lago.

quinta-feira, junho 18, 2020

Vou conter-me!

Vou conter-me nas palavras: estou cada vez mais farto de uma fauna abutre que anda por aqui a explorar tudo o que corre mal e a ironizar sobre tudo o que corre bem. O que eles queriam sei eu! Felizmente, não têm. É só isto que queria dizer.

Clube de Lisboa

Hoje, em apenas 30 minutos, o Clube de Lisboa analisa, na sua página de FaceBook ou no YouTube, uma das mais importantes questões legais que estão em discussão no quadro da União Europeia

O carimbo


Raro era o dia, nesses anos 80, em que Portugal não era zurzido pela imprensa angolana. O antigo colonizador funcionava como o bombo da festa de uma Angola política radical que atravessava um penoso quotidiano de guerra, com o ”imperialismo americano”, inimigo principal, e os “racistas sul-africanos”, que fustigavam militarmente o sul do país, responsabilizados pelo apoio aos seus “lacaios” da Unita. Portugal, e, em particular, Mário Soares, eram uma “bête noire” de estimação, um país erigido em adversário colateral, denunciado como estando ao serviço da estratégia “yankee”. O nosso país era punido pela História e, no imediato, pelo facto de acolher os inimigos do MPLA. 

Ser diplomata português em Angola, por esses dias, não era coisa fácil, podem crer. Tentar ter uma relação normal com entidades oficiais ou oficiosas angolanas era coisa bem difícil, por muito que a empatia pessoal com os nossos interlocutores locais tentasse, e às vezes conseguisse, impor-se. Contudo, quase tudo o que oferecêssemos, como gestos de simpatia e cooperação, era sempre objeto de grande escrutínio, e quase sempre rejeitado.

O “Jornal de Angola” e a agência noticiosa Angop eram as pontas de lança de uma campanha contínua, que tentávamos desarmar, quase sempre sem grande sucesso, dado que ambas as entidades funcionavam como o braço escrito da máquina de propaganda do regime. Os editoriais inflamados, aliás escritos, quase sempre, num irónico português imaculado, as diárias notícias sobre a cumplicidade lusitana com os inimigos do regime (sinónimo de inimigos do país), tudo isso era matéria para um muito difícil “combate”, por parte da embaixada de Portugal.

Por uma qualquer razão, eu acabava por ser, de entre os diplomatas da pátria que por ali andavam, aquele que tinha melhor relação com os jornalistas angolanos. Alguns iam a minha casa, outros acompanhavam-me em eventos públicos, talvez absolvidos pela imagem “de esquerda”, de “homem do 25 de abril”, que eu ainda projetava. Usufruia assim de um estatuto ambíguo, de que eu disfrutava junto de algumas entidades mediáticas angolanas. Ainda hoje estou para perceber como isso “funcionava” realmente, nos setores oficiais angolanos.

Um dia, consegui o ensejo de almoçar com um dos responsáveis da agência oficial de notícias, a Angop. Era um homem ideologicamente férreo, nada aberto a concessões na ortodoxia oficial, que defendia e projetava. Durante a refeição, referi a “cooperação”, palavra muito em voga, que Portugal podia prestar à agência. Ficou, desde esse momento, muito claro que estava fora de causa um intercâmbio informativo com a nossa Anop. A linguagem, a orientação, o estilo - tudo impossibilitava um entendimento.

A certa altura da conversa, falou-se de materiais de trabalho. E referiram-se os dicionários, um dos meus eternos “vícios” (sou um colecionador, quase imbatível, de dicionários de língua portuguesa, portugueses e brasileiros). “Não têm necessidade de dicionários, lá na Angop?”, lancei, como isca. Vi os olhos do meu interlocutor interessados e logo fui a jogo: “Se quisessem, estou certo que a Cooperação portuguesa poderia oferecer-vos uma dúzia de dicionários, para a vossa redação”.

Vi que o nosso homem estava a ficar verdadeiramente interessado. Não sei que dicionários haveria pela Angop. Talvez um Torrinha ou um Lello, seguramente que não um esplêndido Moraes ou mesmo um Cândido de Figueiredo. E o que é que poderia haver de mais “neutral” do que um dicionário? Nunca a aceitação dessa oferta poderia ser interpretada como uma cedência ao “lacaio do imperialismo” que Portugal era, oficialmente, para a Angola de então. Ouvi, então, com prazer: “Seriam muito bem vindos uns dicionários de língua portuguesa”. Não deixei “cair a bola” e inquiri: “Que dicionário gostariam de ter?” O da Porto Editora foi a escolha.

Regressado ao escritório, informei logo o embaixador António Pinto da França e, de imediato, seguiu um “telegrama” para Lisboa a pedir a dúzia requerida de dicionários. A bem dizer, era uma “lança em África”, na verdadeira aceção da palavra, uma brecha hábil na recusa empedernida, por parte de Angola, de aceitar gestos de simpatia por parte da Cooperação portuguesa.

Semanas mais tarde, pela mala diplomática, lá chegaram os dicionários da Porto Editora. E logo seguiram para a Angop, embora com uma pequena “pausa” na embaixada. Já explico...

Desde há uns meses que, numa iniciativa que tinha saído da genialidade do meu colega José Stichini Vilela, conselheiro da embaixada, nós distribuíamos, todas as semanas, pelas empresas portuguesas sediadas em Angola, exemplares dos jornais “A Bola” e o “Record’, que nos chegavam pela mala diplomática.

A “fome” local de imprensa desportiva portuguesa era imensa, entre os expatriados nacionais, vindo a alargar-se a setores angolanos que, por muito que se obstinassem em atacar Portugal nas conversas do dia a dia, acabavam por ter um inescapável tropismo afetivo pelos principais clubes de futebol portugueses, que ultrapassava todas essas barreiras. 

Ao final de algumas semanas, tivemos mesmo de reforçar a “dose” de jornais desportivos portugueses. No dia da mala diplomática, ao final da manhã, criava-se, à porta da embaixada uma multidão de “utentes”, à espera dos exemplares dos jornais. 

Sabíamos que, em algumas empresas e entidades, era aposta uma folha nominativa de consulta, circulando cada exemplar por várias pessoas em Luanda, “migrando” depois para localidades da província. Alguns gabinetes de ministros fizeram discretas diligências para serem beneficiados com um exemplar. Foi um êxito!

Na minha qualidade de responsável na embaixada pela área da Cooperação, eu tinha entretanto “inventado” um imenso carimbo, em fortes maiúsculas, que era aposto nas primeira, última e páginas centrais dessas dezenas de exemplares da imprensa desportiva nacional, com os seguintes dizeres” “Oferta da Embaixada de Portugal”.

Nos dias em que a mala diplomática chegava, os jornais iam logo para a sala do Silva, um funcionário da embaixada, que era quase cego, e que, por uma boa meia hora, quase sem olhar, fazia ressoar por toda a casa o batimento imperativo daquele carimbo, para que o nome da embaixada ficasse indelevelmente associado àquela distribuição benévola. Para que dali pudéssemos retirar algum subliminar crédito político.

Mas voltemos aos dicionários. Confesso que não resisti. Pela minha própria mão, antes de os enviar para a Angop, enchi várias (dezenas, confesso!) páginas de cada dicionário com esse imenso carimbo: cada vez que um jornalista da Angop viesse, no futuro, a verificar o significado ou a grafia exata de uma palavra, na nossa língua comum (em Angola, o português é o de Portugal, pelo que o Aurélio ou o Caldas Aulete, dicionários brasileiros, eram menos práticos), ali estava a menção inapagável de que isso se tinha ficado a dever à simpatia da embaixada do país que a produção informativa da agência continuava diariamente a diabolizar. 

A vingança serve-se fria, embora, com o clima de Luanda, a metáfora fosse ali de mais difícil aplicação.

Os EUA, a ONU e Gaza

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