sexta-feira, maio 10, 2019

As armas da Venezuela



Naquela noite de 2007, em Brasília, eu juntara à volta de Mário Soares, num jantar, o antigo presidente da República, José Sarney, e o então vice-presidente, José Alencar.

Sarney era um velho conhecido de Mário Soares, que as voltas da política tornara, à época, um leal aliado de Lula. Alencar era um querido amigo pessoal meu, que achei que Soares gostaria de conhecer.

O jantar começou bem, com a bonomia e as histórias mineiras do vice-presidente a deliciarem o nosso antigo presidente. Este tinha vindo, na véspera, da Venezuela, onde entrevistara o presidente Hugo Chávez para um programa televisivo. Estava visivelmente entusiasmado com o líder venezuelano, por virtude das suas preocupações sociais e dos seus desafios a Washington, sentimento que eu sabia muito longe de ser partilhado pelos dois convivas brasileiros. Alencar mostrava-se mais parcimonioso nestas reservas do que Sarney, que, tempos mais tarde, acabaria por assumir no Senado brasileiro uma oposição forte à entrada da Venezuela para o Mercosul.

A certo passo do repasto, com a conversa quase sempre em torno da figura de Chávez, comecei a notar que o diálogo entre Soares e Sarney se estava a tornar um tanto tenso. Entre outras discordâncias, Sarney explicava a Soares que havia setores brasileiros muito preocupados com as aquisições de material militar que Chavez tinha recentemente feito, e procurava chamar Alencar em apoio das suas teses. Este, até meses antes, tinha acumulado o cargo com o de ministro da Defesa, mas, por não querer distanciar-se da atitude também pouco crítica de Lula face a Chávez, mantinha-se discreto.

Soares, contudo, acreditava piamente na boa vontade de Hugo Chávez, confiava nas suas boas intenções e no seureal interesse em manter um relacionamento positivo com o Brasil. Num determinado momento, voltando-se para Sarney, disse-lhe: "Ó José Sarney! Eu conheço muito melhor o Chavez do que você! E, por isso, posso assegurar-lhe que nunca uma arma venezuelana que ele controle se voltará alguma vez contra um interesse do Brasil".

Sarney fechou aquela cara de brasileiro que, do bigode ao cabelo negro com brilhantina, refletia uma imagem caricatural do brasileiro da sua idade a que o mundo dos anos 50 e 60 se habituara, e, longe de convencido, voltando-se para Soares, disse-lhe: "Ó Mário! Nem você nem eu já temos idade para acreditar nessas coisas! Não seja ingénuo!".

Mário Soares não gostou, retorquiu firme, mas com procurada elegância. Eu fiz um sinal a Alencar para me ajudar a amenizar a conversa. Isso foi conseguido, sem dificuldade, mas pode dizer-se que aquele que seria o último encontro entre os dois antigos presidentes não acabou em ambiente de grande euforia. Despedidos os convidados, Soares voltou-se para mim e disse: “Este Sarney está muito reacionário, não acha?”. 

Chávez já morreu há muito. Alencar e Soares também já desapareceram. Olhando as coisas à luz dos dias que correm, lembrei-me das preocupações de Sarney. E tenho a certeza, que sem apoiar minimamente as bravatas de Trump, Mário Soares seria hoje, se fosse vivo, um forte crítico de Maduro. Porque o seu lado era sempre o da liberdade.

Siglas


Dois dos últimos posts que publiquei tinham siglas como título. Hoje de manhã, durante um pequeno-almoço de trabalho, alguém lembrou que tantas são as siglas em que andamos mergulhados que quase se pode dizer que vivemos numa verdadeira “sopa de letras”.

Mas as siglas de que quero hoje aqui falar referem-se a uma realidade muito particular: a pessoas. É, de certo modo, uma consagração para alguém que a simples indicação de uma sigla a identifique publicamente.

Em França, há a sigla BHL para Bernard-Henri Lévy. Embora ande por estes tempos menos na moda, o antigo ministro das Finanças e diretor-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, era igualmente identificado regularmente como DSK.

Quando vivia em Paris, dei comigo um dia a tentar recordar a quem mais esta simplificação nominal se aplicava por lá. Só me lembrei de Valéry Giscard d'Estaing (VGE), do desaparecido jornalista e político Jean-Jacques Servan-Schreiber (JJSS), da atriz Brigitte Bardot (BB), do jornalista televisivo Patrick Poivre d'Arvor (PPDA), da antiga ministra Michèle-Alliot Marie (MAM) e da (bela) ministra do Ambiente de Sarkozy, Nathalie Kosciusko-Morizet (NKM).

Nos Estados Unidos, surgem-me à ideia Franklin Delano Roosevelt (FDR) e John Fitzgerald Kennedy (JFK), ajudados, no presente, pelo facto de, no primeiro caso, dar o nome a uma importante artéria rodoviária de Nova Iorque (FDR Drive) e, no segundo, a um aeroporto da mesma cidade (JKF Airport). Com um grau diferente de popularidade, aparece LBJ (Lyndon Baines Johnson), vice-presidente e sucessor de Kennedy, que se presume tenha começado a ser designado por uma sigla na senda da daquele.

No Brasil, julgo que há apenas três nomes que a imprensa consagrou como siglas: os antigos presidentes Juscelino Kubitchek (JK) e Fernando Henrique Cardoso (FHC), bem como desaparecido político baiano António Carlos de Magalhães (ACM).

Desconheço o que passa noutros países, mas noto que, por exemplo, no Reino Unido não há esse costume, muito embora a importância da sua imprensa tablóide, com títulos garrafais a incitar à simplificação, pudesse ajudar a isso.

E em Portugal? Em termos de figuras públicas, creio que há apenas Miguel Esteves Cardoso (MEC), Baptista Bastos (BB), Pedro Queiroz Pereira (PQP), Eduardo Prado Coelho (EPC) e António-Pedro de Vasconcelos (APV). E, para quem tem memória futebolística, há ainda Jacinto João (JJ), um desportista do Vitória de Setúbal.

É claro que, neste âmbito, há ainda pequenos grupos privados, sem notoriedade pública, que se alimentam da sigla dada pelo seu nome. Composto pelos jornalistas Francisco Sarsfield Cabral e Filipe Santos Costa, o advogado Francisco Sá Carneiro e eu próprio - por minha iniciativa, quem se admira? - está em vias de ser criado o “clube FSC”. Infelizmente, há já quem tenha presumido o valor dessa marca e a tenha registado, como se vê pela imagem...


PS - Lembrei-me agora do poema de Bertold Brecht, "Do pobre BB"...

quinta-feira, maio 09, 2019

É tão fácil calá-los!


Anda para aí uma indignação pelo facto de, na maioria dos debates para as eleições europeias, os candidatos falarem uns “em cima” dos outros, criando uma cacofonia que resulta desagradável para alguns dos espetadores. E, no entanto, é tão fácil resolver o problema...

Na primeira vez que fui a uma reunião ministerial da OCDE, a Paris, foi-me dito que a minha intervenção teria de ser lida num máximo (creio que) de sete minutos. ”Aparei” o texto por forma a caber nesse tempo. 

Quando cheguei à sala, verifiquei que tinha, no centro, uma coluna, creio que cilíndrica, com três luzes. A de baixo, que me pareceu maior, era verde. No meio, havia uma faixa amarela. No topo, sobressaía uma lâmpada vermelha.

Não estou seguro da exatidão dos números que vou dizer, mas isso pouco importa. Durante os primeiros quatro minutos da intervenção, pelo canto do olho, eu ia notando que a luz estava verde. Depois, a certa altura, por dois minutos, o verde desaparecia e, na coluna, iluminava-se a luz amarela. Era sinal de que tinha de apressar-me: essa luz durava dois minutos. Finalmente, surgia a luz vermelha. Num rápido minuto, havia que concluir a intervenção. Mas o que é que aconteceria se acaso o não fizesse? Muito simples: o microfone desligava-se e eu deixava de ser ouvido.

Se os moderadores dos debates das eleições europeias quisessem realmente discipliná-los, bastava-lhes atribuir um tempo para cada intervenção e mandar desligar o microfone de cada candidato após este ter chegado ao limite desse seu tempo. É o ovo de Colombo! Mas não querem! As peixeiradas, em televisão, valem audiências.

BHL



Bernard-Henry Lévy, conhecido em França como BHL, esteve em Lisboa, onde apresentou, há dois dias, um monólogo teatral, no Tivoli. Teve casa cheia. Não estive lá, mas disseram-me que não perdi muito. 

Lévy foi o filósofo francês que estimulou Nicolas Sarkozy à invasão da Líbia e que, no auge da tensão ucraniana, surgiu em Kiev a mobilizar os nacionalistas anti-russos. Foi aliás na Ucrânia que o encontrei, em 2016 e 2017, em dois congressos em que ambos participámos.

A França é muito dada à gestação deste tipo de "guerrilheiros da palavra", de corajosos combatentes com os mortos dos outros, prenhes de gesticulação mediática e com uma avaliação das consequências das lutas ao nível das batalhas de soldadinhos de chumbo. Estou a ler um livro da filha de Régis Debray que fala desse outro exemplo.

Lévy é um intelectual que, como filósofo, diz quem sabe que tem apreciável mérito. É um esteta. Veste-se daquilo que os brasileiros qualificam de "esporte fino", isto é, fatos de fino recorte com camisa branca aberta até ao terceiro botão, a mostrar o peito, cabelo ondulado e falsamente esvoaçante, graças à eficácia da laca. Quando vivi em Paris, via-o regulamente no “Flore", preponderando numa corte de admiradores, acompanhado da vistosa mulher, a atriz e modelo Ariel Dombasle.

Um dia, em 2010, a vida intelectual francesa foi sacudida por uma imensa e cruel gargalhada. Numa obra de Lévy, "De la Guerre en Philosophie", este citou, a certo passo, as conferências proferidas por um tal Jean-Baptiste Botul, perante os neokantianos do Paraguai, a seguir à Segunda Guerra Mundial. Lévy já havia usado excertos de Botul numa conferência na Ecole normale supérieure, em 2009. Ambas as citações vinham da obra de Botul, “A vida sexual de Emmanuel Kant”.

Ora Botul era uma figura inventada, criada em 1995 por um jornalista do satírico Canard Enchainé. O filósofo caiu na esparrela e, mais do que do valor (que parece que era real) das 1340 páginas do livro, a França intelectual passou por algum tempo a falar de Botul e a rir-se de Lévy. Há que convir que deve ser uma grande ingenuidade acreditar na existência de uma massa crítica de neokantianos no Paraguai! Pensando melhor: talvez houvesse alguns, entre os refugiados políticos centro-europeus da época...

quarta-feira, maio 08, 2019

AOC


Ontem, Álvaro Vasconcelos apresentou no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa, o seu novo livro - “25 de abril no Futuro da Democracia”. Teresa de Sousa, Guilherme Oliveira Martins e Luís Moita fizeram a apresentação deste trabalho, em que o autor junta a uma interessante conferência proferida em Havana dois outros textos que, no seu conjunto, nos permitem olhar para a Revolução de 1974 numa ótica prospetiva.

Álvaro Vasconcelos é uma das figuras a quem Portugal muito deve, no campo da promoção da reflexão em matéria de política externa e europeia. Alma do saudoso Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI)(1980/2007), viria a dirigir, em Paris, o Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia (2007-2012). Bem antes disso, durante a ditadura, esteve exilado na Bélgica e em França, tendo tido então um percurso político pela extrema-esquerda maoísta, que se manteve ainda por algum tempo depois do seu regresso a Portugal, no 25 de Abril.



Teresa de Sousa, que o acompanhou nesse ciclo político, lembrou que ambos haviam pertencido à AOC (Aliança Operário-Camponesa), uma organização “de massas” dependente de uma das fações do PCP-ML. 

A AOC foi uma sigla que se tornou popular nas eleições dos anos 70, quando a sua propaganda televisiva era “Vota no castelo!”. A AOC tinha uma agenda política fortemente contrastante com a dos comunistas do PCP. A sua palavra de ordem era “cada voto na AOC é uma espinha cravada na garganta do Cunhal”. 

Teresa de Sousa lembrou também que, curiosamente, AOC é hoje o nome por que é muito conhecida uma das deputadas democráticas americanas mais fortemente crítica de Trump, Alexandria Ocasio-Cortez.

Quando ouvi esta história, lembrei-me de outra. Um dia, em Paris, depois do termo das suas funções na estrutura da União Europeia, decidi convidar Álvaro Vasconcelos para almoçar, para lhe agradecer toda a colaboração que havia dado à embaixada que eu chefiava, enquanto havia ocupado aquele cargo. Escolhi uma zona que não era muito longe da residência dele. Não lhe disse o nome do restaurante, apenas o endereço, próximo do Instituto do Mundo Árabe, no final do boulevard Saint-Germain. 

Lá nos encontrámos, o almoço correu bem, brindámos ao futuro que, dentro de meses, ambos passaríamos a ter em Portugal. No final, disse-lhe que a escolha do restaurante era também, em si mesma, uma homenagem a ele. Nem imaginam a gargalhada que do Álvaro quando se deu conta de que o nome do restaurante era precisamente o AOC...


Honra a Messi


Desde há anos que, do Manchester United ao Real Madrid e agora à Juventus, “sofro” por Cristiano Ronaldo. Alegro-me quando ele marca e ganha, desespero quando ele falha e perde. Sinto os seus êxitos um pouco como meus, olho as suas conquistas como um orgulho coletivo do país. Acho que ele faz imenso pela notoriedade de Portugal - e isso, para mim, é um valor. (Noto, para que não haja dúvidas, que o mesmo me acontecia com José Mourinho). 

Dito isto, tenho de reconhecer que ver jogar Lionel Messi faz parte dos meus maiores prazeres futebolísticos regulares. Com uma vida a ver bom e mau futebol, raramente observei um jogador tão genial e completo. Messi é um génio, como Ronaldo o é, cada um à sua maneira. Um drible curto de Messi, na área, ou um seu passe milimétrico equivalem àqueles livres, fantásticos e precisos, de Ronaldo, ou aos seus cabeceamentos, “lá de cima”.

Quando ocorre um jogar contra o outro, claro que quero que Ronaldo “esmague” Messi, tal como nos prémios do “melhor do mundo”. Mas nem por um segundo isso faz com que eu alinhe minimamente na cultura anti-Messi que por aí anda, que também leva o Barcelona por arrasto. Ontem, ao ver o Liverpool-Barcelona, apreciei em especial o espetáculo, a “remontada” britânica, com aquele curiosíssimo canto, a fechar o jogo. Ah! E gostei dos cumprimentos entre adversários, no fim.

O silêncio de Marcelo

Ao contrário do que se diz, a idade traz memória. Pertenço a uma geração que, há umas boas décadas, lia, por vício recorrente, as crónicas de análise política que Marcelo Rebelo de Sousa escrevia na página dois do "Expresso". E, mesmo sem precisão factual, recordo-me de um desses textos em que o analista especulava em torno do "estranho" silêncio de Eanes, então presidente da República, em face de determinada conjuntura. O agora presidente elaborava sobre as razões que motivavam aquele que viria a ser seu antecessor a não se pronunciar, como se entendia expectável, nesse quadro de crise.

Lembrei-me disto agora, num tempo em que Marcelo Rebelo de Sousa, cuja propensão para o pronunciamento público costuma, às vezes, raiar o excesso, bem em contraste com o que era a consabida reserva de Eanes, se mantém, pelo menos até à hora em que escrevo, num "sonoro" silêncio, naquela que foi a circunstância que, de modo potencial, se configurou como a maior crise para a estabilidade governativa, em toda a corrente legislatura.

O presidente fez bem em guardar a sua palavra. O que quer que pudesse ter dito teria sido demasiado. António Costa mediu a sua atitude, ao ameaçar com uma demissão, caso a direita se deixasse arrastar num processo de irresponsabilidade financeira. (É muito curioso que os portugueses, e o próprio António Costa, aceitem, sem surpresa nem escândalo, uma idêntica atitude por parte da "esquerda da esquerda", como se estivéssemos perante crianças traquinas "que já se sabe como são..."). Ao deixar o PSD e o CDS tropeçarem em si mesmos, Costa poupou a Marcelo o custo político de um veto -que, faço justiça ao presidente, ele seguramente colocaria à legislação, se aprovada nos escandalosos termos acordados em comissão parlamentar.

Tenho para mim que o presidente e o primeiro-ministro se fizeram um favor mútuo. António Costa ocupou o centro da praça, nela ficando deliberadamente sozinho, assistindo (com evidente deleite) ao esbracejar verbal dos seus opositores, que nem sequer foram compreendidos pela esmagadora maioria dos comentadores das respetivas áreas políticas - porque estes sabem que o ridículo se paga em credibilidade. Marcelo Rebelo de Sousa, refreando o seu tropismo para a palavra instantânea, percebeu que tudo quanto pudesse dizer, mesmo em termos de "acalmação", teria um preço em desagrado por parte de alguém. Deixará assim que a poeira assente para depois nos brindar com algumas palavras vistas como sensatas. Como sensato foi este seu silêncio.

(Artigo hoje publicado no “Jornal de Notícias”)

O silêncio de Marcelo


Pode ler aqui, o artigo que hoje publico no Jornal de Notícias sob o título em epígrafe.

segunda-feira, maio 06, 2019

Lisboa...

... está na mesma!

Conversa


“O tempo vai estragar-se!”, ouviu-se há pouco na Tosta Fina. “Mas então não se dizia por aí que era precisa chuva? Em que é que ficamos?”, diz outro. Um terceiro, realista: “Isto é como na política: o que é bom para uns é mau para outros. Essa é que é essa! Sai mas é um covilhete bem quentinho, que é o que se leva desta vida”. E lá foram todos.

Trás-os-Montes


domingo, maio 05, 2019

Será hoje?

Depois do que há pouco disse Assunção Cristas, será este o dia em que vamos assistir ao recuo da direita parlamentar face àquilo que anunciou ter aprovado, em conluio com a esquerda desrespeitadora dos compromissos europeus? Se o fizer, e para disfarçar essa mudança de posição, aposto que isso será feito a coberto de um forte ataque ao governo, tentando fazer esquecer que este não foi havido nem achado na altura do entendimento feito. O governo até pode vir a acabar por não ter razões para se demitir, mas uma coisa será sempre certa: a oposição de direita, mesmo que venha a recuar, já deu, perante os portugueses, a prova provada de que se demitiu das suas responsabilidades de Estado e de que só reagiu perante o escândalo criado.

sábado, maio 04, 2019

Wishful thinking

O dia de ontem acabou dominado por um bom e firme discurso de António Costa, em que cuidou em atenuar discretamente as culpas dos parceiros da geringonça (quiçá na esperança de não fechar as portas a um futuro novo acordo), passando o essencial do ónus da crise para a direita, pelo que esta agora revelou de incoerência e de irresponsabilidade. Com esta atitude de oportunismo demagógico, à cata da popularidade fácil no importante eleitorado que os professores representam, mesmo com o risco de desencadearem uma bola de neve de reivindicações em setores similares, PSD e CDS desmascararam-se, alienaram a imagem de responsabilidade a que queriam colar-se pelos alegados méritos da governação nos tempos da troika, e, ao fazê-lo, deram ao PS, de mão beijada, um inesperado trunfo, permitindo-lhe poder ter sólidas razões para se afirmar como o partido do rigor financeiro, do respeito pelos compromissos europeus, à cabeça de um governo que, não obstante isso, conseguiu concretizar algumas medidas de atenuação dos sofrimentos, à escala daquilo que era exequível. O PS, cuja campanha europeia ia da banalidade às ruas da amargura, retomou assim a iniciativa política, num registo de Estado. Costa ganhou e, para alguns mais otimistas, pode mesmo voltar a sonhar com a maioria absoluta, PSD e CDS degradaram visivelmente a sua imagem, BE e PCP foram apenas coerentes e previsíveis. Em 24 horas, o PS conseguiu um salto de credibilidade que pode dar-lhe uma segunda vida e fundamentos para um reforço da vitória eleitoral que já seria sempre a sua.

O que acabo de escrever, no longo parágrafo anterior, reproduz uma narrativa comum. Mas nem tudo o que está nesse texto constitui, necessariamente, a minha opinião sobre o que, de facto, se está a passar, embora ali se espelhe muito daquilo que eu gostaria que viesse a acontecer. Os anglo-saxónicos chamam a este tipo de exercícios - um pensamento comandado pelos desejos - “wishful thinking”.

Vou ler isto outra vez...