terça-feira, junho 11, 2019

Ruben de Carvalho


Era uma força da natureza. Culto, interessado por tudo, tinha uma vivacidade e um permanente gosto pela modernidade das coisas. Militante do PCP, foi, por muitos anos, nesse partido, a alma da Festa do Avante. Nos dias de hoje, no Comité Central, era o único dos seus membros que tinha estado nas prisões da ditadura.

Conheci-o em 1973, num debate no Centro Nacional de Cultura, sobre umas recentes eleições em França. Depois, foram os almoços estivais em casa de Bartolomeu Cid dos Santos que nos voltaram a juntar. Com o Jaime Nogueira Pinto, protagonizou um improvável mas muito interessante programa de debate na RDP.

Com ele, sai agora de cena um certo PCP. Quem o conheceu sabe o que quero dizer com isto.

segunda-feira, junho 10, 2019

O ar do tempo

Há um país que se sente mal neste país. Há um país que acha que o país o não segue ou, quando acaso episodicamente o faz, nunca consegue pôr o país a seu jeito. Há um país com uma infindável raiva, que acha que o país o não compreende, que vive num mal-estar endémico, em “blues” eternos. Há um país que acha que tem uma ideia salvífica para o país, a mezinha mágica para pôr isto direito, mas que o país, pateta, não consegue nunca entender. Há um país sobranceiro, arrogante, feito de gente que, afinal, apenas gostava que o país fosse aquilo que eles acham que o país devia ser. E que, talvez não por acaso, não é.

Esse país, que agora por aí anda com a bílis à solta, não gosta do país que tem, não gosta afinal do país que lhe deu a liberdade de não gostar do país. É o país tremendista do “nós” e do “eles”, em que estes últimos são o sujeito de todos os males, que só não são curados porque a “nós” não é dada a possibilidade de os corrigir. Esse país que agora anda muito vocal, mas que nunca fez nada pelo país, é filho incógnito daqueles a quem, em todas as épocas da nossa História, sempre desagradou o país que tinham. Para esses melancólicos iluminados pelas luzes da outra verdade, isto sempre foi uma “choldra”, uma “seca” feita país, a que urge abrir as portas e as janelas, deixando entrar o ar do tempo. O deles.

No passado, esse país indisposto com o país, era então o estrangeirado. Lá fora estavam todas as soluções, só era necessário importá-las para que a modernidade das ideias, afinal tão óbvia, pudesse aqui frutificar e dar-lhes, finalmente, a glória dos profetas. Com Abril, desembarcaram em Santa Apolónia, com livros e ambições de reconhecimento. O país, que tem da generosidade o sentido da medida, deu-lhes o que era devido. Não mais. 

Mas a semente, qual OGM, mudou de qualidade, transmutou-se. O país do despeito transitou entretanto de geração, ilustrou-se nas Américas, leu Popper e, enterrando o latino, anglo-saxonizou o seu projeto. Andou os últimos anos a fazer livrinhos, acolhido em universidades de receita segura, colunizando-se pelas plataformas da moda. Nos partidos, onde se muda a política com a legitimidade das vontades expressas, entram e saem, nervosos, à medida das ambições, falhos de votos e reconhecimento. Cavalgando as inseguranças de muitos, as dúvidas de uns tantos, os temores de alguns, ei-los agora a adubar de populismo os seus discursos, tentando que os dias do país se confundam com os da sua raça.

Quem os topava bem era o O’Neill, que os citava, definitivos e, no entanto, tão tristemente provisórios: “Não, não é para mim este país!”. E era também um poeta, imaginem!, de Portalegre, Régio de seu nome mas republicano de gema, quem lhes respondia, quem lhes responde, em nome do país: “Não vou por aí!”

Daqui a pouco...


A RTP e o futebol português


Muitos portugueses pelo mundo, que se habituaram a ver a RTP Internacional, mostraram-se ontem bem frustrados por não terem podido assistir à vitória de Portugal sobre a Holanda, na final da Liga das Nações. Esta queixa é, aliás, recorrente noutras competições internacionais transmitidas pela RTP.

Fui tentar saber o que se passou.

Nos grandes campeonatos, negociados pela UEFA/FIFA, cada país só consegue adquirir os chamados direitos territoriais (para o seu território geográfico), e isto acontece com os Mundiais, os Europeus e, agora, a Liga das Nações.

É a própria UEFA (FIFA, no caso do Mundial) que vende diretamente estes jogos para os territórios internacionais (EUA, Ásia, África), não permitindo aos canais internacionais dos operadores europeus transmitirem estes jogos, aliás obrigando a fazerem o “geo blocking”, ou seja colocar outro conteúdo nessa emissão ou colocar uma nota a dizer que não existem direitos de transmissão. Todos os outros operadores internacionais, aliás, têm o mesmo problema, como se perceberá se os tentarmos sintonizar nessa altura. Se acaso a RTP procedesse de forma diferente, teria de arcar con muitas milionárias.

A RTP sabe bem que esta é uma frustração para os portugueses que vivem pelo mundo, mas a solução não está, de todo, na sua mão, nem aliás, como referido, de nenhum outro operador europeu, quando se trata de grandes competições organizadas pela UEFA/FIFA.

É esta a explicação. É pena, mas é assim!

O fado colonial



Anos 80, Luanda. António Pinto da França, o magnífico embaixador de Portugal em Angola com quem eu trabalhava, nesse tempo muito difícil das relações entre os dois países, procurou usar a comemoração do Dia de Portugal para acentuar uma forte nota portuguesa na capital angolana. Pelo que decidiu fazer uma receção que tinha o fado no seu centro.

Na embaixada, o assunto foi discutido, com alguns de nós a achar que a Angola oficial podia ver a iniciativa como saudosista e passadista, como um sublinhar de um Portugal de outros tempos, que por ali então se condenava, nos ataques quase diários na imprensa de que éramos objeto. 

António Pinto da França via, em geral, as coisas com muito mais presciência que nós e, diga-se desde já, a receção acabou, contra as nossas reticências, por ser um grande sucesso. 

Nas vésperas, contudo, havia ainda algum nervosismo sobre a eficácia do gesto. E eu, divertido, contribuí para aumentar a confusão. 

A fadista vinda de Lisboa, convidada pela embaixada, chamava-se Luz Sá da Bandeira. E para o que me deu então? Em conversas à margem de um jantar oferecido à artista, na véspera do 10 de junho, deixei discretamente “cair” junto de algumas pessoas que a embaixada soubera que, às autoridades angolanas, estava a causar alguns engulhos o facto do nome da fadista ser, precisamente, o de uma das principais cidades do país, cujo nome tinha sido mudado pela independência.

Para varrer a memória colonial, Angola tinha procedido a uma forte alteração toponímica, que afetara as ruas de Luanda (as quais, à época, se assemelhavam ao glossário de uma História do Movimento Operário...) e da grande maioria das cidades: Nova Lisboa passara a Huambo, Carmona a Uíge, Serpa Pinto a Menongue, Henrique de Carvalho a Saurimo, etc... E a cidade de Sá da Bandeira chamava-se agora Lubango. 

Nas conversas, perguntei a algumas pessoas, como quem não quer a coisa, se tinham ouvido alguma reação ao assunto, por parte de alguém. Ninguém tinha ouvido nada, mas, naquele microcosmos que era o Portugal expatriado que vivia à volta da embaixada, a minha referência colocou logo o assunto a correr.

A certo momento, António Pinto da França aproximou-se de mim e perguntou: “Ouviu alguma coisa sobre uma reação dos angolanos, por causa do nome da fadista? É que correm por aí uns zunzuns”. Fiz uma cara séria e disse: “Sabe, eu não lhe quis dizer nada, mas também já me chegou isso. Mas acho que havia uma solução fácil”. O embaixador olhou para mim com ar perplexo e expectante. “A melhor maneira de dar a volta ao problema era, amanhã, na festa, ao apresentar a senhora, começar por dizer “Temos aqui connosco hoje Luz Sá da Bandeira ou, se quiserem, Luz Lubango...””

António Pinto da França olhou para mim como se eu tivesse ensandecido. Começou a reação com um “Ó Francisco, você não pode estar a falar a sério...” E foi o meu sorriso, subitamente aberto numa gargalhada, que, num segundo, o convenceu que estava perante uma patranha inventada pelo seu jovem colega. Caramba! Ele que era um mestre em “partidas”, em invenção de cenas falsas em que alguns de nós frequentemente “caíamos”, recebia finalmente uma de volta...


Neste 10 de junho, sinto muitas saudades do meu amigo António Pinto da França.

sábado, junho 08, 2019

A agenda do presidente

Passou bem mais de uma semana. E, desde então, as palavras do presidente da República, ditas perante legisladores americanos, foram glosadas até à exaustão.

Para o que aqui me importa, Marcelo Rebelo de Sousa disse na altura que, muito provavelmente, o país iria assistir a uma crise na direita, mas que ele, um presidente oriundo dessa mesma direita, funcionaria como um fator equilibrador.

O presidente não “dá ponto sem nó”. Depois ter ter sido tão estranhado o seu silêncio na chamada crise dos professores, mesmo com a ameaça de demissão de António Costa, ele decidiu colmatar esse seu pontual défice de presença pública e veio a terreno, um tanto inopinadamente, comentar, no fundo, os efeitos que, a prazo, o resultado das eleições europeias poderiam vir a ter.

O presidente deixou claro a sua perspetiva de que, salvo um imprevisto, as próximas eleições legislativas acentuarão o declínio dos dois partidos da direita. Implícito ficou que, nessa possível conjuntura, poderia ocorrer uma instabilidade nas respetivas lideranças, em especial se ficarem com  grupos parlamentares reduzidos e, por isso, impotentes.

Nesse contexto, da perspetiva de uma governação forte titulada pela esquerda, com uma orfandade nos setores tradicionalmente votantes à direita, ele, Marcelo Rebelo de Sousa - repito, oriundo dessa direita - surgiria, sob autoridade constitucional, como um fator compensador do regime, um contraponto, não deixando que uma parte do país o sentisse “acaparado” pela outra, na expressão nacional dos poderes. No fundo, Marcelo Rebelo de Sousa quis, muito simplesmente, dizer que, por esse motivo, sente um imperativo em se recandidatar.

Podemos perguntar-nos se é natural um presidente exprimir-se publicamente desta forma, ao jeito de comentador, sabendo que a sua palavra pesa bastante e pode impactar sobre a própria realidade. Não é, mas Marcelo pressente que tem o dever (político, não institucional) de atenuar a inquietude que atravessa o campo conservador que maioritariamente o elegeu, atalhando o desespero que aí pressente existir. É claro que isso pode levar à questão de saber se um presidente “de todos os portugueses” deve sugerir-se como especial representante de alguns. Não deve, mas Marcelo faz uma interpretação muito peculiar do seu papel presidencial e deve achar que esta eventual subversão de papéis públicos pode acabar por ser um fator de “acalmação” no país.

Na política, como na História, nada se repete. Porém, vale a pena lembrar como Mário Soares acabou por funcionar como contraponto, para a esquerda, nos “anos de chumbo” que esta passou sob a governação de Cavaco Silva. No final, recorde-se, Soares saiu incensado em glória e na memória coletiva da esquerda, com muita direita aos seus pés. Estou em crer que um cenário simétrico não desagradaria a Marcelo de Sousa

sexta-feira, junho 07, 2019

Escrito, faz hoje 10 anos, neste blogue

A vida política do Reino Unido tem, para o equilíbrio global da Europa, uma importância muito maior do que às vezes se supõe. A crise que atravessa a liderança britânica, no que pode vir a representar de mudança no paradigma de comportamento de Londres face ao projecto europeu e do seu potencial impacto na "special relationship" com os Estados Unidos, acaba por ser um tema que diz respeito a todos nós.”

(7 de junho de 2009)

quinta-feira, junho 06, 2019

O Foguete


”Apanhava-se” em São Bento. Era um comboio prateado, a jóia da coroa da CP. Do Porto a Lisboa, levava um pouco mais de quatro horas. Ia a “cem à hora”, imaginem! Era o máximo! Andei nele, pela primeira vez, em 1955. 

Na poesia de António Gedeão, Filipe II tinha tudo o que queria, mas ”o que ele não tinha era um fecho éclair”. Ora o Foguete, nesses anos 50, tinha imensa coisa, mas não tinha WiFi (e, estranhamente, ninguém dava por isso). 

Pois, pois! Hoje, o Alfa Pendular, que demora menos de três horas a ligar as duas cidades, também não.

quarta-feira, junho 05, 2019

Ganhar o dia


Hoje, já ganhei o dia. Numa manhã no Instituto de Defesa Nacional, numa organização em articulação com a FLAD, ouvi um especialista belga sobre o “Regresso da Política das Grandes Potências e a Defesa europeia”, um académico americano sobre “As relações transatlânticas - o caminho futuro” e uma investigadora sueca sobre “Segurança Climática - um desafio global”. Três motivantes apresentações, que suscitaram interessantes debates. 

Por Lisboa passam, nestes tempos, figuras que enriquecem as nossas perspetivas e obrigam a pensar, não apenas “fora da caixa”, mas, principalmente, abalando leituras demasiado rígidas e rotineiras. Quem estiver atento, pode ganhar muito com a sua presença nestas ocasiões.

Uma pessoa sentada ao meu lado notava que estávamos perante intervenções bastante fora do “mainstream” oficioso. Ora é precisamente disto que o nosso debate precisa. Ouvir atores do poder ou que o representam pode não ser um tempo totalmente perdido, mas é, quase sempre, um “déjà vu”.

A Polícia e a democracia


Tenho o maior respeito pela Polícia de Segurança Pública. Nos últimos anos, todas (repito, todas) as minhas experiências de casual contacto com agentes dessa corporação foram extremamente positivas, evidenciando, da sua parte, um saudável profissionalismo, muito distante do autoritarismo de outros tempos. 

Sei das difíceis condições remuneratórias em que os agentes da PSP vivem, que os obrigam a uma vida espartana, às vezes passando o limiar do aceitável. Não raramente, interrogo-me mesmo se é legítimo exigir a esses agentes, frequentemente oriundos de ambientes sócio-económicos com grandes dificuldades, uma conduta de relacionamento exemplar, operando eles nas condições em que atuam. Há muito a fazer neste domínio.

Imagino, em especial, a dificuldade dos membros das forças de intervenção, em situações de elevado stress, quando objeto de provocações e sujeitos a conjunturas de grande tensão psicológica. E não posso, nesses instantes, deixar de pensar que eles são a nossa derradeira linha de defesa da ordem, em contextos de violência e potencial rotura da paz pública.

Tudo o que escrevi, e que é muito sincero, surge às vezes abalado pelo conhecimento de atuações policiais que relevam de uma cultura de racismo, xenofobia e discriminação. Admito que possa haver, aqui ou ali, algum exagero nessas denúncias, mas algum “fogo” deve haver no meio de tanto “fumo”. E o facto de, numa atitude de persistente corporativismo, se manter, por parte das suas organizações sindicais, uma teimosa recusa em reconhecer os erros dos agentes culpados desses atos, ajudando a separar “o trigo do joio”, acaba por ser uma mancha triste sobre a imagem da polícia e uma acha na fogueira de descrédito de quantos procuram denegri-la e afetar a sua autoridade junto da sociedade.

A forma bem lamentável como sindicatos da PSP agora se comportaram face a um seu colega, que procurou alertar para a necessidade de confrontar com coragem uma cultura discriminatória que, tal como em outros setores da sociedade, impregna a ação de agentes das forças policiais, foi um um imenso desserviço prestado à corporação. Atitudes como esta contribuem também para explorar a circunstância, bem conhecida, de que agentes das forças policiais integram hoje grupos de extrema-direita e desenvolvem atividades à margem das normas constitucionais.

A nossa polícia é o garante da ordem da democracia. Não se defende o sistema democrático com recurso a métodos que deixam de depender da autoridade para passarem a relevar do autoritarismo.

(Artigo que hoje publico no “Jornal de Notícias”)

Jacobs


Nenhuma das obras-primas de Edgar P. Jacobs - como “A Marca Amarela” ou “O Mistério da Grande Pirâmide” - estava em saldo na Feira do Livro, na noite de ontem. Essas glórias da escola belga da banda desenhada tinham apenas as reduções habituais da ocasião.

Em forte “rebaixa” estavam apenas os trabalhos dos seguidores de Jacobs, publicados depois da desaparição deste. Alguns até não são maus de todo, outros são bastante menos bem conseguidos.

Há, assim, qualquer coisa de justo no facto de estes serem os únicos a surgirem “despachados” a preços reduzidos...

Na morte de Agustina


Como alguns bem notaram, a esquerda esteve demasiado ausente das homenagens finais a Agustina. Pode dizer-se que o fez para evitar ser acusada de hipocrisia. Porém, a dimensão da escritora justificaria outra postura. Até para evitar que ela se torne num ícone cultural da direita.

Trump em Londres


O comportamento de Trump em Londres era previsível. Mas a subserviência britânica, sem a menor reação da parte do governo, em face das constantes ingerências na política interna do país que o acolhia, é francamente chocante. E o silêncio medíocre de Theresa May, ao ouvir os ataques soezes ao Mayor de Londres é muito triste.

Cartazes

Não seria possível livrarem-nos dos cartazes eleitorais que ainda enxameiam a nossa paisagem? Não há uma lei para isto? Se há, quem a faz cumprir? Ou será que há, no fundo, um conluio entre os partidos?

A ajuda da Geringonça

Há uma “conquista” doutrinária que deve ser posta a crédito da Geringonça: ter colocado a direita a queixar -se da falta de investimento público, preocupação que não costuma estar nos seus genes.

Que diria Marcelo ?


Em política, o atual presidente da República sabe mais a dormir (e ele dorme pouco) do que a maioria da classe política da paróquia acordada.

Sendo assim, tenho absoluta certeza de que, ao proferir as suas já famosas declarações na FLAD, de prenúncio de uma “crise da direita”, para ela se insinuando como terapia compensatória de equilíbrio do regime, sabia perfeitamente que iria gerar um tsunami de críticas.

Isto leva a que seja legítimo que nos interroguemos sobre o seu real propósito, ao dizer o que disse.

E como eu gostaria de ouvir o comentador Marcelo Rebelo de Sousa a dissecar, com bisturi crítico, o que foi dito pelo chefe de Estado, nessa ocasião!

Um dia, em Paris, com Marcelo presente, Eduardo Lourenço comparou essa tarefa de comentador de muitos anos a alguém de uma pequena localidade que está numa varanda, vendo passar as pessoas na rua, e sobre elas se vai pronunciando. E Lourenço acrescentou: “Às vezes, da varanda, ele vê passar, na rua, Marcelo Rebelo de Sousa e, claro, também o comenta...”

Não desesperemos, pois.

terça-feira, junho 04, 2019

Os óculos


Os meus óculos estavam “cansados”. A vista vai-se alterando. O oftalmologista confirmou: tinha de mudar de óculos. E assim fiz. Já agora, mudava também de tipo de óculos. Estava um pouco farto dos que usava, ia para duas décadas. Eu até sabia muito bem o que queria - na cor e no design. E lá fui ao oculista, dos bons, isto é, dos caros. Expliquei tudo. Com o Google à mão, mostrei mesmo uma fotografia do modelo desejado. A senhora “foi ver”. A mesa começou a encher-se de pares de óculos, de todas as cores e feitios. Fui afastando um a um aqueles de que não gostava, os que, dizia ela, me faziam “mais velho”, os que, também segundo ela, não davam com o meu “tipo de cara”, os “pesadões”, os “demasiado desportivos”, os que eram “mais do mesmo”, face ao que já usava, etc. E eu ia concordando. Tenho muito escassa pachorra para perder tempo com compras (salvo livros, queijos, blocos de papel e champôs). E já por ali estava, em frente ao espelho, há uns bons vinte minutos, “morto” por me safar. Mas continuavam a chegar pares de óculos. Que eu ia afastando. Para o fim, ficaram dois ou três a que eu achava graça, que ela achava que me “ficavam lindamente”, que “dizem muito bem consigo”, que “lhe dão um aspeto mais jovem”. Um dos pares, de facto, agradava-me bastante. Preço? “São caros, mas são excelentes”. A senhora era simpática, delicada, profissional, nada “pushy”, tinha todo o tempo do mundo. Eu não. “Pronto! Levo estes!”. Liberto da tarefa, paguei, aliviado. Voltei lá dias depois, levantei os óculos. Gostei, estavam excelentes, via muito bem com eles, gostava do modelo. Depois, a reação foi a esperada: “São uns óculos bonitos, ficam-te bem, mas não têm nada a ver com aqueles que tinhas intenção de comprar!” Era verdade: não havia a mais leve semelhança entre aquilo que eu queria quando cheguei à loja e o que acabara por adquirir. Por que será que sou assim?

Económico


Eduardo Teixeira lança amanhã, pelas 18:00 horas, no Grémio Literário, o seu livro “E agora, Portugal?”, uma recolha de textos da sua coluna “Tribuna Social”, no semanário “Jornal Económico”, um órgão em que ambos colaboramos. Desafiou alguns amigos para fazerem curtos comentários aos seus textos. Fui um deles. Transcrevo aqui o que lá figura da minha autoria e que intitulei “Banca para que te quero?”: 

Que banca temos, ou melhor, que banca não temos é bom mote para uma reflexão. Eduardo Teixeira fala-nos dos banqueiros de outro tempo e do que disso (quase não) resta em mãos nacionais. Aquando da recapitalização da Caixa Geral de Depósitos, deu-me para perguntar, num artigo de jornal, para que servia termos um banco de capitais públicos se, afinal, este era obrigado a comportar-se exatamente como os congéneres privados, se lhe estava vedada a possibilidade de servir de instrumento das políticas públicas, dos interesses do acionista Estado. Não tive resposta, que não fosse a suspeita de estar a sugerir a privatização da Caixa ou, pecado dos pecados, querer fazê-la regressar a um fundo de maneio dos políticos. Hoje, ninguém responde: temos um banco público, porque sim! 

A crise financeira contribuiu para o “sonho” europeu: concentrar progressivamente unidades, dando-lhe escala europeia ou regional, sujeitando-as à supervisão que, antes da crise, muitas vezes faltou, reforçando o controlo de Frankfurt sobre todo o tecido financeiro. Mas o outro lado da moeda não existe: a falta de vontade política trava, ainda hoje, na Europa, a constituição dos mecanismos coletivos de responsabilização. Mas, por cá, já demos para o peditório europeu: fomos cobaias de uma experiência que pagámos com língua de palmo, nacionalizámos os prejuízos (que ainda não acabaram) e alienámos, sem retorno, ativos que existiam. Mas não há alguns bons bancos por aí? Claro que sim, até com boa e competente gestão. São nossos? Salvo a Caixa e uns trocos, são tão nossos como o anticiclone dos Açores.”

segunda-feira, junho 03, 2019

Uma esquina ao sol


Hoje, estava uma tarde magnífica de sol, naquele cruzamento entre as ruas Castilho e Barata Salgueiro, onde eu fazia horas para uma reunião.

Olhei para a Sociedade Nacional de Belas-Artes, sob a cor imperdível dos jacarandás da rua, e lembrei-me de que foi ali que, pela primeira vez, vi Mário Soares.

Era o início de uma noite de 1969 (já meio século, caramba!), em que o então líder da oposição socialista pretendia ali organizar uma "sessão de esclarecimento". A polícia proibiu o "ajuntamento" e recordo-me bem de ouvir Soares, com voz forte e indignada, contestar a decisão, fazendo face ao famigerado capitão Maltez, antes deste ter ordenado a dispersão daquelas dezenas de pessoas, "por ordem do governo". Antes, Soares perguntou, jocoso e corajoso: "E que ministro é que deu a ordem? O da Agricultura?". Um grande jarrão, à entrada de um restaurante chinês que existia um pouco mais abaixo na rua, atrás do qual me refugiei com uma amiga, ia sendo a vítima colateral da subsequente fuga das dezenas de circunstantes e frustrados participantes na sessão. 

Mas já ali não estive - e com que pena o digo! - no ano seguinte. Na primavera de 1970, um divertido grupo de amigos decidiu montar na Sociedade Nacional de Belas-Artes uma "operação" com laivos teatrais, destinada a "apanhar em falso uma certa elite que então brotava no mundo das artes e que primava pelo discurso hermético e oco". Tratava-se de uma sessão de homenagem ao "sábio" belga Alphonse Peyradon, a convite do "Círculo de Estudos da Massificação Urbana (em organização)".

O "sábio" (Peyradon era um nome que recordava "pai Adão/père Adam") fez uma intervenção tida como “notável”, misturando física com filosofia, chegando ao ponto de defender que havia vestígios de música popular portuguesa em peças de Bach e Beethoven, que o advogado Vasco Vieira de Almeida entretanto interpretava ao piano.

A sessão terá decorrido de forma animada mas organizada, até que o arquiteto Hestnes Ferreira, que antes havia glorificado a múltipla qualidade de Peyradon (representado por Leite de Faria), como "musicólogo, filólogo, filósofo e deficiente motor", passou a acusá-lo, de "revisionismo", o que provocou um conflito com o orador e homenageado. O presidente da sessão, o advogado João Esteves da Silva, declarou então que a homenagem passaria a "póstuma" e tentou dar dois "tiros" no sábio, que estava remetido a uma cadeira de rodas. Por um lapso organizativo, os fulminantes não funcionaram. As luzes da sala fecharam-se então e estabeleceu-se uma confusão, embora a prevista "morte" acabasse mesmo por ”ter lugar”, o que suscitou, de imediato, que fosse tocado um fado dedicado ao passamento do sábio, com uma letra muito oportuna.

A reunião terminaria em aplausos das duas centenas de presentes, nesse fantástico sarau lisboeta, a que, repito, nunca me perdoarei de não ter assistido, não obstante a informação antecipada dada pelo "Diário de Lisboa", jornal que eu, à época, religiosamente lia.

A cena e o "assassinato" teriam ficado por ali, não fora o jornalista Fernando Assis Pacheco ter publicado um divertidíssimo texto, dias depois, precisamente no "Diário de Lisboa", com chamada de primeira página. Trata-se de uma peça muito irónica, que só por lapso de leitura pode levar um incauto a acreditar na realidade daquilo que nela era relatado. O autor inseriu, aliás, uma frase magnífica, para descrever o "assassinato", um verdadeiro "overkill": "o primeiro tiro matou-o logo. O outro feriu-o à superfície".

Leia-se, com vantagem, o notável relato feito pelo blogue Ecosfera, para ter dados deliciosos da patranha, em que intervieram, para além das personalidades já citadas, António Vaz, Francisco Keil do Amaral, José Palla e Carmo, Eugénio Cavalheiro, etc.

No dia seguinte à publicação da "notícia", um qualquer estagiário da agência noticiosa "Lusitânia", que operava essencialmente para o "Ultramar", tomou-a a sério e redigiu um "take" nesse registo. Em Angola, alguns jornais levaram-no à letra e deram conta do "trágico" sucedido. A "Lusitânia" viria a corrigir o tiro, mas era já tarde. O mundo ficou a saber da feliz tragédia em forma de belas-artes.

Uma excelente história, com um grupo divertido, num Portugal de outro tempo.

O que uma esquina e uma espera nos podem fazer lembrar...

Agustina

Há semanas, escrevi sobre a biografia que Isabel Rio Novo dedicou a Agustina Bessa Luís.

Hoje, no dia da sua morte, deixo o link para uma interessante entrevista que Anabela Mota-Ribeiro fez a Agustina.

Brasil e Angola


A história política em torno da independência de Angola, em 1975, regista, em lugar proeminente, o facto do Brasil, sob ditadura militar, ter sido o primeiro país a reconhecer a República Popular de Angola, titulada pelo MPLA e presidida por Agostinho Neto.

Durante anos, fui ouvindo - em Luanda, em Nova Iorque e até em Paris - “zunzuns” de que havia ainda por contar outros aspetos da história da relação entre os militares brasileiros e os angolanos em guerra interna de poder. Mas nunca apurei nada de concreto.

Um estudo, agora conhecido (ver aqui), mostra que o Brasil manteve-se a jogar, até bastante tarde, em dois tabuleiros, com um apoio de assessoria militar às forças da FNLA de Holden Roberto, pelo menos até à histórica batalha de Quifandongo. 

É muito interessante poder ter mais este elemento para nos ajudar a aprofundar esse tema diplomático fascinante que é a relação do Brasil com a África que fala português.

domingo, junho 02, 2019

Juan Carlos


Fui oficialmente educado a detestar a Espanha. Desde os livros da escola primária, o "perigo castelhano" só me não perturbava o sono por mera inconsciência juvenil e porque, em casa, as coisas me era explicadas de outra forma. No liceu, a História do (velho) Mattoso era um apelo profundo à reconquista de Olivença e um aviso subliminar à perfídia eterna de Madrid. Com a idade, comecei a olhar para outras Espanhas, de Unamuno a Lorca. Percebi que, por ali, nem tudo começava em Primo de Rivera e acabava no primarismo de Franco. Emocionei-me com as tragédias da Guerra civil e com a sorte dos vencidos, de Guernica a Madrid, das Asturias a Barcelona. Cedo fiquei ao lado de uma das "duas Espanhas". Quando entrei para a diplomacia, encontrei ainda, pelos corredores, muitos resquícios de uma cultura anti-Espanha, instilada por décadas de doutrinação salazarenta. Só Juan Carlos de Bourbon, que, a partir de hoje, hoje deixará de ter atividade pública no quadro da família real, reconciliou Portugal, em definitivo, com a Espanha, como um todo. A Europa fez o resto. A Espanha, e com ela a península, devem muito à sabedoria de um homem que demonstrou sempre ser um bom amigo de Portugal. Em Espanha, eu teria sido "juancarlista". Embora o nome do atual rei não soe muito bem aos nossos ouvidos lusitanos, só espero que consiga seguir o bom exemplo do pai - caçadas e escapadas incluídas, porque a santidade não é deste mundo. No que nos respeita, melhor é impossível.

Desvios no património cultural


Em julho de 2017, o então ministro Luís Castro Mendes, mandou fazer uma inventariação das obras de arte que pertencem ao espólio da Cultura, uma coleção que havia sido iniciada, em 1976, por decisão do secretário de Estado David Mourão Ferreira.

Ontem, foi revelado, na comunicação social, que, como resultado dessa inventariação, se constatou que mais de centena e meia dessas obras terão desaparecido, nesse período de cerca de 40 anos.

Faz-me alguma raiva pensar que algumas pessoas, tidas como merecedoras de confiança, a quem foram entregues obras pertencentes ao Estado, destinadas a serem exibidas em lugares sob a sua responsabilidade, por incúria ou por dolo, contribuíram para que esse património tivesse um descaminho.

Algumas dessas pessoas foram negligentes, outros ter-se-ão, muito simplesmente, “abarbatado” com essas obras de arte. Embora saibamos que, para muita dessa gente, a vergonha não será um sentimento muito relevante, acho que mereciam, como “recompensa”, que o seu nome entrasse para um “quadro de desonra” pública, para além da justiça os responsabilizar pela canalhice de que foram responsáveis.

Em 2005, quando cheguei a Brasília, para chefiar a embaixada de Portugal, dei-me conta da existência, nas paredes da residência e da chancelaria, de dezenas de obras de arte de autores portugueses, algumas delas magníficas. Sem o menor encargo para o Estado - repito, sem se ter gastado um tostão, com tudo pago por mecenato - decidi reunir todas essas obras, juntando-as com outras oriundas de coleções particulares em Brasília, e organizámos uma exposição da arte portuguesa existente em Brasília, que foi inaugurada no dia 10 de junho desse ano. A comunidade portuguesa em Brasília pôde então usufruir dessa exposição, sob a curadoria de Karla Osório e a responsabilidade organizativa do então conselheiro cultural e diretor do Instituto Camões na nossa embaixada, Adriano Jordão.

Deixo aqui a imagem do catálogo dessa exposição de 2005, que, em Brasília, funciona, ainda hoje, como uma espécie de inventário das obras que ali são propriedade do Estado português.

Cidade do futuro


O “Expresso” deste fim de semana traz, na Revista, uma reportagem sobre Oslo e o caminho da capital norueguesa para se tornar uma “cidade do futuro” em matéria ambiental, graças às suas políticas favoráveis a soluções de vida sem carbono. 

Por coincidência, passam este mês 40 anos que cheguei a Oslo, para aí trabalhar na nossa embaixada. Fiquei três anos. Tenho saudades? Depende daquilo de que estivermos a falar.

Tenho (claro!) saudades de ter 31 anos, de estar no meu primeiro posto diplomático, de sentir o futuro (fosse ele qual viesse a ser) à minha frente. Tinha (herdado do meu antecessor) um andar com uma bela varanda para Holmenkollen, o monte onde fica a pista de ski e que dá alguma graça à cidade. Foi esse o meu primeiro cenário de Oslo.

Ao longo do ano, a cidade muda, literalmente, da noite para o dia: no inverno entra-se e sai-se do emprego com luz artificial, no verão o sol encandeia às quatro da manhã e conduz-se sem faróis às dez da noite. Anda-se encasacado, de gorro e luvas, por muitos meses e, à menor réstea de sol, os locais sentem necessidade de saltar para a rua (“Os adoradores do sol”, chamou aos nórdicos Fernando Namora, num seu livro. O tema havia também sido tratado por José Gomes Ferreira, que foi vice-cônsul em Kristiansund, há quase um século, no “Tempo escandinavo”). 

O meu trabalho era apenas medianamente interessante (a Noruega não é um posto importante na nossa carreira) e tive sempre uma vida nada fácil em termos de gastos (ontem como hoje, Oslo é “fogo” em matéria de preços). Mas achei alguma graça à experiência, talvez ainda mais por, em seguida, ter ido parar “com os costados” a uma Luanda em guerra civil e com mil privações. 

Oslo era uma cidade que, chegado de Lisboa, eu via como demasiado calma, “uma Estocolmo com dez anos de atraso”, como então alguém por lá me dizia. Tudo fechava muito cedo, havia já um arraigado culto da natureza, que eu nunca me habituei a comungar (verdade seja que não me esforcei rigorosamente nada), um sentido nacional muito forte (anos depois, um fascista nacionalista provocaria por lá um impensável massacre) e um quotidiano marcado por uma esforçada (e quase arrogante) simplicidade espartana. O ski de fundo, as caminhadas pelos bosques, os desportos de natureza (o “orientering” era um vício), a bicicleta, etc - tudo isso fazia parte de um mundo a que eu era 100% alheio. 

Na carreira diplomática há, muitas vezes, uma tendência para nos deixarmos “apanhar” pelas coisas, hábitos e até ideias locais. Nunca fui dessa escola do “go native”: mantive-me sempre uma orgulhosa “ilha” em todos os locais onde vivi - da gastronomia aos lazeres e ao resto dos costumes, “visitando-os” apenas com curiosidade quase etnográfica. E nunca me dei mal com essa independência cultural de vida, confesso. 

Em Oslo, consegui encontrar, em especial em estrangeiros e diplomatas, muitos companheiros de recusa obstinada aos hábitos locais. Íamos nadar para piscinas públicas e, no fim, depois de uma sauna, parávamos numa espécie de lojas de rua com comida (as “gatekyøkken”) onde, em minutos, recuperávamos as calorias perdidas. Pizzas e grandes noitadas, com muita música, contribuíam para compensar passeios de ski onde, para escândalo dos meus amigos noruegueses, eu teimava em levar um pequeno vasilhame metálico com um líquido escocês de apoio. Mas se há coisa que eu, para sempre, aprendi em Oslo foi o prazer no usufruto das longas noites.

Depois de lá viver, voltei algumas vezes, a última das quais por três dias, quando estava em Paris. Fiz então o tradicional circuito dos locais onde vivemos (“aqui havia um loja de móveis, não era?”) e das cada vez menos pessoas que já por lá conhecemos (“lembra-se daquele jantar no palácio em que...”). Acabado que foi o reconhecimento ritual, esgotados os contactos, demos por nós perdidos na Karl Johans gate, sem rigorosamente nada para fazer, sem paciência para mais museus, já sem encontrar graça nas prateleiras do Glassmagasinet, sem jornais a comprar no Narvesen, sem nos passar pela cabeça ir ver cinema ao Saga ou passear pela Vika. Até resistimos a ir a um restaurante português! Não me estou a ver a regressar a Oslo.

Tudo isto dito, devo deixar claro que fiquei com uma grande e eterna simpatia pela Noruega e pelos noruegueses. Gosto de um povo que tem orgulho na sua história e se sente feliz com o estilo da sua vida, para o que a riqueza e o bem-estar que conseguiram criar muito contribui.

O “Expresso” diz-nos que Oslo vai ser a “cidade do futuro”? Para mim, foi a primeira cidade estrangeira do meu passado.

sábado, junho 01, 2019

Jorge Jesus


Há um ano, a saga por que passou o Sporting mostrou a todo o país a personalidade de Jorge Jesus, a sua verticalidade e empenhamento profissional.

A ida de Jorge Jesus para o Brasil, para dirigir o Flamengo, agora anunciada, é um ato de grande coragem. O futebol brasileiro é um mundo muito complexo, polémico e tenso, em que o trabalho de um treinador português não será nunca uma empresa fácil.

Só resta desejar as maiores felicidades a Jorge Jesus.

Barthes


Estávamos em início de 1973, na caserna da Escola Prática de Infantaria. Eu tinha por hábito, depois do encerrar formal das luzes, ficar a ler uns minutos mais, com uma pequena lâmpada elétrica pendurada na cabeceira do beliche, de uma forma que não incomodava ninguém. Numa noite, tinha comigo o "Mythologies", um dos primeiros livros de Roland Barthes, composto por peças publicadas na imprensa francesa, com olhares de uma surpreende imaginação e profundidade sobre temas simples do quotidiano, denunciando mitos da nova cultura de massas.

O texto que estava a ler era o "La nouvelle Citroën", uma análise magistral, escrita ainda nos anos 50, sobre o impacto de uma nova viatura no imaginário francês. Transcrevo apenas esta frase desse texto, para se entender de que se tratava (e, a quem não conhece, recomendo vivamente que leia o livro, claro): “Creio que o automóvel é hoje o equivalente bastante exato das grandes catedrais góticas: quero com isto dizer, uma grande criação de época, consumida na sua imagem, quando não no seu uso, por um povo inteiro que dela se apropria como um objeto particularmente mágico”.

Subitamente, pela noite, um tenente entrou na caserna e abriu as luzes, numa visita rara de inspeção. Como o meu beliche era logo à entrada, e surpreendido com a minha solitária leitura, o oficial estendeu logo a mão para o livro que eu tinha na mão e perguntou: "Ó nosso cadete! Que diabo é que você está a ler, a esta hora?". Esperava, talvez, literatura política, mais ou menos clandestina.

Passei-lhe o livro para as mãos, ainda aberto na página da leitura. "Ah! E em francês!", saiu-lhe, entre o inquiridor e o inquisidor, já esperançoso numa descoberta. "Vamos lá ver então o que é que você estava para aqui a ver, às escondidas". Um segundo depois, tudo mudou. Com um sorriso simpático, sai-lhe: "Citroën?! Você gosta de carros?". Devo ter dito que sim, o que nem sequer era nem nunca foi verdade. "Ora, sim senhor, aqui está uma boa leitura: livros sobre carros! Mas olhe uma coisa, homem: isto de carros franceses não é coisa que se veja. Eu gosto é dos italianos, são mais nervosos. Tenho um Alfa, sabe?". Eu não sabia, nem queria saber.

Ontem à noite, na Feira do Livro, lá estavam as “Mitologias”, na sua versão portuguesa. Apeteceu-me fotografar o livro.

sexta-feira, maio 31, 2019

Luso-americanos


Foram mais de duas horas de um excelente debate, com mais de duas dezenas de congressistas e senadores americanos, de ascendência portuguesa.

Depois de Paulo Portas e de eu próprio termos apresentado as nossas visões sobre o estado das Relações Transatlânticas, nestes tempos de Trump, a conversa evoluiu, com base nas várias perguntas, para a China, a União Europeia e o Brexit, a Nato e um conjunto de outros temas de natureza internacional. É sempre muito interessante poder debater tendo por base “olhares” que se afastam bastante daqueles que encontramos no nosso dia-a-dia.

Após este painel, os políticos americanos iriam ainda ouvir o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, como já antes tinham ouvido Rui Rio, o presidente do governo regional dos Açores e o ministro da Economia, entre outras personalidades, desde líderes de fundações a cientistas e empresários. Estou certo que regressarão aos EUA conhecendo um pouco melhor o país a que se sentem ligados.

Parabéns à Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e à sua dinâmica presidente, Rita Faden, por esta bela iniciativa, em que tive imenso gosto em participar.

(Para um “cheirinho” do debate, pode ler aqui)

quinta-feira, maio 30, 2019

Prudência e coragem

Para protegerem a sua imagem institucional e política, mostrando-se em sintonia com o sentimento público de escândalo, perante a acusação formal de envolvimento de militantes seus em atos de improbidade, os partidos devem ser mais lestos a suspendê-los provisoriamente de funções

30 de maio de 2009 - publicado há 10 anos neste blogue

“O ministério francês dos Negócios Estrangeiros apresentou uma queixa judicial para tentar apurar a origem de fugas, para o semanário satírico "Canard Enchaîné", de algumas comunicações oficiais oriundas dos postos diplomáticos franceses espalhados pelo mundo. É que, nos últimos tempos, um seu funcionário pouco escrupuloso estará a pôr em causa a segurança do Estado, à luz de um peculiar conceito de transparência da coisa pública.

Esta é uma questão que, num tempo ou noutro, tem afectado quase todas as carreiras diplomáticas, embora normalmente com maior incidência em momentos de forte tensão política, interna ou internacional. Recordo-me do escândalo provocado pela reprodução de uma célebre comunicação do meu querido amigo "Chencho" Arias, antigo embaixador espanhol na ONU, que surgiu na imprensa de todo o mundo, ao tempo da invasão americana do Iraque, em 2003.

Trata-se de um problema que é sempre de extrema delicadeza, porque a falta de confiança no secretismo de uma determinada rede diplomática conduz ao natural empobrecimento da informação por ela produzida, pelo facto de provocar uma compreensível retracção por parte de quem transmite por essa via. Os diplomatas não são espiões, trabalham com a chamada "informação aberta", colhida através de meios totalmente legais, mas a sua produção escrita inclui valorações opinativas que, porque destinadas em exclusivo aos seus governos, não agradariam necessariamente a outras entidades que a elas pudessem ter acesso.

Portugal não escapou, no passado, a este tipo de questões mas, verdade seja, de há muito que me não lembro de ver reproduzida correspondência diplomática portuguesa na imprensa - ou nos blogues, o que seria o mesmo. O que talvez nos deva levar a concluir que o sentido de Estado dos nossos funcionários - diplomatas ou outros que têm acesso a esse tipo de comunicações - tem vindo a prevalecer sobre qualquer tendência para a indiscrição.”

quarta-feira, maio 29, 2019

Vida transatlântica




Votos


Fala-se por aí muito, por estes dias, do nível da abstenção registada nas eleições europeias. Antes de esgrimir o argumento para dele retirar conclusões, ao sabor da vontade e interesse de cada um, talvez valha a pena ponderar que, precisamente para esta eleição, foram incluídos nos cadernos eleitorais, pela primeira vez, todos registos dos portugueses inscritos na diáspora, os quais, como é sabido, regularmente se abstêm bastante em eleições presenciais. Aliás, só assim se justifica que o atual universo de potenciais eleitores portugueses seja superior a 10 milhões, quando é sabido que a nossa população residente, nos dias de hoje, está já bem longe de alcançar esse número. E se considerarmos que, nessa mesma população, há muitos estrangeiros e menores de 18 anos, todos sem direito de voto, fácil é concluir que os valores desta abstenção têm muito que se lhe diga.

Mas há uma outra realidade em que também acho importante pensar-se: os votos nulos e em branco, que ultrapassam 250 mil, um quarto de milhão! Que mensagem devemos retirar do ato dessas pessoas, que tiveram o cuidado de se deslocarem à assembleia e aí decidiram deixar um voto sem uma expressa opção política? Descontados os erros e as rasuras que terão anulado alguns boletins de voto (mas que não podem ser tantos assim!), que devemos concluir sobre a atitude dessas pessoas? E que fazer para lhes “responder”? Aqui está um tema que, mais do que o “achismo” da conversa de café (ou de facebook, o que vai dar ao mesmo) em que todos somos “peritos”, devia mobilizar quem, cientificamente, disso verdadeiramente sabe.

Lembrar o Reino Unido


Um destacado político britânico comentou que o Reino Unido está num estado similar a ter de “unscramble scrambled eggs” (des-mexer ovos mexidos). Olhando o extraordinário resultado eleitoral de Nigel Farage, que leva (embora se não saiba por quanto tempo) para o Parlamento Europeu a maior bancada partidária daquele hemiciclo, só comparável à dos conservadores da CDU de Merkel, é legítimo concluir que, se a situação em Londres estava já confusa, mais intrincada passou a ser depois do partido que lidera o governo britânico ter sido humilhado pelos eleitores e dos seus principais opositores históricos, os trabalhistas, terem perdido metade da bancada de que dispunham no areópago europeu.

A abdicação de Theresa May, na véspera desse desastre anunciado, não foi surpresa. Fê-lo ao ter perdido a confiança mínima dos seus pares que um líder deve ter para manter o direito a usar esse título e, simultaneamente, ao ter esgotado o leque de soluções plausíveis para fazer aceitar o acordo que, em nome do seu país, firmara como os “vinte e sete”. Ao recordar, na sua declaração de despedida, que o seu partido se chama “conservador e unionista”, May deixou implícito que o impasse da fronteira irlandesa foi o seu grande obstáculo e será o busílis eterno de que qualquer futuro primeiro-ministro britânico se não poderá libertar.

“Brexit means Brexit” (Brexit significa Brexit), repetiu May, ao longo de meses. Nenhum dos candidatos à sua sucessão pode esquecer que, ao chegar ao nº 10 de Downing Street, levará consigo o compromisso imperativo de fazer sair o Reino Unido da União Europeia, decidido pelo povo britânico, num país que tem escassíssima tradição referendária, pelo que talvez leve mais a sério do que qualquer outro esse tipo de decisões populares. Se posso arriscar um prognóstico, diria que não irá ocorrer no Reino Unido um segundo referendo para um “sim ou não” à decisão de saída, embora não se deva excluir, em absoluto, a possibilidade de uma nova consulta, mas apenas para ratificar os respetivos termos. E também me parece impensável uma eleição geral, a ser decidida pela nova liderança conservadora, em face do catastrófico “teste” de domingo.

Teremos de nos resignar a um não-acordo ou um compromisso com os “27” ainda é possível?  Quase tudo vai depender do programa com que o novo primeiro-ministro britânico vier a ser escolhido, pelos seus pares e pelos militantes conservadores, lá para julho. Mas a primeira hipótese, infelizmente, parece, por ora, ser a mais provável.

(Artigo no “Jornal de Notícias” de hoje)

Cobranças

Num país em que um grande devedor à banca pública passeia impunemente a sua arrogância pelo parlamento, ter brigadas pelas estradas para cobrar pequenas dívidas fiscais é um ato de incompreensível e escandaloso autoritarismo.

Rui Rio

Ontem, ao falar de Rui Rio a uma figura social-democrata, referi-o como o “líder do seu partido”. A resposta foi elucidativa: “O Dr. Rui Rio é o presidente do PSD, não é o líder do PSD”. Calei-me, para não “explorar o sucesso”, como dizem os militares.

segunda-feira, maio 27, 2019

Balanço ao correr da tecla


O PS teve um bom resultado. Não se pode dizer, contudo, que tenha sido um resultado excelente, porque denota que o partido começa a ter um teto que, mesmo em conjunturas bem favoráveis, o deixa longe de uma maioria absoluta. Mas, para quem lidera o governo, ainda que não tenha sido o partido mais votado nas últimas eleições legislativas, a noite de ontem garantiu um forte banho de legitimidade.

O episódio dos professores foi decisivo nesta campanha. Mário Nogueira, bem como as trapalhadas feitas pelo PSD e pelo CDS, na Assembleia da República, neste dossiê, deram uma sensível ajuda ao PS. Sem ela, talvez o resultado obtido por António Costa (porque a campanha passou a ser quase só ele, depois do incidente) se aproximasse mesmo do “poucochinho” (para utilizar a sua frase contra António José Seguro, há cinco anos). Mas Costa demonstrou ser um formidável jogador político e, tal como no judo, sabe utilizar em seu favor o menor desequilíbrio do adversário.

O PSD teve uma estrondosa derrota. Rangel optou por uma estratégia caceteira, a qual, no entanto, talvez possa ter travado um pouco os efeitos da fraca adesão do eleitorado do partido à pessoa de Rui Rio. Se não houver fortes fogos de verão ou algo de inesperado na área do governo (nunca subestimemos a capacidade do PS para dar tiros nos pés), as legislativas vão ser outro calvário para Rio. Se repetir uma distância face ao PS de uma dimensão idêntica a esta (mais de 11 pontos), a sua liderança cairá e Montenegro está já a preparar-se, ao virar da esquina. Nesse caso, poderemos dizer adeus, por muito tempo, a um PSD social-democrata, aberto a compromissos de regime.

É uma péssima notícia para o PS a subida do BE nesta eleição. Os números do Bloco são responsáveis, em parte, pela “travagem” da subida eleitoral do PS. A ala esquerda socialista sabe isto bem e, agora mais do que nunca, vai ser tentada a mostrar as credenciais “de esquerda” do partido, o que a fará contrapor-se aos “possibilistas”, que não são grandes fãs da Geringonça e preferem manter intocável o cumprimento estrito dos compromissos financeiros bruxelenses. António Costa vai ter de fazer a “quadratura do círculo”. Mas se o BE pensa que, com esta subida, fez aumentar as suas possibilidades de entrar para o governo, bem pode “tirar o cavalo da chuva”. 

Ainda pior que a subida do BE é, para as contas do PS, a quebra do PCP. A Geringonça, é sabido, tem fortes críticos no seio dos comunistas e o resultado por estes agora obtido fragiliza a aposta feita por Jerónimo de Sousa no apoio ao governo PS. Costa parece confiar bastante mais em Jerónimo de Sousa do que em Catarina Martins, no que tem toda a razão. O PCP, ficando agora mais fraco, fica também mais acossado, mais permeável ao radicalismo e, por isso, mais tentado a deitar mão, como arma política, das movimentações sindicais, que são a sua força de reserva. Um ainda pior resultado dos comunistas em outubro seria, assim, uma nova péssima notícia para António Costa. E, de caminho, para a Geringonça.

O CDS de Assunção Cristas deve ter percebido - mas talvez o não tenha - que o seu estilo trauliteiro de oposição, afinal, não lhe rende grandes apoios, num tempo em que o CDS parecia poder vir a beneficiar da quebra do PSD (mercado em que, também sem o menor êxito, procuraram pescar o Aliança, o Basta e a Iniciativa Liberal). Nuno Melo, apoiado numa juventude do partido que não está muito longe da extrema-direita, fez uma campanha radical, populista, a tocar, irresponsavelmente, agendas já perigosas para a ordem democrática. A sua derrota nesta eleição pode, no entanto, prefigurar um futuro desafio a Cristas para a liderança, com as “tropas” da Juventude Popular a seu lado.

O PAN é um fenómeno interessante e um sucesso, à sua escala. Se abandonar as agendas bizarras do combate ao mundo “antropocêntrico” e a colagem a teses a-científicas e charlatãs, concentrando-se nas questões ambientais, pode ter um nicho político a explorar, tanto mais que o PEV já provou ser uma bengala tipo MDP-CDE, mas sem história, que existe apenas para ajudar à diversidade na CDU.

O Aliança de Santana Lopes, com um excelente e não merecido cabeça de lista, mostrou que a sua aposta falhou redondamente. Vai, com certeza, tentar ainda as legislativas, onde a imagem do líder pode ser residualmente apelativa para alguns PSDs desiludidos. Mas, sendo improvável que a Aliança venha a eleger qualquer deputado fora de três ou quatro grandes círculos eleitorais, os votos que obtiver no resto do país serão sempre retirados ao PSD, fazendo perder a este, para o PS, uma mão cheia de deputados. Não nos admiremos se Santana Lopes, dando-se ares de “rassembleur”, para esconder a fragilidade intrínseca da Aliança, vier a propor listas conjuntas, numa espécie de “frentismo” de direita, estendendo a mão à Iniciativa Liberal.

Tenho pena que Rui Tavares, uma das cabeças mais “frescas” na classe política portuguesa, não tenha sido eleito. A sua voz e a sua inteligência fazem falta em Bruxelas. Mas já se percebeu queo Livre, um partido unipessoal, não descola.

É uma excelente notícia o “espetanço” eleitoral da Iniciativa Liberal. A sua postura arrogante-agressiva e o seu anti-estatismo demagógico representaram do pior que esta campanha nos trouxe. Levados “ao colo” por alguma imprensa conservadora, deram-se ares de partido já com lugar na cena política. Espera-se que possam tirar conclusões rápidas do facto de 99,2% dos votantes os não terem escolhido, colocando-os ao lado MRPP e coisas políticas análogas.

André Ventura o o seu Basta/Chega não fizeram mossa. Mas convém continuar atento à sua demagogia e ao aproveitamento oportunista de futuras inseguranças urbanas.

Com calma, há que refletir sobre a imensa abstenção.

domingo, maio 26, 2019

Nostalgias


O meu Sporting, um clube essencialmente católico (só ganha quando deus quiser e andou por aí ao deus dará...), deu-me ontem uma alegria. Como quase nunca vejo os jogos da equipa em direto (as eventuais derrotas, em diferido, são menos penosas), estava a entrar para um restaurante precisamente no momento em que se iniciavam os decisivos penáltis. E, porque tinha pedido às pessoas que estavam comigo que tivessem os telefones desligados, só quando se ouviu um berro - um rugido! - de contentamento leonino é que percebi que o Jamor era nosso. Assim, a primeira nostalgia estava cumprida: o Sporting, que nos últimos anos, só me havia dado homeopáticas doses de alegria (eu sei que, em matraquilhos e coisas assim, somos o máximo!), e que, há precisamente um ano, esteve prestes a ser destruído por atos de insanidade, ganhara a Taça!


A segunda nostalgia era devida ao local onde estava a comer: o Faz Frio. Há mais de meio século que, embora com grande irregularidade, sou cliente daquele espaço de tabiques decorados com figuras da história popular de Lisboa, junto ao Príncipe Real. Lembro-me de um tempo em que se ia lá pela paella, servida para grupos, que se encomendava horas antes (a paella andou na moda lisboeta dos anos 70, com a Saisa a esmerar-se então no prato). O Faz Frio teve épocas, mas, confesse-se, nunca foi um “benchmark” da restauração lisboeta. Digo isto com todo o à-vontade, porque ontem comi lá muito bem: dos pasteis de massa tenra ao bacalhau à Zé do Pipo, passando por uma bela mousse de chocolate que eu e o Pedro Falcão, o simpático (e sportinguista, o que é quase sinónimo) empregado crismámos de “mousse leonina”. A sangria estava a preceito e eu só decidi fazer um “upgrading” para um bom vinho porque o Sporting tinha acabado de ganhar. Até pensei pedir um verde!

Saídos do Faz Frio, apenas umas dezenas de metros adiante, fomos acabar a comemoração ao Snob, outra “catedral” nostálgica. Admito que estava com alguma curiosidade para ver a cara do Senhor Albino, um dos mais seguros “andrades” da capital. Cavalheiro como é, estava como se nada tivesse acontecido para os lados de Oeiras. O Snob nunca foi a minha “praia” como bar, mas, de quando em quando, calha passar por lá para um bife noturno ou apenas para um destilado das ilhas britânicas, como foi o caso de ontem. Estive mesmo para perder o amor à carteira e pedir um Johnny Walker ... Blue Label! Mas achei que era demais...

Três nostalgias cumpridas na noite de ontem, preparando-me para uma alegria ao final da tarde de domingo. Já tenho tido fins de semana bem piores...


Preconceitos


Sou um fã do voto eletrónico. No Brasil, um dos grandes eleitorados do mundo, e salvo para alguns residuais adeptos das teorias da conspiração, a fiabilidade do sistema não merece nenhuma séria contestação - a qual, dado o ambiente político, seria bem fácil e natural. Em qualquer eleição brasileira, minutos depois de encerrado o tempo de voto - do Rio Grande do Sul ao Amapá, da Rondónia a Espírito Santo - os resultados são logo conhecidos.

É, contudo, evidente que, para se optar pelo voto eletrónico, é necessário haver uma conjugação de vontades políticas, de sinal contrário, que, por cá, a teimosa crispação partidária dificilmente permitirá.

Nos anos em que andei pela OSCE, em Viena, uma organização também dedicada, embora com êxito limitado, à promoção da democracia, falava- se de um sistema de voto eletrónico que tinha sido inventado na Bielorrúsia. O governo de Minsk bem se esforçava por promover a sua venda a outros Estados mas, ao que constava, apenas o Casaquistão o adquirira. 

Atentendo às intocáveis credenciais democráticas do regime do senhor Lukashenko, sou levado a concluir que só por indesculpável preconceito é que o voto eletrónico bielorruso tinha tantos detratores.

O meu voto, há meio século


Naquele ano de 1969, eu tinha pela primeira vez a possibilidade legal de votar. E era ano de eleições legislativas, as únicas a que um cidadão português tinha então direito, depois da ditadura ter abolido, anos antes, a eleição direta para o presidente da República, assustada que ficara com o "fenómeno" Humberto Delgado. E eleições autárquicas era coisa nunca vista: todos os autarcas eram nomeados pelo regime.

Um dia, indo a Vila Real em férias, inquiri como poderia inscrever-me nos cadernos eleitorais. Foi-me dito que isso se fazia na Câmara Municipal. Na respetiva secretaria, ao colocar a questão, vi a interrogação circular por vários funcionários. Aparentemente, eu era a primeira pessoa, desde há anos, a suscitar o problema, porquanto a atualização dos cadernos se fazia, por regra, por via oficiosa. Vislumbrei algumas caras conhecidas a manifestarem curiosidade pelo meu zelo cívico. Um deles, amigo da família, baixando a voz, segredou-me, através do balcão: "Não vale a pena votar. Ganham sempre os mesmos!". Outros, mais alinhados com a "situação", pressentindo claramente a razão pela qual eu queria exercer o direito de voto, olhavam-me com um ar algo jocoso, partilhando entre si ironias, à distância. A agitação entre os estudantes universitários, como eu era à época, era conhecida e já havia uns zunzuns de que eu andava metido nessas coisas "associativas" e com o "reviralho". "Sai ao pai", ouvi dizer que alguém do regime comentara um dia, numa tertúlia da "Pompeia".

"Tem de falar com o Sr. Barreira. É ele quem trata disso". Aparentemente, o sr. Barreira era quem "tratava" dos cadernos eleitorais. Era uma das figuras mais conhecidas da cidade. Defesa central histórico do Sport Clube de Vila Real, com uma altura a rondar os dois metros, trabalhava, se não estou em erro, nos Serviços Municipalizados de Água e Eletricidade, que acolhia sempre muitos futebolistas. Como andava bastante em serviço externo, o sr. Barreira era pessoa difícil de encontrar. Andei dias até conseguir reunir com ele, o que teve lugar numa pequena sala da Câmara. Levei toda a papelada necessária para o ato de inscrição, que não era pouca. Estava tudo em ordem, podia "ir descansado". 

Mas eu não estava descansado. O sr. Barreira ficou claramente surpreendido, e até algo abespinhado, quando lhe disse que necessitaria de uma certidão da minha inscrição. "Aqui não passamos isso!". Respondi-lhe que, por lei, tinha direito a esse documento e mostrei-lhe as disposições legais que obrigavam as autoridades a atestarem, se assim fosse requerido, a inscrição nos cadernos eleitorais. "Mas se eu lhe garantir que está inscrito, não lhe chega?". Não, não me chegava. Nada tinha a ver com a palavra dele, derivava da minha desconfiança face ao regime (mas, claro, isso não lhe disse). "Vou falar com o chefe da secretaria. Mas o senhor está a criar um problema, sem necessidade". Expliquei que não prescindia da certidão (tinha aprendido isso num livro sobre legislação eleitoral, de José de Magalhães Godinho), que, se acaso me a não quisessem emitir, recorreria por requerimento para o Governador Civil. O sr. Barreira olhou para mim e, já mais sério, não se escusou a deixar cair: "Veja lá no que se mete!" Eu sabia no que me metia. E, alguns dias e outras diligências depois, lá obtive a desejada certidão. Que ainda guardo. E espalhei a notícia: depois de mim, várias foram as pessoas que, em Vila Real, se inscreveram nos cadernos eleitorais, nesse ano de 1969, embora não saiba quantos pediram uma certidão. Meses mais tarde, era tempo de "eleições" legislativas e eu por nada do mundo perderia o ensejo de exercer o meu direito de voto. Mesmo tendo a perfeita certeza de que então ganhavam "sempre os mesmos".

É também por isso, porque agora já não ganham "sempre os mesmos", porque lutei e corri riscos para poder ter uma palavra na escolha de quem me representará, que exerço o meu direito de voto. Que é também um dever, mesmo para aqueles que votam em sentido oposto ao meu, para quantos legitimamente decidem deixar o boletim em branco, como forma de marcarem o seu desagrado pelo leque de opções que lhes é proposto. Mas quem opta, pura e simplesmente, por não votar, por não "dizer" algo da sua vontade, perde um pouco a razão para depois vir a protestar contra as políticas que (quem vota) lhes impõem, torna-se num irrelevante "zero à esquerda" (ou "à direita") na vida cívica. 

Atenção

Aconselho a que não se alarguem muito em bocas sobre a ida de comentadores para cargos políticos. É que, como se prova, Cristo é useiro e ve...