quinta-feira, março 19, 2020

As tertúlias


Estes dias virulentos tiram-me das minhas tertúlias.

É uma verdade que a do Procópio já tinha estioloado quase de vez, desde que o Nuno Brederode Santos a tinha abandonado. Mas, às vezes, ainda passava por lá, para conversa com a Sedonalice e dois ou três resistentes. À da Parreirinha, em que que o número de mulheres sempre suplanta o dos homens, tenho sido mais relapso e, um destes dias, ainda perco lugar cativo à mesa. Aquela que é de longe a mais constante e persistente, a que flutua, hebdomadariamente, entre o Nobre e o Solar dos Duques, depois de ter perdido o poiso no “falecido” Rota das Sedas, com passagens pelo Apuradinho, continuava em grande forma, sempre diplomaticamente organizada pelo grande Zé. A dos Vila-realenses da nossa geração, que mão amiga oriunda da “Bila” assenta, de quando em vez, no Dom Feijão, é talvez a mais irregular e espaçada. A dos primos, de longe a mais bem regada, acontece também “quando o rei faz anos“, andando do Raposo para a Delícia de Moscavide, do “falecido“ Zé do Cozido para o Sé da Guarda, Tasquinha do Lagarto” e outros poisos também estimáveis, como o Gambrinus. A da Ópera, no hotel homónimo, onde as jantaradas são temáticas e os convidados “tenores” da política, tinha andado um tanto parada, mas anunciavam-se novos episódios. A do Antigo Primeiro de Maio, mais esquerdalha, andava nos últimos tempos fulgurante e continuava barulhenta, como de costume, e sempre semanal, depois de anos passados num tal Chiado que afinal era na Baixa, com outras incursões pelo Bairro Alto e Largo do Carmo e um whisky final, em dias de sol, na esplanada da Brasileira. Da do “Grupo Amizade”, sempre na Trattoria, tenho sido pouco assíduo, mas é daquelas onde às vezes há belas charlas e sempre se come a preceito. A dos três Franciscos, mais aperiódica, vagueia do LX Factory para o Café In, do Vela Latina para o Café Lisboa, tendo passado pelo Círculo Eça de Queiroz. A Academia Portuguesa de Gastronomia, a mais exigente em termos das vitualhas e álcoois servidos ao nosso palato, continuava a saltitar entre os locais lisboetas da mais refinada amesendação, cujos nomes prefiro omitir para não escandalizar, com o Grémio Literário como único lugar de regular passagem. Finalmente, a dos divertidos conjurados do 25 de Abril, homens “sem sono“ e hoje também sem farda, luzia, alternadamente, entre uma excelente Messe de uma unidade que não revelo e o Clube Militar Naval, tendo o almoço anual das alheiras como ponto alto.

Com o diabo do vírus por aí, vão-se as conversas, restam, à distância, os amigos. “Saúde e Fraternidade” para eles, como jacobinamente me habituei a dizer.

quarta-feira, março 18, 2020

O discurso

Não fui um crítico da comunicação por Skype que Marcelo Rebelo de Sousa há dias fez e que muitos não apreciaram. Achei que a sua palavra era então necessária, não obstante o seu estado de obrigatório confinamento doméstico. Olhar essa mensagem à luz das condições técnicas utilizadas, sem atentar no seu conteúdo, revela curteza de vistas.

Dito isto, o discurso que fez esta noite foi, numa só palavra, exemplar. Foi a mensagem certa, feita com grande sentido de Estado e, em especial, com imenso sentido de responsabilidade. O país, num momento dramático como o que atravessa, sabe que tem à sua frente um chefe de Estado em plena sintonia com as suas preocupações.

O decreto

Não sou constitucionalista, nem sequer licenciado em Direito. Assim, apenas como cidadão que aprendeu a ler legislação, fico com a sensação de que o diploma hoje aprovado é muito equilibrado, procura garantir a proporcionalidade das medidas e tem todas as salvaguardas necessárias para não ser usado de forma inadequada. Satisfaz-me, em especial, que tenha uma duração muito limitada no tempo e que a sua eventual prorrogação tenha de passar por um procedimento formal idêntico ao hoje utilizado, salvo na convocatória do Conselho de Estado. Mas a minha principal garantia assenta no facto de o país estar na mão de personalidades cujo apego à democracia é incontestável. Finalmente, para os catastrofistas que acham que, com a entrada em vigor deste diploma, “Abril acabou”, gostaria de lembrar que quem viesse a morrer, pelo facto de não terem sido tomadas as medidas, mesmo que compulsórias, consideradas necessárias pelas autoridades de saúde, poderia ter tido, até ao fim da sua vida todos os direitos, liberdades e garantias, mas não teria o direito à vida.

A lei falsa

O “projeto” de decreto presidencial sobre o estado de emergência que anda pelas redes sociais é falso, avisam de Belém e de S. Bento.

A assim ser, não deixa de ser interessante que um qualquer “maduro” se tenha dado a um imenso trabalho de escrita legal... apenas para o mostrar depois aos amigos.

É que, aqui entre nós, aquilo até nem está mal feito...

“Só para ti”

Vou desiludir alguns amigos, mas eu nem abro, quanto mais divulgo, informações ”de fonte limpa” e que “ninguém sabe”. 

Havia um cartaz pelas paredes, no tempo da outra senhora: ”O boato é inconsciência e crime”. Lá por serem ”fachos” eles não deixavam, às vezes, de ser sensatos...

Saída do país

Muitos cidadãos portugueses e estrangeiros que se encontram em Portugal estão bloqueados na fronteira, sem possibilidade de atravessarem a Espanha, de regresso aos países em que vivem na Europa. Percebe-se bem a precaução das autoridades espanholas, com uma situação dramática no seu território. Questiono-me, no entanto, por que razão não se cria um “corredor” (a História está cheia de exemplos), através de estradas determinadas, um percurso obrigatório vigiado pela polícia, com “guias” de apresentação imperativa na fronteira de saída para França. A segurança é um bem essencial, mas os interesses da vida dos cidadãos comuns também têm de ser acautelados.

Sobre o estado de emergência


O Grupo Cruz Vilaça Advogados, um conceituado escritório com reputados e experientes especialistas legais, produziu o seguinte parecer, que julgo interessante divulgar

“O estado de emergência é declarado quando se verifiquem ou ameacem verificar casos de calamidade pública. É menos grave do que o estado de sítio, que vigorou alguns dias no pós-25 de novembro de 1975, e apenas determina a suspensão parcial dos direitos fundamentais. Aplica-se a todo ou a parte do território nacional e tem a duração máxima de 15 dias, prorrogáveis por períodos iguais, mantendo-se as causas determinantes.

Vigora a lei 44/86, de 30 de setembro, nos termos do artigo 19º da Constituição da República, que prevê o estado de sítio e de emergência; este é declarado com os mesmos pressupostos do estado de sítio, embora com menos gravidade, sendo relevante apenas a calamidade pública. A declaração compete ao Presidente da República após audição do governo e autorização da AR. Nos termos do artigo 14º da lei referida, a declaração deve conter todos os elementos relevantes, incluindo fundamentação, duração, direitos, liberdades e garantias suspensas ou restringidas, bem como o grau de reforço dos poderes das autoridades administrativas e do apoio que lhes será dado pelas FA, se for o caso.

À renovação do prazo da declaração aplicam-se os mesmos trâmites, não sucedendo o mesmo quanto à modificação e revogação eventuais, que operam por decreto do PR. A concretizar-se a declaração do estado de emergência, deverão ser claros os limites das restrições às liberdades, direitos e garantias, não criando mais alarme social mas estabelecendo de forma clara as regras a seguir. E lembrando que essas restrições não são plenas e têm em conta o princípio da proporcionalidade.

Os Tribunais continuam a funcionar. O Conselho de defesa nacional mantém-se em reunião permanente. A Procuradora-geral da República e o Provedor de Justiça ficam em funções de forma permanente. Não há limitação à atividade dos partidos e sindicatos. Não acatar a proibição de livre circulação de pessoas ou veículos é crime de desobediência.

Num recente artigo, o constitucionalista Bacelar Gouveia referia as vantagens da declaração do estado de emergência, limitando alguns direitos: “a certeza da extensão da limitação dos nossos direitos pelos poderes públicos, como a aceitação da legitimidade da sua intervenção”.

Mas não é suficiente o estado de alerta em vigor, decretado pelo governo?

A Lei de Bases da Proteção Civil (Lei nº 27/2006 de 3 de julho), determina que a declaração da situação de alerta pode ser feita por presidentes de câmara ou pelas entidades responsáveis da proteção civil; conferem poderes alargados face a “acidente grave e catástrofe”, tendo as decisões e atos legislativos efeitos imediatos. Pode ser declarada face à ocorrência ou iminência de acidentes graves e catástrofes, prevista no artigo 3º da Lei, e visa adotar medidas preventivas ou especiais. A declaração aciona as estruturas de coordenação institucional territorialmente competentes e articula os meios de proteção e socorro adequados. Obriga à colaboração dos meios de comunicação social.

Há na proteção civil dois níveis de declaração face a acidentes ou catástrofes superiores ao de alerta: a situação de contingência e a de calamidade, esta da competência do governo, que pode estabelecer inúmeras medidas como a mobilização civil de pessoas ou o livre acesso dos agentes de proteção civil à propriedade privada. Prevê ainda a possibilidade da requisição temporária de bens ou serviços.

O problema principal é saber até que ponto são legais – leia-se constitucionais - limitações a direitos fundamentais protegidos constitucionalmente com base num princípio de necessidade sem que o instituto que a Constituição prevê para que essas limitações sejam possíveis, isto é, o estado de emergência, esteja em vigor.

Muitos constitucionalistas (e nós próprios) acreditam que não o são e por isso se justifica, nomeadamente para limitar o direito de livre circulação se vier a ser necessário, a declaração do estado de emergência.

António Vieira Monteiro


Quando o assunto eram “contas”, Francisco Pinto Balsemão, que presidia ao Conselho da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, voltava-se sempre para António Vieira Monteiro, CEO do Santander, e perguntava: “E agora, qual é a opinião do nosso ‘ministro das Finanças’ ?”. E esse nosso colega naquele simpático grupo lá dava o seu avisado conselho sobre o andamento dos dinheiros da casa, para a qual, aliás, o seu banco também contribuía com bolsas de estudo.

Era um homem muito rigoroso, num estilo determinado, pouco expansivo, mas com grande simpatia e um fino sentido de humor, que bem usava em alguns momentos. Era também, na opinião de quem disso sabe, um notável profissional, que muito contribuiu para o extraordinário sucesso que o seu banco tem hoje em Portugal.

Acaba de saber-se que António Vieira Monteiro foi hoje mais uma vítima mortal do vírus que, com razão, cada vez mais assusta o país. Os meus sentimentos à sua familia.

Um país feliz


Dizer que somos um país feliz, nos dias que vivemos, parece sem sentido. Mas somos. Somos um país com uma sólida estrutura democrática, com um sistema político, desde há décadas, sem uma única falha institucional grave, com uma separação de poderes que oferece garantias, com uma lisura exemplar nos processos de escrutínio da vontade dos cidadãos. Estamos integrados numa aliançapolítico-económica europeia marcada pelos melhores valores, temos um excelente quadro de inserção externa, não temos ameaças diretas à nossa soberania.

Vivemos então num oásis, é isso que quero dizer? Não, não é. Somos um país pobre, o mais pobre da Europa ocidental, temos uma dívida monstra para pagar, uma economia dependente do menor abalo em escassos setores, com baixa competitividade, alimentamos uma cultura comportamental com laivos “terceiro-mundistas” (não se usando, é a palavra que quero usar), marcada por inúmeros vícios e um modo de estar na vida que, se facilita o dia de hoje, compromete bastante o de amanhã. Por tudo isso, acrise aí instalada vai atingir-nos em cheio.

Mas, mesmo assim, somos um país feliz? Somos. No quadro de uma pandemia de proporções extremas, operamos em estreita ligação com Estados e fontes de conhecimento técnico do melhor que o mundo pode proporcionar, dentro do mar de incertezas em que todos vivem, dispomos de um sistema público de saúde que, por muitas fragilidades que tenha, tem a humanidade de não exigir cartão de crédito à entrada dos hospitais, que é igualitário e justo – repito, à medida dos recursos que são os nossos e não os de países mais ricos do que nós.

Hoje, o presidente da República pode vir a decidir o estado de exceção, dando ao governo e às forças de segurança, sob a sua tutela, poderes acrescidos. Comocidadão, não me custa aceitar que as autoridades democráticas do país possam, nas presentes circunstâncias, vir a adotar medidas excecionais. Sempre com conta, peso e medida, limitadas no tempo e com a sua eventual renovação sujeita a todo o formalismo usado aquando da sua imposição.

Somos um país feliz por termos um parlamento livre, presidido por um homem que lutou toda a sua vida pela liberdade. Por termos um governo chefiado por um dos mais competentes políticos da nossa História recente. Por termos como líder da oposição um homem de bem, com uma exemplar folha cívica. Por termos na chefia do Estado um cidadão com indiscutíveis credenciais democráticas, um patriota, uma pessoa que gosta do seu país como ninguém. Somos um país feliz.

terça-feira, março 17, 2020

As idades da diplomacia

Um jovem diplomata, acabado de chegar a um posto, quase sempre procura conhecer as melhores discotecas e locais de convívio da gente mais nova.

Com os anos, chegado o período intermédio da sua carreira, o tempo de conselheiro, um diplomata tem como interesse coletar a lista dos melhores restaurantes da cidade onde é colocado.

E um embaixador? Chegado ao seu novo posto, que lista procurará estabelecer, em prioridade? A dos melhores médicos locais!

Bolas!

António Costa, na entrevista à SIC, assegurou que o mundo do futebol estava excluído das ajudas públicas. Hoje, a Liga já veio resmungar. 

Era só o que faltava que quem se endivida em milhões para pagar ao seu pé-de-obra viesse a ter um cêntimo que fosse de dinheiro público!

O reino

Só não entendo porque razão não se denuncia mais a filosofia malthusiana seguida até agora pelo governo britânico na questão do vírus, numa atitude de irresponsabilidade quase criminosa.

Cruz Vermelha

Excelente decisão do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, ao colocar-se, por iniciativa própria, na rede de combate ao vírus. Parabéns, Francisco George!

À distância


De manhã pelo Zoom, de tarde pelo Skype, participei hoje em duas videoconferências. Um amigo disse-me estar já a dar aulas, a dezenas de alunos, exclusivamente por este meio.

Creio bem que a presente crise vai potenciar, ainda mais, o hábito dos contactos à distância, com a consequente limitação das viagens de trabalho.

Há três anos, para o livro “Olhar o Mundo”, coordenado por António Mateus, escrevi um texto sobre o futuro da diplomacia, de que agora respigo (gosto desta palavra do antigo jornalismo) o seguinte:

Muito do que se passará no futuro da diplomacia vai ter que ver com uma dimensão que nem uma versão contemporânea de Jules Verne poderá prever com um mínimo de rigor. Refiro-me à evolução da tecnologia das comunicações, ao aperfeiçoamento que cada vez mais se pressente dos mecanismos para colocar em contacto pessoas situadas à distância física, em moldes muito mais eficazes e operacionalmente mais cómodos do que os que hoje existem e que, de certo modo, ainda forçam à execução de penosas e desgastantes deslocações. Se e quando uma tecnologia de contacto à distância vier a ser substancialmente melhorada, o recurso à mediação pelos diplomatas residentes tenderá a diminuir ainda mais e um acentuar da relevância do trabalho direto das capitais pode vir a afirmar-se em seu detrimento.”

Não faço ideia se a diplomacia presencial algum dia acabará de todo, mas que o papel de agente de um “soberano” colocado fisicamente próximo do outro tenderá a esbater-se, disso não tenho a menor dúvida.

Cada um sabe de si

 
Sei que muita gente não gosta de António Costa e do seu governo. Muito em especial, nesta conjuntura, já se percebeu que não apreciam o trabalho da ministra da Saúde e que não “vão à bola” com a cara de Eduardo Cabrita. Por isso, para eles, faça o governo o que fizer, ou fez tarde, ou faz mal ou não vai ser capaz de fazer bem. 

Algumas dessas pessoas vivem numa imensa orfandade política (leia-se: têm saudades de Passos Coelho), porque estão insatisfeitas com as lideranças existentes na sua área, e também porque Marcelo Rebelo de Sousa não lhes traz hoje um mínimo de conforto. 

Tenho porém a perceção de que, em face da crise gravíssima como a que hoje atravessamos, lá no fundo, sem nunca o dizerem, essas pessoas acabam por ter alguma confiança na experiência, no bom senso e na capacidade de António Costa.

Ou passa pela cabeça de alguém que um governo Rio-Chicão estaria melhor dotado para enfrentar os desafios da pandemia em Portugal? Não brinquemos!

Como é óbvio e público, sinto-me muito confortável ao ter, neste momento grave, António Costa como primeiro-ministro. Vou mais longe: nenhuma personalidade política portuguesa me daria mais confiança, no tempo que atravessamos, à frente do governo do meu país. Trabalhei com ele, conheço-o e admiro as suas qualidades. Mas, claro, admito que seja suspeito por essa razão.

Um dia dos anos 80, Giscard d’Estaing disse a François Mitterrand, num debate, que a esquerda não tinha “o monopólio do coração”. E tinha razão: conheço bastante gente de direita com preocupações sociais, com cujas ideias nesse domínio frequentemente me encontro, até porque não vivo a política como se isto fosse uma guerra de trincheiras.

Neste tempo excecional, contudo, em que vai ser necessário estabelecer prioridades, em especial em face da onda de problemas sociais que a crise vai potenciar, ter António Costa à frente do executivo português é uma garantia que eu não trocaria por nada.

Mas, mais do que nunca, nestes momentos, cada um sabe de si.

A sogra


Uma sogra a chegar, de surpresa, pode acontecer a muita gente, até aos diplomatas em posto.

No dia seguinte ao do início da visita da sogra daquele diplomata, iria ter lugar a festa nacional francesa, para o qual ele estava convidado, com a mulher. Mas, nas novas condições, com a senhora em casa, era óbvio que tinha de levá-la àquele que era um dos eventos sociais da temporada diplomática. Antes, porém, era em absoluto necessário avisar os franceses, dados controlos à entrada da festa.

Aquele diplomata, que não era português mas andava lá por perto, “por supuesto”, tinha um nível de conhecimento de línguas um pouco básico, em particular do francês. Foi a sua chamada telefónica para um (indiscreto) colega da embaixada de França que o viria a tornar “popular“.

A frase que ele usou para avisar que ia levar a sogra, tinha uma parte final que ficou nos anais de humor social daquela capital : "J'irais avec ma femme et la mère d'elle"...

segunda-feira, março 16, 2020

Visitas

Sei lá bem porquê, hoje estou a receber no meu blogue quase tantas visitas como num dia em que me meti com um treinador da bola. Embora, desta vez, com comentários mais simpáticos, reconheço...

Boas notícias?


Boas notícias são os belos limões que há pouco tirei do nosso limoeiro - naquilo que, cá por casa, foi considerada a única tarefa que fiz, no jardim, nos últimos sete anos. Não é verdade: lembro-me de ter levado para lá uma cadeira, há uns anos. E de a ter trazido para dentro, depois. É assim que levianamente se arruinam reputações.

Da exceção

Há quatro dias, escrevi aqui isto, a que não retiro uma vírgula:

Sei que não é popular estar a dizer isto, mas gostava de recordar que a solidez de uma democracia se revela pela capacidade das comunidades políticas conseguirem preservar sempre, com firmeza e rigor de princípios, os direitos individuais e coletivos, resistindo aos arbítrios que tendem a surgir nos períodos de exceção e de pânico”.

Dito isto, como cidadão, não me custa aceitar que as autoridades democráticas do nosso país possam, nas presentes circunstâncias, vir a adotar medidas excecionais, mesmo de suspensão de direitos constitucionais. Com conta, peso e medida, limitadas no tempo e com a sua eventual renovação sujeita a todo o formalismo usado aquando da sua imposição.

Sábios em tudo!

Ainda a nação se não refizera da onde da sapiência comum em matéria de aeroportos e aves de arribação, que nos envolveu por semanas, e logo nos caiu em rifa, desta vez infetado pela conjuntura, um batalhão de peritos em saúde pública, experts em epidemias, judiciosos especialistas em controlo de fronteiras, técnicos de abastecimentos, sabedores de máscaras, desinfetantes e coisas correlativas.

A maioria não tem a mais leve qualificação para mandar “bitaites” sobre nenhum dos assuntos, mas isto das redes sociais é como no futebol: todos se acham com valor igual para opinar!

Por aqui, por estas colunas da inimputabilidade teclada, qualquer ignaro se permite rebater, de cátedra, opiniões de técnicos qualificados, sobre “o que devia ter sido feito e não se fez”.

“Ditosa pátria que tais filhos teve”, dizia Camões. Ou, como se diz na minha terra, “Não se enxergam!”

É vida!

Primeira morte em Portugal com o vírus. Outras haverá, infelizmente. É a vida!

Ness dias de Pilatos


Esta obsessão em que andamos com a lavagem das mãos ainda me vai criar aquela irritação de pele que, como sportinguista, costumo ter (já “costumei” mais, confesso...) aí por outubro/novembro, de tanto esfregar as mãos e pensar (dizer já nem digo): “Este ano é que é!”

Minhas senhoras e meus senhores


Será que não há um mínimo de imaginação para, pelo menos uma vez por dia, cada um escrever por aqui sobre outras coisas, além de falar no maldito vírus?

Está um dia lindíssimo de sol! Até as gaivotas sobem à cabeça do Marquês, para verem a paisagem! (Desde que não sejam águias no Marquês, tudo bem!)

Não transformemos isto num muro das lamentações, caramba!

Jogos com fronteiras

Quem, com simplismo, pede o fecho das fronteiras não terá pensado que o abastecimento do país, em coisas essenciais, depende do que diariamente importamos e que não traz consigo o vírus, como é óbvio. Devemos é controlar as principais fronteiras, desincentivando fluxos turísticos.

Nova filosofia de alcova


Não nos deixeis cair em obsessão - é uma das minhas ”orações” preferidas, nos dias pesados que correm. Por isso, não contem comigo, com ou sem vírus, para deixar de olhar a vida pelo lado alegre.

Há dias, escrevia por aqui que, dado o estado de reclusão forçada em que todos estamos, o próximo mês de dezembro é bem capaz de nos trazer um “baby boom”. “É fazer as contas”, como dizia alguém. As televisões, de manhã à noite infetadas pelo vírus, estão “chatas para burro”, como antigamente se dizia, cheias de “enlatados”, pelo que sabe-se lá como alguns acabarão as noites. Mas é evidente que esta hipótese só é válida para a quarentena das quarentonas, ou de idades abaixo. A demografia pátria agradeceria, aliás.

Tinha eu acabado de dizer isto e logo uma amiga surgiu com outra teoria: é capaz é de vir por aí uma onda de divórcios, porque marido e mulher, obrigados a conviver, por muito tempo, em ambiente de tensão e alguma angústia, são capazes de começar a “fazer faísca”. A alguns casais, dizia ela, “já bem basta terem de passar férias juntos, quanto mais umas semanas de quarentena, fechados em casa com a filharada”. Como essa minha amiga é solteira, levo isto à conta da sua imaginação pessimista sobre a bondade essencial do instituto do matrimónio, sobre o qual a minha crença é inabalável - para que conste, em especial cá em casa.

Mas, logo depois, lembrei-me de ter ouvido um dia a uma outra amiga nossa, à mesa do Flore, em Paris, ao aproximar-se a data da reforma do marido, uma frase lapidar: “Para nós, mulheres, a reforma dos maridos é uma coisa terrível: é ter, em casa, o marido em dobro e o salário dele por metade”.

Enfim, fiquemos por aqui, nesta nova “filosofia de alcova”, sem qualquer sadismo...

domingo, março 15, 2020

A reinar


Não sigo as intrigas da corte espanhola, mas o anúncio feito ontem pelo rei, sobre herança do pai e o seu afastamento institucional, num dia em que o país vive numa crise gigantesca de saúde pública, ou tem algo muito sério por detrás, que deve ser explicado, ou é uma “tonteria”.

Ufa!

Isto de não ter nada para fazer obriga um trabalho imenso de imaginação.

Recordar

Ás vezes, quando vejo o grau de exigência sobre os serviços públicos portugueses, comparando-os nas estatísticas com os restantes países europeus, apetece-me lembrar uma verdade desagradável mas muito real: há muitas décadas que somos o país mais pobre da Europa ocidental.

Mendes bem

Marques Mendes a zurzir o negativismo dos críticos azedos que passam o tempo a sublinhar o que corre mal, como se algum país estivesse preparado para responder com eficácia uma situação como esta.

Marta Temido


Nestes dias estouvados, sinto uma grande segurança por ter Marta Temido como ministra da Saúde, assessorada pela DGS, Graça Freitas. O meu sincero agradecimento a ambas.

A tia Juju


A tia Juju morreu há mais de 100 anos. Era irmã do meu avô materno. Não tenho por aqui os canhenhos da família para ver a idade exata com que se foi, mas, pelas fotografias que andam lá por casa, em Vila Real, teria vinte e poucos anos.

Era bonita e solteira. Tinha uma figura esguia, muito elegante, “modiglianiana”, que se vê em imagens de piqueniques de família, sempre com um ar melancólico, numa postura que, em criança, tinha o condão de me irritar, por me parecer um pouco snobe. Não me perguntem porquê, mas sempre achei que a tia Juju devia ter uma voz rouca. Desenhava muito bem. Sou feliz proprietário de dois belos desenhos a carvão, com perspetivas do parque das Pedras Salgadas.

A tia Juju morreu em 1918, com a “pneumónica” ou “gripe espanhola”, como também por cá ficou conhecida. Na minha família materna, o vírus dizimou então cinco pessoas.

Impressionou-me sempre muito a história que se contava na minha família de que o seu caixão saiu da Casa do Pereiro, em Bornes de Aguiar, onde vivia com os irmãos e com a minha bisavó, através da janela do quarto onde morreu. Porquê? Para que a minha bisavó, muito abalada que ainda estava pela morte, precisamente na véspera, de um irmão, não se desse conta de que tinha acabado também de perder, horas depois, aquela que era a sua filha mais querida.

A “pneumónica” infetou 500 milhões em todo o mundo, estimando-se que possa ter vitimado quase 100 milhões de pessoas, sendo considerada a mais mortífera pandemia da história da humanidade. Em Portugal, terão morrido cerca de 120 mil.

As pandemias, nos tempos de hoje, conseguem-se controlar ao final de algum tempo. Até lá, infelizmente para muitos, a sua sorte está a ser a mesma que a minha tia Juju teve na “pneumónica”.

sábado, março 14, 2020

Flagrante


Vamos acabar o dia com um sorriso.

Este episódio é verdadeiro. Os protagonistas são de língua espanhola e muitos conhecem-lhes os nomes. É uma historieta antiga, um clássico das atribulações afetivas da vida diplomática.

Numa determinada capital, o embaixador mantinha uma relação sentimental com a mulher de um seu jovem colaborador.

Um dia, por um desencontro de agendas (acontece aos melhores!), o diplomata entra na sua residência e encontra o chefe em "vias de facto" com a sua esposa.

Ao embaixador, assumindo a fragilidade em que a situação o colocava, preparado, quem sabe?, para um ajuste violento de contas, só lhe ocorre dizer:

- Estou à sua disposição!

O jovem diplomata, com um sentido de avaliação da conjuntura e uma capacidade de reação que prenunciava já uma bela carreira, ter-lhe-á respondido:

- Quero ir para Roma, com promoção.

E foi.

Deixa-os pousar!

A expectável retração nas viagens aéreas nos próximos tempos, fruto da corrente crise, não tardará a surgir na nova contabilidade de quantos acham que a Portela é mais do que suficiente para as exigências do acesso à capital. O imobilismo é um dos lóbis mais poderosos do país.

O nosso retrato

No comportamento que cada um assumir face aos outros, nos momentos mais complexos desta crise, irá emergir o melhor e o pior das pessoas, sendo que a indiferença fará parte deste último.

Palmas

Bela homenagem aos nossos profissionais de saúde: ás 22 horas, em muitas janelas e varandas do meu bairro, como em várias outras partes do país, muitas palmas se ouviram. Bem merecido!

A rentrée

Há pouco mais de uma semana, andava a tentar encontrar uma data disponível, ainda em abril, para “encaixar” um almoço de trabalho. Agora, tenho à minha frente uma ”bela” e “invejável” agenda em branco. Acho que, com algum realismo, vou começar a preparar a “rentrée” de setembro.

Assim não vamos lá...

Não quero dar notas pessimistas, mas ver hoje à tarde o relvado da Alameda Afonso Henriques com centenas de pessoas, juntas no relvado, crianças à solta, jogos de futebol, em registo de “business as usual”, com muitas esplanadas por Lisboa cheias de gente, dá-me uma sensação de inconsciência.

Caro Mário Centeno


Eu sei, caro Mário Centeno, que você merecia, como poucos, poder ir fazer outras coisas, depois do magnífico trabalho que o país muito lhe agradece. Mas, caso ainda lho não tenham dito, fique sabendo que esse mesmo país nunca lhe perdoaria se abandonasse agora o “cacilheiro”!

Imunidades

‪Humor em tempo de vírus. Reação de um diplomata estrangeiro em Lisboa a quem telefonei a saber como andava: “A nós, o que nos vale é a imunidade diplomática!”‬

As mãos


Manuel Alegre tem um poema que, noutros tempos, muitos da minha geração sabíamos de cor.

Era “As Mãos”: “Com mãos se faz a paz, se faz a guerra / com mãos tudo se faz e se desfaz / com mãos se faz o poema - e são de terra / com mãos se faz a guerra - e são a paz”.

Nestes dias em que todos andamos preocupados com as mãos, que colocamos atrás das costas quando um conhecido se aproxima, imprudentemente, para uma “mãozada” das antigas, tenho-me lembrado muito desse texto, que também dizia: “Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra./ Não são de pedras estas casas, mas de mãos. / E estão no fruto e na palavra / as mãos que são o canto e são as armas”. 

Um velho amigo, que se foi afastando de mim, desde há uns anos, por razões, pelos vistos, ideológicas (imaginem!), um homem do Norte que verifico que tem vindo a “adolescer” com a idade no seu crescente radicalismo, mantinha, ao que me lembro, uma velha tese que nunca vi provada mas que sempre apoiei, por um corporativo tropismo regionalista: ”Nós, a malta da Norte, lavamos as mãos com muito mais frequência do que estes tipos do Sul, em especial os de Lisboa”. Assisti a gente a reagir, indignada, a esta teoria. Será verdadeira? Não quero abrir o debate, longe disso! Se ele se instalar nos comentários, “lavo daí as minhas mãos”...

Imagino que esse meu amigo, agora distante, hoje convertido a uma espécie de nacionalismo esquerdista, num regresso às origens onde acalentou “amanhãs” que ele deve achar que não cantaram suficientemente, o que até lhe acidulou a escrita, possa andar agora, como sabão e álcool, a desinfetar os seus dias e as suas mãos, até porque, tal como muitos de nós, “já não vai para novo”.

Como ele também andou por Coimbra, e como o mundo já deu muitas voltas, posso imaginar que, nesta fase da vida, ele goste da poesia de Manuel Alegre, de que aqui deixo as estrofes finais do soneto que acima fui transcrevendo: “E cravam-se no tempo como farpas / as mãos que vês nas coisas transformadas./ Folhas que vão no vento: verdes harpas. / De mãos é cada flor, cada cidade./ Ninguém pode vencer estas espadas:/ nas tuas mãos começa a liberdade.”

sexta-feira, março 13, 2020

“Revolução”


Começo por um “disclaimer”: sou um orgulhoso sócio da Associação 25 de abril e, numa muito modesta medida, também dei “uma mão” a que a Revolução desse dia se fizesse. E, por isso, gosto muito da palavra Revolução, sempre com maiúscula, claro. Ao contrário de muitos amigos meus.

Dei conta, há dias, de que o restaurante da Associação, que se chamava “Com Tradição”, passou a chamar-se “Revolução” e passou a ter uma nova equipa. Infelizmente, em função dos dias que correm, encerrou logo depois de reabrir. Aguardemos, assim, melhores tempos.

No passado, o espaço teve uma existência atribulada, com gerências sucessivas, com uma ”produção” gastronómica errática: já por lá comi bastante mal, já por lá comi razoavelmente, confesso que nunca de lá saí com a sensação de ter comido um repasto de sonho. Mas isso acontece-me em muitos outros locais.

Esta minha nota, porém, não é gastronómica, é semântica ou mesmo toponímica. Com o devido respeito ao meu amigo Vasco Lourenço, verdadeira alma da Associação, quero aqui deixar claro que considero um erro dar a um restaurante, mesmo a este, o nome de ”Revolução”.

O restaurante da Associação 25 de abril é um espaço aberto ao público, não exclusivo para os seus associados. E sendo a palavra Revolução, assuma-se isso ou não, um vocábulo forte e divisivo, conferi-lo a um espaço de restauração ligado ao 25 de abril é, a meu ver, um erro comercial.

As casas comerciais, para terem sucesso, não podem ter a menor conotação política e eu não estou a ver uma pessoa de direita, que detesta o 25 de abril, um “retornado” de África, que vota CDS, dizer para a família: “Esta noite vamos ali ao “Revolução” comer umas pataniscas com arroz de feijão. Parece que estão a servir bem...” Se me disserem que esses clientes não interessam ao restaurante, então já entenderei o que se espera do seu balanço comercial.

Mas isto sou eu a pensar alto! Por mim, quando o “Revolução” reabrir, vou lá almoçar ou jantar, claro. E viva o 25 de abril!

Atenção aos vigaristas!

O acréscimo de despesas determinado pela situação de saúde pública vai sair do “bolso” orçamental dos portugueses e da UE. 

O Estado tem de ser de um rigor extremo no controlo desses gastos, nomeadamente em matéria de ajudas a entidades coletivas ou a pessoas, devendo ser punidos severamente quantos procurem cavalgar oportunisticamente a conjuntura.

O grande mistério

Conhecendo o caráter especioso de algumas teses universitárias, quero crer que já deve estar a aí a preparar-se um estudo aprofundado sobre esse imenso mistério, pelos vistos internacional, que é a prioridade dada ao açambarcamento do papel higiénico.

Automóveis

Esperemos que a EMEL e as empresas similares, por esse país fora, sem prejuízo de preservarem a liberdade de acesso de viaturas e peões, mostrem neste tempos uma flexibilidade sensata.

Eles

Ontem, dia do consenso, ao verem as forças políticas alinhadas, silenciaram-se. O país não perceberia outra coisa e apontaria a dedo a quem se colocasse de fora. Hoje, devagar, devagarinho, como quem não quer a coisa, eles vão aparecer. Estejam atentos.

As outras vítimas

Por que será que, nos dias que correm, tenho já imensa pena dos muitos e simpáticos cidadãos do Nepal, do Sri Lanka ou do Bangladesh, que pagaram o que não tinham para vir aterrar num país de turismo pujante, onde se empregavam precariamente, ganhavam pouco e viviam em condições difíceis?

O poder da natureza

Há qualquer coisa de terrivelmente fascinante na natureza.

Até há cerca de um mês, as dinâmicas à escala global comportavam diversas variáveis, reconhecidamente com um elevado grau de indeterminação. O futuro da relação entre os EUA e a China, a capacidade da União Europeia superar o desafio do Brexit e as crises políticas internas, em especial na França e na Alemanha, o mutante saldo dos equilíbrios no Médio Oriente – eram, e continuam aliás a ser, temas que nos interrogavam. Alguns especulavam sobre a forma de levar algumas décimas ao crescimento débil com que a economia mundial estiolava. Apesar dessa indefinição, já de si muito diferente daquela que moldara a relativa estabilidade de décadas anteriores, esse tempo de ontem já quase nos parece hoje sinónimo de um mundo previsível.

É que, de súbito, uma crise de saúde, de proporções gigantescas, passou a sobredeterminar o nosso quotidiano. Por quanto tempo? Uma economia como a italiana “fechou para obras”, a indústria universal do turismo e a economia da circulação de pessoas estão a sofrer um imenso choque, o qual, aconteça o que acontecer, demorará já muitos meses para recuperar. De um instante para o outro, os orçamentos dos Estados, desenhados para o “business as usual”, passaram a meras curiosidades estimativas do passado. Há que encontrar novos recursos, porventura com acolhimento forte na dívida, para fazer face aos impactos inadiáveis que aí estão à vista.

Um surto de desemprego é já inevitável, os serviços públicos entraram em estado de anormalidade. O nosso dia a dia está fortemente condicionado, escolas fecham, espetáculos são cancelados, adotámos uma “coreografia” defensiva nas relações pessoais, vivemos numa espécie de clima “de guerra”, com a estranha sensação de que os direitos têm de passar para segundo plano, condicionados por aquilo que surge como um imperativo incontornável. Entrámos em visível “estado de exceção”.

Estaremos a exagerar os nossos medos? Pode ser que sim, mas também pode ser que não. Apesar dos “bitaites” com que os especialistas inundam as televisões, é óbvio que ninguém sabe, de ciência certa, por quanto tempo e com que dimensões, a presente crise acabará por marcar a nossa vida. É curioso observar já, em alguns comentários mais despudorados, a fria crueldade da diferenciação dos riscos etários: os mais velhos serão os mais atingidos, como manda a lei da vida, pensam ou dizem alguns, adotando intimamente uma espécie de juízo de justiça terminal.

Aturdidos pelas incógnitas, absorvemos as imagens alheias deste novo “tempo da peste”, com a íntima esperança que tudo não passe de um exagero, que possamos evitar o tal vírus, nós e os nossos. Afinal, pensamos, já houve crises desta natureza no passado – e aqui estamos para contá-las. “Não há-de ser nada”, dirão os otimistas, convencidos de que, com o calor, o vírus sairá de cena. “Isto pode ser o diabo”, resmungarão, por seu turno, os céticos.

Quem se ri, com estas partidas, é a poderosa mãe natureza.

Há cinco anos


O fotógrafo era um nabo e autocritica-se por nunca ter conseguido imagens de jeito. O Google Fotos, há minutos, sem eu lhe ter pedido nada, lembrou-me que a fotografia tem exatamente cinco anos - e quem sou eu para duvidar. Nela se vê que a São Jordão relata uma situação ou conta uma história a que o Nuno Brederode estava a achar graça. Do outro lado da Mesa Dois, ali no Procópio, quem estaria? O António Dias ou o João Durão ou a Margarida Figueiredo ou a Sedona Alice Pinto Coelho ou a Graça Vasconcelos ou o Zé Vera ou o “tio” Vilhena ou o Chico Soares ou a Sara Amâncio ou o Jorge Strecht ou a Suzy ou o Zé Augusto ou sei lá quem mais. O Raul Solnado, esse, de certeza que já lá não estava, nem o Zé Medeiros Ferreira, nem o Kiko Castro Neves, nem, claro, desde há muito, o Zé Cardoso Pires. Pela coreografia da imagem, fico com a certeza de que a Céu Guerra não tinha ainda chegado. E, claro, por ali não tinha chegado também a tristeza.

quinta-feira, março 12, 2020

Quase guerra

Pode parecer uma afirmação exagerada, mas acho que a situação de exceção que atualmente se vive é a mais próxima de um clima “de guerra” que, até hoje, os atuais cidadãos portugueses alguma vez conheceram.

Efeitos da quarentena

Dizem-me que, em dezembro, já não se conseguem vagas na Alfredo da Costa...

Virus & virus

Para os que, no remanso do lar, se entretêm, por estas horas, a usar a internet, convencidos de que assim estão a salvo de maléficos contágios, deixo o aviso: não se esqueçam de atualizar o anti-vírus...

Homework

Estou a ter tantas visitas naquilo que escrevo nas redes sociais que começo a suspeitar que a maioria do país está hoje a fazer o mesmo que eu, isto é, nada!

Bolas

O país aguarda, a todo o momento, que seja anunciado que os comentadores televisivos de futebol vão entrar de estrita quarentena verbal, por cerca de um mês. Há a certeza absoluta de que daí resultaria um imenso ganho na saúde mental da pátria.

Tremores

O “Festival Tremor”, nos Açores, foi cancelado, segundo as notícias. Que raio de humor negro deve existir naquelas ilhas, cheias de sismos, para porem um nome desses a um festival!

A crise belga

“Na Bélgica é que a crise do coronavirus é grave!”, dizia-me um amigo. Estranhei. Desde há vários dias, “blindei-me” quase por completo das notícias sobre o assunto (sei que devo ser caso único, mas eu sou assim), limito-me deliberadamente a um curto “digest” oral da família, não sabia da tal situação na Bélgica. “É que lá davam sempre três beijos!”. Ah!

Os “escritores” da quarentena

A tentação é imensa e altamente perigosa: esta malta, forçadamente em casa, de quarentena voluntária, sem ter nada para fazer, apenas com ilusórios sintomas de “escritor”, é gente para se pôr aí a escrever livros a eito... O que aí virá de ”lançamentos” em outubro e novembro! Até eu já ando com ideias!

Social desintensivo

Esta é uma ocasião única na história “social” portuguesa: as conversas já não acabam com o ritual “... a ver se a gente vai almoçar um destes dias, pá!”

Hoje

Isto está de tal modo imprevisível que já me interroguei intimamente: hoje, cá em casa, janta-se?

Lembrar

Sei que não é popular estar a dizer isto, mas gostava de recordar que a solidez de uma democracia se revela pela capacidade das comunidades políticas conseguirem preservar sempre, com firmeza e rigor de princípios, os direitos individuais e coletivos, resistindo aos arbítrios que tendem a surgir nos períodos de exceção e de pânico.

Modéstia

Tratando-se de um tema que nos afeta a todos, todos temos o direito de ter uma opinião sobre as medidas tomadas na crise de saúde pública. Mas, sejamos modestos: há gente que sabe muito mais do que nós sobre questões técnicas ligadas à saúde e, por isso, aquilo que diz vale bastante mais do que os nossos “bitaites” de cidadãos preocupados.

Sem pena



1980. Fui conduzido através de um longo corredor, de paredes quase imaculadas. Acompanhava-me um guarda, altíssimo, que não disse uma palavra.

À época, na interinidade entre dois embaixadores, tinha a meu cargo a embaixada. Mas, essencialmente, a minha presença por ali era na qualidade de chefe da secção consular da embaixada de Portugal em Oslo. Tratava-se de uma prisão, nos arredores da cidade, onde ia visitar um detido português, que aguardava julgamento. 

Nas semanas anteriores, o caso ganhara destaque em todos os jornais, com evidência particular no popular tablóide “Dagbladet”, que dera ao assunto um imensa visibilidade, na primeira página. O nome de Portugal vinha em todos os títulos. Incomodamente.

Se as razões para alguém estar numa prisão comum são, quase por definição, sempre desagradáveis, as que justificavam o encarceramento daquele homem eram particularmente graves: uma tentativa de violação de uma menina de oito anos. Tratava-se de um tripulante de um barco de passageiros que, creio, fazia a ligação entre Oslo e Copenhaga. 

O presumível violador fora apanhado em flagrante pelos pais da criança e, por muito pouco, havia-se livrado de uma valente sova dos colegas indignados. Mais tarde, viria a saber-se que já tivera atitudes inconvenientes para com outras crianças, sem que, por razões pouco claras, tivesse sofrido consequências criminais ou sequer disciplinares.

Entrei na sala, onde o homem estava sentado a uma mesa. Não se levantou, estendeu-me a mão e parecia invadido pela maior serenidade do mundo. Parecia estar a fazer-me o favor de me “receber”. Devia rondar os 40 anos. Recordo-me de que vestia uma camisa branca, tinha um olhar neutro e frio, um cabelo preto puxado para trás. Não havia pedido assistência consular e fora eu quem, alertado pelas notícias, pedira para ir vê-lo.

Era, aliás, a primeira vez que eu visitava, como responsável consular, um cidadão português detido. Uma certa arrogância que transparecia da sua cara, somada ao caráter repugnante daquilo de que era acusado, transformavam aquela minha diligência num momento bastante penoso. 

Perguntei-lhe se estava bem, se já tinha assistência de um advogado e, ns sequência dessa confirmação, mais para alimentar conversa do que por outra razão, se já tinha alguma ideia sobre a pena que poderia vir a ter. Não respondeu e mudou a conversa, com uma calma que começava a irritar-me. Nem por um instante tentou sugerir que as imputações que sobre ele impendiam eram falsas, ou mesmo exageradas. “O advogado disse-me que há a possibilidade de, dentro de semanas, poder vir a aguardar julgamento em liberdade, porque se metem as férias judiciais e não podem manter-me muito tempo em prisão preventiva”, disse-me, com um ligeiro esgar sorridente. 

Eu não tinha quaisquer informações sobre o processo. A Noruega dispunha um sistema judicial a toda a prova, ele já tinha uma defesa em curso, pelo que não se colocava o problema do Estado português providenciar alguma assistência judicial supletiva. Inquiri, assim, se necessitava de alguma coisa da embaixada. Respondeu-me: “O problema é que não tenho o meu passaporte”. Fiquei surpreendido: “Mas para que é que agora quer o passaporte?”. Num tom impávido: “Se me deixam em liberdade provisória, “piro-me” logo. Atravessar a fronteira para a Suécia é “canja” e o passaporte dava-me jeito depois, para depois chegar a Portugal“.

Pela minha cara, deve ter percebido de que não podia contar com qualquer “cumplicidade”. E, de repente, temeu: “Não vai contar isto aos noruegueses, pois não?”. E ainda tentou: “A embaixada passa-me um novo passaporte?”. Nesse tempo, os passaportes eram feitos à mão, com alguma discricionariedade e facilidade, mas com regras. Para emitir uma segunda via, era necessário que tivesse havido um extravio, comunicado à polícia.

A cena estava a ser demasiado pesada para mim. Ali estava alguém que claramente sabia a gravidade do que tinha feito, que tentava colar-me à sua esperteza. Levantei-me e disse: “Claro que não vou dizer nada desta conversa aos noruegueses. Mas, se quer a minha opinião, acho que eles não o vão soltar. E mesmo que isso acontecesse, eu não lhe ia emitir um segundo passaporte”.

Foi então que, pela primeira vez, mostrou uma expressão facial diferente. Levantou-se também. Era mais baixo do que parecia, quando sentado. Fixou-me com um olhar duro: “Eu tenho os meus direitos!”. 

Por um instante, “passei-me”, reconheço: “A miúda também tinha! O tribunal tratará dos seus direitos. Passe bem!”. Voltei-lhe as costas, bati na porta, o guarda grandalhão abriu e fui-me embora. Não me senti nada bem com a cena. A emoção toldara-me aquela que tinha sido uma das minhas primeiras ações de natureza consular.

Semanas depois, telefonaram-me do tribunal. Tinham recebido uma segunda queixa sobre o homem, um caso similar. Pela conversa, fiquei com a sensação de que houvera ali um certo artificialismo para que um novo tempo de prisão preventiva se iniciasse, evitando a saída do homem da cadeia. 

Poucos meses mais tarde, o tribunal decidiu, num julgamento em que esteve presente um representante da embaixada: uma condenação pesada. Devo confessar que não tive a menor pena “patriótica”.

quarta-feira, março 11, 2020

Cada um no seu papel

Lembrei-me dele ontem, ao ver anunciado que o açambarcamento nas lojas, por uma misteriosa razão, começa sempre pelo papel higiénico. Esse meu amigo, que acumulava essa já de si invejável qualidade com o facto de ser também um sábio, afirmava que “aquilo que verdadeiramente distingue um país é a qualidade do seu papel higiénico. Nunca encontrei nenhum país subdesenvolvido onde houvesse um papel higiénico decente”, sentenciava ele, prenhe de experiência. É claro que, na altura em que ele afirmava essas coisas imensamente sábias, ainda havia países “subdesenvolvidos”; agora só há “países em vias de desenvolvimento”, isto é, a doutrina aponta para que todos os países caminhem no sentido de virem um dia a ter um papel higiénico decente. (Que raio de conversa! E tem este tipo por aqui um blogue com pretensões!)

Adiamento


Os vírus também atacam os lançamento de livros... Lá teremos de encontrar uma nova data para a apresentação do “À Luz do Índico”, de Amélia Vera Jardim, que estava previsto para dia 16 de março. 

Depois avisarei da nova data.

Saudades de Draghi


Aquando da crise financeira, há pouco mais de uma década, o mundo desenvolvido passou a ter a súbita consciência de que todo o poderio que tinha criado uma imensa riqueza e bem-estar, que parecia sustentável com alguma segurança, era, afinal, uma realidade perecível. Em semanas, esfumavam-se fortunas, empresas desapareciam, a falta de postos de trabalho gerava miséria em vários dos seus setores. A engenharia financeira que tinha criado a “bolha” de progresso veio a mostrar-se de uma espantosa fragilidade. As consequências políticas foram óbvias: Trump, AfD na Alemanha, Marine Le Pen, o Brexit, Salvini e o estilhaçar ético-político da União Europeia.

Foi muito curioso constatar que o “clube dos ricos”, orgulhosamente reunido no G7, foi de imediato obrigado a estender a mão ao mundo emergente, situado no patamar imediatamente inferior de riqueza. Nasceu aí o G20, um conjunto muito heterogéneo que acolhia as economias de segunda linha, onde, na realidade, estavam situados os mercados em que assentava o crescimento dos primeiros. Todos nos recordamos daquelas imensas fotos de família, onde Merkel e os seus pares do “primeiro mundo” sorriam para chineses, indianos e brasileiros. Onde é que isso levou? A muito pouco, no final de contas.

Para além da pressão sobre os paraísos fiscais, onde o mundo desenvolvido tenta fazer esquecer que também alimenta “dumpings” que nunca dispensa - do Luxemburgo ao Delaware -, de um relativo esforço de transparência que, afinal, está nos antípodas daquilo que é a matriz do capitalismo especulativo, a “regeneração” pós-crise acabou por ter resultados globais muito parcos.

Nos fóruns onde a regulação económica verdadeiramente se pratica, isto é, nas instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e FMI), o novo “segundo mundo” apenas obteve algumas “migalhas” institucionais, quase sem significado. Para isso, muito contribuiu a circunstância dos “emergentes” terem ido cada um para seu lado, com a China a mudar de “campeonato”, a Rússia a claudicar económica e demograficamente, a Índia a não conseguir ter uma estratégia mínima de afirmação externa e o Brasil a regressar ao seu eterno estatuto de “país do futuro”.

Estamos hoje numa situação idêntica à de 2007/8? Alguma coisa se aprendeu, mas, ao que se sabe, nem a própria UE conseguiu ainda consensualizar medidas sólidas para enfrentar crises muitos sérias. Por estes dias, os efeitos do coronavirus irão pôr à prova a solidez do que aí está. Por que será que tenho saudades de Mario Draghi?

Noutro país

Como eu gostaria de ver, numa declaração conjunta, António Costa, Rui Rio, Francisco Rodrigues dos Santos, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins, expressando a sua comum preocupação pela situação que o coronavirus acarreta para o país e apelando a medidas coletivas de responsabilidade!

terça-feira, março 10, 2020

Greves


Fazer greves, na área da saúde, num tempo destes, é um ato de baixeza moral e de miséria ética corporativa.

Caramulo


Foi na semana passada. Com o estado do tempo, o dia escolhido podia ter sido bem mais feliz, mas era o único que nos dava jeito, já que andávamos por ali. Depois de muito bem tratados no “Três Pipos”, em Tondela, subimos ao Caramulo, zona que uns amigos brasileiros não conheciam. 

Do belo trajeto, acabariam, afinal, por ver muito pouco, porque caía um nevoeiro das arábias, embora eu desconfie que, nas arábias, não há nevoeiros tão “decentes” como aquele que por ali sofremos. O regresso seria mesmo épico: a “menina” da voz do Waze atirou-me, várias vezes, por estradas municipais sinistras, o que a fez ouvir “das boas”. Os qualificativos com que a apodei (as mais das vezes, diga-se, intimamente) justificavam, desta vez com forte razão, o qualificativo penal de “difamação agravada”!

Esta nota, porém, tem como objetivo essencial dar conta, a quem o não saiba, de que existe no Caramulo um excelente museu, com uma muito interessante coleção permanente de pintura, escultura, tapeçaria e outros objetos de arte, que justifica amplamente uma visita (como se diz nos guias verdes da Michelin, que “vaut le détour”). E com um pessoal dedicado e entusiasmado com a tarefa que ali lhe incumbe.

No mesmo edifício, existe ainda um museu do brinquedo (que será feito das peças do museu idêntico que, há poucos anos, ainda existia em Sintra?) e, até daqui a algumas semanas, por ali estará uma imensa e inesperada coleção de cartazes da Segunda Guerra Mundial - dos aliados, dos nazis e até dos japoneses. 

E, claro!, por lá há também o único museu do automóvel do país. Mas o museu do Caramulo - e é isso que quero sublinhar - é muito mais do que o seu museu do automóvel, por que, normal e vulgarmente, é conhecido.

Nos tempos que correm, já não se vai ao Caramulo apanhar “bons ares” no sanatório para curar a “tísica”, a saudosa Pousada é uma triste ruína, mantém-se por lá um hotel que parece já ter tido bem melhores dias. Mas a paisagem do Caramulo (que, desta vez, nos “escapou”) é sempre belíssima e, repito, a terra tem um museu muito interessante. 

“Vá para fora cá dentro!”, como antes proclamava o nosso Turismo. Eu faço isso sempre que posso!

(Deixo a fotografia de um cartaz que estava no museu do Caramulo. Com a “fachalhada” que por aí agora brota, talvez seja uma imagem oportuna!)

segunda-feira, março 09, 2020

Paulatinamente


Leio que o chefe Rui Paula ganhou o prémio do “Chef do Ano” (eles escrevem “chef”, eu escrevo “chefe”) do “Boa Cama Boa Mesa”. Não consegui estar presente na cerimónia, porque a ubiquidade continua a ser uma das qualidades que (ainda) me faltam - e digo isto com assumida modéstia.

Para o celebrar, decidi passar no “Cepa Torta”, em Alijó. O Rui já “largou” aquele negócio há uma década, como me explicou ontem o António, que ali nos serviu um almoço “de truz”. O “Cepa Torta” ficou em excelentes mãos!

Foi lá que o Rui Paula começou e foi onde o conheci, bem antes de ele ter rumado à Folgosa, onde fez o DOC. Depois foi para o Porto, com o DOP, e, finalmente, arribou à Boa Nova, onde, na Casa de Chá, ganhou as esporas estreladas da Guia Michelin. Ah! E, pelo meio, também teve a aventura pernambucana, no “Rui Paula” do Recife, e a escala breve no Terraço do Tivoli. Conheci tudo isso, claro, havendo coisas de que gosto mais e outras de que gostei menos. Mas, em geral, gosto muito do que ele cozinha.

É que, “all in all”, o meu amigo Rui Paula, que ainda arranja tempo para as televisões, é um chefe de mão cheia, com uma atenção única - repito, única - aos produtos locais. 

Um dia, há muitos anos, fui convidado por um amigo para ir jantar ao DOC. O Rui Paula fazia por lá uma estranha refeição de águas, “sem vinhos”! Escrevi então um texto, que agora vou reproduzir aqui, e que o Rui me pediu para incluir num belo livro que teve uma prémio internacional em Paris, numa cerimónia na Comédie Française a que assisti. É que o mundo é muito pequeno! 

Aqui fica o “Águas passadas no DOC”, um artigo (escrito há mais de uma dúzia de anos, ainda numa ortografia do antanho) um pouquito longo, reconheço:


“O entusiasmo com que partira a caminho do DOC foi de tal forma afectado pelo choque da informação recebida que abrandei a velocidade e quase parei o carro. Um jantar no DOC, sem vinho?!



Pois era essa a proposta, nem mais nem menos: uma refeição de degustação, só com águas e total ausência de alcoóis. Confesso que a hipótese de desistir chegou a passar-me pela cabeça e que só o facto de haver um compromisso fixado com antecedência, e não querendo ofender o autor do alvitre – um arquitecto de “primeira água” –, fez com que a minha relutância fosse atenuada.



A imagem que eu mantinha do DOC era muito positiva, pela boa memória de uma visita passada. Críticas lidas ao longo do ano haviam-me alimentado o desejo de regressar e rever a cozinha de Rui Paula, que me diziam estar cada vez mais imaginativa, com uma rara sustentação de qualidade. Mas, tenho de confessar, desse desejo também fazia parte integrante a possibilidade de acompanhar a comida com algum ou alguns dos excelentes Douros que integram a magnífica lista de vinhos que o restaurante sempre apresenta.



O DOC tem uma situação privilegiada, na margem esquerda do Rio Douro, a meio desse percurso mágico que é a sinuosa estrada entre a Régua e o Pinhão, bordejada de vinhas e nomes de quintas, algumas a fazerem-nos recordar rótulos de belas produções vinícolas. O local é magnífico, em dia ameno pode-se utilizar o deck exterior. Dentro, telas de plasma na sala permitem seguir os trabalhos na cozinha, um exercício de transparência que nos aumenta a confiança. Uma área para amenizar a espera foi entretanto criada, com um piano a sugerir interessantes potencialidades e a assegurar que nunca o espaço virá a ser perturbado por uma qualquer “musak” ambiental. E, sobre tudo isso, a certeza de podermos beneficiar de um cenário deslumbrante, no centro de uma paisagem de uma serenidade única.



Tudo bem, tudo isso era verdade, mas a minha perplexidade mantinha-se. A ideia continuava a ser verdadeiramente bizarra: um jantar degustação, sem vinhos, só com águas?! Não sou fundamentalista, não sou um ansioso de vinho, passo imensos dias sem provar uma gota de álcool. Mas no DOC, no coração do Douro, um jantar sem vinho soava-me como que ofensivo a esses “montes pintados” que Araújo Correia nos descreveu.



Foi num misto de perplexidade e curiosidade, com a primeira a superar em muito a segunda, que entrei no restaurante. Ainda lancei, sem sucesso, a ideia de, pelo menos, “abrir” com um gin tónico, como que a criar lastro etílico para sustentar o que aí viria. Fui logo desiludido por vozes suavemente reprovadoras, que me alertaram para os riscos de afectação da pureza gustativa, a qual deveria ser mantida numa espécie de virgindade profiláctica, indispensável ao acolhimento dos gozos que se seguiriam.



E, pronto, lá fomos para a mesa, uma dúzia de convivas, a maioria desconhecidos, uns aparentemente mais convictos das virtualidades do exercício que outros – comigo, francamente, bem ancorado no campo dos últimos.



Tudo começou por um período inicial de carência psicológica, em que um ou outro lá ia recordando a falta do vinho à mesa. A sólida constatação de que o único líquido permitido seria a água provocou então graçolas nervosas, com os mais imaginativos a aventarem o recurso limite a uma “aguardente” ou a uma “água-pé”.



É que, de facto, eram as águas as rainhas da noite. Águas diferentes, umas lisas outras gasosas, umas mais “planas” outras mais “profundas”, algumas algo “agressivas”. Tivemos até o privilégio de provar umas nórdicas de belo design, mais frescas umas que outras. Sempre águas, claro! Apenas uma água era portuguesa e, para mim, totalmente desconhecida.



Durante o repasto, as águas sucediam-se, em copos diferentes, cada uma a acompanhar as (creio!) oito propostas gastronómicas, que não estavam sequer listadas à partida. Um simpático “expert” – reputado conhecedor de vinhos, imaginem! – procurava ajudar-nos a identificar, não apenas a singularidade de cada uma das águas experimentadas (sobre cujas qualidades comparadas alguns dos convivas já ousavam, a medo, “mandar bitaites”), mas igualmente a razão pela qual essa mesma água fora seleccionada para acompanhar tal prato, em função do seu potencial para combinar, por contraste ou complemento, o produto cozinhado.



E foi então que se foi passando essa coisa extraordinária que foi o facto de, sem disso termos real consciência, a ausência do vinho ter deixado praticamente de constituir tema da conversa, muito menos de qualquer angústia. A refeição, regada a águas, ia-se impondo naturalmente, perante o deslumbre dos sentidos, a variedade das escolhas propostas, a riqueza das combinações que nos eram oferecidas.



Duas evidências ficaram claras, na minha perspectiva.



A primeira foi o facto da ausência do vinho nos ter tornado, a todos, muito mais atentos aos sabores do que nos ia sendo apresentado, não nos “distraindo” da essência dos paladares, obrigando a que nos concentrássemos, de forma mais profunda, em cada componente do que nos era sugerido. Por mim, pude constatar que o vinho, em toda a sua imorredoura glória de factor criativo e de qualificador global do gosto, pode ter o “defeito” colateral de nos afastar do esforço de procura de construção/desconstrução do que estamos a saborear, da especificidade de um molho, da ténue diferença gustativa de um vegetal, da “nuance”, quase imperceptível, de um produto sujeito a um tratamento muito sofisticado. Digo isto porque, talvez pela primeira vez desde há muito, consegui descortinar e isolar, combinando-os depois muito melhor, os componentes que o Chefe ia indicando como constituintes das propostas gastronómicas que surgiam.



Quererei dizer, com isto, bem no coração deste nosso Douro, que o vinho passou a ser algo dispensável? Longe disso: o vinho é, cada vez mais, o grande “sublinhador” criativo dos paladares, o provocador de efeitos que se acrescentam aos alimentos e deles consegue extrair novos e decisivos matizes. E tem, além disso, uma importante carga eufórica, que excita as almas e alegra os tempos, particularmente se for de qualidade e se tomado com conta, peso e medida – e, claro, se as garrafas forem abertas com antecedência adequada e se servido à temperatura requerida.



Mas esta interessante experiência teve a virtualidade de nos mostrar que, numa refeição, há mais vida para além do vinho, se bem que a vida e a refeição sejam sempre muito boas com ele à frente.



Uma segunda constatação também se impõe: a virtualidade desta prova, sem o recurso ao complemento do vinho, só teve o sucesso que teve pelo facto de ter sido apoiada na qualidade excepcional de todos os pratos apresentados, que a ausência do álcool permitiu que ganhassem autonomia própria, deixando-os “brilhar” por si mesmos. E foi a circunstância dessa qualidade nunca ter decaído ao longo do jantar, de prato para prato, que conseguiu garantir um apego contínuo e sustentado do nosso paladar àquilo que íamos degustando, sem fazer ressaltar a “saudade” do travo adjectivo do vinho. Com uma refeição banal, por melhores que fossem as águas, tudo não teria passado de uma grande “seca”… E eu, tenho de admitir, fui menos capaz do que outros companheiros desta agradável jornada de ser sensível a algumas características específicas que eram atribuídas e identificadas em cada uma das águas provadas.



Dito isto, vamos ao principal: Rui Paula provou-me definitivamente, nesta memorável noite, que é hoje um dos chefes portugueses com maior criatividade, que consegue aliar a sofisticação de uma cozinha contemporânea de grande nível e excelente apresentação com algumas notas de rodapé gustativo, em que faz orgulhosa questão de trazer-nos à lembrança sabores regionais, na maioria dos casos tipicamente nortenhos, umas vezes de forma subliminar, outras de modo plenamente assumido. Rui Paula consegue assim demonstrar-nos – e entendo que outros deveriam aprender com isso – que o cosmopolitismo sofisticado de uma cozinha não é incompatível com o recurso a citações sensoriais ligadas às raízes geográficas de onde se opera. Pelo contrário, a originalidade do que nos propõe no DOC só ganha com a chamada à mesa desses mesmos elementos.



Num circo, trabalhar sem rede é um risco que enobrece a arte. Num restaurante, ousar um menu sem o recurso ao complemento de vinhos será talvez a prova mais provada de que a grande gastronomia também se constrói na autoconfiança e na certeza de que a qualidade se imporá sempre por si própria. Quando exista no trabalho de um grande Chefe, como é o caso de Rui Paula.



A boa disposição com que saí deste exercício – que, a bem dizer, deveria ter o “mecenato” da Brigada de Trânsito da GNR – leva-me a ecoar a já célebre frase de um velho oficial de Marinha, pouco navegado nas especificidades da gramática, que a nossa História acolheu como uma patética anedota política, quando um dia quis qualificar uma sua qualquer alegria pública: “só tenho um ‘adjectivo’ para expressar o que hoje aqui senti: gostei!”.

Parabéns, concidadãos !