segunda-feira, agosto 12, 2019

A fronteira


Não acho que se deva ter saudades das antigas fronteiras europeias, com que Schengen acabou. E é, naturalmente, sem a mais leve das nostalgias que recordo a inquietação pateta que nos invadia quando, num passado felizmente já distante, os carros que atravessavam a fronteira luso-espanhola eram sujeitos ao escrutínio inquisitivo das figuras policiescas (e pidescas) que, com ar de caso, pretendiam saber o que trazíamos do estrangeiro, fosse isso "melocotones", "torrón de Alicante" ou uma simples garrafa de Coca-Cola (sim, é verdade!, Salazar não permitia que se importasse Coca-Cola, para quem não saiba). Era assim, antes de 1974.

Um dia dos anos 60, regressei a Portugal integrado num grupo que estava sob a benévola liderança de um simpático amigo, com grande experiência de travessia de essas e várias outras fronteiras europeias. A prática de muitas viagens tinha-lhe ensinado engenhosos truques. Recordo aqui dois deles, que testemunhei.

Na travessia de Andorra para Espanha, esse amigo preparou a mala do carro por forma a dar a impressão de estar a abarrotar de objetos de uso comum. Por detrás de tudo aquilo, escondiam-se algumas simples mas “proibidas” coisas, com as quais os guardas fronteiriças costumavam implicar. O truque essencial para evitar uma revista criteriosa, que ele havia treinado para não falhar, era colocar um penico de plástico por forma a que, logo que se abrisse a mala do carro, esse objeto caísse no chão. Era um penico com ar de usado (trazido expressamente de Portugal!) e a finalidade era provocar no guarda um subliminar processo de rejeição, quase de nojo, que o desestimulasse de prosseguir a vistoria. Sou testemunha de que, nessa vez em que assisti, o truque funcionou perfeitamente.

Dias depois, em Espanha, chegados perto da nossa fronteira, vi-o decidir estacionar por mais de meia hora, a cerca de um quilómetro de Portugal, sem um aparente propósito. O meu amigo mantinha um sorriso misterioso, quando perguntado por que perdíamos tempo. Minutos depois, chegados à parte portuguesa da fronteira, enquanto alguém tratava dos passaportes, assisti à conversa entre esse amigo e o homem da alfândega:

- Deve ter ser muito cansativo estar aqui o dia todo nesta tarefa! Ainda lhe falta muito tempo de trabalho?

- Não, não! De facto, vou sair de serviço daqui a cerca de dez minutos.

- Ainda bem! Desejo-lhe um bom descanso. O que pretende ver, no carro? 

- Nada. Não é necessário abrir nada. Podem seguir. Boa noite!

Foi só nesse momento que percebi por que razão tínhamos "feito horas" antes da fronteira. O meu amigo sabia dos turnos dos funcionários das alfândegas e, com uma precisão suíça, conseguia sempre chegar uns instantes antes deles abandonarem o posto, num momento em que a respetiva paciência já se tinha esgotado e estavam mais inclinados a ir para casa do que a vasculhar o carro de um simpático cidadão que, além do mais, se preocupava com o seu cansaço.

domingo, agosto 11, 2019

Com as mãos no passado


Num livro que escreveu sobre Natália Correia, que eu havia guardado para as férias e que ontem acabei de ler, Fernando Dacosta conta um episódio passado no bar do bairro da Graça que era propriedade da escritora, o conhecido “Botequim”.

Uma noite, alguém “leu” a mão de Natália, tendo depois confidenciado para algumas pessoas: “Esta mulher vai morrer em breve!”. E Natália Correia morreria, de facto, pouco tempo depois, em 1993.

A pessoa que fez a premonição chamava-se Carlos Eurico da Costa. Nos dias de hoje, não haverá muitos que, por estas redes sociais, saibam de quem se trata, pelo que vou apresentá-lo.

Carlos Eurico da Costa foi um jornalista e escritor, além de gestor de empresas. Iniciou a sua atividade no “Diário de Lisboa”, inicialmente como crítico de cinema e depois como jornalista, tendo, depois, feito parte da histórica equipa que criou o efémero “Diário Ilustrado”, de onde seria afastado num processo político que ficou célebre. Com Mário Cesariny, António Maria Lisboa e Cruzeiro Seixas, entre outros, foi membro do Grupo Surrealista de Lisboa, tendo diversa obra de ficção publicada, sendo também autor de “A Caça em Portugal”. Tem igualmente obra gráfica. Fez parte da interessante geração intelectual que se situou na charneira entre a atividade publicitária e a escrita, setor onde se ilustraram nomes importantes da literatura portuguesa. Foi ainda membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores e Secretário-Geral da Associação da Imprensa Diária.

Esteve preso por atividade anti-fascista durante o serviço militar e, politicamente, sempre se manteve próximo do PCP, partido de que nunca seria militante, mas onde tinha muitos amigos. Os seus relatos do treino noturno de pistola, com Zeca Afonso e José Borrego, na foz do Lizandro, “para o que desse e viesse, na Revolução que, mais cedo ou mais tarde, aí viria”, eram deliciosos. O Carlos era, aliás, um extraordinário contador de histórias, que adjetivava com grande criatividade.

Tendo vivido, numa fase da sua vida, com a professora e escritora brasileira Maria Lúcia Lepecki, a casa de ambos, na década de 70, constituiu-se um curioso lugar de encontro de uma certa intelectualidade de Lisboa: de Cardoso Pires a Orlando da Costa, de Maria Velho da Costa a Jacinto Baptista, de Alberto Ferreira a Luís Francisco Rebello, de Urbano Tavares Rodrigues a Jacinto do Prado Coelho, de Júlio Moreira a Alexandre Babo, entre muitos outros que por ali cruzei. Por aquela casa passariam, num dia de 1973, as provas de impressão do “Portugal e o Futuro”, de António de Spínola, trazidas (em segredo) pelo editor, Luis Arouca. Em 1975, com o comandante Costa Correia, recordo-me de por lá ter estado muito tempo a ouvir Carlos Paredes a apresentar as suas propostas para a música que acompanharia os spots televisivos sobre as primeiras eleições livres.

O Carlos, 20 anos mais velho do que eu, morreu em 1998, com 70 anos. Era meu primo direito, filho de um irmão do meu pai, jornalista e bancário em Viana do Castelo. Acolheu-me no seu círculo íntimo, como se eu fosse um seu irmão mais novo, quando, em 1968, fui viver para Lisboa. A seu convite, colaborei, por alguns anos, com empresa de publicidade Ciesa-NCK, que ele dirigia, antes de eu ir viver para o estrangeiro e dele passar a administrador da Sociedade Nacional de Sabões.

Com ele e com a Maria Lúcia, passámos várias deliciosas férias em Monte Clérigo, alugando uma casa de pescadores que se enchia de amigos e conversas, bem amesentados e regados. Em algumas madrugadas, o Carlos partia dali à caça, tal como, de Lisboa (e, mais tarde, da herdade do Pinheiro, onde tinha uma casa), zarpava para a pesca, sempre com os ciclos do dia a revelarem a nossa eterna e única incompatibilidade: a leitura contrastante sobre a bondade dos horários matutinos... Foi com o Carlos Eurico que ajudei a fundar a Associação de Amizade Portugal-Polónia e, mais tarde, a Associação de Cooperação com as Nações Unidas em Portugal. Nesses tempos, se mais horas tivéssemos nos nossos dias, muitas mais coisas teríamos feito juntos por essa Lisboa. O Carlos Eurico ainda hoje me faz muita falta.

Esta apresentação breve da sua figura tem por objetivo introduzir um outro episódio, que se liga àquele que abriu este texto.

Um dia, aí por 1977 ou 1978, fomos, com as nossas respetivas mulheres, visitar um empreendimento turístico, algures no sul do país, que a Ciesa-NCK iria ajudar a publicitar. O diretor que nos recebeu, que acabávamos de conhecer, ofereceu-nos um simpático almoço num restaurante.

A meio da conversa, a Maria Lúcia trouxe à baila as capacidades divinatórias do Carlos, em matéria de “leitura” de mãos. Para mim, foi uma completa surpresa: embora o conhecesse bem, ignorava esse suposto “dom”. Ele mostrava-se, aliás, extremamente relutante em fazer uma “demonstração”. Eu brinquei e ofereci-me para cobaia, o que ele recusou, liminarmente: “Nunca leio as mãos de alguém de quem estou próximo!”.

O tal diretor achou graça e disse não se importar de ser ele a “vítima”. Foi claramente forçado que vi o Carlos aceder a fazer essa experiência. Ao final de uns breves minutos em que olhou as mãos do homem, a sua cara ficou muito séria: “Pronto, já terminei!”. “E então?”, retorquiu o outro, curioso. O Carlos continuava de rosto fechado: “Não vou dizer nada!”. A curiosidade do outro aumentou: “Diga lá! Esteja à vontade! Pode dizer tudo!”

Eu olhava algo divertido, não acreditando em nada daquilo mas não querendo mostrar, por isso poder ser visto como ofensivo, o meu completo ceticismo. A insistência do homem foi tal que o Carlos, olhando-o bem de frente nos olhos, disse: “Quer mesmo que eu diga?”. Sentia-se já alguma tensão à volta da mesa. O homem, sorridente, confirmou: “Claro que sim!”. O Carlos, baixando um pouco a voz, disse: “A sua mão revela que houve um caso de incesto na sua vida”.

Gelámos. O sorriso apagou-se de imediato na cara do nosso anfitrião, que não disse uma palavra. Fez-se um pesado silêncio, por uns instantes. Ao final de um minuto, o homem levantou-se, pálido, aparentemente para ir pagar o almoço. Estávamos todos um pouco incomodados. Para descontrair o ambiente, perguntei ao Carlos: “Já sabias a história do homem, não?”. “Eu?! Nem sei bem o nome dele”, respondeu-me, “quanto mais saber das suas histórias de família!” O homem regressou. A refeição tinha acabado. Despedimo-nos com a possível naturalidade e cada um de nós foi à sua vida. O assunto desapareceu, por completo, da nossa conversa. Para sempre. Creio que a Ciesa-NCK não obteve o contrato.

Ontem, ao ler a nota de Fernando Dacosta sobre Natália Correia, lembrei-me desta historieta. Repito: não acredito, am absoluto, na “leitura” de mãos, como não acredito em horóscopos, crenças religiosas ou coisas similares. Mas que o episódio a que assisti sempre me intrigou, isso não posso negar!

sábado, agosto 10, 2019

Um Pardal a sério!


Orwell, Kafka & Cia


Um amigo meu, estrangeiro, funcionário superior de uma organização internacional, notou que o seu passaporte era regularmente retido, nos controlos de fronteira, um pouco mais de tempo do que seria razoável. De início, achou estranho mas não se importou excessivamente. Porém, quando essa espera afetava as filas onde se colocava, levando a movimentos de impaciência dos restantes utentes, começou a ficar irritado e, simultaneamente, preocupado. Das vezes em que inquiriu dos controladores dos passaportes sobre a razão da demora, recebeu respostas vagas e nada esclarecedoras.

Um dia, à chegada aos EUA com a mulher, a situação tornou-se caricata: foi mandado esperar isolado numa sala, foi sujeito a um interrogatório estranho e só foi libertado ao final de mais de uma hora de conversa.

Viajar pelo mundo estava, assim, a tornar-se um pequeno pesadelo. O meu amigo lembrou-se então que tinha um conhecimento nos serviços de “intelligence” do seu país. Procurou-o e explicou o seu embaraço. O homem ficou de estudar o assunto. Semanas depois, conversaram.

E foi então que esse meu amigo ficou a saber o que se passava, ou melhor, recebeu disso algumas ideias. Aparentemente, ele havia estado, por mais de uma vez, no lugar errado no momento errado ou, se tal não acontecera, havia indícios de tal poder ter acontecido. Não podendo ser mais específico, o contacto desse meu amigo deu alguns exemplos: uma foto de multidão, numa manifestação violenta por ocasião de uma reunião do G8, trazia uma cara que podia ser a sua; ele havia pernoitado num determinado hotel, na véspera de uma bomba ter explodido nessa cidade; por duas vezes, viajara num avião que também levava pessoas sobre as quais recaíam fortes suspeitas de ligações radicais, eventualmente de apoio ao terrorismo; etc, etc. Tratava-se de cerca de uma dezena de “infelizes coincidências”.

O meu amigo estava siderado! Todas essas circunstâncias eram facilmente “desconstruíveis”, desde a primeira, em que provaria, com facilidade, que estava noutro lugar, até às restantes, em que as suas deslocações haviam sido feitas por decisões e motivos oficiais a que era alheio. Ao mesmo tempo, sentiu-se aliviado. Tudo era esclarecível. Com quem poderia falar para explicar cada um dos factos, com vista a anular as suspeitas?

O seu conhecido das “secretas” desiludiu-o: não podia falar com ninguém, não havia interlocutor algum com quem ele pudesse discutir o circunstancialismo que lhe afetava a imagem, nem sequer estava autorizado a utilizar publicamente a informação agora recebida. Os dados a seu respeito provinham de “serviços de informação” variados, estavam já cruzados numa rede comum, acessível a muita gente, embora grande parte dos utilizadores apenas tivesse, como nota relevante, a noção de que havia “algo de errado” em torno da pessoa em causa. Não era suspeito de nada, não era acusado de nada, pelo que não havia nada a fazer. Ou melhor: apenas havia que esperar que novos dados “comprometedores” não aparecessem, que pudessem “agravar” a sua situação.

Não tenho falado com esse meu amigo, agora já reformado. Qualquer dia pergunto-lhe se tem tido mais problemas.

sexta-feira, agosto 09, 2019

Agostos da vida - A reserva



Uma derradeira boleia deixou-me na Porte d’Italie. Nessa manhã, tinha partido de Blois, depois de oito dias com diversas paragens, condicionadas pelas disponibilidades de transporte. Tudo tinha começado na rotunda do Relógio, em Lisboa. Repito, à boleia.

O mapa de Paris que trazia comigo, obtido no turismo francês em Portugal, era o então conhecido “Paris à vol d’oiseau”, com desenhos dos prédios e um recorte do centro da cidade que nos dava a ilusão de podermos “conhecer”, por antecipação, os monumentos e artérias principais. Mal eu sabia, ao chegar à Porte d’Italie, que a capital francesa era muito e muito mais do que isso. E ainda hoje continuo a aprender...

Havia preparado, com extremo cuidado, aquela minha saída de férias pela Europa, depois de um ano académico muito pouco feliz. A boleia era então um método de viagem muito comum, particularmente para quem, à volta dos 20 anos, desejava conhecer o mundo europeu, sem grandes encargos, com uma mochila às costas. O Inter Rail estava ainda para ser inventado e os tempos que se viviam eram então suficientemente calmos para gerar confiança em quem nos abria, com simpatia, as portas das suas viaturas. E, pela parte de quem solicitava boleia, o sentimento de segurança era quase generalizado. Nessa que foi a primeira de três viagens do género que fiz pela Europa, o meu objectivo era ir de Portugal à Noruega, com Paris e Amesterdão como incontornáveis escalas. E cumpri exatamente aquilo a que me tinha proposto.

À chegada a Paris, lembro-me bem de ter apanhado, creio que pela primeira e última vez na minha vida, um daqueles históricos autocarros com uma plataforma aberta nas traseiras, que agora já só se veem nos filmes. Descobrir um lugar para uma dormida compatível com aquilo que tencionava gastar, numa tarde de um Agosto turístico, revelou-se uma tarefa muito difícil. Corri “seca e meca”, mas todos os “auberges de jeunesse” que os meus apontamentos indicavam estavam mais do que cheios. Comecei a ficar inquieto: o final da tarde aproximava-se.

Foi então que alguém me disse que o Centre International de Séjour, que existia na Porte de Vincennes, podia ter ainda vagas. De metro, fui lá parar, defrontando-me logo com uma fila de espera considerável. O processo de registo era assegurado por dois funcionários, cujo gesticular revelava já um certo cansaço, seguramente provocado pela pressão e pelo calor intenso do dia. Longos minutos decorreram e a fila pouco andava. A certo passo, um dos funcionários soltou uma sonora e impublicável imprecação… em castiço português. Não resisti e, lá de trás, do fundo da fila, mandei-lhe, bem alto, um “boa tarde!”.

O homem olhou-me à distância, com cara de poucos amigos, mas logo lançou, num berro, em português: “Você aí! Avance!”. Um tanto atrapalhado, ultrapassei a longa fila, com imensa gente a protestar, a caminho do balcão. O nosso patrício, com uma lata incomensurável, mas bem olímpico no seu desplante, limitou-se a informar os contestatários, bem alto, desta vez em francês, da óbvia evidência: “Este senhor tem reserva!". E tive!

quinta-feira, agosto 08, 2019

Miguel


Ficou-se agora a saber que o Miguel Lobo Antunes entra como ator num filme. A fita vai mesmo ao Festival de Locarno! Uáu! A imagem de cima é um fotograma dessa película em que ele faz de caixeiro viajante à beira da reforma, pelos vistos com mau feitio, papel que, como todos os seus amigos sabem, lhe deve ir a matar.

Fui aos meus arquivos e descobri a imagem de um outro filme, mais reflexivo, mais Murnau, em que o Miguel parece ponderar a expressividade de um gesto alheio, o qual, seguramente, suportava uma proposta programática que, se fosse seguida, nos daria a todos prosperidade e felicidades eternas. Outros tempos...



Saudades do Barata


A partir do final dos anos 60, Fernando Barata foi um nome bastante conhecido no setor turístico português. Empreendedor hoteleiro que subiu pela escada da vida, teve relevância no Algarve, onde se especializou no mercado britânico e era proprietário do restaurante “A Ruína”. Aliás, chegou também a ter um outro simpático restaurante em Londres, na Dean Street, por onde passei algumas vezes (chamar-se-ia “Sol e Mar”?). Foi também, creio, presidente do Farense.

Lembrei-me hoje de Fernando Barata ao abrir a janela e ver, tal como ontem, o nevoeiro cair sobre a praia, seguramente para desespero de muitos veraneantes, que não alugaram casa ou hotel para acabarem neste cinzentismo como paisagem. É que tenho ideia de ter lido que, numa das campanhas de promoção da sua atividade hoteleira no Algarve, Barata devolvia dinheiro aos turistas, nos dias em que o sol não surgisse. Que jeito que daria hoje esse sistema!

O senhor comandante


Aquelas longas noites do Hotel Trópico, em Luanda, nos primeiros meses de 1982, eram uma verdadeira "seca". Eu sofria o choque cultural de uma mudança direta, do meu anterior posto, na organizada Noruega. para a então caótica Angola. Por quatro longos e não saudosos meses, por ali me instalei.

Pelas salas do Trópico, fui conhecendo alguns portugueses, parte deles expatriados por razões económicas, às vezes apenas por semanas ou meses, e que atenuavam a sua solidão na conversa, a ouvir música ou em jogos de cartas.

Um dos bons amigos que fiz nesse ambiente, e que só há pouco tempo voltei a reencontrar, foi o Hélder Martins, funcionário da empresa de transportes STAR. Numa dessas noites, o Hélder convenceu-me a alinhar numa mesa de sueca que se criara entre alguns clientes. 

Sou, em regra, avesso a entrar em competições de qualquer natureza e, em matéria de jogos de cartas, o mais “longe” que chego é à sueca, à bisca, às copas ou à lerpa. Mas porque a única atividade lúdica alternativa que por ali havia - o visionamento, numa minúscula televisão a preto-e-branco, de alguns jogos do campeonato do mundo de futebol, que então estava a ter lugar em Espanha - se tinha entretanto esgotado, deixe-me entrar na jogataina. 

No grupo, havia um homem jovial, falador, bem mais velho do que nós, de S. João da Madeira, que representava em Angola uma empresa de calçado. A meio do jogo, ao pedir uma rodada de bebidas, vi que, apontando para mim, disse para o empregado: "Ali para o senhor comandante, é uma cerveja". De facto, eu tinha dito, instantes antes, que “o que agora caía bem era uma "Cuca”!” Estranhei ser qualificado de "senhor comandante", mas nada disse. Olhei para o Hélder Martins, que sabia perfeitamente que eu trabalhava na Embaixada, mas não notei na sua cara nenhuma surpresa. Optei por não reagir e, quando ela chegou, lá bebi a cerveja.

No dia seguinte, ao almoço, perguntei ao Hélder: "Você não achou estranho que aquele tipo, ontem, me tivesse tratado por 'senhor comandante'?". O Hélder retorquiu-me que não. É que, sabendo que eu tinha feito o serviço militar, por conversas anteriores, presumiu que, nessa qualidade, eu tivesse servido na Marinha, pelo que havia deduzido que o homem de S. João da Madeira sabia disso. Expliquei-lhe que a minha "arma" era bem mais prosaica, que eu havia sido oficial de "administração militar" no Exército, onde a minha especialidade era "ação psicológica", que nunca havia sido sequer "comandante de pelotão". E rimo-nos, esquecendo o assunto.

Passou, talvez, um mês. Eu havia, entretanto, deixado de frequentar as salas de estar do Trópico com tanta frequência. Uma noite, voltei a ver por lá o homem de S. João da Madeira, que simpaticamente me saudou, ao longe. 

Um dia ou dois depois, o Hélder Martins foi abordado por ele. Queria que ele me "metesse uma cunha": não tendo confiança comigo para me colocar, pessoalmente, o pedido, aproveitava a intercessão do Hélder, para, junto de mim, conseguir um "OK" para o voo da TAP para Lisboa, no dia seguinte. O avião estava cheio e "aquele seu amigo é que pode ajudar, como ninguém, a desenrascar-me o lugar", disse ele.

O Hélder surpreendeu-se. "Mas porquê ele?", perguntou. "Então, sendo ele comandante da TAP, deve poder conseguir isso, não?". "Comandante da TAP? Ele é diplomata na Embaixada de Portugal!", reagiu o Hélder. "Ai é?! É que, há tempos, vi-o à conversa com uma hospedeira da TAP, no bar do hotel, e fiquei com a ideia que ele fazia parte da tripulação, que sempre ali se aloja...".

("For the record", que fique claro que tenho a certeza de que a minha conversa com a hospedeira foi casual e bem inocente, não me recordando de ter assumido nenhuma particular familiaridade com a "colega"...)

Quando viajo na TAP e ouço, pelo altifalante do avião, aquela "rassurante" mensagem com que os comandantes se dignam saudar os passageiros, a meio do voo, acontece-me frequentemente lembrar-me que também "fui", um dia, "comandante" daquela companhia...

quarta-feira, agosto 07, 2019

Às tantas, lá p’rá noite, o dia ainda se compõe!


Está aí, está cá!


A Assembleia do 11 de março


A RTP passou, nos últimos dois dias, outros tantos programas sobre a Assembleia do MFA (Movimento das Forças Armadas) que ocorreu na noite de 11 para 12 de março de 1975. Há uns meses, aquando da passagem dos 44 anos daquela data, já havia sido difundida uma versão mais sintética. 

Para uma certa História, esta reunião ficou conhecida como a “assembleia selvagem”, em especial por ter sido convocada em moldes que não obedeceram às regras tradicionais daquele “parlamento” militar da Revolução e por nela terem participado pessoas que não haviam integrado as anteriores Assembleias.

Fiz parte dos militares que participaram nessa reunião, tendo mesmo tomado nela a palavra. Curiosamente, constato que terei sido, com grande probabilidade, dos poucos oficiais milicianos a intervir nas dez Assembleias do MFA que foram realizadas, tendo estado presente em três delas. 

Ao princípio da noite de 11 de março de 1975, integrei um grupo de oficiais que irrompeu pelo Palácio de Belém, obrigando a uma interrupção da uma reunião do “Conselho dos Vinte” (somatório da Comissão Coordenadora do MFA com os membros em funções da Junta de Salvação Nacional, os ministros militares, os chefes dos EM dos ramos e o comandante do COPCON). Esse grupo “exigiu” ao presidente da República, general Costa Gomes, que se deslocasse ao (atual) Instituto de Defesa Nacional para aí presidir a uma Assembleia extraordinária do MFA.

Esta Assembleia teve lugar ao final de um dia muito complexo. Na madrugada de 10 para 11 de março, o general António de Spínola - que havia renunciado à presidência da República, na sequência do “28 de setembro” de 1974 -, à frente de um grupo de oficiais, ocupou, com cumplicidades internas, as duas unidades militares existentes em Tancos, mandou bombardear o Regimento de Artilharia Ligeira nº 1 (RAL 1), em Lisboa, do que resultou um morto e vários feridos, ordenando a ocupação (que viria a ser frustrada) dessa mesma unidade por paraquedistas. 

Spínola viria a desistir do golpe ao final de algumas horas, por não ter conseguido congregar a prevista adesão de outras unidades. Uma das justificações para a ação “spinolista”, para além da reversão do curso político da Revolução, foi a existência de uma lista de 500 personalidades a abater - a “matança da Páscoa” -, ação que iria ser levada a cabo por grupos revolucionários de extrema-esquerda. É hoje claro que a “lista”, que aliás nunca ninguém viu, foi uma completa invenção de quantos queriam convencer Spínola a liderar o golpe de Estado. Ele e alguns dos seus sequazes fugiriam depois para Espanha, sendo detidos alguns dos outros revoltosos. 

Alguns setores mais radicais do MFA, com os quais, à época, eu me sentia basicamente solidário, entenderam não dever desaproveitar o ensejo para “acelerar” a Revolução. A realização de uma Assembleia extraordinária do MFA foi o instrumento encontrado. Dela saiu a institucionalização do Conselho da Revolução (no dia seguinte, acabei por também participar também numa reunião de setores do Exército em que se discutiram os nomes do ramo para esse Conselho) e um apoio de princípio às nacionalizações e à Reforma Agrária que, dias depois, seriam decretadas.

Há meses, descobriu-se a gravação dessa Assembleia do MFA e foi decidido publicar em livro as intervenções das cerca de sete horas e meia de debate. A convite do “proprietário” da gravação, comandante Almada Contreiras, do presidente da Associação 25 de abril, coronel Vasco Lourenço, e do professor universitário e jornalista da RTP, Jacinto Godinho (que realizou os programas agora editados), fiz a apresentação do livro, em duas ocasiões públicas.

A transcrição completa da reunião, permite acabar, definitivamente, com alguns mitos.

Desde logo, fica desfeita a ideia do alegado caráter tumultuoso da reunião: esta passa-se em perfeita ordem, com elevado sentido de disciplina hierárquica, embora com alguma (natural) emoção à mistura. Alías, com escassas exceções, os intervenientes nessa noite foram exclusivamente os membros das Assembleias regulares do MFA.

Depois, fica claro que a propalada questão do “fuzilamentos”, pedidos então por algumas vozes para os conspiradores envolvidos no golpe, foi um ponto que mereceu uma esmagadora rejeição da Assembleia. Em especial, a gravação mostra que o coronel Varela Gomes, contrariamente a uma versão que sobreviveu décadas, nada teve a ver com essa insana ideia.

Finalmente, fica claro que as vozes (que também as houve) que pretenderam então aproveitar para adiar as primeiras eleições livres (previstas para o dia 25 de abril seguinte) foram muito escassas e também logo suplantadas pela vontade coletiva da reunião. Creio que surpreenderá alguns verificar que o almirante Rosa Coutinho, neste como em outros momentos mais tensos da reunião, foi das figuras que impôs serenidade e assumiu posturas mais moderadas.

A Assembleia do 11 de março, analisada agora com distância e serenidade, mostra ter sido o último momento de algum aparente consenso (mas já sob inescapável tensão) entre a chamada “Esquerda Militar” (linha que tinha muitos pontos de contacto com o PCP e que tem por expoente o general Vasco Gonçalves) e o grupo mais moderado, “teorizado” por Melo Antunes, que irá publicar, meses mais tarde, o chamado “Documento dos Nove”. A tentativa de golpe de Spínola força, nesse dia, uma aliança tática conjuntural entre as duas tendências, embora reforçando mais, no imediato, a primeira, a qual, a partir de então, procurará radicalizar o processo, sendo a constituição do V Governo Provisório, em agosto de 1975, o ponto máximo desse processo vanguardista, a que o “25 de novembro” virá pôr termo. 

Foi há 44 anos, mas, às vezes, parece que foi ontem.

O preço da democracia


Numa noite de 1990, em Versalhes, num jantar com os pares do mundo ocidental, em que se faziam os arranjos finais da Guerra Fria, Margaret Thatcher terá tomado consciência de que, quando regressasse a Londres, deixaria de ser primeira-ministra do Reino Unido.

Contestada desde há meses no Partido Conservador, ao qual outrora proporcionara uma liderança de indiscutível êxito, fora entretanto perdendo contacto com a realidade, deixando, a partir de certo momento, de ser parte de uma solução do futuro para se transformar num problema imediato para os seus correligionários, que assistiam a uma crescente credibilização da alternativa trabalhista.

No Partido Conservador, ao tempo, competia exclusivamente aos deputados escolherem o nome do primeiro-ministro. (Nos trabalhistas, o processo era diferente, dada a preeminência dos sindicatos). Nem as estruturas locais do partido, nem muito menos os militantes, tinham a menor palavra a dizer sobre o assunto. Para além da seleção dos candidatos a deputados e a organização local das respetivas campanhas, apenas essas grandes "missas" ideológicas, não decisórias, que eram os seus congressos anuais constituíam, à época, a manifestação visível do papel do partido a nível nacional, projetando as diferentes "constituencies".

A escolha da liderança fazia-se essencialmente em Londres. Noutros tempos, as votações chegavam mesmo a ser dispensáveis, numa cultura política em que os nomes "emergiam" num conciliábulo entre os poderes fáticos, ouvidos discretamente os meios económicos e outras instituições relevantes do "establishment", numa decisão apurada em discussões fechadas, sob o fumo e o álcool inspirador dos "gentlemen"s clubs".

Com o tempo, as coisas evoluíram. O processo mudou por mais de uma vez, até chegar ao modelo atual, que submete aos militantes conservadores uma "short list" para escolha final do nome que passará a dirigir o partido e, estando este em maioria no Parlamento, que será o primeiro-ministro.

Foi assim que Boris Johnson acabou por ser escolhido. Num exercício especulativo, podemos perguntar-nos se, na aplicação do modelo antigo, o seu nome teria resultado da tradicional seleção elitista. Tudo parece indicar que não. Ironicamente, poderíamos ser levados a concluir que é precisamente pelo facto de haver hoje mais democracia no seio dos conservadores que ocorrem resultados como este. Mas, vá lá! Não tirem conclusões erradas...

terça-feira, agosto 06, 2019

2021


É óbvio que o PSD de Rui Rio e o CDS de Assunção Cristas vão apanhar uma forte “abada” em outubro. Poderão mesmo atingir traumáticos mínimos históricos. 

Apenas então se ficará a saber se o PS terá quatro anos de maioria absoluta ou se precisará de um qualquer modelo de Geringonça para sobreviver como governo minoritário. Em definitivo, não acredito António Costa leve para o governo qualquer dos parceiros à sua esquerda.

Rui Rio vai inevitavelmente cair e o PSD “passista” vai voltar, quase de certeza com Luís Montenegro, que se diz estar já a tentar federar os descontentamentos criados pelo processo da construção das listas - que terá corrido pior do que expectável.

Montenegro (que não estará na AR) terá em S. Bento um grupo parlamentar inexperiente, (inicialmente) adverso e politicamente frágil. Um cenário ainda pior do que aquele que Rio enfrentou desde que foi eleito.

Porque o resto da direita (Ventura, Santana e os liberais da paróquia) não passará de isso mesmo, de restos, sem a menor expressão que não seja mediática, tudo indica que passará a haver um setor significativo do eleitorado que se verá sem uma representação institucional significativa. 

Contrariamente ao que certa esquerda pode pensar, isto não é uma boa notícia para a saúde, a prazo, do sistema politico - mas não se pode pedir à esquerda que resolva os problemas dos seus adversários. 

Era a isto que Marcelo Rebelo de Sousa se referia quando falava da crise que, para a direita, aí virá, depois de outubro. A grande questão é saber se, depois da sua reeleição, o presidente se sentirá tentado a intervir no seio da família política de que é originário. Mas essa é uma questão para 2021.

A terra como meta


Não tenho uma perceção concreta da relação afetiva que o país tem, nos dias de hoje, com o seu ciclismo. Fico com a sensação de que a maioria dos portugueses apenas acorda para a modalidade quando, nas televisões, surge a estival Volta a Portugal (este ano patrocinada por um banco espanhol, não visitando nem o Alentejo nem o Algarve!), que já não há grandes ídolos, mas apenas uma meia dúzia de nomes mais conhecidos, renovados de tempos em tempos, só muito poucos com presença internacional medianamente significativa. Mas o facto de nunca mais se ter repetido um fenómeno como Joaquim Agostinho não deve deixar de ser um fator desmotivador.

Sempre achei, aliás, irónico que, por alguns anos, o mais popular ciclista português de uma nova geração, Cândido Barbosa, nunca tivesse obtido uma vitória na Volta a Portugal. Não deixava, apesar disso, de ser um campeão da simpatia, tal como em França sucedeu com Raymond Poulidor. É o charme que os “losers” sempre têm...

A desaparição, por alguns anos, dos clubes de futebol mais conhecidos no papel de promotores da modalidade, simultânea com a entrada de empresas e marcas estrangeiras no nome das equipas, terá retirado muita da rivalidade que alimentou o velho ciclismo. Não sei, contudo, se isso foi uma coisa boa ou má.

Valha a verdade, porém, que um dos grandes duelos históricos do nosso ciclismo ocorreu entre Alves Barbosa e Ribeiro da Silva, apoiados então, respetivamente, pelos modestos Sangalhos e Académico do Porto. Mas as camisolas do Benfica, Porto e Sporting (aqui por ordem puramente alfabética, claro...) foram a chave de décadas de entusiasmo nacional pelo ciclismo. Os mais velhos (que não eu...) recordavam a rivalidade Benfica-Sporting entre José Maria Nicolau e Alfredo Trindade, com o último a cunhar uma frase magnífica, numa das suas vitórias: “Finalmente, limpámos o sebo à gajada do Benfica” (anteontem, bem gostava de poder ter dito isso...)

Na minha juventude, a passagem da Volta por Vila Real era um momento de grande emoção, em especial quando por lá terminava uma etapa. Nessa época, lembro-me de acompanhar pelos jornais desportivos, ao segundo, a evolução da classificação geral. Vivia-se então a Volta com entusiasmo.

Pela rádio ficava a saber-se, a certa altura, que "já chegaram ao Alto de Espinho!", pelo que imaginávamos a descida rápida desses 15 km, que antecedia a curta subida da ponte do Cabril para a meta na cidade, quase sempre situada no chamado circuito, nas traseiras da minha casa. Há tempos, numa publicação do Museu do Som e da Imagem (a quem também roubei esta imagem), dei comigo numa fotografia, aí com uns 11 ou 12 anos, junto com a restante ganapada, à volta de um ciclista qualquer, numa dessas etapas terminadas na “Bila”.

Desmontadas essas metas onde, horas antes, nos apinháramos para ver a chegada da caravana suada, o “espetáculo” passava então para a Avenida Carvalho Araújo, convertida num parque caótico de "carros de apoio", cheios de rodas com um reluzir metálico, de veículos da organização com papelada colada, os passeios subvertidos por hordas de estranhos, de identificação pendurada ao peito, o que lhes conferia uma dignidade mítica.De chanatos arejados, numa mais do que duvidosa elegância, cheirando aos óleos da massagem pós-competição, os nossos "heróis" passeavam-se, impantes, ou jaziam refastelados em cadeiras de esplanadas, da Gomes ao Camposana, passando pela Brasileira. Às vezes, viamo-los confraternizar com os jornalistas "da Volta". É que ali estavam, à nossa vista, o Aurélio Márcio, o Carlos Miranda, o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas, o Manuel Dias, o Nuno Braz - nossos "íntimos" de "A Bola", do "Record", de "O Mundo Desportivo", do "Norte Desportivo" ou da "Emissora". Depois, todos recolhiam às pensões Excelsior, Mondego, Coutinho ou Areias - salvo as equipas ricas, que se permitiam os luxos do único hotel, o Tocaio.

Como espectáculo de rua, tenho a consciência de que o ciclismo continua ainda a ser uma festa para as terras por onde passa. Há uma merecida admiração por esses homens que, no tempo mais quente do ano, passam horas a sofrer. Uma luta que se passa à nossa escala, porque há que ter em atenção que a Volta a Portugal está a anos-luz de importância das suas grandes congéneres europeias - a espanhola, a italiana e a francesa. De qualquer forma, conseguir subir a Senhora da Graça ou a Torre continua a ser uma proeza impressionante e até comovente.

A minha cidade, Vila Real deu ao ciclismo português um nome importante: Delmino Pereira. Porém, na minha infância, havia por lá um outro ciclista, Firmino Claudino, o qual, durante alguns anos, alinhou em Voltas a Portugal, sem que, no entanto, tenha deixado a menor marca de vitórias. Recordo-me bem da sua figura, dono de uma loja de bicicletas e, com bastante mais êxito do que no ciclismo, do seu estatuto de um dos melhores bilharistas nas mesas do Café Excelsior.

Firmino Claudino não nascera em Vila Real, mas sim nas Pedras Salgadas. Numa Volta nos anos 60, que teve uma etapa que aí finalizou, mantenho viva, na minha memória de miúdo por ali em férias, a sua imagem, num final da tarde, impante de orgulho, a passear-se de braço dado com Alves Barbosa, numa assumida e ostensiva revelação de proximidade com aquela que era, à época, a grande estrela do ciclismo português. Essa terá sido, seguramente, a sua maior vitória ciclística... 

Anos mais tarde, a caravana da Volta voltou a atravessar as Pedras Salgadas. Reza a lenda, mas não consigo confirmá-la, que Firmino Claudino, que ia no pelotão, nessa passagem pela sua terra natal, decidiu desistir por lá. Seria a etapa final da sua última Volta. Ter a própria terra por meta não deixa de ser bonito.

segunda-feira, agosto 05, 2019

Livros


Ora essa! Claro que dobro as páginas dos meus livros! E sublinho-os e tomo notas neles a tinta, quando me dá na gana. E gosto de ver surgir os vincos nas lombadas, por colar a capa à contacapa, quando os leio. 

Ah! e não há ninguém que goste mais de livros do que eu, aposto!

A bomba

                                  
No aeroporto de Lisboa, dentro de um avião, pertencente à companhia de um país para o qual ia viajar um ministro português que me cabia acompanhar, demos conta de que o voo tardava bastante em partir, sem que, no entanto, qualquer explicação fosse dada. 

Constatei que uma estranha agitação originava idas e vindas para a cabine de pilotagem, induzindo um raro ar de preocupação na cara dos próprios tripulantes. Argumentando com a presença do ministro, tentei saber o que se passava. Com discrição, informaram-me que havia uma ameaça de bomba. 

Fiquei escandalizado! Exigi que abandonássemos, de imediato, o aparelho, enquanto o assunto não fosse devidamente esclarecido. Em poucos minutos, isso viria a acontecer. A comitiva oficial portuguesa saiu, sendo colocada na sala VIP. Os restantes passageiros, como viemos depois a saber, foram mantidos no avião, enquanto as buscas sobre a possível bomba a bordo prosseguiam...

Não deviam ter decorrido mais de 20 ou 30 minutos quando fomos convidados a regressar ao aparelho. A viagem iniciou-se. Estávamos já a voar há quase uma hora quando o comandante do avião veio esclarecer o ministro português sobre o atraso na partida. Disse que uma chamada telefónica anónima, creio que para o aeroporto, desencadeara o alarme. Todos ligámos o incidente à morte violenta em Portugal, precisamente na véspera, de um opositor do regime do país que íamos visitar. 

O comandante do avião explicou também: “Tentámos que o atraso fosse o menor possível, porque fomos informados de que o senhor ministro tem um programa muito sobrecarregado, logo à chegada à nossa capital. Neste tipo de situações é vulgar as buscas poderem demorar algumas horas, mas recebemos instruções para as apressarmos. Conseguimos, assim, concluí-las em menos de uma hora...”

Os membros da delegação portuguesa, esmagados de “gratidão” pela rapidez da vistoria, olharam uns para os outros, muito perplexos. Detetei sinais de uma impotente inquietação nos olhos de alguns, a começar pelo ministro. No que me toca, devo confessar que me custou bastante a adormecer...

(Para quem aprecia a precisão factual, posso informar que a viagem teve lugar no dia 22 de abril de 1988.)

domingo, agosto 04, 2019

Apoio no infortúnio

Agora percebo melhor a presença de Marcelo na tribuna no jogo de hoje. 

Ele não perde uma oportunidade para dar alento às vítimas de qualquer tragédia.

Venezuela


Nos dias de hoje, um governo que haja declarado reconhecer a autoridade de Guaidó sobre Maduro, quando tem de resolver um problema concreto na Venezuela, fala com quem? 

A precipitação, o “wishful thinking” e o seguidismo não são atitudes sensatas, em política externa.

Portugal adotou uma postura reconhecidamente muito prudente nessa questão: nunca esteve na primeira linha dessa deriva no seio da UE e só se juntou à atitude coletiva quando não fazê-lo traria riscos que importava evitar.

Biden


Já me enganei suficientemente na leitura de sinais na vida política americana para me poder dar ares de autoridade, mas tenho cada vez mais para mim que a candidatura de Jo Biden não vai longe. Embora sério, não é entusiasmante e já leva a seu débito demasiadas contradições.

Tancos


Tancos é para mim um crescente mistério. Como é possível que um episódio que envolveu um escasso número de pessoas, já há mais de dois anos, em que já se percebeu o essencial do que se passou, não tenha hoje os culpados julgados e na cadeia?

Que raio de sistema judicial temos?

Guantanamo


A indignação arrefece com o tempo: que será feito dos presos em Guantanamo, que estão lá desde os tempos de George W. Bush, sem que as suas condições de detenção possam ser monitorizadas pelas organizações internacionais que se ocupam dos Direitos Humanos? 

Nem os tão incensados democratas americanos, Obama incluído, com eles se preocuparam...

Brasil (4)


O ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Jean-Yves Le Drian, qualificou como “emergência capilar” a decisão do presidente Bolsonaro, do Brasil, de cancelar à última hora o encontro que tinha com ele para ir cortar o cabelo. 

Uma grande diplomacia é também isto.

Brasil (3)


O ministro das Relações Exteriores do Brasil foi a Roma, em maio, e constatou que estava frio. Daí, concluiu que o aquecimento climático é uma balela. Já Trump tinha chegado à mesma conclusão, aquando dos nevões nos EUA.

No passado, estas coisas só aconteciam nas anedotas.

Brasil (2)


O liderança brasileira deve achar que os EUA ficam gratos por vê-la partilhar doutrinas “politicamente incorretas”, do clima aos costumes. Mas nem Bolsonaro é Trump, nem o Brasil é os EUA. Ao poder americano quase tudo é permitido. O Brasil irá perceber que não tem esse poder.

Brasil (1)


A cada dia, de conhecidos no Brasil que “venderam a alma ao diabo” e votaram Bolsonaro apenas para travar o passo ao PT, chegam-me sinais de imensa preocupação, por estarem finalmente a tomar consciência daquilo em que se meteram, com consequências dramáticas para o seu país.

“100 à hora”

Recordo-me da existência, em Lisboa, de um clube automóvel chamado “Clube 100 à hora”. Há muito que não ouço falar dele.

(Sei que existe um clube homónimo na Madeira, mas não é desse que aqui se trata.)

Alguém sabe se ainda existe, em Lisboa, o “Clube 100 à hora” e, se acabou, quando isso aconteceu?

Agostos da vida - O fim da “primavera”

O ano de 1969 dava ares de poder ser decisivo na vida política portuguesa. Salazar fora substituído no ano anterior. Em outubro, teriam lugar eleições para a Assembleia Nacional. As primeiras do “marcelismo”. A ideia de que, pela primeira vez, desde 1926, havia uma real possibilidade de vozes dissonantes poderem entrar no parlamento da ditadura atravessou alguns espíritos mais crédulos.

Eu tinha 21 anos, mas não comungava dessa ingenuidade. No ano anterior, tinha tido um interessante banho de experiência, ao integrar uma lista associativa universitária cuja livre eleição fora “não-homologada” pelo governo. Depois, vira a minha escola invadida pela polícia, que regularmente ia também encontrando em diversas manifestações políticas de rua, de vária natureza, em que me via envolvido, embora sem nenhum tipo de militância partidária. Experimentara emoções fortes nas ruas agitadas de Aveiro, durante o Congresso da Oposição Democrática. Ainda em Lisboa, tinha andado envolvido em algumas movimentações preliminares da oposição, como a célebre reunião no Palácio Fronteira, onde as águas políticas se separaram fortemente, pela primeira vez, na história do combate ao regime.

À esquerda, ficou a maioritária CDE (Comissão Democrática Eleitoral), onde predominava o PCP, aliado a “católicos progressistas” e algumas outras franjas radicais. Constatada a impossibilidade de acordo, Mário Soares e os seus amigos da ASP (Acção Socialista Portuguesa) haviam criado a CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), que concorreu isolada, mas apenas em Lisboa, Porto e Braga. No resto do país, a escassez de recursos oposicionistas forçava à necessária unidade. Nesses distritos, a sigla CDE tinha um sentido mais abrangente e unitário, no modelo oposicionista tradicional.

Era o caso de Vila Real. De férias na capital transmontana, fui contactado pelo António Leite (em casa de cuja avó se fizera a primeira reunião oposicionista), que me transmitiu o convite para integrar a estrutura local da CDE. Aceitei de imediato. Passou a caber-me a redação de artigos e manifestos, a agitação dos meios da juventude, não sem alguma tensão ideológica intergeracional à mistura. A minha integração foi, aliás, muito rápida: semanas depois, lá me vejo, com Otílio de Figueiredo e Délio Machado, no trio de representantes da CDE de Vila Real que foi fazer a apresentação formal da lista oposicionista do distrito ao Governador Civil, Torquato de Magalhães.

Esse mês de Agosto, em Vila Real, foi inesquecível. Sob a hábil e paternal liderança política de Otílio de Figueiredo, prestigiado médico e figura intelectual local, a oposição estruturava-se num leque verdadeiramente pluralista. As clivagens políticas lisboetas, não nos sendo indiferentes, tendo a questão colonial no centro, eram muito atenuadas pela necessidade imperiosa de ganharmos para o nosso lado todas as vozes contestatárias do regime. Estas iam desde elementos que sabíamos ligados ao PCP até ao “reviralhismo” republicano tradicional, passando por figuras da esquerda moderada, que imaginávamos próximos da ASP e de Mário Soares. E, naturalmente, por lá andava algum radicalismo mais “esquerdalho”, a maioria sem partido, mas com muito sangue na guelra. Neste, recordo em especial o magnífico entusiasmo, quase “anarca”, bem provocatório, do João “Bé“ Bouquet, a grande alma da organização da CDE de Vila Real.

Esse mês e o período que se lhe seguiu tiveram de tudo um pouco: reuniões clandestinas ou, inconscientemente, feitas à vista de todos, incontáveis viagens pelo distrito, contactos com outros núcleos oposicionistas pelo país, discussões épicas na Gomes, o principal café da cidade, algumas chamadas à polícia por incidentes de percurso, regular censura de artigos e textos programáticos nossos na imprensa, dificuldades crescentes surgidas nas tipografias, ameaças profissionais a muitos aderentes, criação e colagem noturna de cartazes anónimos (fui o criador de um que apenas tinha escrita a palavra “MEDO”, impressa a preto forte, cortada por duas pinceladas de tinta vermelha), pides encartados e “bufos” locais a vigiarem a nossa sede, caravanas de propaganda ameaçadas fisicamente, frequentes insultos pelas ruas, por parte de turiferários do regime, a necessidade de mandar fotografar os cadernos eleitorais (não havia cópias distribuídas nem existiam ainda fotocópias, pelo que tivemos de fazer fotografias de todas as páginas das listas de eleitores, no Governo Civil, com um imenso custo financeiro), a impressão e distribuição individualizada dos nossos boletins de voto (para quem não saiba, cada lista eleitoral mandava imprimir então os seus próprios boletins de voto, aqueles que iriam ingressar nas urnas, e tinha de os entregar porta-a-porta, nos dias antes das eleições, pessoalmente, a cada eleitor, porque os correios eram caros e não fiáveis!), etc.

Depois, foi o resultado previsível. Em quase todos os distritos do país, a oposição, sem acesso mínimo à televisão, com a sua promoção mediática muito limitada, sob um ambiente de forte coação, com listas eleitorais onde predominavam os adeptos da “situação”, teve uma derrota estrondosa. A “primavera marcelista”, em cerca de um ano, desmascarara-se por completo. Para nós, para quantos se haviam empenhado politicamente, aqueles meses haviam sido muito estimulantes. Eu, pelo menos, estava muito diferentes, depois deles.

Foi há meio século. Um belo mês de Agosto! Nunca mais o vou esquecer!

sábado, agosto 03, 2019

Brasil

O mais irónico na situação política que se vive no Brasil é ver agora surgir como político parlamentar dotado de bom senso Alexandre Frota, um ator porno que, quando por cá andou, ficou “famoso” por cenas no Big Brother.

O novo tabu

É minha impressão ou caiu uma espécie de tabu sobre a decisão do “Expresso” de limitar a possibilidade dos seus jornalistas manterem atividade nas redes sociais? Parece haver algum incómodo em tratar de um assunto que se liga à liberdade de expressão. 

Nada fazer



Nestes dias de férias, lembrei-me de alguém que tem a sorte de estar quase permanentemente nelas. É uma pessoa com uma profissão prestigiada e invejada, cuja capacidade para conseguir escapar ao peso do trabalho se tornou já lendária, em quem o conhece bem. Algo que exige, note-se, uma apurada técnica.

Ele procura, em primeiro lugar, não ter nunca nada para fazer, que nada lhe seja atribuído como tarefa, escapulindo-se das atividades que o azar lhe pode colocar à frente, pretextando algo ou inventando razões para que o não incomodem. Entre essas razões pode estar a consciência, em outros, da inutilidade de lhe dar algo para realizar.

Se isso se torna em absoluto impossível, porque a sorte nem sempre é justa com quem porfia, tenta ir fazendo apenas o que lhe apetece e, mesmo assim, efetuá-lo no tempo e ritmo que lhe aprazem. Até que, por vezes, os outros percebam da inutilidade de lhe ir bater à porta.

Como é bastante inteligente, tem já um quase insuperável "know-how" na matéria, uma soma de truques que confundem os não iniciados, pouco aptos a detetar, à vista desarmada, essa imparável deriva lúdica em que ele consegue transformar o seu quotidiano profissional. Dessa arte faz parte essencial a procrastinação, esse adiar eterno da execução das tarefas, esperando que o tempo lhes dilua a pertinência: “deixar para depois de amanhã aquilo que parecia urgente ontem, mas já o não deve ser agora”.

Mas não julguem que a vida dessa pessoa configura uma atitude fácil: ele tem imenso "trabalho" em lutar e conseguir que lhe atribuam funções que, na prática, o isentem de trabalhos, em que os horários possam ser detalhes despiciendos, onde sejam viáveis exercícios criativos de ubiquidade administrativa, mas também onde sempre possa, a olhos desprevenidos, fazer passar um sopro de actividade virtual, dando permanentemente a ideia de ter alguma coisa em curso de execução.

Ah! e queixa-se, queixa-se sempre, dos outros, dos azares da vida, das horas (acreditem!), do peso das episódicas tarefas que lhe cabem. Enfim, trata-se de um génio na gestão do seu tempo, que, cheguei a aconselhar-lhe, deveria mesmo escrever um manual sobre o tema. Mas isso daria algum trabalho...

Como o mundo é o que é, como ele sabe mexer-se junto de alguma gente, porque até não é mau rapaz, lá vai (não) fazendo pela vida, nesse seu anti-stakhanovismo endémico, o qual, a meu ver, por obrigar a exercícios de imaginação, o deve fatigar imenso. É que o bluff, na profissão dele, já teve melhores dias.

Tenho há muito uma ideia para quando um dia ele vier a ter um epitáfio - e não será "morto de cansaço", podem crer! O infante dom Henrique tinha um lema: “Talant de bien faire” (vontade de bem fazer). A ele bastava mudar uma letra: "Talant de rien faire" (vontade de nada fazer).

sexta-feira, agosto 02, 2019

Dúvida de fim de semana

Se Vitor Gaspar e Maria Luís Albuquerque foram tão espetaculares ministros das Finanças, no entender unânime das instituições internacionais, por que diabo (a palavra “diabo” é adequada) nunca o seu nome surgiu lembrado para DG do FMI? Gaspar até lá trabalha...

Mundos & fundos


Uma verdade que sei incómoda para muitos que me leem: só seremos um país em equilíbrio quando os agentes económicos e sociais não tiverem, como regra regular para se desenvolverem, o tropismo de recorrerem a fundos comunitários ou a outros tipos de discriminação positiva de origem estatal, quando, para realizarem qualquer coisa que deva obedecer simplesmente às regras de funcionamento do mercado e da concorrência, não se pense logo “deixa lá ver se se consegue sacar alguma coisa para isto do 2020, a fundo perdido ou bonificado”, quando, para investir em qualquer setor, a lógica passe a ser, muito simplesmente, ir pedir um empréstimo a um banco, pagando-o depois com os lucros do que investiu.

Caçadores Cinco


Ninguém bate os amantes da pesca em exageros. Ou melhor, talvez só os caçadores. Aquele meu colega, um embaixador cordial e sempre bem-humorado, hoje reformado, era, de facto, e ao que se sabia, um excelente caçador. Mas, como todos os seus pares, "pintava" imenso as histórias.

Diplomata em Cuba, há algumas décadas, chegou mesmo a ir à caça com Fidel de Castro, de quem dizia, com alguma sobranceria: "O Fidel disparava muito mal. Até eu lhe emprestar a minha Purdey, nunca conseguiu caçar coisa de jeito...". Mas acrescentava: "Já o Raul, era bem melhorzinho".

A conversa que vou relatar, teve-a esse meu colega com um seu colaborador, que o conhecia há pouco tempo e que, por um acaso, não estava familiarizado com as qualidades de caçador do seu novo chefe.

Um dia, veio à baila, num diálogo entre os dois, o tema da caça e interlocutor inquiriu: "O senhor embaixador caça?!". O nosso homem abriu os olhos, como que escandalizado com o indesculpável desconhecimento que a pergunta revelava, e esclareceu, impante: "Se eu caço?! Essa agora?! Eu sou um dos três melhores caçadores da Europa!".

Porém, meio segundo depois, o embaixador teve uma hesitação: "Espera aí!" O tratamento por "tu" é a sua regra normal de relacionamento, logo que conhece alguém, o que o torna ainda mais simpático. 

O interlocutor, por um instante, achou que ele ia retratar-se do exagero, que a frase lhe saíra precipitada e que iria moderar a dimensão da sua importância como caçador.

E tinha toda a razão. O embaixador logo rectificou: "Eh! pá, três não, "põe" cinco. É que há dois gajos que não são federados".

A modéstia, quando sincera, mesmo que tardia, é sempre uma enorme qualidade...

quinta-feira, agosto 01, 2019

As “escadinhas”


Estou aqui na praia, de iPhone na mão, a teclar e a olhar o mar, pensando que a temperatura da água é, de facto, um excelente pretexto para hoje não ir nadar. 

“Nadar”, aliás, no que me toca, foi sempre uma força de expressão. Nado pessimamente, nunca tive o menor jeito nem fôlego para me aguentar muito na água. E como só gosto dela morna, sou pouco dado a banhos “revigorantes” em mares menos cálidos, que sempre vi como coisa de gente masoquista, prenúncio mesmo de possíveis constipações.

Na minha terra, em Vila Real, na infância e juventude, não havia nenhuma piscina. Aprendia-se a nadar no rio, no lugar do Codeçais. Mas o “se” não me era reflexo: nunca me deixaram ir dar banhos por lá, naquela proteção dada a filho único que, bem vistas as coisas, sendo algo chatota, não deixou de ter o seu quê de confortável, no saldo final.

A minha instrução de natação, por muito limitada que tenha sido, foi assim toda feita em Viana do Castelo, onde, nos agostos, íamos passar quase um mês de férias. Nesse tempo, acreditem!, Viana também não tinha nenhuma piscina, salvo a do hotel de Santa Luzia, onde, por 2$50, eu ia a banhos com pé, rodeado de ingleses rosados e sardentos, comigo com escasso dinheiro no bolso que, para além de pagar o funicular, apenas dava para comprar um mazagran (já ninguém sabe o que isso é). Não sendo factível aprender por ali a nadar, muito menos o era nas ondas bravas do Cabedelo ou nas poças rochosas da Praia Norte, mesmo com a maré a jeito. Por isso, era na doca comercial que, naquele tempo, se davam as primeiras braçadas.

Joaquim Baptista, um dos mais antigos amigos do meu pai, acompanhado por uma figura muito conhecida da cidade, Amadeu Costa, assegurou ali, por muitos anos, uma improvisada escola benévola de natação, que funcionava no Verão e na qual, um dia, decidiram inscrever-me. Nunca foi coisa que me entusiasmasse muito, mas o que tinha de ser tinha a muita força da determinação paterna. Despiamo-nos num barracão de madeira e, em fila indiana, lá descíamos, a medo, umas lodosas “escadinhas”, para uma meia-hora que recordo de relativo tormento.

Nos dias de hoje, o navio Gil Eanes, fundeado em permanência na doca de Viana, quase que esconde essas “escadinhas”. Trata-se de degraus de pedra que baixam do alto da doca para a água. São simétricas, uma em frente à outra. Se a maré que entra do mar está baixa, a distância entre os últimos degraus fora de água é pequena, aí uns dois metros. Mas se está alta, esses metros alargam-se. Nunca muito, claro, mas era então uma distância que parecia imensa para quem era testado a fazê-la numa atabalhoada tentativa de nadar de bruços ou no crawl precipitado, que chamávamos, “à cão”. 

De início usávamos uma prancha, depois éramos “pescados” com (creio) umas cordas, enquanto fazíamos os movimentos e, finalmente, quando já mais práticos, éramos largados à nossa sorte. A água em que tentávamos nadar estava cheia de lixo dos barcos, que íamos afastando com a mão, evitando que certas “peças” se nos acercassem da cara. Imagino que, nos dias de hoje, deva até haver diretivas europeias que desaconselhem semelhantes imundícies, mas então era assim e, ao que julgo, ninguém terá ficado doente por virtude desse insólito “ecosistemema” aquático. A glória das glórias era conseguirmos chegar ao outro lado da doca, o que era saudado por palmas da molhada de pais e familiares que assistiam à proeza dos seus rapazes e raparigas. Fi-lo uma vez, que me lembre. Devo-me ter cansado para sempre...

As lições nas “escadinhas” eram ao final da tarde e porque a casa da minha avó (hoje sede da Fundação Maestro José Pedro, lá por Viana) era em frente à doca, recordo-me de, nos primeiros dias, passar por lá, um pouco antes, para ver em que paravam as modas em termos da “enorme” distância entre as “escadinhas”, por via dos humores das marés.

Com todos esses medos e, seguramente, algumas oportunas baldas, a verdade é que fiquei, até hoje, num registo bem sofrível de nadador. Já não vou a tempo para corrigir esta falha na minha formação, a qual, aliás, nunca me preocupou por aí além (quem me conhece sabe que sou pouco dado a preocupações eternas). Para o que interessa: sou hoje um comodista “nadador” de piscinas, mergulho pouco e mal, no mar quase só “passeio” e dou umas braçadas, sempre que possível em lugares “com pé”. Enfim, um “desportista” pouco ambicioso, como já perceberam.

E como hoje a água está (de facto) fria, tenho um excelente pretexto para ficar aqui sentado, a esturricar as banhas pela tarde, neste belo sol amaciado pelo vento, até que o João toque a corneta, anunciando, daí a pouco, a chegada da caixa com as bolas de Berlim da praxe. Com creme, porque as minhas últimas análises estavam excelentes e só se vive uma vez.

Bom verão, para quem aqui me lê!

Bolas!


Gostaria de ser simpático para o surgimento do novo canal de televisão da Federação Portuguesa de Futebol. 

Mas constando que Portugal é já dos países do mundo onde há mais futebol nas televisões, não sei se esta é mesmo uma boa notícia.

Honra à liberdade!


Início de Novembro de 2016. Na véspera, Trump tinha acabado de ganhar as eleições presidenciais americanas. Eu estava em Berlim, numa iniciativa organizada pela Fundação Calouste Gukbenkian com contrapartes alemães. Os membros do governo alemão com que falávamos estavam visivelmente traumatizados com o que acabara de suceder nos Estados Unidos. 

Eu estava um tanto surpreendido com esse estado de espírito, que abeirava o desespero. Afinal, pronto!, as coisas eram o que eram, mas, com toda a certeza, o bom senso da máquina republicana acabaria por se impor em Washington, em particular nas relações transatlânticas, que eram a principal preocupação alemã. Vistas as coisas hoje, eles é que tinham razão, eu é que estava a ser ingénuo.

A reunião acabou e eu decidi ficar uns dias mais por Berlim, no mesmo hotel onde fora a conferência e nos alojáramos. No fim do encontro, um amigo alemão, que me conhecia bem e vivera muitos anos em Lisboa, disse-me: “Não deixe de visitar o museu quase em frente ao hotel. Tem poucos visitantes, mas tenho a certeza de que vai apreciar”.

Fui lá no dia seguinte. Era um discreto museu da resistência ao nazismo, instalado numa caserna militar, ainda operacional. O lugar era histórico. O pátio tinha uma placa a assinalar o local onde foi fuzilado o oficial alemão Claus von Stauffenberg, responsável pela “Operação Valquíria”, o gorado atentado contra Hitler. 

Neste tempo em que alguma Alemanha parece querer esquecer ou reinterpretar os anos negros do seu passado, estimulada pela extrema-direita trumpista, é reconfortante ver Angela Merkel associar-se, naquele lugar, à celebração do 75° aniversário desse atentado. Procurar liquidar um ditador é um ato de heroísmo patriótico, como a chanceler alemã sublinhou.

Maduro e a democracia

Ver aqui .