quinta-feira, outubro 03, 2019

“Fascismo nunca mais!”


O fascismo, que agora aí anda travestido de várias coisas, não morreu, como é óbvio, com o 25 de abril. Nos tempos seguintes à Revolução, houve momentos tensos em que, nas ruas, foi necessário fazer algumas “barricadas” políticas aos saudosistas do tempo da “outra senhora”. 

Quem me contou esta história não me soube identificar, com exatidão, um desses momentos que terá justificado que pessoas viessem para a rua manifestar a sua indignação por uma qualquer circunstância que, aparentemente, podia significar algum risco de regresso a esse vil passado.

Nessa ocasião, uma jovem anunciou em casa a sua ida a uma manifestação de protesto público. Disse à avó, uma senhora idosa, de uma geração social mais propensa a atitudes conservadoras, o que ia fazer e por que o fazia. Com alguma surpresa, constatou que a senhora partilhava em pleno da sua indignação e, mais do que isso, se dispunha mesmo a acompanhá-la à manifestação. E lá foram as duas.

Houve discursatas, como é da regra destas coisas. A jovem olhava para a avó, ficando satisfeita por vê-la pontuar com a cabeça a sua concordância com o sentido daquilo que, por ali, era defendido.

A certa altura, dos discursos passou-se às palavras de ordem. A senhora não alinhava no coro coletivo mas acabou por se destacar fortemente no seio da multidão. É que, logo que toda a gente acabava de gritar, em coro, “Fascismo nunca mais!”, a avó completava, sozinha mas em voz bem alta e audível, com um indignado “De todo!”

quarta-feira, outubro 02, 2019

Chirac e os seus pares


A morte de Jacques Chirac, e um sentimento de perda que, com ela, atravessou a França, suscita uma reflexão sobre a relação desta com os seus presidentes, desde o fim do regime parlamentar. 

Charles de Gaulle, um militar que havia sido herói político de uma guerra que a França perdeu, mas que ele teve artes de transformar em vencedora, viria mais tarde a ser o recurso de excelência de um país a que o processo descolonizador havia induzido graves tensões institucionais. O seu papel de “pai da pátria” trouxe consigo um carisma que nunca mais se repetiria.

Saído De Gaulle, a elite política e económica francesa sustentou-se nas rédeas do país por mais 12 anos, nos mandatos de Georges Pompidou e de Giscard d’Estaing. Ambos brilhantes, o primeiro um intelectual oriundo da banca, o segundo um financista de perfil orleanista, partilhavam, contudo, uma escassa ligação afetiva à França profunda. 

A esquerda conseguiu romper a hegemonia conservadora, elegendo um “vieux routier” político de perfil cínico e majestático. François Mitterrand pilotou muito bem a França no tempo complexo do fim da Guerra Fria, foi protagonista central dos novos equilíbrios europeus, adaptando-se bem a uma V República que antes tinha como inimigo jurado. Depois de De Gaulle, consagrar-se-ia como o grande presidente da França.

E surgiu Chirac. Nem muito brilhante nem muito intelectual, era imensamente francês na sua ligação ao “terroir” e aos seus agricultores. Enobreceu-se na reconciliação histórica com algum passado da França, foi a barreira da decência contra o pai Le Pen, esteve no sítio certo face aos americanos, isto é, ao seu lado depois do 11 de setembro e contra eles na agressão ao Iraque. Pelo caminho, envolveu-se em pecadilhos financeiros que parece fazerem parte do ADN político da França.

As subsequentes fragilidades dos mandatos de Nicolas Sarkozy e de François Hollande também justificam, para muitos, alguma saudade de Chirac. Sarkozy foi um “Nixon à francesa”, inteligente, mas com a ambição a gerir-lhe os princípios. Hollande foi apenas um “bom tipo”, um falhado herdeiro de Mitterrand, a que, na melhor das hipóteses, a História dará um pé-de-página piedoso.

A França parece apreciar ser representada por quem, ao mesmo tempo, goste genuína e quase chauvinisticamente dos franceses, lhes transpire orgulhosa e exageradamente as qualidades e, na medida do possível, os consiga fazer sentir menos culpados pelos seus defeitos. Chirac era exatamente isso. Não tenho a certeza de que Emmanuel Macron o seja.

terça-feira, outubro 01, 2019

Saída do cinema


Caricaturas da História


Durante a Guerra Fria, da cinematografia e da literatura de espionagem que nos chegava, o inimigo era facilmente identificável: os comunistas. Antes, os “maus da fita” tinham sido os nazis alemães, depois passaram a ser os “vermelhos”. O maniqueísmo facilita imenso a vida.

Os “bons” eram sempre os ocidentais, com os seus serviços secretos eficazes e inteligentes, leais às suas pátrias, corajosos, dispostos a sacrificarem-se pela liberdade global dos povos. Eram, em geral, ingleses e americanos, representados na pantalha por “beautiful people”. Os poucos que, do lado de cá, se colocavam ao serviço do outro lado, por fanatismo ideológico ou por fraqueza material sempre devida a falha de caráter, eram tidos como desprezíveis traidores. Apenas alguma melhor literatura foi capaz de ir um pouco mais longe numa análise mais sofisticada de motivações.

Os “maus” eram uma caricatura sempre fácil de fazer. Quase sempre feios (o que facilita o reconhecimento imediato), ou bonitos mas nesse caso gélidos, eram tributários de uma hierarquia impiedosa, peças de uma máquina sinistra, gerida apenas numa lógica de finalidades, onde “valia tudo” para atingir os seus sinistros objetivos. Quando, num rebate de consciência ou por outra razão mais comezinha, algum desses “maus” se decidia passar para o lado “bom”, nunca o qualificativo de traidor se lhe aplicava: juntar-se ao lado “certo” da História isentava-os do labéu. A ordem dos valores tinha consequências semânticas.

O fim da Guerra Fria confundiu, por algum tempo, os desenhadores da História conveniente. O que sobrara da implosão da União Soviética, da Rússia aos restos do Cáucaso e da Ásia Central, passou a ser apresentado como um completo caos, em que preponderavam déspotas sucessores do comunismo, oligarcas e o sub-mundo do crime organizado, não se percebendo bem onde cada uma dessas coisas terminava. Eram películas cinzentas, sem sol, onde um mundo de miséria e ruínas urbanas dava razão póstuma à teimosia ocidental que abalara o Kremlin e, em Berlim, derrubara um muro. 

O 11 de setembro abriu uma nova frente de diabolização: permitiu dar aberta legitimidade à islamofobia, que rapidamente passou a ser um dos fatores centrais na equação das forças do “mal”. Veio depois o Estado Islâmico, bem como as metástases terroristas, e, com a guerra na Síria, juntou-se finalmente ao grupo o Irão, hoje destacado como uma das forças essenciais do “eixo do mal” que preocupa o ocidente, leia-se Washington. Pouco já deve faltar para a China surgir como o novo “satã”.

Dei comigo a pensar isto ao fim de alguns milhares de páginas de alguns “thrillers” da moda, que por aí se vendem como manteiga e que eu tenho consumido como diversão, nestes tempos em que só quero “sopas e descanso”. E também concluí, com facilidade, que há uma entidade que, com escassos “mas”, sempre com muita dose de admiração, surge nesses confrontos, nuns casos abertamente incensada como a fonte do “bem” estratégico, noutros realisticamente assumida como útil subcontratante para algum “dirty work” que o mundo ocidental (leia-se, de novo, Washington) decide não ser ele próprio a executar. Essa entidade, que os cuidados primários de credibilidade política aconselham sempre a que se trate com pinças, é Israel.

Esta é uma análise simples, reconheço até que simplista.

segunda-feira, setembro 30, 2019

Do meu inglês a Forsyth


Recordo-me de que, em casa dos meus pais, lá por Vila Real, os escassos livros numa língua estrangeira (e não eram, de facto, muitos) que andavam pelas estantes estavam escritos em francês. O meu pai era um francófilo assumido, dava “explicações” (gratuitas, por gosto pessoal), aos estudantes da família e filhos de amigos.

O modelo de ensino em Portugal consagrava uma subalternidade da língua inglesa, e a sociedade portuguesa viveu isso de forma muito clara até à viragem dos anos 60 para 70. Só o posterior impacto da economia nas relações de poder entre os Estados ocidentais iria acabar por colocar o inglês (em grande parte, devido aos americanos) no posto de comando (até ver, definitivo) das línguas à escala global. E Portugal não fugiu a esse tropismo.

O inglês, só ensinado a todos entre os 13 e os 15 anos, eram duas aulas por semana que, pelo menos, num desses anos, tiveram a graça de serem dadas por uma professora jovem e gira, que era um estímulo, embora não necessariamente didático, das hostes adolescentes. Por essa pouca aprendizagem, à saída do liceu, eu tinha um inglês muito hesitante, “de aeroporto”, de léxico reduzido, que dava para ler a “Time” ou a “Newsweek” e para dizer o essencial nas viagens que cada vez mais procurava fazer. Mas ficava muito aquém do domínio que tinha do francês, que eu “tinha a mania” (expressão do meu pai) que falava bem melhor. E falava.

Mas, no íntimo, por esses tempos, ia criando a crescente consciência de que precisava de melhorar a minha aprendizagem da língua. No inverno de 1972, numa semana de férias que passei em Nova Iorque, deu-me para ir a um teatro “off Broadway”, assistir a uma peça conhecida de Tennessee Williams. Saí da sessão furioso comigo mesmo: não tinha percebido quase nada dos diálogos em palco. Regressei a Portugal determinado a corrigir isso. Mas como estava então com o curso universitário suspenso, empregado num banco, nem de longe me podendo permitir sonhar em fazer um dispendioso curso de “imersão total” em Inglaterra, onde aliás nunca tinha ido, tinha de ser modesto nas ambições que acalentava.

Contudo, a verdade é que o meu “curto” inglês acabaria, afinal, por ser suficiente para “passar” na prova de línguas de acesso ao MNE. Não muito tempo após a minha entrada para as Necessidades, fui, em 1976, um dos primeiros funcionários a solicitar uma pequena ajuda financeira, prevista no estatuto mas que nunca tinha sido utilizada, para custear aulas externas de língua inglesa. Tenho na memória ter assistido a aulas em grupo num primeiro andar do Centro Cultural Americano, na avenida Duque de Loulé, em horário pós-laboral.

Um dia, à conversa, comentei com um amigo que continuava a ter bastante dificuldade em ler obras de ficção escritas em língua inglesa. Lia, sem quaisquer problemas, história, biografias, “current issues”, mas, sempre que pegava num romance, perdia-me cedo e acabava por desistir.

Esse meu querido amigo, António Pinto Rodrigues, que já se foi há muito (e com quem escrevi e editei, em 1975, o livro “O Caso República”), deu-me então um conselho valiosíssimo: “Começa a ler um livro que, à partida, tenhas a certeza de que te vai interessar. Passa à frente as palavras que não te disserem nada, não pares, não uses nunca dicionários nem tomes notas de palavras, mantém firmemente concentrado no mesmo ritmo de leitura. Verás que, ao final de umas horas, o livro captou-te e te habituas, em definitivo”.

O António era casado com uma americana meia-brasileira, a Dee, e imagino que isso tenha ajudado ao inglês dele. A mim, foi esse seu conselho que me abriu, em definitivo, o caminho de acesso para alguma ficção anglo-saxónica. Valha a verdade que, noutras obras de criação literária de língua inglesa, mais complexas e elaboradas, continuo a recorrer a traduções em português.

Mas a que propósito vem isto, perguntará o leitor? É muito simples: o meu amigo António deu-me nessa altura, como exemplo de coisas a ler, com garantia de interesse assegurado, os “thrillers” de Frederick Forsyth, que estavam a ter imenso sucesso, onde a espionagem se misturava com a aventura política. Aceitei a sugestão e, de facto, fiquei logo “apaixonado” pelo estilo. A partir daí, li creio que quase tudo o que ele publicou, em termos de obras de ficção. Ontem, no quarto do hospital, que acaba por ser uma bela sala de leitura, terminei, em escassas horas, o que julgo ser o seu último romance: “The Fox”.

E?

E não gostei! A fórmula está visivelmente cansada, no género há hoje quem escreva bem melhor, o recurso a referências especializadas, utilizado para dar mais plausibilidade às histórias, funciona já como um truque pouco convincente, tudo isto dentro de um texto recheado de inferências pouco credíveis, de “jogos de sombras” muito batidos.

Forsyth foi-me muito útil há meio século - e estou-lhe eternamente grato por isso. Com o tempo, contudo, foi-me desiludindo - ou talvez tenha sido eu quem se tornou mais exigente. Seja por que razão for, este foi, seguramente, o derradeiro romance de Forsyth que li.

domingo, setembro 29, 2019

Esquerda - direita


- Há que reconhecer que foram anos muito difíceis para a direita. Foi sujeita a um grande desgaste, manteve-se sempre com grande dificuldade. Chegou a ser doloroso.

- Tudo bem, mas olha que, com esse panorama na direita, há que “tirar o chapéu” à esquerda. Aguentou forte e feio e, no fundo, toda a estabilidade, nos últimos anos, a ela se ficou a dever. Agora, de certa maneira, a esquerda começa a pagar por isso. É nela que todas as tensões se refletem.

- Teremos de ver como é que a direita se vai comportar. Reconstituída, pode ser que venha a ter um novo futuro. 

- Eu por mim, confesso, agora, quero é esquecer a direita, que ela me não cause preocupações, já me deu cabo do juízo por muitos anos. No imediato, a minha preocupação é a esquerda. Não quero ver nela surgir uma crise grave, porque é com ela essencialmente que conto, nos tempos mais próximos, para isto andar para a frente.

Esta conversa, com um amigo, depois da operação a que a minha perna direita foi há dias sujeita, no joelho, nunca aconteceu, claro.

sábado, setembro 28, 2019

Canadianas


Alguém me sabe explicar por que razão estes elegantes auxiliares de marcha, de que me não vou livrar tão cedo, se chamam “canadianas”?

sexta-feira, setembro 27, 2019

Diana e os presidentes


Dificilmente se encontrará uma relação política mais conflitual na democracia francesa do que aquela que dividiu Jacques Chirac, que agora morreu, e Giscard d’Estaing. Dois estilos, duas lideranças, dois destinos, dentro da direita e da História francesas. Curiosamente, “une-os” a princesa Diana.

Giscard escreveu um livro de ficção,”La Princesse et le Président”, onde efabula sobre uma relação amorosa que poderia ter existido entre Diana de Gales e um presidente francês, figura em que o retrato do próprio Giscard assenta como uma luva. A imprensa britânica reagiu, entre o furioso e o desdenhoso, ao que entendeu ser uma tentativa de Giscard de sugerir a sua inclusão na lista de amores da princesa. Giscard, mas só depois de muito instado, fez saber tratar-se de uma mera ficção, algo cuja verosimilhança só deveria ser medida à luz das circunstâncias proporcionadas pelos encontros oficiais das duas figuras. A propósito de este livro de Giscard, Chirac fazia, ao que se sabe, comentários hilariantes, depreciativos do seu rival político.

Mas o que é que Jacques Chirac tem (também) a ver com Diana? A tragédia desta última. Na noite em que a princesa morreu, em Paris, no acidente no túnel de Alma, em 31 de agosto de 1997, a primeira preocupação das autoridades policiais francesas foi avisar o Presidente da República. Tudo foi tentado, a começar pelo palácio do Eliseu. Mas Chirac estava, como dizem os franceses, “aux abonnés absents”. Nem os próprios agentes dos serviços secretos que o protegiam, 24 sobre 24 horas, sabiam onde ele se encontrava. O presidente tinha-se permitido uma “escapada”, num dos seus tradicionais “affaires” românticos, que a sua mulher Bernardette aturava desde sempre, não contando, naturalmente, que essa ia ser precisamente a noite em que uma princesa britânica iria morrer à saída de um túnel rodoviário sob o Sena, em que deveria ter sido ele mesmo a informar as chefias britânicas. Só muitas horas mais tarde, foi possível encontrá-lo. Pode assim dizer-se que histórica rapidez de Chirac nos seus encontros sexuais - “cinq minutes, douche comprise” - não se tinha confirmado nessa noite.

Trotsky, Chencho e a madre superiora


Faz agora 50 anos, tal como acontece no dia de hoje, eu estava estendido na cama de um hospital, recém-operado a um joelho (o mesmo!). Então foi no Porto, agora é em Lisboa.

Um aquecimento mal feito, a anteceder um treino de atletismo, no estádio universitário, acabou com a (nem por isso muito promissora) carreira de um esforçado corredor de velocidade do CDUP.

Essa simples intervenção (então) ao menisco, à antiga, não terá corrido bem, como, semanas depois, já em Lisboa, o médico do Sporting, Aníbal Costa, veio a constatar, entregando-me então nas mãos geniais de Graça Gordo, o sargento massagista que acompanhava o mítico Manuel Marques, no clube e na seleção nacional. Que fez por mim tudo o que era então possível. A complexidade das operações ao meu joelho aumentou entretanto bastante, como que correspondendo à passagem do tempo...

Mas voltemos ao hospital no Porto, à casa de saúde da Carcereira, nesse ano de 1969. Por ali estive uns oito dias, porque essa era a regra, mesmo para uma simples rotura de menisco. 

Num desses dias, vi entrarem-me pelo quarto dentro duas freiras. Pensei que se tratasse da assistência religiosa do hospital. Não era. Uma das senhoras explicou-me que era a madre superiora do Lar de Santa Teresa, onde então estava hospedada a minha namorada (hoje minha mulher), que estudava no Porto. Fiquei imensamente grato. A visita das freiras era um gesto de uma enorme simpatia.

A nossa conversa, se bem que agradável, não foi muito longa. Fui dando conta que a madre superiora olhava, com alguma curiosidade, para os dois ou três livros (agora tenho também três livros comigo...) que eu tinha levado para ler durante o internamento. Um deles, o que estava mais à vista sobre a mesa de cabeceira, era a biografia de Léon Trotsky, na versão francesa “Ma Vie”, numa edição de bolso (um bolso “largo”, porque era um calhamaço), da “Poche” (por onde andará?)

Ao despedir-se, aproximando-se da cama, notei que ela fixou muito o livro. Não excluindo poder ter sido apenas uma perceção minha, fiquei a achar, para sempre, que ela mudou para uma cara bastante mais “fechada” do que a que antes me dedicara. Com que impressão terá ficado a madre superiora do namorado da sua hóspede, a ler o teórico da “revolução permanente”?

Não espero vir agora a receber, aqui pelo hospital, a visita de nenhuma freira. Se acaso isso viesse a acontecer, a única biografia que ela iria encontrar à minha cabeceira era a de Chencho Arias, um amigo diplomata espanhol de quem, há dias, em Badajoz, comprei o divertido “Yo siempre creí que los diplomáticos eran unos mamones”. Que diabo pensaria ela de mim ao ver tal título?

quinta-feira, setembro 26, 2019

Kildare


Quando a nossa televisão era uma criança, a série “Doutor Kildare” fazia-nos sonhar com hospitais similares àqueles que a América tinha, num tempo em que, por cá, quase tudo, nesse domínio, era uma apagada e vil tristeza. 

As séries “hospitalares” era muito raras, pudicas nas imagens, sem sangue à vista e nelas as relações humanas tinham então imagens com a delicadeza da que aqui mostro, que hoje, pela certa, dava origem a um processo por assédio.

Como diz, a cada passo, um amigo meu: “Isto já não é o que era!”

quarta-feira, setembro 25, 2019

Hoje estou no cinema


Hoje estou no cinema


Hoje estou no cinema


Hoje estou no cinema


Hoje estou no cinema


Hoje vou ao cinema


A fugir à polícia


Este não é um texto fácil de escrever. É que, ao fazê-lo, mesmo para descrever uma simples realidade, sou já obrigado a encontrar artes para conseguir fugir ao “policiamento” semântico.

Um dia, em Luanda, fui com um amigo negro (devia ter escrito “afrodescendente”?) , hoje figura de destaque na vida política local, a um cocktail num hotel. A certa altura, quis chamar a sua atenção para alguém que estava do outro lado da sala, que eu tinha ideia de já ter conhecido antes. Expliquei que era "aquele tipo baixo, de casaco escuro, encostado à janela". Havia duas pessoas nessas condições, pelo que foi necessário dar um outro pormenor: "É o que está a fumar". Foi então que o meu amigo reagiu: "O preto? Já podias ter dito que era o preto...". Assim era, mas eu estava a hesitar dizer-lhe isso a ele, também preto, ou negro. E não disse.

Mais recentemente, na minha terra, em Vila Real, cruzei-me na rua com um amigo do tempo de liceu. Vinha acompanhado de um homem negro, que eu não conhecia e que ele me apresentou. Na conversa que entabulámos, falou-se da criminalidade na cidade. Referi que não sentia a menor insegurança nas ruas, mesmo à noite. A pessoa que tinha acabado de me ser apresentada corroborou, em absoluto, a minha perceção. Virando-se para ele, o meu amigo retorquiu, risonho: “Ora, ora! A ti, com essa cor, à noite, ninguém te ataca, porque ninguém te vê!”. Rimos os três, sem constrangimento. Mas, por um segundo, perpassou-me um leve incómodo, por ser a cor daquele homem que estava na génese da piada. Devíamos tê-la evitado?

Vieram-me à memória estes episódios, ao ver a polémica, de natureza similar, que agora envolve o primeiro-ministro do Canadá, por terem sido divulgadas fotografias de uma festa carnavalesca de estudantes em que ele, há 18 anos, estava vestido de Aladino e tinha escurecido a pele para construir a personagem. Caíram o Carmo e as cataratas do Niagara, assistindo-se a Trudeau a pedir desculpas públicas por esse “pecaminoso” passado. E, pior ainda, viu-se o seu opositor político a exigir a sua cabeça, porque uma pessoa “assim” mostrava não ter qualidades para dirigir aquele país.

Reconheço que são hoje inaceitáveis práticas e atitudes discriminatórias que, no passado, eram toleradas e não objeto de censura ou rejeição. O mundo evoluiu e ainda bem. Mas se nessa evolução não for possível preservar um margem sensata de adaptação temporal, feita de compreensão, tolerância e bom senso, o novo mundo acabará por ser perigosamente “orwelliano”.

terça-feira, setembro 24, 2019

“Order!”


Aos leitores deste espaço a quem tal possa interessar e que tenham possibilidade de o fazer, recomendo vivamente a leitura da decisão da Justiça britânica, relativa à suspensão do Parlamento.

Escrito numa linguagem que combina o rigor jurídico com o estilo político, este interessante documento de 24 páginas ensina-nos mais sobre a filosofia do sistema britânico do que muita bibliografia que possamos consultar.

Por mim, não dei por mal empregue o tempo que dediquei a esta leitura.

Pode ser lida aqui.

segunda-feira, setembro 23, 2019

Vandalismo legal


Aparentemente, a Comissão Nacional de Eleições considera não haver qualquer ilegalidade na execução da pintura que militantes do Bloco de Esquerda efetuaram na parede do Instituto Superior Técnico, como a imagem documenta. 

Deve tratar-se de uma lei antiga, remanescente dos tempos da Revolução, que ninguém ousa propor que seja revogada, para não ser acusado de reacionário.

Na democracia madura em que vivemos, é perfeitamente incongruente que uma propriedade, pública ou privada, possa ser sujeita a este tipo de práticas, feitas sem autorização dos proprietários, que podiam ser simpáticas e até politicamente admissíveis em 1974/76, mas que já não se justificam nos dias de hoje. 

E se a todos os partidos desse na real gana desatar a colocar pinturas em todas as paredes e prédios “apetecíveis” deste país? Pelos vistos, até seria legal! Imagina-se o espetáculo...

Neste caso, será o orçamento do IST, pago por todos os contribuintes, a ter de arcar com os custos da restauração da parede.

Num sistema político moderno, a propaganda eleitoral tem lugares próprios, com tempo de exposição limitado, distribuídos por forma a não agredir a paisagem urbana, evitando tornar-se numa constante poluição visual. 

Por exemplo, o que, desde há vários meses, se passa em locais de Lisboa como o Marquês ou a praça de Espanha, é uma vergonha para a cidade e para a imagem do país.

Salvo em ditaduras e regimes autoritários, bem como em algumas democracias subdesenvolvidas, não conheço país onde este exagero de agressão propagandística, por parte das máquinas e agentes políticos, seja tão ostensivo como em Portugal. 

Sei que falar nisto não dá votos a ninguém, mas seria um ato de grande responsabilidade cívica ver alguém propor a revisão da legislação que, pelos vistos, ainda permite este tipo de coisas.

Repito: o ato levado a cabo pelo Bloco de Esquerda pode ter sido legal. Porém, um partido como o Bloco de Esquerda, que afirma pretensões de acesso ao poder, deveria, como prova de maturidade, abster-se de levar à prática ações desta natureza. Só lhe ficaria bem e daria razões aos portugueses, cujos votos pretende conquistar, de que são um partido responsável. Assim, continuam a dar a ideia de serem apenas os netos dos “pinta-paredes”...

“Sank roo doe noo”


Os muitos dias em que andei à boleia pela Europa, na viragem dos anos 60 para 70, trouxeram-me experiências curiosas. Uma leitora qualificava-as ontem, num comentário, como “aventuras”. Não estou de acordo: foram sempre viagens serenas, com episódios interessantes e às vezes pitorescos, mas nunca configuraram o menor registo aventureiro. Não faz o meu género...

Um desses episódios passou-se três dias depois da refeição “memorável” em Bouillon, que ontem contei. Eu partia do Luxemburgo para Paris, onde tencionava ficar uns dias mais, antes do retorno a Portugal, nesse ano de 1971. Na localidade industrial de Longwy, à saída do Luxemburgo, um “carocha” com matrícula alemã parou para me dar boleia. Eram dois militares americanos, que estavam numa base na Alemanha, que iam passar um fim de semana à capital francesa. A boleia era assim direta para Paris. A mim dava-me um jeitaço! Como eles não falavam uma palavra de francês, ficaram igualmente encantados em que eu os ajudasse a chegar ao seu destino.

A mais proeminente referência parisienses que traziam, para além do hotel, dos "trottoirs" da rue Saint-Denis e de alguns locais congéneres de Montmartre, onde iriam “concentrar” os seus escassos dias, era o "Harry's Bar".

Para quem não saiba, o “Harry’s Bar” parisiense (o nome é vulgar pelo mundo, mas os mais clássicos, embora de natureza algo diferente, estão em Veneza, Roma e Florença, e merecem uma visita, em especial o primeiro), foi, por décadas (não sei se ainda será), um lugar de culto, uma barra alcoólica quase obrigatória para expatriados do outro lado do Atlântico, por onde passaram “batalhões” de militares americanos. Foi no “Harry’s Bar” que muito parou Ernest Hemingway, o qual, ali bem próximo, a “walking distance”, fez história, aquando da libertação de Paris, ao ter tomado a decisão de “libertar” das “garras nazis” esse ponto “estratégico” que era o bar do Hotel Ritz, que ainda hoje conserva o seu nome.

Por muito tempo, o então New York Herald Tribune (depois, International Herald Tribune, hoje, International New York Times), que foi criado como um jornal para os americanos na Europa, incluía, na sua última página, publicidade ao Harry's Bar, onde o respectivo endereço - 5, rue Daunou - era apresentado em transcrição fonética, por forma a permitir ao consumidor yankee dizê-lo com facilidade ao taxistas parisienses: "Just tell the taxi driver: sank roo doe noo"...

Voltemos à boleia que os militares americanos nesse dia me davam. À época, o meu conhecimento de Paris, em especial fora do centro, era bastante limitado. Lembro-me que, por quase uma hora, os fiz perder por bairros periféricos, com os militares a começarem a perder a paciência e comigo a usar o meu francês, com transeuntes que cruzávamos, para tentar chegar à Opera, de onde eu sabia o caminho para o bar.

Finalmente, chegámos! Fiquei-me pelo gin tónico que me ofereceram, porque tinha de ir à procura de alojamento e, decididamente, os nossos planos para os dias seguintes não coincidiam. Vi-os iniciar o fim-de-semana com um Bourbon duplo e logo imaginei o que aí viria. Escapuli-me quando pude, não sem que antes lhes tivesse deixado imensas notas desenhadas no "Paris à vol d'oiseau", um mapa da cidade então muito em voga. Pode-se imaginar que o Louvre e outros polos culturais parisienses não faziam parte dessas notas orientadoras...

Só para lembrar