domingo, março 03, 2019

A quem não convém que se fale disto?


Procópio


Quando, há horas, lá entrei, a média etária deve ter subido vertiginosamente para os 30 anos. O “Procópio” está muito diferente, bem mais jovem, muito mais alegre e agradável do que nos últimos anos do “nosso tempo”. Ah! E “também” às vezes se fala português por lá!

Olhei para a mesa “Dois”. Estava ocupada por pessoal muito distinto do que nós éramos. Imagino que a conversa não tivesse rigorosamente nada a ver com a que, por décadas, por ali alimentámos. 

É que tudo isso já lá vai, há muito! O “Procópio”, com naturalidade e aparentemente sem o menor esforço, soube reinventar-se, encontrou uma nova forma de estar na noite de Lisboa - outra gente, outros copos, outro tipo de diversão. E, dessa forma, partiu para uma nova fase da sua “estranha” e bela forma de vida.

Há já muitas semanas que fazia “gazeta” do meu bar de sempre. Ontem, ao final da noite, deu-me para passar por lá. Fiquei à conversa com a “Sedonalice”, ao balcão, com umas cervejolas a liquefazer a noite.

Quero dizer que fiquei muito feliz ao constatar que o “Procópio” continua a ser o lugar geométrico onde alguma noite saudável de Lisboa cada vez mais se encontra. 

Há muitos outros bares em Lisboa? Claro que sim! Mas quem sabe destas coisas também sabe que não é a mesma coisa! O “Procópio” é único!

sábado, março 02, 2019

O regresso de Monroe

“O regresso de Monroe” é o título que dei ao artigo que hoje fui convidado a publicar na Revista do “Expresso” sobre a atitude americana perante a Venezuela.

sexta-feira, março 01, 2019

O mundo é pequeno!


Vim, há dois dias, a Bruxelas para fazer parte de um grupo de trabalho, integrado por um representante de cada Estado membro da União Europeia, que vai preparar um relatório sobre uma determinada temática internacional. Assinei hoje o (simpático, diga-se) contrato, mas não consegui satisfazer a minha curiosidade sobre quem terá, por aqui, sugerido o meu nome às duas entidades (ambas privadas e muito ciosas da sua independência face aos governos), uma alemã e outra belga, que me recrutaram para trabalhar nos próximos meses. Um dia, espero saber e agradecerei.

À entrada para a reunião, ouvi alguém dizer: “Estás na mesma!”. Era um velho amigo austríaco, que já não via há quinze anos e que, durante a nossa presidência da OSCE, eu havia empossado num cargo da organização, na Polónia. No seu país, passa agora a ter a mesma função do que eu. O que ele dizia não era, de todo, verdade, como era óbvio, mas não deixava de ser agradável de ouvir. 

Estava ainda nessa conversa quando alguém me pôs uma mão no ombro e me perguntou: “Ainda andas pelo Brasil?”. Era um qualificado diplomata dinamarquês, que conheço há décadas, e que havia encontrado, pela última vez, creio que em 2006, em S. Paulo - trata-se de um grande especialista das coisas europeias, que fez grande parte da sua carreira em Bruxelas, que agora vai ser um dos coordenadores do nosso trabalho e que tive como colega nomeadamente na negociação dos tratados de Amesterdão e Nice.

Ao final das primeiras horas de debate, no primeiro “coffee break”, dirigiu-se-me uma senhora búlgara, cuja cara, confesso, não me dizia nada: “Não se lembra da sua ida a Sófia?”. Tinha sido a seu convite que eu tinha visitado dessa vez a Bulgária, há bem mais de duas décadas, quando ambos tínhamos funções idênticas nos nossos respetivos governos. A memória veio então.

À saída, sob um vento e chuva fria desta invernosa Bruxelas, no regresso em passo rápido para o hotel, o representante espanhol no grupo perguntou-me: “Trabalhas com o Luis Tomé?”. Claro que sim! Como é que ele tinha adivinhado? Trata-se de um amigo próximo desse meu colega na Universidade Autónoma de Lisboa (como também o é de Nuno Severiano Teixeira) e, ao ler o meu currículo, dera conta da minha ligação à UAL.

O mundo é bem pequeno e Bruxelas, no fundo, é, desde há muito, uma das minhas “casas” habituais de passagem (embora o nunca tenha sido de vida). Há minutos, antes do almoço, estava eu a encher-me de livros, na magnífica “Filigranes”, quando ouvi, em bom português: “Com que então sempre interessado pela banda desenhada!”. Eu estava, de facto, a pensar como ia ter espaço para meter na mala o último “Blake & Mortimer” (já tinha comprado na Buchholz a tradução portuguesa, mas não resisti a adquirir o incomparável texto em francês deste “falso” Edgard P. Jacobs), quando este velho amigo português me surgiu ao encontro (se tivesse sido uns minutos antes, tinha-me apanhado a folhear um comprometedor Manara...)

Bom, vou andando para o aeroporto, porque esta capital belga cada vez se parece mais com o Chiado...

Maria João Rodrigues


Longe de mim imiscuir-me na sempre complexa questão dos nomes da lista socialista às eleições para o Parlamento Europeu, mas ficaria de mal com a minha consciência se não deixasse aqui expresso, preto-no-branco, que considero que a saída de Maria João Rodrigues representa uma perda de vulto na representação do PS naquele instância.

Maria João Rodrigues, de quem tive o gosto de ser colega num governo e com quem depois trabalhei muito de perto na presidência da União Europeia de 2000, onde foi o braço direito de António Guterres, é uma das pessoas que, entre nós, melhor conhece as questões europeias, dispondo de um grande prestígio nas diversas instituições, que lhe adveio do seu grande sentido de responsabilidade, de uma dedicação sem limites ao trabalho e de uma inquestionável competência no tratamento de todos os dossiês em que se envolveu.

quinta-feira, fevereiro 28, 2019

Digo eu, não sei...


Há dias em que o ato de escrever num jornal se converte numa operação de elevado risco, tal a volatilidade dos acontecimentos e o facto de uma qualquer “mudança do vento“ poder alterar, num instante, toda a lógica em que a análise imediatamente anterior se apoiava. É o que acontece, por estes dias, com o Brexit.

Duvido que muitos consigam hoje seguir, passo a passo e com um mínimo de rigor, este debate – uma questão em que as posições do governo de Theresa May são marcadas por uma tal tergiversação tática, em termos da “costura’ de alianças, que legitima que nos perguntemos se, por detrás dela, existe alguma clareza estratégica – que passe para além do seu esforço de sobrevivência política. Declarações e “tweets” de várias fontes sucedem-se, são citados nos noticiários como doutrina a respeitar, numa cadência que soma confusão à confusão. Por isso, como já experimentei, estar dois ou três dias sem olhar as notícias de Londres pode deixar-nos perdidos face a esta atualidade tão movediça. Alguns, mais cínicos, acabarão por concluir que, no final de contas, tudo continua na mesma. Talvez, mas isso não nos deve sossegar, bem antes pelo contrário.

Quando Theresa May vem aventar a possibilidade de adiar a data “fatal” e propor uma prorrogação do Artigo 50°, o que é que isso significa? Quando o líder trabalhista Jeremy Corbyn vem propor um segundo referendo, hipótese que grande parte da classe política britânica pareceu sempre afastar, por receio de ela poder surgir como desrespeitosa face à vontade soberana manifestada no primeiro voto, que podemos concluir? Uma única coisa: que os britânicos com um mínimo de responsabilidades já entenderam que o Brexit, com mais ou menos medidas compensatórias ou atenuantes, acabará sempre por ser um desastre para o seu país.

Percebo que a unidade dos “27”, conseguida em torno do “pacote” que foi negociado com os britânicos, e que May não consegue “vender” internamente, tem um valor inestimável. Mas lembraria esta coisa simples e que creio muito óbvia: tudo aquilo que foi negociado tem um valor “zero” se não conseguir ser posto em prática. É a Theresa May quem compete conseguir isso? Claro que sim, mas se ela não conseguir, o cenário do “hard Brexit” é um pesadelo que passa a ser nosso. Embora isto possa parecer uma heresia, pergunto-me se a UE, num esforço que teria muito também de egoísta, não poderia ter uma flexibilidade acrescida que ajudasse a evitar a tragédia. Como se diz na minha terra, “digo eu, não sei...”

Zaventem



Passei por lá há poucas horas, coisa que não fazia há dois ou três anos. Pelo aeroporto de Bruxelas, dito de Zaventem.

Ao contrário do que vulgarmente me sucede, voltei a sentir alguma nostalgia pela velha aerogare, construída para a exposição universal de 1958. Com o tempo, ela chegou a atingir momentos de notória decrepitude, com pássaros a voar pelos corredores, redes a tentar travá-los e os grandes vidros fazendo sombras de sujidade. 

Sou bem antigo por ali. Assisti ao nascer do velho "satélite", ao fundo do antigo grande corredor. Vi construir, depois, do outro lado, a nova ala, que tornou aquilo que era um aeroporto de culto num espaço igual a todos os outros, como hoje já acontece com a Portela. Com os anos, fui descobrindo espaços novos, naquilo que hoje parece ser um espaço de gente apressada e quase angustiada, um imenso centro comercial. Hoje, surgem BMW iluminados, topo de gama, entre as passadeiras, a acenarem-nos com aquilo que não poderemos vir a ter. Já não me reconheço neste Zaventem, sou sincero! Mas, devemos ser justos: este novo aeroporto, embora mais “desumano”, é bem mais agradável e com melhor aspeto do que o antigo!

Devo ainda reconhecer uma coisa: se há um espaço desta natureza, em todo o mundo (e, caramba, conheço 109 países!), que me diz muito, por tantas razões afetivas, algumas inconfessáveis, é Zaventem - claro que depois da Portela e Pedras Rubras, sobre cujas relação comigo seria quase capaz de escrever um livro.

Por Zaventem passei os meus primeiros banhos de cosmopolitismo oficial, na segunda metade dos anos 70, como portador da "mala diplomática", na descoberta do "glamour" das viagens aéreas, ao tempo em que isso existia (ainda haverá “malas diplomáticas acompanhadas”?). À chegada, recordo, esperava-nos então, rezingão, o senhor Rézo, o motorista da nossa delegação junto da NATO, que sempre nos encaminhava para uns hotéis manhosos, onde se sabia que ele tinha comissão garantida.

(Um dia, troquei-lhe as voltas e, à chegada, anunciei ter reservado em um outro hotel. Ele era fiel do “Albert I”, na place Rogier, mas eu (depois de, numa noite umas semanas antes, ter aí tido a experiência bizarra de baratas sobre a cama) havia-me decidido por um tal “Sirius”, ali ao lado. O homem ficou silenciosamente furioso. Para aliviar a conversa, perguntei-lhe o que achava da minha escolha. Fez um silêncio, mas depois foi soberbo: “Pas mal, pour un bordel!”. Grande Rézo! Era francês, de Valenciennes, coisa que eu de início desconhecia. Tinha sido desclocado de Paris, quanto a NATO estava por lá, antes de De Gaulle ter tido um arrufo com os americanos. Era casado com a telefonista da nossa delegação na organização, uma loira de cabeleireiro, bem mais simpática do que o marido, o que, aliás, não era difícil. Na primeira vez que o conheci, a “armar” que falava francês à moda da Bélgica, em conversa no carro, usei a palavra “nonante”, que é a forma belga de dizer “noventa”, para o francês “quatre-vingt dix”. Rézo, que detestava a Bélgica e os belgas, “fuzilou-me”: “Vous me prennez pour un belge?! Mais non! Je suis français, monsieur!”. Tomei nota.)

Já mais tarde, depois de 1986, o aeroporto de Bruxelas passou a ser um meu destino bem habitual, pela TAP ou pela desaparecida Sabena (agora chama-se Brussels Airlines), nas deslocações regulares a "grupos de trabalho" da então CEE - o nome da atual União Europeia. Um comboio soturno levava-nos de lá, já pela noite dentro, para o centro da cidade, com os diplomatas e técnicos portugueses a saírem nas estações do Midi ou do Nord, para daí rumarem aos hotéis, como o Métropole e outros bem piores destinos da "moda", que cabiam nas nossas pobres ajudas de custo. Não eram tempos gloriosos, mas eu, à distância temporal, acho-lhes alguma graça, confesso.

Finalmente, o aeroporto de Zaventem ficou-me, para memória eterna, ligado a outros tempos que, embora também com bastante interesse, acabaram por ser de um imenso cansaço - os meus anos de governo, a partir de 1995 e até 2001. 

Chegava a Bruxelas esgotado de dias incessantes em Lisboa ou noutras capitais, atulhado de papelada, ensonado e esfalfado. (Cheguei a adormecer na Portela, ainda antes de levantar voo, e a acordar com a tremideira da aterragem em Bruxelas, com o meu “pessoal” a pedir às hospedeiras para não me acordarem). No desejado cenário no fim da manga, tentava descortinar a figura amiga do senhor Barreiros, o simpático funcionário da Representação Permanente (Reper, para os iniciados), que me aliviava o peso da pasta e me conduzia, por corredores que sempre presumi serem VIP, até a um parque de estacionamento, onde me aguardava o fiel Willhelm, um motorista flamengo, tão calado como discreto, como o futuro o viria a provar à saciedade. E lá ia eu, para o Hilton, para o SAS ou para o Montgomery, arrasado de sono, ajoujado de dossiês chatíssimos, com os quais, ao lado, cheguei adormecer e a acordar no dia seguinte, ainda com a luz acesa...

Por aquele aeroporto passei então dezenas (qual quê! centenas!) de horas de atrasos, de conversas, de esperas, de compras. Por lá me deixei adormecer um dia, de fadiga, num banco, num final de tarde, perdendo um voo para o Luxemburgo, o que me obrigou a dormir, quase envergonhado comigo mesmo, num hotel próximo - e não há nada no mundo mais triste do que um hotel de aeroporto, acreditem! Por ali adquiri coisas que ainda hoje estão na minha memória familiar, num tempo em que, em Portugal, a oferta proporcionada pelas lojas era muito diferente das da "estranja". Por lá festejei "vitórias" arrancadas nas lides europeias e ali me forneci de livros inúteis, que comprava para entreter os minutos que antecediam os aviões - minutos que, no meu caso, são sempre mais, porque faço parte dos que, por regra e para desespero dos atrasados crónicos, chegam a tempo e horas. 

Lembrei-me disso, ao final da tarde de hoje, numa breve passagem por Zaventem. Com alguma nostalgia, assumo. Serão saudades doutros tempos ou saudades de mim nesses tempos? Já escrevi isso por aqui, não escrevi?

terça-feira, fevereiro 26, 2019

Equidade

Há dias, participei num exercício de âmbito académico que envolveu pessoas com diferentes responsabilidades empresariais, numa escola universitária de topo no setor. No centro da discussão estava a questão da participação das mulheres em lugares de responsabilidade nas empresas, o “estado” de Portugal nesse contexto e as razões que, entre nós, podem motivar as dificuldades de acelerar uma maior equidade a esse nível. 

A certa altura, o CEO de uma grande empresa deu conta da reação que teve, não há tanto tempo quanto isso, ao ter designado uma mulher para sua chefe de gabinete. Por incrível que pareça, uma atitude de espanto foi expressa por várias pessoas, bem dentro deste século XXI. 

Quando ocupei funções governativas, e já lá vão quase duas décadas, dois dos quatro chefes de gabinete que tive foram mulheres. As presenças femininas no meu gabinete eram tantas que, num determinado período, constatou-se que, além de mim e de dois motoristas, o resto do pessoal, das técnicas ao pessoal administrativo, era todo feminino. Julgo que nenhum membro do governo, em democracia, bateu este “record”. Ao ponto de uma dessas amigas se queixar, um dia: “Fazem falta homens nas nossas salas de trabalho...”

segunda-feira, fevereiro 25, 2019

As armas da Venezuela


Há cerca de dois anos, contei esta historieta no meu blogue. Hoje, pelas razões que facilmente compreenderão, lembrei-me dela:

"Mário Soares não tinha por hábito pernoitar nas embaixadas, preferindo quase sempre os hotéis. Apenas em Brasília, numa das vezes que por lá passou, o convenci a dar-me o gosto de ali ficar. Mas foram bastantes as noites, em vários países, em que com ele fiquei à conversa pela noite dentro. Nessas ocasiões, eu aproveitava para saciar a minha curiosidade em torno das suas inesgotáveis memórias, sempre marcadas por um rigor dos factos, datas e nomes. Muito aprendi então sobre a história da oposição democrática à ditadura e os bastidores da política doméstica no pós-1974.

Naquela noite, eu juntara à sua volta, num jantar, o antigo presidente da República, José Sarney, e o então vice-presidente, José Alencar. Sarney era um velho conhecido de Mário Soares, que as voltas da política tornara, à época, um leal aliado de Lula, e Alencar era um querido amigo pessoal meu, que achei que Soares gostaria de conhecer melhor.

O jantar começou muito bem, com a bonomia e as histórias mineiras do vice-presidente a deliciarem o nosso antigo presidente. Este tinha vindo, na véspera, da Venezuela, onde entrevistara o presidente Hugo Chávez para um programa televisivo. Estava visivelmente entusiasmado com o líder venezuelano, sentimento que eu sabia muito longe de partilhado pelos dois convivas brasileiros. Alencar mostrava-se mais parcimonioso nestas reservas do que José Sarney, que, tempos mais tarde, acabaria por assumir no Senado brasileiro uma oposição forte à entrada da Venezuela para o Mercosul.

A certo passo do repasto, com a conversa quase sempre em torno da figura de Chávez, comecei a notar que o diálogo entre Soares e Sarney se estava a tornar um tanto tenso. Entre outras discordâncias, Sarney explicava a Soares que havia setores brasileiros muito preocupados com as aquisições de material militar que Chavez tinha recentemente feito, e procurava chamar em apoio das suas teses o vice-presidente da República, José Alencar, que, até meses antes, tinha acumulado o cargo com o de ministro da Defesa. Este, porém, por não querer distanciar-se da atitude nada crítica de Lula face a Chávez, mantinha-se discreto.

Soares, contudo, acreditava piamente na boa vontade de Hugo Chávez, creditava-o de boas intenções e de um real interesse em manter um relacionamento positivo com o Brasil. Num determinado momento, voltando-se para Sarney, disse-lhe: "Ó José Sarney! Eu conheço muito melhor o Chavez do que você! E, por isso, posso assegurar-lhe que nunca uma arma venezuelana que ele controle se voltará contra um interesse do Brasil".

Sarney fechou aquela cara de brasileiro que, do bigode ao cabelo negro com brilhantina, refletia uma imagem caricatural do brasileiro da sua idade a que o mundo dos anos 50 e 60 se habituara, e, longe de convencido, voltando-se para Soares, disse-lhe: "Ó Mário! Nem você nem eu já temos idade para acreditar nessas coisas! Não seja ingénuo!".

Mário Soares não gostou, retorquiu firme, mas com procurada elegância. Eu fiz um sinal a Alencar para me ajudar a amenizar a conversa. Isso foi conseguido, sem dificuldade, mas pode dizer-se que aquele que seria o último encontro entre os dois antigos presidentes não acabou em ambiente de grande euforia."

Chávez já morreu há muito e por lá está agora Maduro. Alencar e Soares também já desapareceram. Olhando as coisas à luz dos riscos potenciais nos dias que correm, com a escalada entre os dois países, em que só se pode esperar que o bom-senso prevaleça, lembrei-me das preocupações de Sarney.

Biafra


Li, há pouco, que vai ser publicado um livro sobre a aventura de alguns portugueses envolvidos no apoio aéreo ao Biafra. Ainda alguém se lembra, nos dias de hoje, dessa República secessionista da Nigéria, dos ibos que por lá habitavam e das fortes razões do petróleo, origem dessa guerra inútil, com muitos mortos e fortes cumplicidades internacionais? 

Ainda guardo algures uma bela nota de “Banco do Biafra”, imaculada e nunca usada, creio que impressa nesta Lisboa onde então vigorava um regime que apostava nos Briafras, nos Catangas, nas Rodésias e em tudo o que fragilizasse a África que se opunha ao colonialismo, de caminho, e também para isso, dando refúgio aos “The Dogs of War” que Frederick Forsyth tão bem retratou.

Um dia, nos inícios de 1976, recém-entrado na diplomacia, fui destacado para ir efetuar uma determinada missão ao recém-criado Estado de São Tomé e Príncipe. A minha estada por lá seria de uma semana, porque era esse o ritmo dos voos da Air Gabon, num pequeno avião que nos fazia chegar e sair da ilha para Libreville, num tempo em que o único percurso alternativo era uma ligação da Taag, através uma Angola em guerra.

Nessa semana, calhou passar uns fins de tarde naquilo que se chamava o “Benguidoxe” (escrever-se-ia assim?), uma espécie de pensão com esplanada, no centro da cidade, onde se bebiam umas cervejas. Creio que através do Jorge Coimbra, um amigo do liceu de Vila Real que vim a encontrar por lá, veio um dia parar à minha mesa (ou eu fui parar à mesa dele) uma figura curiosa. Era um homem grande e cordial, conversador, de um género de contador de histórias que se encontra muito nesses lugares onde o tempo se suspendeu por algum tempo - como era bem o caso da cidade de São Tomé de então. 

O meu interlocutor chamava-se Villaret - um nome que não esquece quem tem a memória do Portugal dessa época. Era piloto e tinha andado envolvido na guerra do Biafra. Contou-me episódios dessa aventura em que aquela ilha, recém-independente, havia também tido o seu quinhão de participação. Eram relatos onde não havia nenhuma arrogância de heroísmo, muito embora as missões tivessem um elevado grau de risco. Lembrei-me dele agora. Surgirá o seu nome no livro que agora vai ser publicado? 

Saí de São Tomé, nesse mês de Fevereiro de 1976, a caminho do Gabão. Ao fundo do aeroporto estava um velho Constellation. Perguntei a alguém o que era aquilo. “É da guerra do Biafra”, respondeu-me. Tentei tirar uma fotografia ao inutilizado avião mas foi-me dito que era proibido, “por razões de segurança”. Não fossem essas brincadeiras serem pouco prudentes, nesses tempos muito afirmativos de juventude independentista, e teria perguntado se a ordem era “do tempo do colono”. Só podia!, como dizem os brasileiros. 

Voltei lá anos depois. O velho Constellation (descobri agora uma foto dele na net!) ainda por ali continuava, a apodrecer. As coisas, em África, têm sempre um tempo e em especial um ritmo diferente. E que teria acontecido entretanto ao Villaret, que já por lá não andava?

domingo, fevereiro 24, 2019

Finalmente, a sensatez!


"A Mulher, o feminismo e a lei da paridade", um artigo tirado de uma nova parceria entre o "Observador", o suplemento feminino do "Diário da Manhã" e a "Modas & Bordados", que prova que "isto" começa a compor-se!

A ler, sem falta! Aqui.

Um passeio pela Europa


Fernando d’Oliveira Neves é um dos diplomatas portugueses com maior experiência europeia. Esteve ligado ao processo de adesão e integração de Portugal desde o seu início, com postos em Bruxelas - na representação permanente de Portugal e nas instâncias comunitárias - e uma experiência como secretário de Estado dos Assuntos europeus. 

Desse seu tempo diplomático, dentro uma carreira profissional riquíssima, decidiu agora publicar em livro uma memória crítica. A distância temporal deu-lhe maior perspetiva de análise, ajudando a ponderar a contextualização política de certos factos. Alguns dos textos refletem coisas vividas, outros um olhar sobre as circunstâncias que marcaram a história contemporânea da Europa - e nós dentro dela.

O livro é muito bem escrito, num estilo sem floreados e de leitura apelativa, às vezes com o humor que as situações suscitaram ao autor ou que este entendeu dever induzir-lhes para fugir à ideia de que a realidade europeia é apenas um ambiente burocrático abafante. E Fernando Neves, um europeísta convicto que o não esconde, olha sempre essa realidade a partir do lugar de Portugal, dos nossos interesses. E um deles, iniludível, como o livro bem o revela, é o sucesso do projeto europeu.

sábado, fevereiro 23, 2019

O diabo veste farda


Alguns governos da ditadura militar brasileira (1964/1985) tiveram menos militares do que agora tem o governo Bolsonaro. Num país em que a classe política dá a imagem de quase não dispor de quadros qualificados sobre os quais não impendam suspeitas ou acusações de improbidade, os militares emergiram, nos últimos anos, como um espécie de setor imaculado, tocado por um odor de santidade ética, que pretende colocá-los acima de qualquer suspeita. 

Noutras geografias, tivemos já a “república dos juízes”. No Brasil, também com juízes à mistura, há agora esta espécie de moralidade fardada, desfilando para o exercício impoluto do poder. Estaria “descoberta a pólvora”, por todo o mundo, se o recurso aos militares pudesse ser assumido como a solução para os problemas éticos da política. Ora é preciso não esquecer que os oito, repito, oito ministros militares que agora enxameiam o palácio do Planalto não dispõem da menor “accountability” democrática, respondem apenas perante um presidente que, como se está a ver dia após dia, sendo uma criação sua, é um homem com imensas limitações, enredado numa teia familiar que já se constatou pedir meças ao pior da política brasileira. O facto das duas mais importantes forças na Câmara de Deputados serem o PT, nos dias de hoje sujeito a uma quarentena política de que será muito difícil sair, e o PSL, o partido que foi “barriga de aluguer” de Bolsonaro e cujo presidente foi já obrigado a demitir-se do governo, faz com que o escrutínio parlamentar esteja, por ora, muito atomizado, o que favorece pontualmente esta preeminência militar.

Os militares brasileiros têm uma história recente de relação com o poder. No auge da Guerra Fria, a exemplo de outros sinistros exemplos na região, montaram um regime de arbítrio, com perseguições, torturas, prisões e muitos mortos – um retrato que só fica menos mal perante o incomparável terror de outras ditaduras latino-americanas. O processo de transição pactuado, onde intervieram muitos políticos que haviam sido homens de mão dos militares, permitiu que a tropa brasileira escapasse a um escrutínio transparente já em tempos de liberdade, com as “comissões de verdade”, criadas na última década, a serem objeto de forte reação do mundo das fardas. Os militares brasileiros costumam tentar absolver-se a si próprios com o argumento das mortes provocadas pelos “terroristas” da extrema-esquerda, deliberadamente escondendo os números bem mais gravosos das suas próprias atrocidades e o facto da reação clandestina armada desses grupos corresponder à contestação da ascensão violenta, ilegítima e anti-democrática dos militares ao poder.

Num país com flutuações políticas muito contrastantes, os militares brasileiros foram capazes de gerar, ao longo dos anos e por cima desses ciclos, uma curiosa doutrina estratégica, com peculiares dimensões de política económica. Trata-se de uma espécie de nacionalismo desenvolvimentista que, no passado, teve laivos estatizantes e de apelo a um forte protecionismo, assente num sentimento de independência nacional que passava pela apologia da preservação de um importante setor público, numa espécie de recuo assumido para o modelo da autarcia, tido como viável em função da existência de um forte mercado interno.

Ouvindo e lendo agora com atenção alguns dos “criadores” militares de Bolsonaro, fica a sensação de que essa doutrina pode, entretanto, ter evoluído. Desde logo, no tocante à aceitação das virtualidades das receitas liberais, quer no comércio externo, quer, em especial, no que toca ao peso das empresas públicas, que os tempos democráticos vieram a confirmar como antros privilegiados de corrupção. Logo veremos como será possível acomodar alguns fortes interesses económicos instalados com o custo imediato das medidas liberais, bem como com o tropismo nacionalista que marca muito a identidade brasileira.

As soluções políticas com intervenção militar são, pela sua natureza, de exceção. Este verdadeiro governo militar “soft“, pode, a prazo, vir a funcionar contra a democracia. Por isso, no Brasil, é preciso dizê-lo: o diabo veste farda, mesmo quando anda à paisana.

(Artigo publicado no “Jornal de Negócios” em 22.02.19)

sexta-feira, fevereiro 22, 2019

Frei Bernardo Domingues


Há alguns meses, num artigo, escrevi isto:

"Eu havia cruzado aquele sacerdote há já alguns anos, em tempos seus bastante difíceis, porque as maleitas tocam a todos, ele não escapara a elas e eu fora ocasional testemunha desses seus dias complexos. Guardei, de então, a sua serenidade magnífica perante o que a vida podia trazer-lhe ao virar da esquina, desde logo, a hipótese da morte. Impressionou-me a calma com que, em contexto de total incerteza, olhava as coisas e as pessoas. Admirei-lhe a cultura sem alardes, o humor e o espírito fino de ironia consigo mesmo, a postura de quem se olhava sem magnificar o seu papel – e tenho visto como a sua figura é, afinal, tão importante para muitos. Percebemo-nos desde o primeiro instante, desenhando com facilidade o terreno que nos era comum, que afinal era imenso. Criámos amizade, visito-o, desde então, sempre que posso, leio muito do que publica."

Frei Bernardo Domingues morreu hoje. Vou sentir a falta das nossas conversas, sobre tudo e sobre nada, nas quais ele nunca procurou, nem por um instante, contrariar (nem sequer ironizar) o ateu muito convicto que sou. Aliás, pensando bem, creio que religião foi um tema sobre o qual nunca falámos.

Arnaldo Matos


Aos 79 anos, morreu Arnaldo Matos.

Nos "anos da brasa" de 1974/75, Arnaldo Matos foi um nome bem conhecido dos portugueses, como líder do MRPP. Dirigente associativo universitário nos tempos da ditadura, este jurista madeirense viria a criar, em 1970, o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, mais tarde qualificado de PCTP/MRPP.

Era um movimento maoísta de tipo novo, numa linha completamente independente - e abertamente oposta - das correntes tradicionais.

Em 1974, num comício do MRPP, no Pavilhão dos Desportos de Lisboa, imediatamente após o 25 de abril, foi anunciada, a certo passo, a chegada ao palco do "representante do Comité Lenine, comité central do MRPP". A sala ficou em "suspense". Quando vi subir, em passo lesto, essa anónima figura, saiu-me, bem alto, um "Olha! É o Arnaldo Matos!". Reconheci-o dos tempos da luta académica e de algumas reuniões políticas oposicionistas em 1968/69.

Fui logo silenciado por um coro de protestos dos circunstantes, escandalizados por eu estar a "expor" alguém que estaria "na clandestinidade". Sabia lá eu, que estava por ali, não por qualquer militância partidária, mas por mera curiosidade, e que estava longe de saber que, embora na completa liberdade que então já se vivia, ainda havia quem se mantivesse nesse mundo de sombras.

O nome de Arnaldo Matos acabaria por ser divulgado meses mais tarde e a ele ficou ligado o título de "grande educador da classe operária", na linha grandiloquente da inigualável propaganda do MRPP. Por muitos meses, titulou uma linha que se opunha fortemente ao Movimento das Forças Armadas (MFA), acusando este de ser uma "correia de transmissão" do PCP, numa "tropa" onde curiosamente dispunha de alguns aliados, o mais proeminente dos quais era o major Aventino Teixeira. Uma proximidade a Ramalho Eanes, fruto da convivência comum no seu serviço militar em Macau, também o terá protegido, em especial aquando da sua detenção em 28 de maio de 1975, numa operação do MFA destinada (sem sucesso) a desmantelar o MRPP.

A Revolução entraria, entretanto, em perda de velocidade, o MRPP foi-se tornando cada vez mais diminuto e, um dia, deixou de se ouvir falar de Arnaldo Matos, que terá ingressado na advocacia. 

Nos últimos anos vi-o, por diversas vezes, em eventos públicos, ao lado do lider que lhe sucedeu no partido, o também advogado Garcia Pereira. Depois, foi público um dissídio entre os dois, com este último a ser expulso do MRPP, onde Arnaldo Matos regressaria, em moldes informais e que me pareciam pouco claros, a vários títulos.

Seria a propósito de eu ter referido por aqui esse seu ambíguo estatuto, que o “grande educador da classe operária” me viria a zurzir, tempos mais tarde, nas redes sociais. Nada que eu não levasse à conta da belicosidade polémica de alguém cujo nome, reconheça-se, fica ligado a um período importante da vida política em Portugal.

O diabo veste farda


Leia aqui o artigo com o título em epígrafe hoje publicado no “Jornal de Negócios”.

quinta-feira, fevereiro 21, 2019

Porque sim!


Portugal já quase não tem bancos com capitais portugueses. O Santander e o BPI são espanhóis, o BCP tem maioria chinesa e angolana, esta a mesma do capital do BIC. O Novo Banco, até daqui a uns meses, é de um fundo americano. O Montepio é o que é. 

Ah! Mas nós temos a Caixa Geral de Depósitos! Este “nós” não é majestático: a Caixa é minha, como o é de qualquer cidadão, porque o seu capital é 100% público. A Caixa é portuguesa! Quando se ouve um político dizer que, perante este panorama, “é bom que o Estado tenha, pelo menos, um banco”, sentimo-nos automaticamente solidários. A maioria dos leitores, estou certo, também concordará.

E, no entanto, nestes tempos em que tanto se fala da Caixa, não ouço ninguém fazer uma pergunta simples: mas para que é que o cidadão contribuinte quer ter um banco como hoje é a Caixa? Na Caixa, pagamos comissões mais baratas do que em qualquer outro banco? Não, não pagamos. A Caixa mantém balcões em zonas onde não obtém lucro, por razões apenas de interesse regional? Não, não mantém. Dá a Caixa crédito bonificado, com critérios ligados ao interesse público, em condições mais favoráveis do que outros bancos que operam por cá? Não, não dá. Mas a Caixa segue uma orientação consonante, com toda a certeza, com as políticas públicas definidas pelo Estado, que detém o seu capital, que lhe são ditadas pelo governo, não é? Não, não segue. 

Mau! Mas os contribuintes, isto é, nós, não tiveram que fazer, há pouco, um reforço dos capitais da Caixa, para dar liquidez e sustentação financeira à instituição, que pertence a todos nós? Claro que sim. Alguma coisa esses contribuintes devem ter tido em troca desse esforço, ou não? Tiveram apenas a garantia de que o banco que é a Caixa ficou mais equilibrado financeiramente. Óptimo! Mas, em contrapartida, para poder efetuar esse reforço de capital, a Caixa comprometeu-se a atuar, no mercado, exatamente como qualquer outro banco da concorrência privada. Alguém que explique o benefício que o Estado, e o cidadão contribuinte, que é o “dono” da Caixa, tirará do facto desta ser de capital público - ou talvez só os lucros que o negócio vier a render, sempre uma gota de água no dinheiro investido.

Será que, com este artigo, se está a sugerir a privatização, parcial ou total, da Caixa? Nem por sombras! Recuso, em absoluto, a ideia de que a Caixa venha a ser “passada a patacos”, para alguém que por aí surja com uma mão cheia de euros, dólares, yuans ou kwanzas. Porquê? Eu cá sei! Porque sim!

(Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 20.02.19)

quarta-feira, fevereiro 20, 2019

terça-feira, fevereiro 19, 2019

Lagerfeld


As companhias com que Karl Lagerfeld. o diretor artístico da Chanel, surgia nas mesas do Café de Flore, raramente eram femininas, pelo menos a avaliar pelas muitas vezes em que o vi por lá. Por isso, mais se justifica esta sua fotografia com belas modelos, neste que é o dia da sua morte, aos 85 anos.

segunda-feira, fevereiro 18, 2019

A política externa e a política


No mundo crispado da política portuguesa, o relacionamento externo do país tem vindo a beneficiar de uma réstea de relativo consenso de Estado. Como é sabido, há quem se queixe disso, sob a ideia de que afinal vivemos numa espécie de “diplomacia reiterada“, que apenas passa por ser uma política externa. Mas há quem valorize esse facto, argumentando que, para um país como o nosso, com algumas persistentes fragilidades, essa imagem de continuidade e quase unidade na frente externa é um valor a cultivar.

O facto de PS, PSD e CDS terem tido responsabilidades partilhadas no palácio das Necessidades, e dos presidentes da República constitucionais terem revelado uma atitude basicamente comum face aos interesses internacionais do país, criou uma matriz condicionante, que tem evitado aventuras desviantes. A Europa, o Atlântico e a lusofonia, diáspora incluída, constituem o triângulo temático básico, intocado mesmo por algumas divergências ocorridas.

É verdade que, aqui ou ali, a alguns protagonistas mais sectários fugiu o pé para o dissenso, mas fica a sensação de que o país mede essas atitudes dissonantes pelo seu valor real, no mercado das ideias que vale a pena respeitar. Mas, atenção!: nada garante que este estado de coisas se prolongue eternamente. O tema europeu e, nele, as áreas da segurança e defesa e a questão migratória já mostraram que o risco de derivas existe e pode emergir de novo, a qualquer passo.

Caso diferente são os dois partidos do sistema que, em tempo constitucional, nunca tiveram as menores responsabilidades governativas: o PCP e o Bloco. 

Os comunistas, numa indiscutível e conservadora coerência, vivem na fidelidade ao que sobeja de um mundo que já desapareceu, cujos rituais de confronto formal persistem em observar, agora estimulados por uma administração americana que lhes fornece oportunas munições para o maniqueísmo. Moscovo já não é a União Soviética mas Putin é o sucedâneo possível para congregar as vozes contra o “satã” americano. A Europa, atravessada agora pela vaga populista, surge como aquilo que os comunistas sempre pensaram que era: um cúmplice subordinado da estratégia de Washington. Deve ser bom sentir o conforto das peças que encaixam num puzzle já antigo.

O Bloco, em termos de política externa, acaba por ser um fenómeno mais interessante. Nos debates estratégicos essenciais, tem, com o PCP, uma similitude na atitude face a Washington e à Nato, coisa que, convenhamos, se torna relativamente fácil, nestes sombrios tempos de Trump. Porém, ao contrário dos comunistas, a Rússia não serve de “farol” automático para o Bloco. Mais do que isso, sente-se que por ali se vive alguma “balcanização” interna de opiniões que, por vezes, obriga o partido a ser sensível a essa coisa complexa de identificar e de mobilizar para a sua defesa que é a liberdade. O esforçado equilíbrio retórico que o Bloco teve na questão da Venezuela, como já acontecera no caso de Angola, só não entra pelos olhos de quem não quer ver.

É impossível isentar a política externa das crises e das conjunturas. Mas, se queremos que ela seja um instrumento coerente para a construção do poder nacional, devemos cuidar em preservá-la das emoções cíclicas e, em especial, da demagogia.

(Artigo publicado no “Jornal Económico” em 15.2.19)

Parabéns, concidadãos !