sexta-feira, julho 20, 2018

O papel de D. Zulmira



As minhas primeiras aquisições, na Vila Real da minha infância, foram as revistas, no Albertino dos jornais, vizinho de rua. Todas as semanas, ali ansiava pela chegada do “Cavaleiro Andante” e do “Mundo de Aventuras”. 

Ao longo da vida, as lojas de jornais, tal como as livrarias, exerceram sobre mim uma atração única. Sempre me conheci como um consumidor compulsivo de coisas em papel. Compro imensamente mais do que aquilo que consigo ler, atulho-me (o verbo é forte, mas verdadeiro) de publicações que me seguem, atrasadas na leitura, em sacos de plástico, nas viagens, sobrevivendo, por semanas, até ao dia em que discretos “autos-de-fé” familiares fazem desaparecer essas pilhas de papelada, as quais, como sou avisado quando protesto, já estariam “a criar bicho”. (Há tempos, encontrei uma pasta com recortes “para ler”: tinha artigos do “Diário de Lisboa” e do “Jornal do Fundão”, do início dos anos 70...)

Vem isto a propósito da D. Zulmira, que gere uma loja perto de minha casa e que acaba de nos anunciar que, no final deste mês, vai fechar o seu negócio: venda de jornais e revistas. Ora o papel, por muito que o não queiramos aceitar, está pela hora da morte. Eu próprio, viciado nas folhas e no cheiro da impressão, ando cada vez mais pelo “online”. Embora reconheça que uma das coisas boas e simples da vida é estacionar, com um jornal e uma bica, numa esplanada de Verão, a verdade é que até este excelente JN é por mim quase sempre lido, pela manhã, no écran do iPad em que agora dedilho este artigo.

Parte do admirável mundo velho do papel, que era o mundo da D. Zulmira, está a acabar. O bairro está cada vez mais cheio de velhos, não se vê um jovem com um jornal ou uma revista na mão e os novos vizinhos, que agora nos enchem os passeios de “bonjour” e “au revoir”, não devem ser grandes clientes. Vou sentir a falta de uma leitora dos meus artigos, porque, como acontece com alguns livreiros, a D. Zulmira era muito atenta ao que vendia. Sem surpresas, a nossa última conversa foi sobre o Trump.

As coisas são mesmo assim e a D. Zulmira - cujo nome, como um dia lhe ensinei, significa sublime e brilhante – também vai ter de se adaptar. E como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, talvez valha então a pena, afinal, aproveitar para celebrar esta nova fase da sua vida com um bom vinho. Um destes dias, prometo! vou-lhe oferecer um magnífico verde branco, cruzamento de arinto e loureiro, que acabo de conhecer. A senhora vai gostar. O vinho chama-se Zulmira!

quinta-feira, julho 19, 2018

A SONAE e as empresas familiares

O grupo Sonae anunciou mudanças importantes na sua liderança. Uma filha do fundador, que há pouco desapareceu, vai agora assumir a chefia executiva. Isso acontece, curiosamente, poucos meses de depois de um outro grupo nortenho com forte presença familiar, o grupo Amorim, ter consagrado o papel proeminente da filha do seu também falecido fundador. 

Por razões de envolvimento profissional direto, tenho vindo a atentar de perto, nos últimos anos, para a especificidade das empresas de base familiar. À primeira vista, as questões que se colocam a esses grupos não serão muito diferentes das de outras grandes empresas - e também conheço alguma coisa dessa outra realidade. Mas, de facto, não é assim. Há um conjunto de dimensões muito particulares que são próprias das entidades de base familiar, em matéria de desafios de gestão, o que, aliás, justifica, desde há muito, a existência, em algumas universidades internacionais, de modelos de estudo dessa complexa realidade, que também já deu origem a variada literatura especializada. Precisamente porque cada caso é um caso, os grupos familiares somam às questões tradicionais de “governance” e de gestão a necessidade de refletir a especificidade da composição familiar nesse mesmo processo. E é muito evidente que o sucesso dos grupos depende bastante da sabedoria de muitas das decisões tomadas no quadro dos equilíbrios da família detentora do capital.

Algumas das atuais grandes empresas portuguesas têm uma base familiar. Há dias, li uma biografia de José Manuel de Melo através da qual é traçado o retrato de um grupo de base familiar que, como alguns outros, atravessou complexos tempos da nossa história contemporânea. Outros surgiram, em décadas mais recentes, e constituem hoje uma parte muito importante do tecido económico nacional, que o mesmo é dizer do emprego e da criação da riqueza.

Ao iniciar a escrita deste post, aqui nas redes sociais, dei comigo a pensar que este seria talvez o lugar mais inadequado para deixar uma nota serena sobre a realidade específica que procurei destacar. Ao mesmo tempo, achei que seria um bom teste: veremos como se comporta alguma pulsão para o radicalismo e para a demagogia, para a expressão da inveja e para o insulto fácil, para a personalização diabolizada, que a simples menção dos grandes grupos económicos, e das personalidades que os titulam, regularmente convocam.

CPLP em tempo de esperança



Ao longo dos anos, tenho vindo a alimentar um forte ceticismo sobre a eficácia do funcionamento da CPLP. Não obstante reconhecer que, em alguns setores específicos, a organização deu já alguns passos importantes traduzidos na criação de modelos de cooperação entre os seus Estados membros, devo dizer que não tenho encontrado motivos para ser muito otimista quanto à capacidade da CPLP conseguir dar um salto em frente, em especial para se projetar internacionalmente como um valor acrescentado significativo às diplomacias nacionais que a integram. Há meses, na Sociedade de Geografia de Lisboa, numa palestra que fui convidado a fazer sobre o tema, deixei um conjunto de razões que, a meu ver, continuam a entravar o desenvolvimento da CPLP, mais de duas décadas decorridas sobre a sua criação.

Por essa razão, foi-me muito grato constatar que a recente cimeira da CPLP em Cabo Verde pareceu ter dado um impulso muito interessante à organização. A forte e rara presença política nos trabalhos, a assunção da presidência rotativa por parte de uma Angola num novo tempo (com a saudável retirada da candidatura da Guiné-Equatorial, um país cujo regime continua a envergonhar a organização) e a assunção de funções do novo secretário-executivo trazem uma justificada esperança.

Francisco Ribeiro Teles (na foto), o novo secretário-executivo, nesta que é a primeira vez que Portugal ocupa esse posto, é um dos melhores diplomatas das Necessidades, tendo a riquíssima e única experiência de ter sido, sucessivamente, embaixador em Cabo Verde, em Angola e no Brasil - três postos que desempenhou com grande eficácia e brilho. É o homem certo no lugar certo e o nosso país não podia ter encontrado alguém com maior qualificação diplomática para tentar dar um novo impulso à CPLP. Assim possa contar com os meios necessários e com a disponibilidade dos Estados em cujo pleno empenhamento reside a chave para o êxito do seu trabalho.

quarta-feira, julho 18, 2018

Sporting, de novo...

Acabou o Mundial. O Ronaldo já está na Juventus. Não há muitas novidades do Jesus das Arábias. A pré-época parecia estiolar. E pronto ! Aí está de novo a novela Sporting. O ex-presidente quer voltar. O presidente da AG não o deixa candidatar-se. Não liguei a televisão, mas imagino que vamos ter “sumo” para várias noites de comentadores. Isto é tudo um pouco triste, não acham?

Aos juristas meus amigos...


... deixo uma fotografia do causídico - e seu ilustre colega - selecionado para seu defensor por alguns cavalheiros dos “Hell Angels”, um grupo de pacíficos cultores do motociclismo, a quem uma justiça precipitada ousou atribuir implausíveis motivações delituosas, as quais, estou mais do que certo, figuras como a que a imagem documenta, dotadas de um arsenal argumentativo feito de uma elegância jurídica que pede meças aos “barras” da barra, irão desconstruir e rebater, com o poder da palavra, ajudada pelo perfil de fino recorte de advogado - uma imagem que devia fazer parte das capas dos manuais da profissão ou, no mínimo, dos cartazes de publicidade da universidade que o formou.

Manoel Caetano


Só hoje dei conta de que morreu Manoel Caetano, o antigo locutor da RTP.

Desde há uns anos, Manoel Caetano, que nunca conheci pessoalmente, era meu "amigo" aqui no Facebook. Trocámos mesmo algumas mensagens, comentando a atualidade. Manoel (com "o") Caetano era meio irmão de Marcelo Caetano e creio que isso não deixou de ter (más) consequências no seu futuro na (então única) televisão, após a Revolução.

Recordo muito bem a sua voz timbrada, soletrando as palavras com ênfase e uma certa pompa, ao jeito de um estilo de locução desse tempo.

Manoel Caetano fazia parte de um Portugal que já se foi. Um dia, aqueles que hoje são populares nas nossas televisões terão o mesmo destino de Manoel Caetano e, em algum lugar, alguém notará então que o respetivo estilo passou a estar datado e completamente "démodé". É a vida...

Deixo aqui uma sincera nota de simpatia para Manoel Caetano, uma figura que faz parte do meu passado, quando telespetador tinha um "c".*


(*os detratores do Acordo Ortográfico não têm nada que agradecer-me o pretexto que aqui lhes dou para se afastarem do tema deste post, como é do seu endémico tropismo para a polémica)

"Bandido" de ideias...


Li há dias que alguns presos de delito comum brasileiros qualificavam como “bandidos de ideias” os presos políticos com que, por vezes, coexistiam em certas cadeias, nos tempos da ditadura militar. Lembrei-me desta, afinal bela, expressão ao ler “As Cartas de Prisão de Nelson Mandela”, que agora a Porto Editora decidiu publicar. Eram as ideias, e a luta pela liberdade em afirmá-las e pelo direito de as levar democraticamente à prática, que o “apartheid” sul-africano lhe negava.

Ao longo dos anos, aprendi bastante sobre Mandela, desde a sua biografia até ao muito que sobre ele se escreveu, desde os anos de prisioneiro do “apartheid” até à sua dimensão como estadista. As 751 páginas destas suas cartas, se não me trouxeram grandes surpresas, ajudaram-me contudo a recortar, de um modo muito mais fino, o perfil psicológico de um homem muito raro, simples e complexo ao mesmo tempo.

É muito difícil, para quem lê a epistolografia de que foi autor durante os seus 28 anos consecutivos de prisão, desligarmo-nos do que Mandela acabaria por ser já em liberdade, do seu generoso papel na reconciliação nacional sul-africana, da sua conduta como líder democrático de um país que conseguiu resgatar de um dos mais abjetos regimes à face da terra.

Mas esse esforço de distanciação tem de ser feito: estas cartas, salvo talvez as últimas, já marcadas por uma libertação no horizonte plausível, representam mais de duas décadas de vida de uma figura condenada à prisão perpétua, a quem só a esperança podia servir de arma de resistência perante a opressão, quase limite, a que estava sujeita. É assim forçoso que nos coloquemos na perspetiva de quem viveu o ambiente concentracionário de Robben Island e de Pollsmoor, sujeito a constantes provocações, isolado da família e dos amigos, tendo apenas alguns companheiros de luta e infortúnio a seu lado.

É esse Mandela que está nestas cartas e é sobre alguns traços notáveis que delas ressaltam que gostaria de deixar algumas impressõDesde logo, o “recorte” que ele faz da sua própria situação, como prisioneiro político, perante um poder que considera e sempre afirma como ilegítimo. Ele assume naqueles textos uma permanente e nunca vacilante atitude de firmeza, de respeito por si próprio como ser humano e dirigente político, agindo sempre sem esquecer que estava ali como representante da dignidade de um povo que lhe não perdoaria a fragilização ou um qualquer compromisso perante o essencial. Jurista, tributário de uma cultura onde há muito da tradição legal britânica, Mandela mantém um registo frio no relacionamento com as autoridades que o privam da liberdade e que regularmente o procuram humilhar, exigindo-lhes em permanência o cumprimento dos direitos que a ditadura do “apartheid” não podia deixar de apresentar como face formal da sua ordem constitucional. E é muito interessante observar que essa reivindicação se torna ainda mais determinada e rigorosa à medida que se pressente que a consistência do regime, sob pressão de sanções e do crescente coro internacional de críticas, o ia forçando a conceder aberturas e a procurar estender “pontes”. É nesse tempo que Mandela se revela como uma grande personalidade política, não mostrando “pressa” em ser libertado, usando o embaraço que para o Estado sul-africano significava a sua manutenção na cadeia como hábil um instrumento negocial.

Ainda no plano da política, estas cartas revelam-nos a ideologia nacionalista subjacente à revolta dos sul-africanos negros, inicialmente muito tributária do exemplo da Índia, do papel de Nehru e de Gandhi, mas igualmente da onda de autodeterminação que varria a África. Muito curiosas – e que devem ser contextualizadas nesse tempo pós-Bandung – são as propostas políticas em que Mandela assenta o seu programa básico, uma espécie de socialismo nacionalista, com afastamento do marxismo caricatural, de onde já estão ausentes quaisquer pulsões autoritárias. Essa era também a forma que Mandela encontrava para negar a sua dependência do comunismo, com cujos seguidores não rejeita alianças, mas de cuja direção política se não considera refém. A política, em termos de projeto, era, para Mandela, um modelo de contraponto ao mundo do “apartheid” e isso significava a liberdade e o respeito por todas as ideologias que coubessem num processo democrático. A prática de Mandela viria a revelar-se consentânea com a teoria.

Mandela é profundamente africano. O respeito pela herança cultural dos antepassados, o orgulho pela história do seu povo, a veneração pelos “mais velhos” e a sua reverência às estruturas hierárquicas tradicionais, o seu quase obsessivo tratamento dos rituais em torno da morte, o sentido profundo de comunidade e o sublinhar da importância dos laços de família, estão permanentemente presentes nas suas cartas. Delas transparece um equilíbrio entre a tradição e a modernidade, como se o próprio Mandela considerasse ser uma espécie de fator de ligação entre um passado de luta contra o colonialismo e o presente de então em que era preciso levar à prática uma derradeira luta de libertação contra uma opressão de novo tipo. Porém, Mandela relativiza sempre o seu papel, dilui-se constantemente no grupo e até, a espaços, se autocritica por ter de se ocupar demasiado de si próprio.

Uma última palavra para os sentimentos. Alguém, melhor do que eu, poderá fazer uma exegese mais elaborada sobre a evolução das suas cartas para Winnie, desde tempos apaixonados em que a escrita é quase que apenas limitada pelo pudor, até a uma subtil transformação numa “fraternidade” justificada pela partilha progressiva do destino na luta política. Mas Mandela é de um carinho sem limites para os filhos e para os amigos, com uma atenção angustiada aos seus problemas, limitada apenas pela impotência da sua própria situação. O permanente conselho para o investimento na educação, como fator libertador, mas também na responsabilidade dentro do quadro das relações familiares, mostram uma figura humana muito fora do comum, num mundo político onde, frequentemente, as personalidades de topo são absorvidas pela luta. Ironicamente, talvez a prisão, o isolamento, porque não a saudade, tenham afinal contribuído para a construção desta fantástica figura da História universal. E talvez estas cartas, lidas agora, nos ajudem a perceber melhor a razão por que a todos nos parece natural devermos uma homenagem permanente a Nelson Mandela.

Uma dúvida


Não sou um tudólogo, não sei falar de tudo, longe disso! Nos jornais onde escrevo, regular ou ocasionalmente, pronuncio-me apenas sobre aquilo de que julgo saber alguma coisa e que acho que pode interessar a quem me lê, mas nunca afirmo que é sobre aquilo que sei - isso só os outros poderão avaliar. Aqui, pelas redes sociais, que é um terreno lúdico de “irresponsabilidade ilimitada”, permito-me muitas vezes ir um pouco mais longe e dar a minha opinião, ou emitir impressões, sobre temas do quotidiano que não fazem parte das áreas de conhecimento em que posso ter alguma autoridade. Não levo estes espaços de espontaneísmo de escrita demasiado a sério...

Este “disclaimer” vem a propósito da perplexidade que nunca consegui resolver e para a qual ninguém me forneceu jamais uma resposta satisfatória: por que razão, pelo menos aos olhos do cidadão comum, os currículos do ensino estão sempre a mudar? Desde há décadas que, ciclicamente, os governos que chegam se permitem a liberdade de mudar esses modelos pedagógicos, de alterar aquilo que é ensinado, criando uma permanente instabilidade no setor. É mesmo necessária esta agitação? Não seria possível “parar” por algum tempo? Há razões de fundo que justifiquem esta espécie de experimentalismo recorrente, que afeta, seguramente, alunos e professores? 

Como não sei, pergunto.

terça-feira, julho 17, 2018

João Semedo


Há quatro anos, João Semedo, à época co-lider do Bloco de Esquerda com Catarina Martins, sondou a minha disponibilidade para estar presente na "universidade de verão" do seu partido, para falar sobre a situação na Europa. 

Declinei esse amável convite, por duas razões: não estaria em Portugal nessa altura e, mesmo que estivesse, mantinha com o BE, desde a votação do PEC IV, em 2011, uma divergência política insanável, que inviabilizaria a minha presença, como na ocasião lhe expliquei. 

Na nossa troca de mensagens, confirmei a grande dignidade de João Semedo e o seu modo urbano e sereno de estar na política. Voltámos a encontrar-nos, meses mais tarde, no almoço dos 90 anos de Mário Soares.

João Semedo teve entretanto um grave problema de saúde, que o obrigou a afastar-se da liderança do Bloco. Agora, a doença fez o seu caminho.

Quero deixar aqui uma nota de pesar pela desaparição de João Semedo, uma figura que me merece um grande respeito, com um passado feito de fortes convicções.

A finlandização de Trump



”Better than super”, segundo o “New Yorker”, terá sido a expressão utilizada por Sergey Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros russo a uma agência noticiosa daquele país, para qualificar o modo como correu, na perspetiva da Rússia, a cimeira entre Putin e Trump. 

De facto, melhor era impossível. Foi como se o “script” daquela inacreditável conferência de imprensa tivesse sido escrito em Moscovo. O modo como mesmo os meios mais conservadores da América estão a reagir é a prova de que algo descarrilou.

Trump parece ter sido vítima de uma espécie de “finlandização”, essa “neutralidade colaborante” que continua a ser um ferrete histórico na memória do país que acolheu o encontro dos dois líderes. Ao colocar a credibilidade das instituições do país que governa ao nível das garantias de um país estrangeiro contra o qual partilha sanções e cujas ações no plano internacional oficialmente condena, o presidente americano, como se dizia há pouco num outro site americano, ou é um inocente útil ou um instrumento consciente a favor da Rússia ou ambas as coisas ao mesmo tempo.

Tempos curiosos, estes. E perigosos, claro. 

segunda-feira, julho 16, 2018

A ilusão dos poetas

Na quinta-feira passada, no jardim de uma embaixada em Lisboa, onde o pretexto da reunião era a homenagem a um político poeta - ou vice-versa -, eu referi a “Balada da Neve”, do Augusto Gil, já nem sei bem a que propósito. 

Nesse instante, passou por nós aquele que é, indubitavelmente, um dos maiores poetas portugueses contemporâneos, Nuno Júdice, a quem eu comentei: “Estou a falar de um ‘colega’ teu, o Augusto Gil!”

Para minha surpresa, o Nuno retorquiu: “Bem me enganou, esse Augusto Gil!” Não tendo sido contemporâneos (o Nuno nasceu precisamente vinte anos após a morte de Gil), ficámos à espera da explicação. 

E ela veio: “Eu nasci no Algarve, onde não nevava. Pela “Balada da Neve” aprendi que a neve “bate leve, levemente”, fazendo barulho. Até que um dia, já adulto, assisti à neve a cair e, como toda a gente, constatei que não há nada de mais silencioso do que um nevão”.

Afinal, os poetas também se enganam uns aos outros...

À dúzia é mais barato...


  • Estou a ficar velho: depois de um belo fim de semana com amigos, comidas, copos e muita conversa, sinto-me cansado e a ansiar por férias com amigos, comidas, copos e muita conversa.
  • Estou a ficar velho: dez anos depois de o ter iniciado, ainda teimo em escrever todos os dias este meu blogue.
  • Estou a ficar velho: cada vez recuso mais convites para ir falar às televisões.
  • Estou a ficar velho: sinto-me cada vez mais Sportinguista - quer ganhe, perca, empate ou desça de divisão.
  • Estou a ficar velho: deixei definitivamente de ir a restaurantes em que não fazem reservas.
  • Estou a ficar velho: gosto de me sentar a ler um jornal em papel numa esplanada, com uma cerveja e tremoços.
  • Estou a ficar velho: gosto de ver mulheres bonitas nas imagens televisivas dos estádios de futebol.
  • Estou a ficar velho: gosto imenso de ver as cegonhas nos postes da REN.
  • Estou a ficar velho: um hotel onde demoram mais de cinco minutos para fazer o “check-in” passa a “no-go area” na minha lista de afinidades eletivas.
  • Estou a ficar velho: um restaurante em que fiz reserva e em que a minha mesa demora a estar preparada mais de cinco minutos (vá lá!, sete, se me apetece muito lá comer) desce rapidamente na minha lista íntima de preferências.
  • Estou a ficar velho: dei uma volta de carro a um quarteirão só para não perder a oportunidade de fotografar um jacarandá.
  • Estou a ficar velho: já não tenho muita pachorra para conduzir por horas mas tenho imenso prazer em ir ao lado a ler jornais & net, mandar bitaites sobre a condução alheia e ser “managing director” (1) da temperatura do carro, (2) da seleção da música e (3) dos lugares onde se deve parar.

domingo, julho 15, 2018

O sabor da vitória

Não sou francês: mas hoje deve ser muito agradável ser cidadão de um país que, sendo vitorioso à escala do mundo, tem contra si a inveja de boa parte desse mesmo mundo.

Croácia (2)


Aqui fica mais uma memória da Croácia, a horas da final do Mundial com a França.

A Croácia declarou a sua independência em Junho de 1991, no quadro de um complexo processo que levou à divisão da antiga Jugoslávia. Terríveis atos de guerra e tensões étnicas abalaram então a região balcânica, onde hoje, para além da Croácia, figuram, com estatuto de Estados independentes, a Eslovénia, a Bósnia-Herzegovina, a (antiga República jugoslava da) Macedónia, a Sérvia, Montenegro e o Kosovo.

Deve dizer-se que o objetivo croata estava longe de fazer a unanimidade europeia. O regime político do Estado dirigido por Franjo Tudjman era alvo de fortes críticas em matéria de respeito pelos direitos humanos e pelas regras da Convenção de Genève, durante a guerra inter-jugoslava. Além disso, na memória histórica coletiva, subsistia, em muitos países europeus, um forte ressentimento contra os croatas, por virtude da ligação que o "Estado livre" dirigido pelos "oustachis" pró-nazis de Ante Pavelic havia tido com Hitler, durante a segunda guerra mundial. 

A Alemanha, em especial o seu MNE Hans-Dietrich Genscher, foi manifestamente o país mais aberto ao reconhecimento da independência croata por parte das instituições europeias, que só viria a ter lugar em 15 de janeiro de 1992 - precisamente num período em que Portugal detinha a presidência da União Europeia. Recordo a minha quase solidão, como diplomata que representava a presidência das Comunidades Europeias (só em fevereiro desse ano seria assinado o tratado de Maastricht, que criou a "União Europeia"), no cocktail oferecido pelos croatas em Londres, ao final desse dia. A independência da Croácia, se bem que aceite, estava longe de ser saudada com entusiasmo pela generalidade dos países europeus.

A exemplo do que, com frequência, acontece com Estados em busca de reconhecimento, os croatas haviam desenvolvido, a partir de 1991, um pouco por todo o mundo, uma diplomacia pública de convicção, tentando fazer perceber as razões que justificavam a sua autonomização como entidade independente, sucessora do anterior Estado federado existente dentro da Jugoslávia. 

Nesse sentido, a nossa embaixada em Londres havia sido visitada, com alguma regularidade, por um médico croata, com nacionalidade inglesa, que informalmente representava os interesses de Zagreb em Londres. Chamava-se Drago Stambuk, era um poeta com vasta obra publicada e aparecia como regular portador, não apenas da argumentação das suas autoridades em favor do processo de independência, mas igualmente de razões contra as acusações de que o seu regime era alvo (e que infelizmente vieram a ser comprovadas) sobre as derivas autoritárias do governo Tudjman, nomeadamente o terrível tratamento dado aos sérvios residentes na zona croata da Krajina. 

Sem nunca lhe esconder as dúvidas que na Europa comunitária se alimentavam sobre os métodos do regime de Franjo Tudjman (e que, a título pessoal, partilhava em pleno), mantive sempre com Drago Stambuck uma excelente relação pessoal, que se transformou mesmo em amizade.

Um dia, após o anúncio reconhecimento da independência do seu país pelo Reino Unido, Drago Stambuk telefonou-me: tinha sido encarregado de abrir a embaixada croata em Londres. Não podia ser embaixador, porque tinha nacionalidade britânica, mas teria a responsabilidade prática de preparar toda a estrutura de representação croata em Londres. Como não sabia como proceder, "por onde começar", pediu a minha ajuda. Recordo longas conversas, em minha casa e em "pubs", durante as quais "desenhámos" a estrutura da primeira embaixada croata do Reino Unido. Nesses contactos, dei-lhe conta das formas de proceder face às autoridades locais, de "quem era quem" no Foreign Office, do modo de feitura das "notas verbais" e da preparação de outra documentação que faz parte da liturgia diplomática bilateral. Creio mesmo ter-lhe oferecido um exemplar da "bíblia" anglo-saxónica da profissão diplomática, o "Satow's guide to diplomatic practice". Guardei sempre na memória essa minha contribuição para a montagem da primeira embaixada croata em Londres.

Folguedo de Cima


Vista parcial do panorama que se observa do solar junto do celebrado miradouro de Folguedo de Cima, nos arredores da aldeia de Mangalhona, histórica localidade (vulgarmente conhecida por outra designação) da zona raiana. Ao longe, o país vizinho. 

sábado, julho 14, 2018

Croácia


A Croácia disputa amanhã com a França a final do Mundial de futebol. Nos últimos dias tenho observado que muitos dos apoiantes da França acabam por sê-lo apenas como forma de se oporem politicamente à Croácia. A sua história durante a Segunda Guerra mundial, bem como o comportamento do novo país durante o conflito jugoslavo, criaram fortes anti-corpos à Croácia em vários setores “com memória”. E o futebol não escapa a estas polarizações.

Vou recordar uma historieta, que talvez venha a propósito.

O escritor Álvaro Guerra foi um dos escassos embaixadores oriundos do mundo fora da carreira diplomática por quem o Ministério dos Negócios Estrangeiros sempre manifestou genuíno respeito. A história que hoje relato passou-se em 1996, ao tempo em que ele era nosso representante junto do Conselho da Europa (CdE).

Numa tarde em Estrasburgo, senti o Álvaro um pouco embaraçado, durante a conversa que comigo teve, no caminho entre o aeroporto e hotel. Eu representaria Portugal, no dia seguinte, no Comité de Ministros do CdE, nesse que era o meu primeiro ano no governo. Notei que estava mais lacónico do que era costume e, uma hora depois, ao deixar-me à porta da residência do secretário-geral da organização, onde os membros dos governos tinham um ritual jantar, surpreendeu-me com a frase: "Logo à noite, espero-o no hotel. Precisava de falar consigo".

Fiquei intrigado. Eu tinha uma excelente relação pessoal com Álvaro Guerra, uma figura da intelectualidade portuguesa que conheci logo após o 25 de abril, cujo humor e simpatia, depois complementados pela vivacidade inteligente da Helena, sua mulher, transformavam as minhas idas a Estrasburgo em belos momentos de amena cavaqueira, onde a política portuguesa era sempre percorrida com apurada ironia. E grande cumplicidade. Que quereria o Álvaro? Um novo posto? Ele estava há pouco tempo no CdE, pelo que talvez me quisesse sensibilizar para algum problema de pessoal. Logo se veria.

Os jantares em casa do secretário-geral do CdE, que tinham lugar todos os seis meses, eram sempre precedidos de uma conversa "au coin du feu", com um convidado. Nessa noite, entrei na sala lado o lado com o ministro croata dos Negócios Estrangeiros, Mate Granic, e, por um acaso, sentámo-nos um em frente ao outro, nos dois melhores sofás individuais da sala.

(Nos cinco anos seguintes, eu e Granic, quase sem exceção, duas vezes por ano, tornar-nos-íamos "proprietários" desse lugares, que passaram a ser "cativos", na invariável coreografia com que o SG Daniel Tarschys e, mais tarde, Walter Schwimmer dispunham a sala. Caprichávamos em não perder esses "nossos" sofás, cujo conforto nos permitia resistir melhor às "secas" que alguns convidados nos pregavam. E gozávamos com isso.)

Eu conhecera Granic, meses antes, em Zagreb. No quadro de um discreto (diria mesmo, secreto) périplo que havia feito à volta da Europa, acordara com ele uma troca de apoios: a Croácia votaria favoravelmente a nossa candidatura a membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas e nós dar-lhe-íamos o nosso voto para a sua pretensão de entrar para o CdE.

Diga-se que esta última candidatura estava longe de ser consensual: o regime croata mantinha ainda falhas no tocante à observância de alguns princípios da ordem jurídica protegida pelo CdE e, por essa razão, alguns Estados membros mantinham reservas quanto a esta adesão. Por "realpolitik" e particular interesse nacional, mas igualmente pelo facto de considerarmos que uma integração da Croácia no CdE era a melhor forma de promover a observância de tais obrigações, o governo português havia optado por dar o seu apoio à pretensão croata, contrariando abertamente a posição que era defendida pela missão portuguesa em Estrasburgo, chefiada por Álvaro Guerra. No dia seguinte a esse jantar, a anteceder a reunião do Comité de Ministros, teria lugar a "foto de família", com os membros do governo e os embaixadores, que consagraria a entrada da Croácia na organização.

Regressei ao hotel e, no "hall", estava já o Álvaro Guerra. Sentámo-nos para uma bebida no bar e ele revelou-me a razão pela qual queria falar comigo: vinha pedir-me o favor de o dispensar de estar presente na cerimónia do dia seguinte. Álvaro Guerra fora embaixador em Belgrado e, tal como a esmagadora maioria dos colegas portugueses que haviam tido a experiência de servir na capital jugoslava (hoje da Sérvia), Belgrado, Álvaro "went native" e assumia uma posição fortemente pró-sérvia, com muito escassa simpatia (e isto é um "understatement"...) pela Croácia.

Era uma posição política, talvez pouco diplomática, mas as questões limites de consciência são respeitáveis, desde que assumidas de modo correto e não conflitual com os interesses do país. Não vi, assim, nenhum inconveniente em isentá-lo do exercício, que constatei que lhe seria muito penoso. No dia seguinte, ele assistiu, de longe, à fotografia comemorativa da adesão da Croácia, que há dias descobri na minha papelada (com muito menos cabelos brancos, diga-se).

Logo de seguida, sentámo-nos na sala do Conselho de Ministros e o Álvaro perguntou-me: "Quem foi a "alma danada" que, em Lisboa, teve a infeliz ideia de decidir o nosso voto em favor da Croácia?". Com um sorriso irónico, esclareci-o que fora precisamente eu o autor do "deal" com Granic, feito em segredo em Zagreb, escassos meses antes. Álvaro Guerra estava estarrecido! "Você?!". Expliquei-lhe a negociação e a racionalidade subjacente à decisão tomada, mas tenho a certeza que não o convenci. O Álvaro não se zangou comigo, como também o não fazia quando eu combatia, com ardor e ironia, a sua "aficción" tauromáquica.

O Álvaro morreu em 2002. Se fosse vivo, tenho a certeza de que amanhã estaria a gritar: “Allez les bleus!”.

sexta-feira, julho 13, 2018

Ai Brasil !


Há dias, em escassas horas, o Brasil assistiu – e eu, que estava por lá, também - a um debate extremado de natureza político-jurídica, envolvendo, uma vez mais, Lula da Silva. Um juiz de turno, numa instância que, horas depois, viria a ser declarada incompetente para tal, tomou a polémica decisão de mandar soltar o antigo presidente. No emaranhado quase incompreensível que hoje constitui o processo judicial brasileiro, sucederam-se ordens e contra-ordens. As televisões encheram-se de especialistas (como por cá também houve, ao que me disseram, sobre caves tailandesas). Os atores políticos, chamados a pronunciar-se, reagiram da forma expectável, algumas vezes com a ambiguidade de um discurso tático, atentas as eleições que se aproximam. E, sem surpresa, Lula continuou na prisão, onde, aliás, rapidamente teria regressado, se acaso tivesse sido solto.

Os amigos de Lula, que entendem que a sua condenação e posterior prisão não passaram de uma orquestrada fraude judicial com objetivos políticos, exultaram, entretanto, com a possibilidade momentaneamente aberta pelo complacente juiz. Os seus detratores, ao invés, crismaram o agente da justiça de todo arsenal de epítetos injuriosos e, naturalmente, rejubilaram com o desfecho frustrado do episódio. 

Nada disto parece hoje estranho, num Brasil que vive um tenso ano político, com eleições no segundo semestre, com um presidente completamente desacreditado, um governo errático que parece seguir um “script” desligado do mundo real, com as mãos atadas por um Congresso (Senado e Câmara de deputados) onde se “costuram alianças” e se fazem “articulações” que espelham já todas as ambições dos proto-candidatos. O sistema político mostra-se incapaz de uma auto-regeneração, vivendo sob uma patente desconfiança dos cidadãos, que olham com desprezo a continuação dos jogos de distribuição de lugares e verbas orçamentais, imagem de marca da velha e relha política. A máquina judicial, onde, desde há uns anos, passaram a repousar (e ainda repousam) muitas esperanças, surge cada vez mais acusada de instrumentalização, ao serviço das agendas políticas. E nela, cada cidadão brasileiro já elegeu os “bons” e os “maus”.

Neste maniqueismo obsessivo, o Brasil de hoje pensa com o coração e o “nós ou eles” converteu-se na regra de um jogo muito perigoso. Sabe-se como um contexto instalado de desencanto pode ser pasto fácil para populismos. Por mim, não gostaria de ver o Brasil regressar à América Latina, se bem me faço entender.

quinta-feira, julho 12, 2018

Ramona e outros azares


Na minha infância, recordo-me de ouvir a minha mãe dizer que uma música chamada “Ramona” dava má sorte. Quando os acordes dessa melodia surgiam na rádio (na minha terra não usamos a palavra telefonia e outros vocábulos análogos, que fazem parte do léxico das lisboetices), havia uma corrida imediata a mudar de estação. 

Eu era muito miúdo e impressionava-me que pudesse haver coisas dessa natureza, ou melhor, coisas que ultrapassassem a natureza que tinha à minha frente, que foi sempre o alfa e o ómega da minha maneira de olhar o mundo. Vivi a acreditar no que vejo. E sempre e só nisso.

Nessa eterna e simples perspetiva, sempre vi as sextas-feiras 13, como vai ser o dia de amanhã, como uma crendice com folclórica graça, mas só isso. Não acredito no azar e na má sorte, talvez porque, na vida, sempre tive sorte da boa - ou, quando isso não aconteceu, assobiei para o lado, fiz de conta e passei à frente. 

Não passo por baixo de escadas apenas com medo de que me caia algo na cabeça, não gosto de gatos pretos porque não gosto de gatos em geral, abro sem receio guarda-chuvas dentro de casa para testar o estado das varetas e só não deixo tesouras abertas em cima da cama para não correr o risco de me cortar. Sou totalmente imune a toda e qualquer crença, a coisas ditas “sobrenaturais”, a signos e, repito, a tudo aquilo que esteja para além do que o meu olhar alcança. Eu faço parte de quantos não têm a menor curiosidade em saber o que está para além da curva...

Vem isto a propósito da “Ramona” e de amanhã ser sexta-feira 13. Ontem, numa estrada do Brasil, perto de Congonhas do Campo, vi uma placa com o nome de uma localidade chamada Ramona. Contei então para a pessoa que ia ao meu lado a atitude da minha mãe perante a canção mas, curiosamente, não senti vontade de ir ao YouTube para ouvir a malfadada melodia. Seria por respeito à crença da minha mãe ou porque começo a enfraquecer as minhas defesas face ao desconhecido? Fiquei na dúvida.

Ainda a propósito de “azares”, recordo-me de ter um dia falado, no Brasil, numa conversa de amigos, de um episódio ocorrido no dia da implantação da nossa República, em 5 de outubro de 1910. Estava então de visita a Portugal o presidente eleito do Brasil, que tomaria posse no primeiro dia do ano seguinte. Inopinadamente, ele foi apanhado no meio dos combates. Teve de haver uma parlamentação entre os contendores por forma permitir a saída do dignitário (aproveito para pedir que não escrevam “dignatário”, como se vê muito por aí) estrangeiro, que nada tinha a ver com a nossa peleja interna. 

Porém, quando, no meio dessa conversa, tentei lembrar-me do nome do homem, um dos amigos pediu-me que o não fizesse: é que, aparentemente, referir esse nome, no Brasil, dá azar! 

Fiz-lhe a vontade, mas só então. Amanhã, sexta-feira 13, dia em que por qualquer razão me apetecia estar em Vilar de Perdizes, já posso dizer, para desafiar o azar, que esse político se chamava Hermes da Fonseca (na imagem).

E pronto: aqui fica a minha história para o dia oficial do azar, data em que, por acaso, vou ter a dita de viajar para casa de uns amigos, num local tão aprazível que o crismei do lugar de Nossa Senhora do Folguedo de Cima. É que ainda há dias de sorte e o meu vai ser nesta sexta-feira 13.

quarta-feira, julho 11, 2018

terça-feira, julho 10, 2018

Mundial

Um belo jogo entre a França e a Bélgica. Sei bem menos do que os especialistas da bola, mas, cá na minha, acho que, podendo a Bélgica ter ganho, a vitória francesa se justifica marginalmente, se esquecermos os primeiros vinte minutos de jogo. Como se ouve na minha terra: “digo eu, não sei...”

Tenho pena de amanhã não poder ver o jogo entre a Inglaterra e a Croácia. Mas como me é perfeitamente indiferente o resultado, como já me foi o de hoje, contento-me com um resumo tardio. 

Quem é que eu gostava que ganhasse o Mundial? Portugal, claro! E, não tendo sido isso possível (às vezes a justiça existe, face à miséria que foi a nossa prestação), teria gostado que o Brasil ganhasse (apesar das “fitas” tristes do Neymar). No resto, é-me indiferente. A sério!

Juízo no Brasil

Nelson Motta, citado hoje em “O Globo”: “No Brasil, o Diabo não veste Prada”, veste toga...”

Tarde desportiva

Que país quero que ganhe o Mundial? Sei lá! Recuso-me a determinar as minhas opções pelas simpatias políticas ou pelo impressionismo do “gosto mais deste do que daquele”. Não acho que tenhamos de tomar opção e adoro ver jogos (sempre, mas sempre!) sem ouvir o som e ir gerindo as minhas preferências em função do decorrer do jogo. É o que vai acontecer.

Época de transferências

Já “fui” do Barcelona por causa do Figo. “Transferi-me” para o Real por causa do Ronaldo. “Puxo” pelo Manchester United (nunca pelo Man’ United, como os locutores a armar ao íntimo) por via do Mourinho. Mas ainda não me vejo a “jogar” pela “Vecchia Signora”...

Tiradentes

(Ainda hoje encontro gente que acha que o herói Tiradentes, lá no fundo,  não será estranho à crise dos dentistas que, para sempre, inquinou as nossas relações com um certo Brasil...)

Viemos a Tiradentes, pela primeira vez, há quase trinta anos. Com o Zé Stichini Vilela, que vivia então no Rio. Ficámos instalados no magnífico Solar da Ponte, onde conhecemos os donos, a Ana Maria e o John Parsons. Voltámos algumas vezes mais. Sempre com gosto. Conversar com a Ana Maria, uma mulher cultíssima e muito interessante, oficiar o ritual do chá às cinco com o John, na sala de cima, soava por ali a estranho, mas era algo belíssimo. E sempre sereno.

O Zé desapareceu, há muito. O John também e a Ana Maria seguiu-se-lhe, há pouco. O Solar lá continua, magnífico, no centro da vila (ou será cidade?). E Tiradentes, embora muito mudada, também.

Essa nossa primeira viagem a Tiradentes foi nos dias eleitorais de 1989, em que um Lula barbudo e de olhar alucinado viria a ser derrotado por um “kennedyano” Collor, uma hábil e desastrosa construção da Globo. Recordo-me de mim a devorar os tempos televisivos de antena (havia aquele fantástico candidato do “meu nome é Eneias”), a ficar deslumbrado com a qualidade (que eu desconhecia) da imprensa diária brasileira, a tentar perceber a complexa política local (“ciência” adquirida que me ajudaria, tempos mais tarde, quando por aqui “embaixei” por quatro anos).

A vila (ou cidade) de Tiradentes era então, nesse ano de 1989 (em que na Europa um certo muro caía), um quase deserto de comércio. Restaurantes não havia, o Solar não servia jantares e recordo bem que errámos pela noite, nas ruas desertas (exceto de cães, que ainda hoje continuam a ser muitos, seguramente descendentes dos desse tempo), com alguma gente a aflorar às janelas das casas térreas, em pose de “maria-sem-vergonha”, olhando-nos com cordial estranheza, até que aportámos a um boteco simples, onde matámos a fome de fim da noite. As pedras rudes daquelas ruas ficaram-me gravadas. Como o desejo de voltar.

A terra, nos dias de hoje, já não é bem a mesma. As ruas de Tiradentes, hoje cheias de turismo, quase deixaram de ter habitantes locais para se transformarem num imenso centro comercial, loja-sim-loja-sim, imensas pousadas (como aqui se chama às nossas pensões), montões de casas que vendem um belo artesanato - aquelas coisas que apetece comprar mas que, depois, regressados a casa, não sabemos nunca onde colocar. Mas, note-se!, são lojas belíssimas, coloridas com gosto, com gente agradável, de uma paciência sorridente para os inquisitivos protoclientes. Até um argentino de “photomaton” opera, sem grande jeito, por ali.

Ah! E como na canção de Chico Buarque, “há um bar em cada esquina, p’ra você comemorar, sei lá o quê!”. Eu, por acaso, sei.

segunda-feira, julho 09, 2018

Cabinexit



Depois de David Davies, agora sai Boris Johnson do governo britânico. Já não é o Brexit, é o Cabinexit.

Lula


Estar no Brasil, nesta hora de Lula-sai-não-sai-da-cadeia, é um verdadeiro privilégio para o turista político que sempre sou. Pelas televisões desfilam legiões de especialistas, as opiniões radicalizam-se e, às vezes, sobem mesmo de tom. Um descnhecido juíz “de plantão” que tentou soltá-lo passou a ser uma vedeta que, instantaneamente, se tornou herói/vilão, dependendo da posição de cada um. A mim, que me exijo neutral como a Suíça, cabe-me explicar ao meus interlocutores que a expressão “a soltura de Lula”, que agora por aqui faz manchetes, em português de Portugal teria outro significado...

O turismo e os presidentes


O Augusto é o dono do “Charm Country”, um restaurante simples, algures numa estrada de Minas Gerais (a identificação geográfica não será muito útil, porque este Estado brasileiro é maior do que a França), onde já parei uma boa meia dúzia de vezes (como hoje fiz) para um feijão tropeiro e um queijo do serrado com goiabada cascão. 

Falámos de Portugal, que o Augusto não conhece, país de que lhe dizem muito bem (a ideia de que a generalidade dos brasileiros sabe bem o que é Portugal é um conhecido mito lusitano). “Parece que agora tem muito turista por lá! É pelo novo presidente, não é?”.

Embatuquei, confesso! Podemos tecer muitas loas, algumas bem merecidas, à ação do presidente, mas esta de ele ser responsável pela onda de turismo foi a primeira vez que ouvi. “A contrario sensu”, como dizem os juristas, poderíamos concluir maldosamente que Cavaco afastava os turistas?

sábado, julho 07, 2018

Tanto mar?


Um fim de tarde de 1989, com o sol a pôr-se ao fundo da montanha, encontrou-me na praça central de Ouro Preto. Olhando em volta, entre a rua Direita e a do Ouvidor, apercebi-me, pela primeira vez, que uma parte de nós mesmos, dos portugueses, ficou para sempre por ali, por mais cantado que agora seja o sotaque, por muito distante que o nosso próprio mundo agora possa estar. Essa imagem ficou-me gravada na memória e atravessou comigo os anos. 

Passou-se mais de década e meia antes de eu regressar ao Brasil e antes de perceber – de novo no casario de Ouro Preto, mas também no silêncio nobre de Alcântara, no bulício africano do Pelourinho de Salvador ou nas esquinas apressadas do centro do Rio – que, verdadeiramente, só se pode entender bem o que Portugal é, e não apenas o que Portugal foi, depois de mergulhar no Brasil.

A comoção de entrar no forte Príncipe da Beira, de tropeçar nos nossos vestígios em Nova Mazagão, de lembrar os Açores em Ribeirão da Ilha, de ficar esmagado pela monumentalidade do Real Gabinete do Rio, de fixar a decadência serena da Beneficência Portuguesa em Belém, de sentir o cheiro forte das lojas de tudo, frente ao mercado de Manaus – tudo isso é preciso para que se prolongue em nós a interrogação, sem resposta, sobre o que é, afinal, ser português no mundo. Não se é português porque se nasceu em Portugal. É-se português pelo somatório das viagens que outros fizeram por nós, dos que foram e voltaram cheios de histórias mitificadas das Pasárgadas que poderiam ter tido, mas também dos que não voltaram, dos que “queimaram as caravelas” e se entregaram aos novos mundos que fizeram seus.”

(Texto retirado da introdução ao meu livro “Tanto Mar? - Portugal, o Brasil e a Europa”, ed. Thesaurus, Brasília, 2008. Recordei-me deste texto, há minutos, ao chegar a Ouro Preto)

Todos a bordo?


Ainda nos recordamos do discurso de Juncker, em 2016, quando anunciou uma espécie de estado de emergência da Europa, fruto das angústias suscitadas pelo Brexit, que se somavam às múltiplas perplexidades que já então atravessavam o projeto integrador. A resposta à tragédia dos refugiados dividiu transversalmente a União, tal como, noutro sentido geográfico, a questão da solidariedade perante a crise financeira o havia já feito. O alerta pessimista, assumido por um otimista profissional como é o presidente da Comissão europeia, foi então bastante forte.

Depois, surgiu do outro lado do Atlântico o choque Trump. Passado o primeiro trauma, a sua mensagem provocatória teve o condão de funcionar como um inesperado fator agregador, tanto mais que, por uma vez, a América não se entreteve apenas a dividir a Europa – coisa que faz, com sucesso, sempre que quer, como “poder europeu” que é. Ela deixou claro ter como deliberado objetivo enfraquecê-la como um todo, enquanto projeto coletivo, económica e estrategicamente concorrente. Isso começou com o anúncio do fim do TTIP e expressou-se, logo depois, nas reticências sobre a NATO, parcialmente revertidas, não obstante a persistência da relação pessoal obscura de Trump com Putin. O vai-e-vem dos principais líderes europeus a Washington, com diferentes coreografias, às vezes caricatas, deixou desde logo claro aquilo com que, nos próximos anos, a Europa podia contar. O que veio depois apenas confirmou as piores previsões.

Lembrar-se-ão também de que, por esses tempos, os cenários caricaturais para o futuro do projeto europeu estavam na moda: maior ou menor integração, núcleos mais ou menos duros de países. Era um “déjà vu” pouco estimulante, prova indireta de que esse projeto atravessava um estádio de auto-interrogação. Era também a confissão de que talvez tivesse chegado ao fim a ambiguidade em matéria de finalidades do modelo que, por décadas, conseguira criar a ilusão de que todos caminhavam alegremente rumo ao mesmo destino. A Europa da “bicicleta de Delors” (se deixamos de pedalar, caímos para o lado) parecia ter colocado finalmente os pés no chão e ter parado para refletir. Mas, como as mais das vezes acontece no errático debate europeu, o dia seguinte levantou logo uma poeira que toldou o sentido desse esforço de reflexão.

Foi então que surgiu no palco político uma surpresa chamada Macron. Fruto evidente de uma conjuntura particular, o novo líder de Paris acarretava consigo a ambição, muito franco-francesa, de querer aproveitar a futura ausência britânica para colocar o seu país bem no centro da liderança do processo. Deixou claros os fatores de reforço integrador que entendia necessários para suportarem o projeto da moeda única, desafiou alguns tabus soberanistas primários e, com naturalidade, procurou Berlim como parceiro motor para esse novo impulso. O “timing”, porém, era o menos adequado, do lado de lá do Reno. Merkel entrava no declínio do seu poder interno, fruto de vários fatores, de que a sua coragem ética e política perante os refugiados não era o menor. Até no seio do seu próprio partido, como se viu nos últimos dias, o peso da Chanceler segue em perda de velocidade. A capacidade alemã para dar alimento, mesmo financeiro, ao motor europeu, sendo essencial, já não pode ser dada por adquirida.

Ora a Europa, depois de ter atravessado, “tant bien que mal”, várias crises cumulativas ou sucessivas, necessitaria precisamente de uma terapia intensa de reforço da vontade comum, quer no plano institucional de preservação do euro – como Centeno recordou na sua recente carta ao Conselho europeu -, quer na adoção de um conjunto de políticas que pudessem traduzir a assunção da vontade comum, que nos habituamos a ver como devendo emanar daquilo a que chamamos uma potência. 

E o que vimos neste Conselho europeu? Um postergar de decisões, avanços semânticos para não perder a face, a clara sujeição a agendas populistas e demagógicas, já sem um pudor político mínimo. Aquela que era para ser uma “cimeira do euro” acabou por se transformar numa manta de retalhos, em matéria de decisões, refém do discurso dos medos, uma cimeira securitária que consagrou surpreendentes recuos. Para utilizar uma imagem destes dias, a Europa acaba de beneficiar o infrator. 

Posso estar enganado, mas sinto que o termo de mandato da presente Comissão europeia, cujo fôlego dá mostras de exaustão, e a circunstância de irmos entrar num período de eleições para o Parlamento Europeu, com dossiês muito complexos, como o saldo do Brexit e as consequências das conflitualidades com os EUA, vai inaugurar um tempo novo e decisivo para o projeto da União. Vamos assistir ao acesso ao futuro parlamento de Estrasburgo de muitos representantes da Europa dos medos e da insegurança, do soberanismo nacionalista, dos prosélitos das políticas securitárias, declamadores de uma narrativa populista, com alguns Estados a garantirem-lhes um suporte institucional no Conselho de Ministros. Mais ainda: a quererem assegurar uma fatia importante de poder na futura Comissão, onde eles sabem que se caldeiam as propostas de mudança de política que são essenciais para o seu objetivo: mudar a Europa e fechá-la ao mundo.

Esta pode – e a meu ver deveria – ser a hora de verdade para os grandes grupos políticos à escala europeia, da democracia-cristã à social democracia, passando agora também pelos liberais, entre os quais, no passado, se processou a grande aliança implícita que permitiu a construção da Europa. Esses grupos, hoje padecendo de uma heterogeneidade que os começa a descaraterizar, necessitariam de reconstruir entre si um novo pacto de valores e princípios, por cima das suas diferenças programáticas. Mesmo que isso tivesse de conduzir à expulsão, do seio dessas famílias políticas, de partidos “irmãos” que hoje envergonham a sua imagem. É que nada há de mais degradante do que esta paz podre instalada nos sorrisos coletivos nas fotografias de família dos Conselhos europeus. Só dignificava alguns dirigentes terem a coragem de afirmar, alto e bom som, que alguns desses parceiros já não integram o barco comum europeu. Separar as águas seria um ato saudável de coragem e dignidade. A próxima campanha eleitoral para o Parlamento europeu seria o momento certo para se definir quem fica a bordo e quem deve escolher outras companhias. 

sexta-feira, julho 06, 2018

Negócios da China


Há poucas realidades geopolíticas, com dimensão global, sobre as quais os discursos mantenham uma maior precaução relativizadora do que aquela que existe em torno da China. Prevalece o entendimento de que a realidade chinesa tem, dentro de si, especificidades que limitam a utilidade de se lhe serem aplicados os quadros interpretativos tradicionais. Daí que a abordagem da realidade chinesa seja, quase sempre, temperada por inúmeros pontos de interrogação. No passado, olhava-se para o que sobre o Império do Meio escreviam alguns “sinólogos”, às vezes numa espécie de curiosidade quase antropológica. Hoje, há especialistas que se dedicam a tentar descodificar a nova China, que todos, a começar por eles, em especial se forem bons, reconhecem muito mais complexa do que o que temos efetiva capacidade de apurar. Por isso, talvez só a lógica dos interesses nos possa ajudar.

Durante algumas décadas, a política externa chinesa foi sobredeterminada pela existência no país de um regime comunista, o qual procurou, por algum tempo, emular e contrariar o proselitismo ideológico soviético pelo mundo. O fim da liderança de Mao, depois da drástica Revolução Cultural, viria a trazer um banho de pragmatismo à política de Pequim, onde hoje floresce um capitalismo de Estado que, com histórico ineditismo, projeta uma indiscutível eficácia nos seus resultados económicos. Em termos de política externa, e como herança das guerras, regionais e não só, ficaram a tensão histórica com o Japão, um “modus vivendi” com Moscovo pós-URSS, uma acomodação, depois dos incidentes sérios, com a Índia e com o Vietnam. Permanecem, claro, o tema sensível do Tibete, e, muito em particular, a questão de Taiwan, com os americanos a reservarem-se na área algum “droit de regard” neste e noutros dossiês do Mar da China, com o alibi de procurarem acomodar os receios de segurança dos seus aliados.

Para sermos rigorosos, há que convir que a China, para uma potência da sua dimensão e interesses, surge em geral contida e sóbria na sua afirmação externa, onde é bem patente, por exemplo, a sua intervenção, quase discreta, nas temáticas do Médio Oriente. Noutras zonas de confluência de poderes das potências com vocação universal, a China parece interessada em não deixar criar desequilíbrios que possam afetar o seu peso relativo face a outros atores. A sua intervenção na questão da Coreia parece ilustrar isso de forma exemplar.

Passados assim que foram os tempos de proselitismo ideológico, a China prioriza hoje na ordem externa a proteção das ambições comerciais e empresariais que hoje dão corpo ao seu poder como grande potência económica. À importante presença em diversos mercados africanos, e às alianças que gizou com países como o Brasil, Pequim tem vindo a somar, nos últimos anos, uma estudada afirmação na área económica europeia – de que o interesse nosso país é apenas um exemplo que nos é mais próximo. 

Essa expressão de poder por parte da China não colhe, contudo, um juízo generalizado de bondade por parte de alguns dos seus competidores. Os Estados Unidos foram os primeiros a dar sinais de que uma expressão forte da China à escala global, num registo de sucesso, poderia vir a ser detrimental para os seus interesses – quer financeiros, quer estratégicos. Trump foi mesmo mais longe e lançou uma ofensiva comercial sem precedentes contra Pequim. Mas também na Europa, tituladas por alguns dos países mais fortes da União Europeia, parece estarem a desenhar-se reticências à expansão dos investimentos chineses, em especial quando associada a áreas tidas por estratégicas.

Ora a China, que lançou oportunamente um banco com pretensões globais e que tem no projeto da Nova Rota da Seda um dos seus desideratos mais importantes, só pode pretender manter um crescimento sustentado dessas suas ambições se vier a abandonar a atual tibieza diplomática e desenhar um novo tipo de intervenção, seguramente muito estribada em modelos generosos de financiamento, que possam convencer os seus potenciais parceiros futuros. Isto para já não falar da necessidade de parcerias que Pequim terá de continuar a gizar, para manter a liberdade dos mares, como forma de continuar a obter fornecimento de combustíveis fósseis e a preservar as rotas de expansão comercial que hoje fazem a sua prosperidade. Tal justifica também o reforço do seu poderio naval e, repito, uma muito maior afirmação diplomática.

Obrador


Ao refletir sobre a vitória de López Obrador nas eleições presidenciais mexicanas, veio-me à memória um livro do jornalista francês Marcel Niedergang, publicado nos anos 60, intitulado “As vinte Américas Latinas”. À época, ele ajudou bastante a minha geração a entender, simultaneamente, a heterogeneidade e as similitudes entre os países do centro e sul do continente americano.

Nenhum deles tem a extraordinária complexidade do Brasil, de onde estou a enviar esta crónica. Mas recordo ter ficado para sempre com a sensação de que, no mundo latino-americano, raros são os Estados que apresentam desafios da dimensão daqueles que o México há muito suporta, a que a sua geografia também não é alheia.

Fortemente dualista no plano social, o México tem uma história riquíssima, mas convulsa. Usufrui de uma democracia que acabou corporizada num modelo político-partidário que, tendo ajudado a construir um país, não conseguiu ultrapassar contrastes sociais que acabaram por se cristalizar. Nos dias de hoje, gerou uma sociedade onde, lado a lado com bolsas de excelência, persistem fenómenos de violência extrema, regiões raptadas à autoridade do Estado, áreas onde impera a criminalidade organizada, frequentemente ligada ao narcotráfico. A corrupção, a instrumentalização de setores da vida pública por grupos de interesses ilegítimos, acumulou tensões que acabaram por fazer romper a malha política em que, por décadas, o país parecia ter-se habituado a viver.

López Obrador é um velho “routier” da política mexicana. Como Lula, no Brasil, conseguiu ascender ao poder, após várias tentativas frustradas. Também ele, tal como o antigo presidente brasileiro, carrega consigo um formidável capital de esperança, a vontade de regenerar um país cansado dos vícios da política tradicional. Homem sem mácula de suspeição de compromissos patrimonialistas, prometeu a felicidade a um país sedento de desenvolvimento que atenue a endémica pobreza, que ataque as profundas desigualdades e, em especial, que consiga pôr cobro à insegurança – pública, económica e social - que hoje instabiliza a existência de milhões dos seus compatriotas. O seu estilo pessoal, espartano mas tido por populista, assusta alguns, pelo que será o seu realismo que vai estar sob atento teste.

Um dia, Porfírio Díaz, um longínquo antecessor de Obrador no cargo presidencial, caraterizou assim a tragédia do seu país: “Pobre México! Tan lejos de Diós y tan cerca de los Estados Unidos”. E nem ele suspeitava que iria surgir um Trump...

terça-feira, julho 03, 2018

Madonna

As redes sociais são isto: os indignados com o espaço de estacionamento facilitado à Madonna e os que atacam quem se queixa por entenderem que isso é só vontade de dizer mal da Câmara. São os “isto é tudo um bando de gatunos e serventuários dos poderosos” e os “o que eles querem é atacar o Medina e, através dele, o governo do Costa”.

Os indignados

Comparar os "indignados" no Twitter, no Facebook e nos blogues: no Twitter, é mais bocas, com palavrões "trendy"; no Facebook, são menos asneireiros (o nome "oblige"), do género "isto é tudo um bando de ladrões!"; por aqui, são catastróficos desbocados nos adjetivos, graças à "coragem" que o anonimato dá.

Novilíngua

O Bloco anunciou o ”Direito à boémia - necessidade da vida noturna para produção e radicalização cultural”. É assim a modos que a reedição da fórmula que ligava um certo militar de abril ao balcão do Procópio: a via alcoólica para o socialismo.

Acho muito bem que se dê conteúdo teórico, sob a égide do politicamente correto, às coisas boas da vida. Estarei sempre desse lado da barricada, por muito que seja nele que o nosso fígado se estraga. 

Isto de ter de atualizar o léxico, para o pôr de acordo com os (agora, muito, as) atentos polícias da linguagem, é um trabalho de fôlego. Mas há que começá-lo, quanto mais não seja para que haja a esperança de que um dia seja possível ouvir, da parte de alguns amigos menos ortodoxos, que aquilo de que mais gostam é de “trabalhadoras do sexo e vinho verde”!

Ora bem!


O “Delito de Opinião” é um dos blogues com maior prestígio no mercado dos ditos. Por isso, o facto deste “Duas ou Três Coisas” ser por ele reconhecido da forma queo foi não nos pode deixar indiferentes. E, pelo contrário, deixa-nos gratos e satisfeitos. Ora bem! 

segunda-feira, julho 02, 2018

Três notas lá de fora

1. Logo veremos como vai acabar a crise democrata-cristã alemã. Mas a tensão entre a CDU e uma importante setor da CSU, que Angela Merkel tinha conseguido manter formalmente sereno até agora, não é uma boa notícia para aquilo que a Europa deve fazer e que, sem a vontade da Alemanha, não pode fazer. Nos tempos que correm, por muito que alguns não gostem de ouvir isto, a revelação de fraquezas por parte de Merkel é sinónimo da fragilidade da Europa. E, por arrasto, de quem nela acredita.

2. A vitória de Lopez Obrador no México tem condições para poder vir a ser uma "revolução" maior do que pode supor-se. Não apenas a nível interno: baralha o sistema político, ocorre num país com contrastes sociais históricos, com áreas hoje tomadas pela criminalidade quase impune, é fruto de uma esperança difícil de concretizar. Também no plano internacional: naquilo que vier a ser o diálogo necessário com os EUA, no modo como o êxito ou inêxito do modelo vier a projetar-se, ou não, em alguma da restante América Latina, no "convívio" que Obrador vier a fazer, ou não, com o populismo.

3. Posso estar enganado (e desejaria estar), mas, desde o início, tenho um sentimento negativo quanto ao processo entre os EUA e a Coreia do Norte. Trump fez um gesto que, na sua perspetiva, tem de ter consequências práticas mensuráveis num determinado calendário temporal, e em especial eleitoral. Ora o "tempo" coreano é necessariamente outro, como (sempre) se viu no passado e isso pode vir a ter reflexos exasperantes no líder dos "tweets". Repito: espero estar enganado.

José Batista de Matos


Morreu o Batista de Matos, acabo de saber! Morreu um português com um grande coração, um homem para quem o 25 de abril era o marco central da vida. Morreu-me um amigo.

Poucos meses depois de chegar a Paris, fui convidado por Manuel Rei Vilar, então diretor da Casa de Portugal, para fazer, com os outros embaixadores portugueses na cidade - Eduardo Ferro Rodrigues, na OCDE, e Manuel Maria Carrilho, na Unesco - um debate sobre o 25 de abril. Antes do início da sessão, alguém me alertou: “Cuidado! Está ali um tal Batista de Matos. É um radical e vai incendiar o debate!”. Não me preocupei minimamente, mas avisei os meus colegas de mesa. Na altura das perguntas, o Batista de Matos, o tal “radical”, que só então conheci, fez uma longa e inflamada intervenção. Um de nós respondeu-lhe e, a partir daí, ele percebeu que tinha à sua frente pessoas que tinham ao 25 de abril uma dedicação que pedia meças à sua.

Não sei se foi então ou no ano seguinte que Eduardo Ferro Rodrigues e eu estivemos presentes, pela primeira vez, na festa noturna com que, sob a batuta organizativa de Batista de Matos, se comemorava o 25 de abril em Fontenay-sous-Bois, nos arredores de Paris. Uma fantástica e alegre marcha luso-francesa, com bombos e archotes, que terminava num monumento à Revolução portuguesa, onde eram ditas umas palavras, com algumas autoridades locais à mistura. Uma comemoração muito sã, com crianças e cravos vermelhos, nada ideológica e apenas simbólica do momento de libertação e dignidade que o 25 de abril representou para os nossos compatriotas que então viviam em França. Batista de Matos era o grande e bem disposto mestre dessas informais cerimónias.

Batista de Matos era também um orgulhoso homem da Batalha e animava um grupo que coordenava a presença dos originários daquele concelho nos países da diáspora. Na “Cité Nationale de l’Histoire de l’lmigration” existe uma vitrine dedicada exclusivamente a José Batista de Matos, com fotos e objetos da sua aventura exemplar como imigrante em França. Condecorámo-lo um dia como amplamente merecia, tendo sido feito Comendador. Correspondemo-nos nos últimos anos e tenho um seu último postal de Natal, creio que do ano passado. Penitencio-me por nunca ter conseguido cumprir a promessa de o visitar na Batalha, para onde me convidou várias vezes a ir almoçar, com o meu antecessor e também seu amigo, António Monteiro. Vou ter saudades daquele seu sorriso, quase traquina, do seu abraço generoso, da sua bonomia e, claro, do seu inultrapassável amor à Revolução de abril. 

Que raio! Estão a partir os bons!

A alegria da pobreza


Não quero ser desmancha prazeres. Mas ver amigos que muito prezo, aos saltos, num palco, a debitarem, aos berros, uma parte desta reacionaríssima letra fez-me sentir algo estranho

Que saudades eu já tinha
da minha alegre casinha
tão modesta como eu.
Como é bom, meu Deus, morar 
assim num primeiro andar 
a contar vindo do céu 
O meu quarto lembra um ninho 
e o seu tecto é tão baixinho 
que eu, ao ir para me deitar, 
abro a porta em tom discreto, 
digo sempre: «Senhor tecto, 
por favor deixe-me entrar.» 
Tudo podem ter os nobres 
ou os ricos de algum dia, 
mas quase sempre o lar dos pobres 
tem mais alegria. 
De manhã salto da cama 
e ao som dos pregões de Alfama 
trato de me levantar, 
porque o sol, meu namorado, 
rompe as frestas no telhado 
e a sorrir vem-me acordar. 
Corro então toda ladina 
na casa pequenina, 
bem dizendo, eu sou cristão, 
“deitar cedo e cedo erguer 
dá saude e faz crescer” 
diz o povo e tem razão. 

Eu sei que era uma homenagem a Zé Pedro, dos Xutos e Pontapés, mas isso não invalida que quem canta um texto saiba o que está efetivamente a cantar. Ou será que, um destes dias, ainda poderemos voltar a ver as três principais figuras do Estado, divertidas, a zurzir os nossos ouvidos com uma versão rock desta outra peça do miserabilismo lusitano mais retrógado?

Numa casa portuguesa fica bem
Pão e vinho sobre a mesa
E se à porta humildemente bate alguém,
Senta-se à mesa com a gente. 
Fica bem essa franqueza, fica bem,
Que o povo nunca desmente
A alegria da pobreza
Está nesta grande riqueza 
De dar, e ficar contente 
Quatro paredes caiadas,
Um cheirinho à alecrim,
Um cacho de uvas doiradas,
Duas rosas num jardim, 
Um São José de azulejo 
Mais o sol da primavera, 
Uma promessa de beijos 
Dois braços à minha espera 
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
No conforto pobrezinho do meu lar,
Há fartura de carinho
A cortina da janela e o luar,
Mais o sol que bate nela 
Basta pouco, poucochinho pra alegrar 
Uma existência singela 
É só amor, pão e vinho 
E um caldo verde, verdinho 
A fumegar na tijela 

Não tem importância nenhuma? É apenas uma memória da tradição, que nada tem de ideológico? Ai não? Então, e se acaso a um destes modernaços intérpretes lhe desse na veneta de fazer um rap de outra peça? Será que essas mesmas figuras (e os seus "compagnons" de palco) aceitariam debitar estas estrofes?

Lá vamos, cantando e rindo

Levados, levados, sim
Pela voz de som tremendo
Das tubas, clamor sem fim.
Lá vamos, que o sonho é lindo!
Torres e torres erguendo.
Rasgões, clareiras, abrindo!
Alva da Luz imortal,
Roxas névoas despedaça
Doira o céu de Portugal!
Querer! Querer! E lá vamos!
Tronco em flor, estende os ramos
À Mocidade que passa.
Cale-se a voz que, turbada,
De si mesma se espanta,
Cesse dos ventos a insânia,
Ante a clara madrugada,
Em nossas almas nascida.
E, por nós, oh! Lusitânia,
Corpo de Amor, terra santa, 
Pátria! Serás celebrada,
E por nós serás erguida,
Erguida ao alto da Vida!
Querer é a nossa divisa.
Querer, palavra que vem
Das mais profundas raízes.
Deslumbra a sombra indecisa
Transcende as nuvens de além...
Querer, palavra da Graça
Grito das almas felizes
Querer! Querer! E lá vamos
Tronco em flor estende os ramos
À Mocidade que passa.


Um pouco mais de atenção àquilo que se diz era capaz de não ser uma má política. Digo eu...

Os EUA, a ONU e Gaza

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