segunda-feira, junho 17, 2019

O telefonema


Foi nos anos 70. Estava sozinho na minha sala de trabalho, no MNE. Os restantes colegas haviam já saído para o almoço.

O telefone tocou. A voz masculina era de alguém jovem. O tom era algo agreste, sem vontade de expressar um mínimo de cortesia. O pedido feito era relativamente simples de satisfazer: fornecer o número de telefone de casa de um determinado embaixador português, no estrangeiro.

Estranhei o facto de a pessoa ter ligado exatamente para o serviço onde eu estava colocado, embora nós nos ocupássemos das relações económicas com a área regional onde a embaixada se situava. Porém, as telefonistas ou o serviço de pessoal do MNE seriam as entidades mais indicadas para dar aquela informação. Referi isso ao meu interlocutor, até porque não estava a apreciar a forma pouco delicada como ele se me dirigia, mas igualmente porque os números de telefone das residências dos embaixadores não eram públicos, pelo que a regra era não serem indicados, salvo em circunstâncias justificadas.

- Sou filho do embaixador. Ou você me quer dar o número do telefone ou não quer!

Voltei a não apreciar o tom mas, porque conhecia o pai, um homem amável e muito cordial, fui procurar o número. Ditei-o, o filho do embaixador repetiu-o e desligou o telefone, sem agradecer. Imagino que terei ficado furioso, mas logo esqueci o assunto.

No dia seguinte, à conversa com colegas, um deles disse-me:

- Já sabes do filho do embaixador "fulano"? Suicidou-se, ontem.

- A que horas? - perguntei, para legítimo espanto de todos, intrigados com a minha especiosa curiosidade.

- Parece que foi a meio da tarde.

Desde esse dia, procuro recordar a voz desse rapaz, que vivia sozinho em Portugal. Devo ter sido das últimas pessoas com quem ele falou. Terá chegado a contactar o pai? Nunca tive coragem de lhe perguntar e agora é tarde, porque também ele já desapareceu há muito, aliás de uma forma com o seu quê de trágico.

A condição diplomática introduz, às vezes, fortes tensões nas famílias, fruto de separações a que obriga, dos isolamentos que provoca e dos desequilíbrios que potencia. A instável vida dos diplomatas está longe de ser o mar de rosas que alguns, de fora, mitificam.

domingo, junho 16, 2019

O rumor dos claustros


Não foi há muitos anos. Aquele embaixador caminhava, decidido, nos corredores do Palácio das Necessidades. Era um homem pequeno de estatura, mas erguia a cabeça para tentar ganhar a altura dos grandes da casa. Pelo vigor da passada, pelo modo confiante como observava à sua volta, num fácies grave e determinado, era patente que estava ungido da determinação daqueles a quem, ao virar da esquina do futuro próximo, iriam ser atribuídas novas e importantes responsabilidades.

Os contínuos já o olhavam de uma forma respeitosa, os diplomatas mais jovens com os quais se cruzava baixavam a cabeça, num reverencial temor, ficando a segredar murmúrios em torno do seu nome, que os zunzuns ligavam à futura ocupação do cargo central da hierarquia diplomática.

Ele era, nesses dias de mudança política no ”terceiro andar” (onde se acolhem os ministros e o seu séquito), o objeto privilegiado do chamado "rumor dos claustros" - uma vetusta forma de boataria diplomática que, em casos limite, chega quase a ser constitutiva de direitos.

Forte das bençãos do destino que inexoravelmente se aproximava, faltando apenas o despiciendo detalhe do convite que ainda não fora formalizado, mas já com a segurança dos putativos eleitos, prenhe de confiança que conversas recentes só tinham adubado, abriu a porta de um gabinete e, não podendo conter mais a exploração do sucesso certo que aí vinha, comentou, para uma funcionária, pessoa tida por muito bem informada, pelo seu lugar na geografia funcional da casa, confiante de a ir ouvir ecoar as suas expectativas:

- Então!? Fala-se agora por aí muito no meu nome, não é?!

A senhora, uma distinta servidora da casa, já vira passar muitos mundos, das glórias aos ocasos, testemunhara a chegada e a partida de várias ambições, olhava já para tudo aquilo com uma relativização construída num sereno bom-senso. Pelo que, arvorando um indefinível sorriso, que a doutrina da casa nunca concluiu se incluía ou não o seu grão de sadismo, respondeu ao interlocutor:

- Falava, senhor embaixador, falava! Agora, esta semana, já se fala noutros nomes...

Golfo

Se há algo que as Nações Unidas poderiam e deveriam fazer, no tocante à situação tensa que se vive no Golfo, por virtude de ataques a petroleiros, e antes que os incidentes possam ser motivo justificativo para ações unilaterais, seria criar uma comissão internacional de inquérito, independente, para apuramento de responsabilidades.

Como é mais do que óbvio, o mundo não pode aceitar que seja a versão americana dos factos a única a prevalecer, salvo, naturalmente, se esta viesse a ser confirmada sem equívocos por observadores neutrais.

Os Estados Unidos, relativamente ao Irão, em especial depois do modo como Washington se comportou no caso do acordo nuclear, não têm um mínimo de credibilidade para poderem surgir como um “honest broker”, num terreno em que já tomaram partido por um dos lados.

E a União Europeia, se existisse como potência, já devia ter assumido uma iniciativa no sentido que referi.

sábado, junho 15, 2019

Moro


Julgo que haverá setores da opinião pública para quem constituirá uma imensa surpresa (e talvez mesmo uma coisa sem sentido) se alguém vier lembrar que o juiz é obrigado a permanecer rigorosamente equidistante da acusação e da defesa. Exatamente como Sérgio Moro não se comportou.

O Arnaldinho


Tínhamos convidado aquele jovem casal brasileiro para jantar, em nossa casa, em Oslo, nesse início dos anos 80. Ele era um diplomata que, numa situação transitória, viera fazer uma "encarregatura de negócios" - isto é, substituir o embaixador do Brasil - à Noruega, por alguns meses. A mulher e filho haviam-se-lhe juntado, por algumas semanas. Perguntaram se podiam trazer a criança, porque não tinham com quem a deixar. Dissémos que sim, naturalmente.

Eram pessoas muito simpáticas mas, desde o primeiro segundo, percebeu-se que a criança, o Arnaldinho, aí com uns três anos, era uma figura incontrolada na família. Logo após a chegada, desapareceu sozinho pela casa, sob o olhar benevolente dos pais, entrando e saindo, numa infernal correria, de todas as dependências. 

Na sala, preocupado com os efeitos dessa peregrinação turbulenta por um apartamento não preparado para agitação infantil, ousei perguntar se não seria melhor mantermos o Arnaldinho por ali. Temi - e, mais tarde vim a verificar, com razão - por um puzzle de milhares de peças com que entretinha parte das longas noites nórdicas, no meu escritório. A custo, percebendo a minha preocupação, o pai lá se decidiu a ir procurar o Arnaldinho. Que chegou, puxado pelo braço, para se sentar junto de nós.

Alguns bibelots que estavam sobre a mesa da sala concitaram, segundos depois, a atenção do Arnaldinho, que se pôs a brincar com umas delicadas peças de cristal. Os pais, esses, sorridentes, mantinham uma serenidade total. A certa altura, não me contive:

- Arnaldinho, não mexa nessas peças, por favor.

A mãe do Arnaldinho lançou-me um olhar onde se lia alguma leve reprovação pelo meu comentário repressivo, aparentemente por estar a limitar a liberdade da criança, que, por acaso, nada tinha partido. Ainda. O pai foi um pouco mais sensível e repercutiu, docemente, o meu alerta:

- Você não toca nessas coisas, querido.

Encolhido num canto do sofá, os olhos do Arnaldinho estudavam opções ofensivas. E logo brilharam ao ver uma taça com cerca de uma dúzia de ovos pintados à mão, uma compra feita, meses antes, em Praga. Eu, nervoso e distraído da conversa, seguia o Arnaldinho pelo canto do olho. Vi-o descer lentamente do sofá e acercar-se a mesa. A sua mão sapuda avançou então, rápida, para um desses ovos, agarrou-o, olhou-o por um instante e esmagou-o sobre o tampo da mesa, espalhando a casca pintada.

Fiquei furibundo por dentro. Não eram peças muito valiosas, mas eram objetos de artesanato que, meses antes, havíamos trazido bem acondicionados, de carro, durante milhares de quilómetros. Vê-las desaparecer por uma destruição gratuita excedia a minha paciência. Mas contive-me, na esperança de uma atitude por parte dos progenitores do pequeno vândalo.

O pai do Arnaldinho teve então a reação máxima que, aparentemente, o estatuto da sua autoridade sobre a criança permitia:

- Arnaldinho, não faz isso! Então partiu o ovo!? Não vai partir outro, não?

O Arnaldinho tomou o remoque como um incentivo e a pergunta como um desafio. E, claro, avançou para outro ovo, que logo teve idêntico destino.

A mãe, "cool", sorriu. O pai "reagiu":

- Arnaldinho! Arnaldinho! Não parte mais nenhum ovo, está bem? Senão papai zanga-se!

“Papai” não ia ter ocasião de zangar-se. Porque, se ia partir, não partiu. Voei para o Arnaldinho, icei-o pelos braços e arquivei-o no canto oposto do sofá. Surpreendido pelo gesto, não tugiu nem mugiu. No silêncio pesado que, por segundos, se fez na sala, coloquei a taça de ovos e, um a um, todos os bibelots que pressenti pudessem ser alvo da sua ação destruidora na prateleira mais alta de um móvel que estava em frente. As mesas ficaram tristemente desertas de decoração. 

O Arnaldinho ficou especado, sem "targets". E os nossos convidados, surpreendidos pelo meu afirmativo "preemptive strike", ficaram, em absoluto, sem graça.

- Então?! E o que bebem?, perguntei, aliviado, mas já com pena dos copos. 

E, já nem sei como, lá se passou mais um jantar... diplomático. Por onde andará o Arnaldinho, nos seus quarenta e tal anos de hoje?

sexta-feira, junho 14, 2019

Escritas


Ela era lindíssima, muito bem “desenhada”, bielorussa, com vinte e poucos anos, funcionária da missão da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em Bishkek, no Quirguistão. Chamava a atenção de toda a gente. 

Estávamos num jantar oferecido pelo chefe da missão a cinco embaixadores, idos de Viena, numa viagem de duas semanas que fazíamos por todos os países da Ásia Central. (Para que não fiquem dúvidas: fiz essa deslocação à minha custa).

O ambiente era descontraído, numa espécie de taverna típica, um pouco fora do centro da cidade, creio que perto de uma estância de ski. Não havia protocolo, a ocupação das mesas era informal, "free seating".

A bela bielorussa sentou-se ao meu lado, anunciando, alto: "Eu fico aqui, para falar com o embaixador de Portugal". Desfiz-me num deliciado sorriso, perante a onda de ironia invejosa da esmagadora maioria dos parceiros (pelo menos) masculinos do repasto. A bielorussa logo esclareceu, contudo, as suas castas intenções: "Tenho a maior admiração por um grande escritor português e quero falar sobre a sua obra. Tenho a certeza que o embaixador o conhece bem".

Preparei-me, intimamente, para lhe explicar a grandeza dos sinos ou os encantos da biblioteca de Mafra, a pretexto do "Memorial do Convento", de José Saramago. Ou, no caso de ser Lobo Antunes, tentaria contextualizar uma literatura angustiada, nascida nos traumas da guerra colonial, como em "Os cus de Judas”, embora o significado de um título como esse levasse mais algum tempo a detalhar. Não estava a ver que outro escritor português pudesse mobilizar o interesse de beldades de Minsk e arredores. Embora longe de ser um alargado conhecedor daqueles autores, o que sabia dava-me para garantir uma dose mais do que suficiente para uma agradável conversa.

Foi então que a jovem me lançou um desafio impossível: "Conhece bem a obra do Paulo Coelho, com certeza! É o maior escritor português, não é? Li tantos livros dele...” Passaram muitos anos e, daquele jantar pelas terras da Rota da Seda, só me ficaram memórias vagas. De uma coisa tenho a absoluta certeza: Paulo Coelho, durante esse repasto, foi um português dos sete costados.

O teste do algodão


Estão decorridos menos de seis meses desde a entrada em funções de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil. Salvo para os turiferários de serviço, para quem a realidade é um detalhe que a fé manda ignorar, está hoje bastante generalizado o sentimento, mesmo em alguns setores que votaram no atual presidente, de que o saldo da nova governação fica muito aquém do aceitável. O presidente, muitos agora o reconhecem, é “despreparado”, como se diz no Brasil, cometeu erros crassos na formação do governo, vive rodeado por uma corte incendiária de filhos e por militares que tentam controlar o seu tropismo para a asneira. Porque não tem um partido sólido no qual se possa apoiar, não conseguiu ainda estabilizar uma relação operativa com o Congresso, o que faz com que todas as iniciativas legislativas sejam marcadas por um casuísmo que fragiliza a sua liderança. Os sinais económicos, que alguns pensavam poderem seguir num sentido otimista, são dececionantes, com os últimos dados do Banco Central a apontarem para uma expetativa de crescimento que não excede 1%.

Bolsonaro é um presidente conjuntural. Recebeu o voto útil de quantos, no essencial, queriam, a todo o curso, barrar o caminho ao PT. Colado à imagem da corrupção, o partido que Lula havia levado à conquista política do Brasil isolou-se fortemente de muitos setores da sociedade, radicalizou o seu discurso e foi estigmatizado pela generalidade dos seus opositores, permanecendo hoje num gueto político. Pelo caminho, ficaram Dilma Rousseff, vítima de si própria e do facto de ter sido “criada” por Lula, e o seu infiel vice-presidente, Michel Temer, afinal mais um peão no xadrez das acusações de improbidade que marcam a imagem de grande parte da classe política tradicional.

Para que a “despetização” do Brasil tivesse sucesso, era necessário afastar Lula da cena política. É que a hipótese dele poder ser eleito nas últimas eleições presidenciais chegou a ser muito elevada. Acusado de alguns crimes, o antigo presidente viu o calendário desses processos ser acelerado de uma forma que só por ingenuidade ou má-fé se pode considerar ter sido natural. Independentemente da sua possível culpabilidade, ficou bem patente que houve lugar a uma aliança objetiva entre os setores políticos que desejavam o seu afastamento e a máquina judicial que o acusou e rapidamente o condenou. Nesta última, surge o nome do juiz Sérgio Moro, ainda um herói para uma maioria dos brasileiros, que Bolsonaro foi buscar para seu ministro da Justiça.

Veio agora a saber-se que, na preparação do processo, o juiz que acabaria por condenar Lula havia mantido uma cumplicidade operativa com a acusação pública, o que a lei expressamente proíbe. Algum escândalo está instalado, sendo contudo óbvio que tal technicality não impressionará minimamente Bolsonaro. Por isso, o grande teste, o “teste do algodão” para se perceber se o Brasil passou já a fronteira da preservação das regras básicas do Estado de direito, será a atitude dos órgãos de Justiça que saem da alçada do ministro face a este caso.

(Publicado hoje no semanário “Jornal Económico”)

quinta-feira, junho 13, 2019

Politicamente correto


Ou muito me engano ou já não deve tardar que os polícias do politicamente correto venham por aí lançar dúvidas sobre a legitimidade de se continuar a mostrar o Santo António com uma criança ao colo...

Corrupção


Hoje, Valdemar Cruz, na “Newsletter” do Expresso, escreve exatamente o que penso:

“A sucessão de casos de alegada corrupção ou de práticas contrárias à lei nas diferentes estruturas do poder, seja autárquico ou nacional, assume-se cada vez mais, nestes tempos de desmesurada influência das redes sociais, como estocadas demolidoras sobre a credibilidade da democracia.

Geram o discurso fácil e demagógico. Alimentam o populismo larvar na sociedade. A incompetência ou a gula de quantos assumem a política como profissão, errada ainda por cima, e se servem da democracia para daí retirarem vantagens pessoais em detrimento do bem público, faz mais para alimentar o espectro que ensombra as democracias do que muitos dos assanhados discursos de quantos exploram os sentimentos mais primários de uma população que, ao sentir-se cada vez mais marginalizada, tende a assumir o perverso discurso do “nós”, o povo, os puros, contra “eles”, os políticos, generalizadamente apresentados como corruptos e açambarcadores.

São estas, também, as crónicas da idade dos mídia. Não é seguro que haja necessariamente mais corrupção. Há, isso sim, uma sociedade mais vigilante e menos tolerante para com estes desvios que se aproveitam da fragilidade das instituições. Há uma vigilância mais apertada de quem tem por função assegurar o cumprimento da lei, e há uma maior sensibilidade de quem tem o dever de informar. Daqui resulta uma maior visibilidade do que antes estaria escondido e silenciado.”

quarta-feira, junho 12, 2019

Futebóis


Se há uma fronteira difícil de cruzar essa é aquela que divide o futebol de Portugal e do Brasil, no sentido de quem vai daqui para lá. Que me recorde, nunca um jogador português, com o mínimo de nomeada, conseguiu vingar no futebol brasileiro.

Por lá andaram, sem uma notoriedade por aí além, o histórico Rogério "Pipi" e Fernando Peres, tal como Paulo Madeira e Jacinto João, entre muito poucos outros. Do mesmo modo, não me consta que tenha tido algum dia um sucesso marcante qualquer treinador ido de Portugal. Paulo Bento e dois outros colegas são disso a evidente prova. Jorge Jesus, ao assumir agora a sua aposta no Flamengo, corre assim um elevado risco.

Pode dizer-se que, até hoje, o Brasil não levou muito a sério o futebol português. Eusébio nunca, por lá, fez a menor sombra a Pelé e Ronaldo tem ali a sua grandeza bastante relativizada, podem crer. Portugal foi subindo no "ranking" da FIFA, mas isso nunca nos fez ascender em proporção na consideração futebolística brasileira. Ser isso justo ou não é completamente indiferente.

Por muitos anos, o Brasil, incontestável potência mundial na matéria, olhou Portugal como um país de segunda linha nesse domínio, lendo os escassos êxitos internacionais dos nossos clubes como fogachos esporádicos, sem sustentação no tempo. O mesmo vale para as seleções. Espanha, Inglaterra, Itália e Alemanha eram e são os seus verdadeiros competidores europeus, da mesma forma que a Argentina o é na vizinhança geográfica. E não me venham falar dos nossos 3-1, em 1966, ou dos 2-0 em Wembley, em 2007. Como embaixador, eu "sofri" 6-2 em Taguatinga, em 2008! No total, são 13 vitórias para o Brasil e quatro para nós. Ponto. E, em futebol, apenas o que é parece.

Para cá, o Brasil exportou desde bastante cedo muitos seus jogadores - excelentes, razoáveis ou medíocres -, os melhores em mero "stop over" para outra Europa. E também uns poucos treinadores com real mérito, de Yustrich a Otto Glória, de Marinho Peres a Scolari. Pode dizer-se que o futebol português deve bastante ao Brasil e que o futebol brasileiro apenas nos deve o acolhimento aqui dado aos seus.

Jorge Jesus, cuja qualidade técnica não está em causa, é um treinador com um perfil que se tem prestado a alguma exploração mediática menos simpática. O Brasil, onde alguma ácida lusofobia teima em persistir em certos meios, é um terreno para fácil exploração dessa sua fragilidade. Assim, estou em crer que ou a sua passagem pelo Flamengo se converte num grande sucesso ou acabará por ser um imenso fracasso, sem nada de permeio.

(Artigo hoje publicado no “Jornal de Notícias”)

Os marchistas


É noite de marchas de Santo António. Recebi um simpático convite para estar nas bancadas da Avenida da Liberdade, para ver os bairros desfilar. Mas não vou. Desde que regressei de vez a Portugal, a véspera do dia de Santo António tem, para mim, uma receita ritual: sardinhas e sangria, noitada pelas ruas, às vezes pelo Castelo e Alfama, outras pela Bica. Hoje, será na Madragoa, perto de casa, com passeio pelas Madres e pela Esperança, seguramente com uma saltada para um último copo ali em Santos.

No tempo da “outra senhora”, a rivalidade entre os bairros e as suas marchas foi sempre muito forte. A mobilização era bastante mais popular e genuína, não havendo dinheiro para a riqueza dos trajes e para as coreografias de hoje. Não raramente, os conflitos surgiam. por invejas e provocações, com pancada à mistura.

Nos anos 70, as marchas populares chegaram a estar proibidas, por algum tempo. Recordo-me bem de um comunicado da Câmara de Lisboa em que, cripticamente, se falava de “infiltrações políticas”, que estariam a potenciar os dissídios. Nunca vi isto devidamente esclarecido, mas fixei, nessa altura, o modo subtil como o “Diário de Lisboa” tratou o assunto, falando dos “conflitos no seio dos marchistas”, num artigo delicioso, com alusões em que, se substituíssemos “marchistas” por “marxistas”, resultava, para iniciados, um texto que aludia às polémicas da extrema-esquerda da época. “Vantagens” da ditadura...

Francisco Lucas Pires


Há cerca de 12 anos, fui convidado a prestar um testemunho para um volume publicado em homenagem a Francisco Lucas Pires (1944-1998). Agora que se assinalam 20 anos sobre a sua morte, com a exibição ontem, na RTP 2, de um documentário que lhe é dedicado, deixo aqui esse texto:

“Conheci pessoalmente Francisco Lucas Pires em andanças europeias, na segunda metade dos anos 90. Era uma figura que, há muitos anos, me intrigava, política e intelectualmente. Dele tinha desenhado uma primeira imagem caricatural, ligada à aventura conservadora da “Cidadela” coimbrã. Bem mais tarde, pareceu-me poder ler, no discurso que desenvolvia como ministro da Cultura da AD, um tom saudavelmente heterodoxo, particularmente num tempo governativo que chegou a ter inquietantes derivas radicais. Como líder do CDS, fiquei com a sensação de que nem sempre se sentia muito confortável com o espartilho partidário, esforçando-se para compatibilizar o formalismo da função com a intransigente vontade de pensar as coisas pela sua própria cabeça. Mas foi como Deputado europeu que Lucas Pires verdadeiramente me surpreendeu.

Porque oriundo de uma escola de pensamento nacionalista, foi uma revelação encontrar em Francisco Lucas Pires uma das reflexões mais originais sobre o posicionamento de Portugal na Europa. Era um tempo em que, para muitos, o “europeísmo” era apenas um sinónimo de comodidade cínica com os fundos comunitários. Posso imaginar que a sua formação germânica o tenha ajudado a perceber melhor as virtualidades do processo integrador do continente. Mas terá sido, sobretudo, a sua inteligência que o levou a formular a defesa empenhada numa postura pró-activa de Portugal na aventura europeia, convocando em seu apoio clássicos que de que estivera distante, como António Sérgio, Vitorino Magalhães Godinho ou Eduardo Lourenço.

A imagem essencial que me ficou de Francisco Lucas Pires é a de um cultor obsessivo da liberdade, um espírito agudo e irónico, alguém queapreciava a vida e que, talvez por isso, se impacientava muito com a estupidez dos que a não sabiam viver. Um dia, num colóquio em Bruxelas,em que éramos os dois oradores convidados, perante a irrelevância e o paroquialismo pateta de algumas perguntas, sussurrou-me: “Veja você o que nós sofremos pela Europa…”. “

terça-feira, junho 11, 2019

Ruben de Carvalho


Era uma força da natureza. Culto, interessado por tudo, tinha uma vivacidade e um permanente gosto pela modernidade das coisas. Militante do PCP, foi, por muitos anos, nesse partido, a alma da Festa do Avante. Nos dias de hoje, no Comité Central, era o único dos seus membros que tinha estado nas prisões da ditadura.

Conheci-o em 1973, num debate no Centro Nacional de Cultura, sobre umas recentes eleições em França. Depois, foram os almoços estivais em casa de Bartolomeu Cid dos Santos que nos voltaram a juntar. Com o Jaime Nogueira Pinto, protagonizou um improvável mas muito interessante programa de debate na RDP.

Com ele, sai agora de cena um certo PCP. Quem o conheceu sabe o que quero dizer com isto.

segunda-feira, junho 10, 2019

O ar do tempo

Há um país que se sente mal neste país. Há um país que acha que o país o não segue ou, quando acaso episodicamente o faz, nunca consegue pôr o país a seu jeito. Há um país com uma infindável raiva, que acha que o país o não compreende, que vive num mal-estar endémico, em “blues” eternos. Há um país que acha que tem uma ideia salvífica para o país, a mezinha mágica para pôr isto direito, mas que o país, pateta, não consegue nunca entender. Há um país sobranceiro, arrogante, feito de gente que, afinal, apenas gostava que o país fosse aquilo que eles acham que o país devia ser. E que, talvez não por acaso, não é.

Esse país, que agora por aí anda com a bílis à solta, não gosta do país que tem, não gosta afinal do país que lhe deu a liberdade de não gostar do país. É o país tremendista do “nós” e do “eles”, em que estes últimos são o sujeito de todos os males, que só não são curados porque a “nós” não é dada a possibilidade de os corrigir. Esse país que agora anda muito vocal, mas que nunca fez nada pelo país, é filho incógnito daqueles a quem, em todas as épocas da nossa História, sempre desagradou o país que tinham. Para esses melancólicos iluminados pelas luzes da outra verdade, isto sempre foi uma “choldra”, uma “seca” feita país, a que urge abrir as portas e as janelas, deixando entrar o ar do tempo. O deles.

No passado, esse país indisposto com o país, era então o estrangeirado. Lá fora estavam todas as soluções, só era necessário importá-las para que a modernidade das ideias, afinal tão óbvia, pudesse aqui frutificar e dar-lhes, finalmente, a glória dos profetas. Com Abril, desembarcaram em Santa Apolónia, com livros e ambições de reconhecimento. O país, que tem da generosidade o sentido da medida, deu-lhes o que era devido. Não mais. 

Mas a semente, qual OGM, mudou de qualidade, transmutou-se. O país do despeito transitou entretanto de geração, ilustrou-se nas Américas, leu Popper e, enterrando o latino, anglo-saxonizou o seu projeto. Andou os últimos anos a fazer livrinhos, acolhido em universidades de receita segura, colunizando-se pelas plataformas da moda. Nos partidos, onde se muda a política com a legitimidade das vontades expressas, entram e saem, nervosos, à medida das ambições, falhos de votos e reconhecimento. Cavalgando as inseguranças de muitos, as dúvidas de uns tantos, os temores de alguns, ei-los agora a adubar de populismo os seus discursos, tentando que os dias do país se confundam com os da sua raça.

Quem os topava bem era o O’Neill, que os citava, definitivos e, no entanto, tão tristemente provisórios: “Não, não é para mim este país!”. E era também um poeta, imaginem!, de Portalegre, Régio de seu nome mas republicano de gema, quem lhes respondia, quem lhes responde, em nome do país: “Não vou por aí!”

Daqui a pouco...


A RTP e o futebol português


Muitos portugueses pelo mundo, que se habituaram a ver a RTP Internacional, mostraram-se ontem bem frustrados por não terem podido assistir à vitória de Portugal sobre a Holanda, na final da Liga das Nações. Esta queixa é, aliás, recorrente noutras competições internacionais transmitidas pela RTP.

Fui tentar saber o que se passou.

Nos grandes campeonatos, negociados pela UEFA/FIFA, cada país só consegue adquirir os chamados direitos territoriais (para o seu território geográfico), e isto acontece com os Mundiais, os Europeus e, agora, a Liga das Nações.

É a própria UEFA (FIFA, no caso do Mundial) que vende diretamente estes jogos para os territórios internacionais (EUA, Ásia, África), não permitindo aos canais internacionais dos operadores europeus transmitirem estes jogos, aliás obrigando a fazerem o “geo blocking”, ou seja colocar outro conteúdo nessa emissão ou colocar uma nota a dizer que não existem direitos de transmissão. Todos os outros operadores internacionais, aliás, têm o mesmo problema, como se perceberá se os tentarmos sintonizar nessa altura. Se acaso a RTP procedesse de forma diferente, teria de arcar con muitas milionárias.

A RTP sabe bem que esta é uma frustração para os portugueses que vivem pelo mundo, mas a solução não está, de todo, na sua mão, nem aliás, como referido, de nenhum outro operador europeu, quando se trata de grandes competições organizadas pela UEFA/FIFA.

É esta a explicação. É pena, mas é assim!

O fado colonial



Anos 80, Luanda. António Pinto da França, o magnífico embaixador de Portugal em Angola com quem eu trabalhava, nesse tempo muito difícil das relações entre os dois países, procurou usar a comemoração do Dia de Portugal para acentuar uma forte nota portuguesa na capital angolana. Pelo que decidiu fazer uma receção que tinha o fado no seu centro.

Na embaixada, o assunto foi discutido, com alguns de nós a achar que a Angola oficial podia ver a iniciativa como saudosista e passadista, como um sublinhar de um Portugal de outros tempos, que por ali então se condenava, nos ataques quase diários na imprensa de que éramos objeto. 

António Pinto da França via, em geral, as coisas com muito mais presciência que nós e, diga-se desde já, a receção acabou, contra as nossas reticências, por ser um grande sucesso. 

Nas vésperas, contudo, havia ainda algum nervosismo sobre a eficácia do gesto. E eu, divertido, contribuí para aumentar a confusão. 

A fadista vinda de Lisboa, convidada pela embaixada, chamava-se Luz Sá da Bandeira. E para o que me deu então? Em conversas à margem de um jantar oferecido à artista, na véspera do 10 de junho, deixei discretamente “cair” junto de algumas pessoas que a embaixada soubera que, às autoridades angolanas, estava a causar alguns engulhos o facto do nome da fadista ser, precisamente, o de uma das principais cidades do país, cujo nome tinha sido mudado pela independência.

Para varrer a memória colonial, Angola tinha procedido a uma forte alteração toponímica, que afetara as ruas de Luanda (as quais, à época, se assemelhavam ao glossário de uma História do Movimento Operário...) e da grande maioria das cidades: Nova Lisboa passara a Huambo, Carmona a Uíge, Serpa Pinto a Menongue, Henrique de Carvalho a Saurimo, etc... E a cidade de Sá da Bandeira chamava-se agora Lubango. 

Nas conversas, perguntei a algumas pessoas, como quem não quer a coisa, se tinham ouvido alguma reação ao assunto, por parte de alguém. Ninguém tinha ouvido nada, mas, naquele microcosmos que era o Portugal expatriado que vivia à volta da embaixada, a minha referência colocou logo o assunto a correr.

A certo momento, António Pinto da França aproximou-se de mim e perguntou: “Ouviu alguma coisa sobre uma reação dos angolanos, por causa do nome da fadista? É que correm por aí uns zunzuns”. Fiz uma cara séria e disse: “Sabe, eu não lhe quis dizer nada, mas também já me chegou isso. Mas acho que havia uma solução fácil”. O embaixador olhou para mim com ar perplexo e expectante. “A melhor maneira de dar a volta ao problema era, amanhã, na festa, ao apresentar a senhora, começar por dizer “Temos aqui connosco hoje Luz Sá da Bandeira ou, se quiserem, Luz Lubango...””

António Pinto da França olhou para mim como se eu tivesse ensandecido. Começou a reação com um “Ó Francisco, você não pode estar a falar a sério...” E foi o meu sorriso, subitamente aberto numa gargalhada, que, num segundo, o convenceu que estava perante uma patranha inventada pelo seu jovem colega. Caramba! Ele que era um mestre em “partidas”, em invenção de cenas falsas em que alguns de nós frequentemente “caíamos”, recebia finalmente uma de volta...


Neste 10 de junho, sinto muitas saudades do meu amigo António Pinto da França.

sábado, junho 08, 2019

A agenda do presidente

Passou bem mais de uma semana. E, desde então, as palavras do presidente da República, ditas perante legisladores americanos, foram glosadas até à exaustão.

Para o que aqui me importa, Marcelo Rebelo de Sousa disse na altura que, muito provavelmente, o país iria assistir a uma crise na direita, mas que ele, um presidente oriundo dessa mesma direita, funcionaria como um fator equilibrador.

O presidente não “dá ponto sem nó”. Depois ter ter sido tão estranhado o seu silêncio na chamada crise dos professores, mesmo com a ameaça de demissão de António Costa, ele decidiu colmatar esse seu pontual défice de presença pública e veio a terreno, um tanto inopinadamente, comentar, no fundo, os efeitos que, a prazo, o resultado das eleições europeias poderiam vir a ter.

O presidente deixou claro a sua perspetiva de que, salvo um imprevisto, as próximas eleições legislativas acentuarão o declínio dos dois partidos da direita. Implícito ficou que, nessa possível conjuntura, poderia ocorrer uma instabilidade nas respetivas lideranças, em especial se ficarem com  grupos parlamentares reduzidos e, por isso, impotentes.

Nesse contexto, da perspetiva de uma governação forte titulada pela esquerda, com uma orfandade nos setores tradicionalmente votantes à direita, ele, Marcelo Rebelo de Sousa - repito, oriundo dessa direita - surgiria, sob autoridade constitucional, como um fator compensador do regime, um contraponto, não deixando que uma parte do país o sentisse “acaparado” pela outra, na expressão nacional dos poderes. No fundo, Marcelo Rebelo de Sousa quis, muito simplesmente, dizer que, por esse motivo, sente um imperativo em se recandidatar.

Podemos perguntar-nos se é natural um presidente exprimir-se publicamente desta forma, ao jeito de comentador, sabendo que a sua palavra pesa bastante e pode impactar sobre a própria realidade. Não é, mas Marcelo pressente que tem o dever (político, não institucional) de atenuar a inquietude que atravessa o campo conservador que maioritariamente o elegeu, atalhando o desespero que aí pressente existir. É claro que isso pode levar à questão de saber se um presidente “de todos os portugueses” deve sugerir-se como especial representante de alguns. Não deve, mas Marcelo faz uma interpretação muito peculiar do seu papel presidencial e deve achar que esta eventual subversão de papéis públicos pode acabar por ser um fator de “acalmação” no país.

Na política, como na História, nada se repete. Porém, vale a pena lembrar como Mário Soares acabou por funcionar como contraponto, para a esquerda, nos “anos de chumbo” que esta passou sob a governação de Cavaco Silva. No final, recorde-se, Soares saiu incensado em glória e na memória coletiva da esquerda, com muita direita aos seus pés. Estou em crer que um cenário simétrico não desagradaria a Marcelo de Sousa

sexta-feira, junho 07, 2019

Escrito, faz hoje 10 anos, neste blogue

A vida política do Reino Unido tem, para o equilíbrio global da Europa, uma importância muito maior do que às vezes se supõe. A crise que atravessa a liderança britânica, no que pode vir a representar de mudança no paradigma de comportamento de Londres face ao projecto europeu e do seu potencial impacto na "special relationship" com os Estados Unidos, acaba por ser um tema que diz respeito a todos nós.”

(7 de junho de 2009)

quinta-feira, junho 06, 2019

O Foguete


”Apanhava-se” em São Bento. Era um comboio prateado, a jóia da coroa da CP. Do Porto a Lisboa, levava um pouco mais de quatro horas. Ia a “cem à hora”, imaginem! Era o máximo! Andei nele, pela primeira vez, em 1955. 

Na poesia de António Gedeão, Filipe II tinha tudo o que queria, mas ”o que ele não tinha era um fecho éclair”. Ora o Foguete, nesses anos 50, tinha imensa coisa, mas não tinha WiFi (e, estranhamente, ninguém dava por isso). 

Pois, pois! Hoje, o Alfa Pendular, que demora menos de três horas a ligar as duas cidades, também não.

quarta-feira, junho 05, 2019

Ganhar o dia


Hoje, já ganhei o dia. Numa manhã no Instituto de Defesa Nacional, numa organização em articulação com a FLAD, ouvi um especialista belga sobre o “Regresso da Política das Grandes Potências e a Defesa europeia”, um académico americano sobre “As relações transatlânticas - o caminho futuro” e uma investigadora sueca sobre “Segurança Climática - um desafio global”. Três motivantes apresentações, que suscitaram interessantes debates. 

Por Lisboa passam, nestes tempos, figuras que enriquecem as nossas perspetivas e obrigam a pensar, não apenas “fora da caixa”, mas, principalmente, abalando leituras demasiado rígidas e rotineiras. Quem estiver atento, pode ganhar muito com a sua presença nestas ocasiões.

Uma pessoa sentada ao meu lado notava que estávamos perante intervenções bastante fora do “mainstream” oficioso. Ora é precisamente disto que o nosso debate precisa. Ouvir atores do poder ou que o representam pode não ser um tempo totalmente perdido, mas é, quase sempre, um “déjà vu”.

A Polícia e a democracia


Tenho o maior respeito pela Polícia de Segurança Pública. Nos últimos anos, todas (repito, todas) as minhas experiências de casual contacto com agentes dessa corporação foram extremamente positivas, evidenciando, da sua parte, um saudável profissionalismo, muito distante do autoritarismo de outros tempos. 

Sei das difíceis condições remuneratórias em que os agentes da PSP vivem, que os obrigam a uma vida espartana, às vezes passando o limiar do aceitável. Não raramente, interrogo-me mesmo se é legítimo exigir a esses agentes, frequentemente oriundos de ambientes sócio-económicos com grandes dificuldades, uma conduta de relacionamento exemplar, operando eles nas condições em que atuam. Há muito a fazer neste domínio.

Imagino, em especial, a dificuldade dos membros das forças de intervenção, em situações de elevado stress, quando objeto de provocações e sujeitos a conjunturas de grande tensão psicológica. E não posso, nesses instantes, deixar de pensar que eles são a nossa derradeira linha de defesa da ordem, em contextos de violência e potencial rotura da paz pública.

Tudo o que escrevi, e que é muito sincero, surge às vezes abalado pelo conhecimento de atuações policiais que relevam de uma cultura de racismo, xenofobia e discriminação. Admito que possa haver, aqui ou ali, algum exagero nessas denúncias, mas algum “fogo” deve haver no meio de tanto “fumo”. E o facto de, numa atitude de persistente corporativismo, se manter, por parte das suas organizações sindicais, uma teimosa recusa em reconhecer os erros dos agentes culpados desses atos, ajudando a separar “o trigo do joio”, acaba por ser uma mancha triste sobre a imagem da polícia e uma acha na fogueira de descrédito de quantos procuram denegri-la e afetar a sua autoridade junto da sociedade.

A forma bem lamentável como sindicatos da PSP agora se comportaram face a um seu colega, que procurou alertar para a necessidade de confrontar com coragem uma cultura discriminatória que, tal como em outros setores da sociedade, impregna a ação de agentes das forças policiais, foi um um imenso desserviço prestado à corporação. Atitudes como esta contribuem também para explorar a circunstância, bem conhecida, de que agentes das forças policiais integram hoje grupos de extrema-direita e desenvolvem atividades à margem das normas constitucionais.

A nossa polícia é o garante da ordem da democracia. Não se defende o sistema democrático com recurso a métodos que deixam de depender da autoridade para passarem a relevar do autoritarismo.

(Artigo que hoje publico no “Jornal de Notícias”)

Jacobs


Nenhuma das obras-primas de Edgar P. Jacobs - como “A Marca Amarela” ou “O Mistério da Grande Pirâmide” - estava em saldo na Feira do Livro, na noite de ontem. Essas glórias da escola belga da banda desenhada tinham apenas as reduções habituais da ocasião.

Em forte “rebaixa” estavam apenas os trabalhos dos seguidores de Jacobs, publicados depois da desaparição deste. Alguns até não são maus de todo, outros são bastante menos bem conseguidos.

Há, assim, qualquer coisa de justo no facto de estes serem os únicos a surgirem “despachados” a preços reduzidos...

Na morte de Agustina


Como alguns bem notaram, a esquerda esteve demasiado ausente das homenagens finais a Agustina. Pode dizer-se que o fez para evitar ser acusada de hipocrisia. Porém, a dimensão da escritora justificaria outra postura. Até para evitar que ela se torne num ícone cultural da direita.

Trump em Londres


O comportamento de Trump em Londres era previsível. Mas a subserviência britânica, sem a menor reação da parte do governo, em face das constantes ingerências na política interna do país que o acolhia, é francamente chocante. E o silêncio medíocre de Theresa May, ao ouvir os ataques soezes ao Mayor de Londres é muito triste.

Cartazes

Não seria possível livrarem-nos dos cartazes eleitorais que ainda enxameiam a nossa paisagem? Não há uma lei para isto? Se há, quem a faz cumprir? Ou será que há, no fundo, um conluio entre os partidos?

A ajuda da Geringonça

Há uma “conquista” doutrinária que deve ser posta a crédito da Geringonça: ter colocado a direita a queixar -se da falta de investimento público, preocupação que não costuma estar nos seus genes.

Que diria Marcelo ?


Em política, o atual presidente da República sabe mais a dormir (e ele dorme pouco) do que a maioria da classe política da paróquia acordada.

Sendo assim, tenho absoluta certeza de que, ao proferir as suas já famosas declarações na FLAD, de prenúncio de uma “crise da direita”, para ela se insinuando como terapia compensatória de equilíbrio do regime, sabia perfeitamente que iria gerar um tsunami de críticas.

Isto leva a que seja legítimo que nos interroguemos sobre o seu real propósito, ao dizer o que disse.

E como eu gostaria de ouvir o comentador Marcelo Rebelo de Sousa a dissecar, com bisturi crítico, o que foi dito pelo chefe de Estado, nessa ocasião!

Um dia, em Paris, com Marcelo presente, Eduardo Lourenço comparou essa tarefa de comentador de muitos anos a alguém de uma pequena localidade que está numa varanda, vendo passar as pessoas na rua, e sobre elas se vai pronunciando. E Lourenço acrescentou: “Às vezes, da varanda, ele vê passar, na rua, Marcelo Rebelo de Sousa e, claro, também o comenta...”

Não desesperemos, pois.

terça-feira, junho 04, 2019

Os óculos


Os meus óculos estavam “cansados”. A vista vai-se alterando. O oftalmologista confirmou: tinha de mudar de óculos. E assim fiz. Já agora, mudava também de tipo de óculos. Estava um pouco farto dos que usava, ia para duas décadas. Eu até sabia muito bem o que queria - na cor e no design. E lá fui ao oculista, dos bons, isto é, dos caros. Expliquei tudo. Com o Google à mão, mostrei mesmo uma fotografia do modelo desejado. A senhora “foi ver”. A mesa começou a encher-se de pares de óculos, de todas as cores e feitios. Fui afastando um a um aqueles de que não gostava, os que, dizia ela, me faziam “mais velho”, os que, também segundo ela, não davam com o meu “tipo de cara”, os “pesadões”, os “demasiado desportivos”, os que eram “mais do mesmo”, face ao que já usava, etc. E eu ia concordando. Tenho muito escassa pachorra para perder tempo com compras (salvo livros, queijos, blocos de papel e champôs). E já por ali estava, em frente ao espelho, há uns bons vinte minutos, “morto” por me safar. Mas continuavam a chegar pares de óculos. Que eu ia afastando. Para o fim, ficaram dois ou três a que eu achava graça, que ela achava que me “ficavam lindamente”, que “dizem muito bem consigo”, que “lhe dão um aspeto mais jovem”. Um dos pares, de facto, agradava-me bastante. Preço? “São caros, mas são excelentes”. A senhora era simpática, delicada, profissional, nada “pushy”, tinha todo o tempo do mundo. Eu não. “Pronto! Levo estes!”. Liberto da tarefa, paguei, aliviado. Voltei lá dias depois, levantei os óculos. Gostei, estavam excelentes, via muito bem com eles, gostava do modelo. Depois, a reação foi a esperada: “São uns óculos bonitos, ficam-te bem, mas não têm nada a ver com aqueles que tinhas intenção de comprar!” Era verdade: não havia a mais leve semelhança entre aquilo que eu queria quando cheguei à loja e o que acabara por adquirir. Por que será que sou assim?

Económico


Eduardo Teixeira lança amanhã, pelas 18:00 horas, no Grémio Literário, o seu livro “E agora, Portugal?”, uma recolha de textos da sua coluna “Tribuna Social”, no semanário “Jornal Económico”, um órgão em que ambos colaboramos. Desafiou alguns amigos para fazerem curtos comentários aos seus textos. Fui um deles. Transcrevo aqui o que lá figura da minha autoria e que intitulei “Banca para que te quero?”: 

Que banca temos, ou melhor, que banca não temos é bom mote para uma reflexão. Eduardo Teixeira fala-nos dos banqueiros de outro tempo e do que disso (quase não) resta em mãos nacionais. Aquando da recapitalização da Caixa Geral de Depósitos, deu-me para perguntar, num artigo de jornal, para que servia termos um banco de capitais públicos se, afinal, este era obrigado a comportar-se exatamente como os congéneres privados, se lhe estava vedada a possibilidade de servir de instrumento das políticas públicas, dos interesses do acionista Estado. Não tive resposta, que não fosse a suspeita de estar a sugerir a privatização da Caixa ou, pecado dos pecados, querer fazê-la regressar a um fundo de maneio dos políticos. Hoje, ninguém responde: temos um banco público, porque sim! 

A crise financeira contribuiu para o “sonho” europeu: concentrar progressivamente unidades, dando-lhe escala europeia ou regional, sujeitando-as à supervisão que, antes da crise, muitas vezes faltou, reforçando o controlo de Frankfurt sobre todo o tecido financeiro. Mas o outro lado da moeda não existe: a falta de vontade política trava, ainda hoje, na Europa, a constituição dos mecanismos coletivos de responsabilização. Mas, por cá, já demos para o peditório europeu: fomos cobaias de uma experiência que pagámos com língua de palmo, nacionalizámos os prejuízos (que ainda não acabaram) e alienámos, sem retorno, ativos que existiam. Mas não há alguns bons bancos por aí? Claro que sim, até com boa e competente gestão. São nossos? Salvo a Caixa e uns trocos, são tão nossos como o anticiclone dos Açores.”

segunda-feira, junho 03, 2019

Uma esquina ao sol


Hoje, estava uma tarde magnífica de sol, naquele cruzamento entre as ruas Castilho e Barata Salgueiro, onde eu fazia horas para uma reunião.

Olhei para a Sociedade Nacional de Belas-Artes, sob a cor imperdível dos jacarandás da rua, e lembrei-me de que foi ali que, pela primeira vez, vi Mário Soares.

Era o início de uma noite de 1969 (já meio século, caramba!), em que o então líder da oposição socialista pretendia ali organizar uma "sessão de esclarecimento". A polícia proibiu o "ajuntamento" e recordo-me bem de ouvir Soares, com voz forte e indignada, contestar a decisão, fazendo face ao famigerado capitão Maltez, antes deste ter ordenado a dispersão daquelas dezenas de pessoas, "por ordem do governo". Antes, Soares perguntou, jocoso e corajoso: "E que ministro é que deu a ordem? O da Agricultura?". Um grande jarrão, à entrada de um restaurante chinês que existia um pouco mais abaixo na rua, atrás do qual me refugiei com uma amiga, ia sendo a vítima colateral da subsequente fuga das dezenas de circunstantes e frustrados participantes na sessão. 

Mas já ali não estive - e com que pena o digo! - no ano seguinte. Na primavera de 1970, um divertido grupo de amigos decidiu montar na Sociedade Nacional de Belas-Artes uma "operação" com laivos teatrais, destinada a "apanhar em falso uma certa elite que então brotava no mundo das artes e que primava pelo discurso hermético e oco". Tratava-se de uma sessão de homenagem ao "sábio" belga Alphonse Peyradon, a convite do "Círculo de Estudos da Massificação Urbana (em organização)".

O "sábio" (Peyradon era um nome que recordava "pai Adão/père Adam") fez uma intervenção tida como “notável”, misturando física com filosofia, chegando ao ponto de defender que havia vestígios de música popular portuguesa em peças de Bach e Beethoven, que o advogado Vasco Vieira de Almeida entretanto interpretava ao piano.

A sessão terá decorrido de forma animada mas organizada, até que o arquiteto Hestnes Ferreira, que antes havia glorificado a múltipla qualidade de Peyradon (representado por Leite de Faria), como "musicólogo, filólogo, filósofo e deficiente motor", passou a acusá-lo, de "revisionismo", o que provocou um conflito com o orador e homenageado. O presidente da sessão, o advogado João Esteves da Silva, declarou então que a homenagem passaria a "póstuma" e tentou dar dois "tiros" no sábio, que estava remetido a uma cadeira de rodas. Por um lapso organizativo, os fulminantes não funcionaram. As luzes da sala fecharam-se então e estabeleceu-se uma confusão, embora a prevista "morte" acabasse mesmo por ”ter lugar”, o que suscitou, de imediato, que fosse tocado um fado dedicado ao passamento do sábio, com uma letra muito oportuna.

A reunião terminaria em aplausos das duas centenas de presentes, nesse fantástico sarau lisboeta, a que, repito, nunca me perdoarei de não ter assistido, não obstante a informação antecipada dada pelo "Diário de Lisboa", jornal que eu, à época, religiosamente lia.

A cena e o "assassinato" teriam ficado por ali, não fora o jornalista Fernando Assis Pacheco ter publicado um divertidíssimo texto, dias depois, precisamente no "Diário de Lisboa", com chamada de primeira página. Trata-se de uma peça muito irónica, que só por lapso de leitura pode levar um incauto a acreditar na realidade daquilo que nela era relatado. O autor inseriu, aliás, uma frase magnífica, para descrever o "assassinato", um verdadeiro "overkill": "o primeiro tiro matou-o logo. O outro feriu-o à superfície".

Leia-se, com vantagem, o notável relato feito pelo blogue Ecosfera, para ter dados deliciosos da patranha, em que intervieram, para além das personalidades já citadas, António Vaz, Francisco Keil do Amaral, José Palla e Carmo, Eugénio Cavalheiro, etc.

No dia seguinte à publicação da "notícia", um qualquer estagiário da agência noticiosa "Lusitânia", que operava essencialmente para o "Ultramar", tomou-a a sério e redigiu um "take" nesse registo. Em Angola, alguns jornais levaram-no à letra e deram conta do "trágico" sucedido. A "Lusitânia" viria a corrigir o tiro, mas era já tarde. O mundo ficou a saber da feliz tragédia em forma de belas-artes.

Uma excelente história, com um grupo divertido, num Portugal de outro tempo.

O que uma esquina e uma espera nos podem fazer lembrar...

Agustina

Há semanas, escrevi sobre a biografia que Isabel Rio Novo dedicou a Agustina Bessa Luís.

Hoje, no dia da sua morte, deixo o link para uma interessante entrevista que Anabela Mota-Ribeiro fez a Agustina.

Brasil e Angola


A história política em torno da independência de Angola, em 1975, regista, em lugar proeminente, o facto do Brasil, sob ditadura militar, ter sido o primeiro país a reconhecer a República Popular de Angola, titulada pelo MPLA e presidida por Agostinho Neto.

Durante anos, fui ouvindo - em Luanda, em Nova Iorque e até em Paris - “zunzuns” de que havia ainda por contar outros aspetos da história da relação entre os militares brasileiros e os angolanos em guerra interna de poder. Mas nunca apurei nada de concreto.

Um estudo, agora conhecido (ver aqui), mostra que o Brasil manteve-se a jogar, até bastante tarde, em dois tabuleiros, com um apoio de assessoria militar às forças da FNLA de Holden Roberto, pelo menos até à histórica batalha de Quifandongo. 

É muito interessante poder ter mais este elemento para nos ajudar a aprofundar esse tema diplomático fascinante que é a relação do Brasil com a África que fala português.

domingo, junho 02, 2019

Juan Carlos


Fui oficialmente educado a detestar a Espanha. Desde os livros da escola primária, o "perigo castelhano" só me não perturbava o sono por mera inconsciência juvenil e porque, em casa, as coisas me era explicadas de outra forma. No liceu, a História do (velho) Mattoso era um apelo profundo à reconquista de Olivença e um aviso subliminar à perfídia eterna de Madrid. Com a idade, comecei a olhar para outras Espanhas, de Unamuno a Lorca. Percebi que, por ali, nem tudo começava em Primo de Rivera e acabava no primarismo de Franco. Emocionei-me com as tragédias da Guerra civil e com a sorte dos vencidos, de Guernica a Madrid, das Asturias a Barcelona. Cedo fiquei ao lado de uma das "duas Espanhas". Quando entrei para a diplomacia, encontrei ainda, pelos corredores, muitos resquícios de uma cultura anti-Espanha, instilada por décadas de doutrinação salazarenta. Só Juan Carlos de Bourbon, que, a partir de hoje, hoje deixará de ter atividade pública no quadro da família real, reconciliou Portugal, em definitivo, com a Espanha, como um todo. A Europa fez o resto. A Espanha, e com ela a península, devem muito à sabedoria de um homem que demonstrou sempre ser um bom amigo de Portugal. Em Espanha, eu teria sido "juancarlista". Embora o nome do atual rei não soe muito bem aos nossos ouvidos lusitanos, só espero que consiga seguir o bom exemplo do pai - caçadas e escapadas incluídas, porque a santidade não é deste mundo. No que nos respeita, melhor é impossível.

Desvios no património cultural


Em julho de 2017, o então ministro Luís Castro Mendes, mandou fazer uma inventariação das obras de arte que pertencem ao espólio da Cultura, uma coleção que havia sido iniciada, em 1976, por decisão do secretário de Estado David Mourão Ferreira.

Ontem, foi revelado, na comunicação social, que, como resultado dessa inventariação, se constatou que mais de centena e meia dessas obras terão desaparecido, nesse período de cerca de 40 anos.

Faz-me alguma raiva pensar que algumas pessoas, tidas como merecedoras de confiança, a quem foram entregues obras pertencentes ao Estado, destinadas a serem exibidas em lugares sob a sua responsabilidade, por incúria ou por dolo, contribuíram para que esse património tivesse um descaminho.

Algumas dessas pessoas foram negligentes, outros ter-se-ão, muito simplesmente, “abarbatado” com essas obras de arte. Embora saibamos que, para muita dessa gente, a vergonha não será um sentimento muito relevante, acho que mereciam, como “recompensa”, que o seu nome entrasse para um “quadro de desonra” pública, para além da justiça os responsabilizar pela canalhice de que foram responsáveis.

Em 2005, quando cheguei a Brasília, para chefiar a embaixada de Portugal, dei-me conta da existência, nas paredes da residência e da chancelaria, de dezenas de obras de arte de autores portugueses, algumas delas magníficas. Sem o menor encargo para o Estado - repito, sem se ter gastado um tostão, com tudo pago por mecenato - decidi reunir todas essas obras, juntando-as com outras oriundas de coleções particulares em Brasília, e organizámos uma exposição da arte portuguesa existente em Brasília, que foi inaugurada no dia 10 de junho desse ano. A comunidade portuguesa em Brasília pôde então usufruir dessa exposição, sob a curadoria de Karla Osório e a responsabilidade organizativa do então conselheiro cultural e diretor do Instituto Camões na nossa embaixada, Adriano Jordão.

Deixo aqui a imagem do catálogo dessa exposição de 2005, que, em Brasília, funciona, ainda hoje, como uma espécie de inventário das obras que ali são propriedade do Estado português.

Cidade do futuro


O “Expresso” deste fim de semana traz, na Revista, uma reportagem sobre Oslo e o caminho da capital norueguesa para se tornar uma “cidade do futuro” em matéria ambiental, graças às suas políticas favoráveis a soluções de vida sem carbono. 

Por coincidência, passam este mês 40 anos que cheguei a Oslo, para aí trabalhar na nossa embaixada. Fiquei três anos. Tenho saudades? Depende daquilo de que estivermos a falar.

Tenho (claro!) saudades de ter 31 anos, de estar no meu primeiro posto diplomático, de sentir o futuro (fosse ele qual viesse a ser) à minha frente. Tinha (herdado do meu antecessor) um andar com uma bela varanda para Holmenkollen, o monte onde fica a pista de ski e que dá alguma graça à cidade. Foi esse o meu primeiro cenário de Oslo.

Ao longo do ano, a cidade muda, literalmente, da noite para o dia: no inverno entra-se e sai-se do emprego com luz artificial, no verão o sol encandeia às quatro da manhã e conduz-se sem faróis às dez da noite. Anda-se encasacado, de gorro e luvas, por muitos meses e, à menor réstea de sol, os locais sentem necessidade de saltar para a rua (“Os adoradores do sol”, chamou aos nórdicos Fernando Namora, num seu livro. O tema havia também sido tratado por José Gomes Ferreira, que foi vice-cônsul em Kristiansund, há quase um século, no “Tempo escandinavo”). 

O meu trabalho era apenas medianamente interessante (a Noruega não é um posto importante na nossa carreira) e tive sempre uma vida nada fácil em termos de gastos (ontem como hoje, Oslo é “fogo” em matéria de preços). Mas achei alguma graça à experiência, talvez ainda mais por, em seguida, ter ido parar “com os costados” a uma Luanda em guerra civil e com mil privações. 

Oslo era uma cidade que, chegado de Lisboa, eu via como demasiado calma, “uma Estocolmo com dez anos de atraso”, como então alguém por lá me dizia. Tudo fechava muito cedo, havia já um arraigado culto da natureza, que eu nunca me habituei a comungar (verdade seja que não me esforcei rigorosamente nada), um sentido nacional muito forte (anos depois, um fascista nacionalista provocaria por lá um impensável massacre) e um quotidiano marcado por uma esforçada (e quase arrogante) simplicidade espartana. O ski de fundo, as caminhadas pelos bosques, os desportos de natureza (o “orientering” era um vício), a bicicleta, etc - tudo isso fazia parte de um mundo a que eu era 100% alheio. 

Na carreira diplomática há, muitas vezes, uma tendência para nos deixarmos “apanhar” pelas coisas, hábitos e até ideias locais. Nunca fui dessa escola do “go native”: mantive-me sempre uma orgulhosa “ilha” em todos os locais onde vivi - da gastronomia aos lazeres e ao resto dos costumes, “visitando-os” apenas com curiosidade quase etnográfica. E nunca me dei mal com essa independência cultural de vida, confesso. 

Em Oslo, consegui encontrar, em especial em estrangeiros e diplomatas, muitos companheiros de recusa obstinada aos hábitos locais. Íamos nadar para piscinas públicas e, no fim, depois de uma sauna, parávamos numa espécie de lojas de rua com comida (as “gatekyøkken”) onde, em minutos, recuperávamos as calorias perdidas. Pizzas e grandes noitadas, com muita música, contribuíam para compensar passeios de ski onde, para escândalo dos meus amigos noruegueses, eu teimava em levar um pequeno vasilhame metálico com um líquido escocês de apoio. Mas se há coisa que eu, para sempre, aprendi em Oslo foi o prazer no usufruto das longas noites.

Depois de lá viver, voltei algumas vezes, a última das quais por três dias, quando estava em Paris. Fiz então o tradicional circuito dos locais onde vivemos (“aqui havia um loja de móveis, não era?”) e das cada vez menos pessoas que já por lá conhecemos (“lembra-se daquele jantar no palácio em que...”). Acabado que foi o reconhecimento ritual, esgotados os contactos, demos por nós perdidos na Karl Johans gate, sem rigorosamente nada para fazer, sem paciência para mais museus, já sem encontrar graça nas prateleiras do Glassmagasinet, sem jornais a comprar no Narvesen, sem nos passar pela cabeça ir ver cinema ao Saga ou passear pela Vika. Até resistimos a ir a um restaurante português! Não me estou a ver a regressar a Oslo.

Tudo isto dito, devo deixar claro que fiquei com uma grande e eterna simpatia pela Noruega e pelos noruegueses. Gosto de um povo que tem orgulho na sua história e se sente feliz com o estilo da sua vida, para o que a riqueza e o bem-estar que conseguiram criar muito contribui.

O “Expresso” diz-nos que Oslo vai ser a “cidade do futuro”? Para mim, foi a primeira cidade estrangeira do meu passado.

sábado, junho 01, 2019

Jorge Jesus


Há um ano, a saga por que passou o Sporting mostrou a todo o país a personalidade de Jorge Jesus, a sua verticalidade e empenhamento profissional.

A ida de Jorge Jesus para o Brasil, para dirigir o Flamengo, agora anunciada, é um ato de grande coragem. O futebol brasileiro é um mundo muito complexo, polémico e tenso, em que o trabalho de um treinador português não será nunca uma empresa fácil.

Só resta desejar as maiores felicidades a Jorge Jesus.

Barthes


Estávamos em início de 1973, na caserna da Escola Prática de Infantaria. Eu tinha por hábito, depois do encerrar formal das luzes, ficar a ler uns minutos mais, com uma pequena lâmpada elétrica pendurada na cabeceira do beliche, de uma forma que não incomodava ninguém. Numa noite, tinha comigo o "Mythologies", um dos primeiros livros de Roland Barthes, composto por peças publicadas na imprensa francesa, com olhares de uma surpreende imaginação e profundidade sobre temas simples do quotidiano, denunciando mitos da nova cultura de massas.

O texto que estava a ler era o "La nouvelle Citroën", uma análise magistral, escrita ainda nos anos 50, sobre o impacto de uma nova viatura no imaginário francês. Transcrevo apenas esta frase desse texto, para se entender de que se tratava (e, a quem não conhece, recomendo vivamente que leia o livro, claro): “Creio que o automóvel é hoje o equivalente bastante exato das grandes catedrais góticas: quero com isto dizer, uma grande criação de época, consumida na sua imagem, quando não no seu uso, por um povo inteiro que dela se apropria como um objeto particularmente mágico”.

Subitamente, pela noite, um tenente entrou na caserna e abriu as luzes, numa visita rara de inspeção. Como o meu beliche era logo à entrada, e surpreendido com a minha solitária leitura, o oficial estendeu logo a mão para o livro que eu tinha na mão e perguntou: "Ó nosso cadete! Que diabo é que você está a ler, a esta hora?". Esperava, talvez, literatura política, mais ou menos clandestina.

Passei-lhe o livro para as mãos, ainda aberto na página da leitura. "Ah! E em francês!", saiu-lhe, entre o inquiridor e o inquisidor, já esperançoso numa descoberta. "Vamos lá ver então o que é que você estava para aqui a ver, às escondidas". Um segundo depois, tudo mudou. Com um sorriso simpático, sai-lhe: "Citroën?! Você gosta de carros?". Devo ter dito que sim, o que nem sequer era nem nunca foi verdade. "Ora, sim senhor, aqui está uma boa leitura: livros sobre carros! Mas olhe uma coisa, homem: isto de carros franceses não é coisa que se veja. Eu gosto é dos italianos, são mais nervosos. Tenho um Alfa, sabe?". Eu não sabia, nem queria saber.

Ontem à noite, na Feira do Livro, lá estavam as “Mitologias”, na sua versão portuguesa. Apeteceu-me fotografar o livro.

Maduro e a democracia

Ver aqui .