quinta-feira, outubro 25, 2018

O maçarico de bico direito


O debate que está aí instalado sobre o impacto ambiental da construção do futuro aeroporto no Montijo, nomeadamente em torno dos potenciais efeitos negativos do tráfego aéreo na circulação migratória das aves que sazonalmente passam por aquela região, fez-me uma “luz” na memória: lembrei-me de uma história que o Nuno Brederode Santos ouvira a Melo Antunes, passada num Conselho de Ministros nos tempos do PREC. Nem o Nuno nem o Ernesto Melo Antunes já estão vivos para fixarem melhor os pormenores do episódio, que o primeiro contava, com a sua graça insuperável, nas grandes noites da “mesa dois” do Procópio. Vou tentar ser fiel àquilo de que me lembro ter ouvido.

Nesse final de 1974, durante o II ou III governo provisório, o tema dos efeitos negativos de certas ações humanas na mudança no habitat que tradicionalmente acolhia a passagem de aves pelo estuário do Tejo foi um dia suscitado pelo subsecretário de Estado Gonçalo Ribeiro Telles. A temática ambiental, por essa época, era um assunto ainda muito pouco mobilizador, tratado mesmo com alguma sobranceria, pela classe política. Ribeiro Telles, que os anos viriam a demonstrar que tivera razão antes do tempo, preocupava-se genuinamente com o assunto, mas, nesses dias de “politique d’abord”, era ainda difícil para ele captar a atenção dos seus pares.

Acresce que esse Conselho de Ministros estava em absoluto concentrado num determinado tema, sobre o qual era fundamental conhecer a posição do PCP, logo, ouvir o ministro sem pasta Álvaro Cunhal. Naquela mesa em forma de ferradura, fechada no fundo, que Marcelo Caetano mandara construir, muito poucos anos antes, numa sala do primeiro andar da residência oficial de S. Bento (ainda por lá me sentei uma meia dúzia de vezes, vinte anos depois), Cunhal tinha um dos lugares imediatamente à esquerda do primeiro-ministro Vasco Gonçalves. À direita, estava Ribeiro Telles.

O tema em discussão no Conselho, que não retive, era de natureza económica. Depois de uma (como habitualmente) longa introdução de Vasco Gonçalves, este abriu o debate e iniciou a “volta à mesa” pela direita, por Ribeiro Telles. À medida que este falava, percebeu-se que tinha aproveitado o ensejo para derivar para uma interpretação das decorrências ambientais do que se pretendia fazer no estuário do Tejo. De certo modo, o raciocínio, típico do mundo do ambiente, era uma versão daquela metáfora científica consagrada de que “o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar um tufão no Texas”. Ribeiro Telles explicava as consequências multiplicadoras de uma possível interrupção do pouso no Tejo das aves, no seu ciclo migratório.

Para o que aqui interessa, tratava-se de uma abordagem um tanto “ao lado” daquilo que nesse dia suscitava o interesse prioritário dos restantes ministros, que começaram a revelar a sua impaciência. Eles ansiavam ouvir o que Cunhal tinha para dizer e isso só ocorreria no fim da ronda de intervenções iniciada em Ribeiro Telles e que nele estacara.

Como sempre acontece nestas ocasiões, em que o que os outros dizem deixa de interessar, a sala foi invadida por diversas conversas a dois entre os membros do governo vizinhos de mesa, criando um “bruá” de fundo que indisciplinava o exercício. Vasco Gonçalves, ao contrário dos seus ministros, mostrava-se interessadíssimo naquilo que Ribeiro Telles dizia e, por mais de uma vez, pediu “silêncio” aos impacientes governantes. E, para crescente desespero destes, ia colocando questões ao interventor, inquirindo sobre pormenores que o ministro, com o maior agrado, lhe ia detalhando, alongando assim, perante a impaciência geral, o seu tempo de palavra. Foi numa dessas perguntas que o primeiro-ministro inquiriu: “E que ave seria mais prejudicada, nas suas migrações, por essa possível intervenção?” Ribeiro Telles respondeu-lhe: “O maçarico de bico direito”.

Nessa altura, as conversas na distraída sala estavam a tornar o Conselho já um tanto caótico e Vasco Gonçalves, desagradado, deu então um murro na mesa e, elevando a voz e com cara grave, disse: “Senhores ministros! Peço o favor da vossa atenção! O senhor ministro Ribeiro Telles está a falar sobre o maçarico de bico direito”.

A sala “acordou”, não tanto por um remorso de atenção, mas numa genuína gargalhada coletiva. E, agora já perante as caras sorridentes de todos, Ribeiro Telles lá concluiu a sua explicação sobre os riscos que impendiam sobre o futuro do maçarico de bico direito, se privado de amarar no nosso Tejo e zonas adjacentes. Minutos depois, finalmente, Cunhal teria oportunidade de intervir sobre o tal tema grave que a todos preocupava, quiçá um pouco mais do que o destino da ave que, por instantes, pousara, com inegável graça, nesses dias da Revolução.

quarta-feira, outubro 24, 2018

O fim de uma bela ideia

Viena, 24 de outubro de 1998. Há vinte anos. Jantar em casa de João Lima Pimentel, nosso embaixador representante permanente junto da OSCE. 

António Guterres estava muito bem disposto. Sem que ninguém tivesse reparado, passou pela sala de jantar e retirou o cartão de mesa que tinha o nome do seu assessor diplomático, Freitas Ferraz. Quando nos íamos a sentar, este último deu várias e angustiadas voltas à mesa, para tentar perceber qual seria o seu lugar. Por algum tempo, terá pensado que o anfitrião, e seu antecessor no cargo em São Bento, o tinha excluído do repasto. Alguma conflitualidade passada entre os dois legitimava a dúvida. Guterres inaugurou o coro das gargalhadas que todos soltámos com o quase incidente. E foi um belo jantar.

Passados à sala, Guterres disse que queria falar, à parte, com Joaquim Pina Moura, ministro da Economia, com Lima Pimentel e comigo, ao tempo secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Recolhemo-nos numa zona mais privada, com porta de vidro. 

Nem eu adivinhava que, tempos mais tarde, eu iria viver nessa casa, um belo apartamento sobre o Graben, por mais de dois anos.

Guterres foi direito ao assunto. Era necessário desmontar o plano que estava em curso, destinado a criar condições para a sua escolha para presidente da Comissão Europeia. 

O João Lima Pimentel, em finais de 1997, tinha sido a primeira pessoa a falar-me da ideia. Foi num jantar no "Vela Latina", com o Joaquim Pina Moura. 

Inicialmente muito cético, achei que o assunto não tinha pernas para andar. O Joaquim, ao que recordo, estava tentado a que se avançasse, o que me levou a deduzir que já tinha falado com Guterres. 

O João, que já conversara "com Bona" (seguramente com o Joachim Bitterlich, assessor diplomático de Kohl, a quem, um ano antes, ele me tinha apresentado, num périplo que ambos tínhamos feito a Paris e Bona), tinha já várias ideias concretas sobre o que fazer e desenhou, num papel, aquilo que ele passou a designar, para sempre, como o "Plano Alfa". Fiquei de pensar sobre como poderia contribuir para o processo. À saída, alertei para o facto de ser necessário informar Jaime Gama. "Está descansado, o António encarrega-se disso", sossegou-me o João, com a sua tradicional gargalhada.

Por muito estranho que possa parecer, a partir daí e durante alguns meses, não abordei diretamente a questão com António Guterres. E, com Jaime Gama, não me lembro de ter falado nunca do assunto. 

Respaldado pela garantia de que Guterres abençoava a aventura, fui fazendo, por minha conta e risco, algumas diligências exploratórias. Às vezes, isso incluiu lançar pistas equívocas em meios da imprensa internacional em Bruxelas, do género: "posso assegurar que Guterres diria que não, se acaso o seu nome viesse a ser falado para o Berlayamont!". É assim que se põe coisas a correr...

Ao longo de 1998, em diversas conversas a que assisti, entre Guterres e alguns dos seus pares, testemunhei, sempre por iniciativa dos interlocutores do primeiro-ministro português, várias insistências para que ele considerasse aceitar candidatar-se ao cargo. Guterres nunca era conclusivo sobre o seu possível interesse. Recordo-me, em especial, de ouvir Tony Blair, em Downing Street, a ser bastante enfático nessa insistência, numa longa conversa em que referiu, nominativamente, outros possíveis apoiantes de Guterres, avaliando que o ambiente, em Conselho Europeu, lhe era amplamente favorável. Os meus pares dos Assuntos Europeus, com quem me ia cruzando pela Europa, davam, cada vez mais, o assunto por quase decidido. 

Regressemos então a Viena, a outubro de 1998. A decisão que Guterres nos transmitia não era uma completa surpresa para mim e, seguramente, não o era para Pina Moura, que já devia estar avisado dessa intenção. Desde há semanas que me tinham chegado sinais de que Guterres estava cada vez mais avesso à ideia de ir para Bruxelas. Aquele era então o ponto final, concluí

João Pimentel, que um ano antes fora o "pai" da ideia, mas estava então afastado da convivência diária com Guterres, era o mais inconformado. "Porquê, António? Está tudo a correr tão bem! Cada vez me chegam mais sinais que o teu nome tem condições para ser aceite".

Guterres explicou. Estava viúvo desde janeiro. A filha, que aliás estivera no jantar, era muito nova e precisava muito da atenção do pai. Até ali, ele tinha sacrificado a sua irmã, no acompanhamento da sobrinha. E isso não podia continuar. Uma ida para Bruxelas ocupar-lhe-ia ainda mais a vida, de uma forma que não era compatível com a atenção que devia à filha. Tinha de pôr a família primeiro.

"Além disso, há a questão política interna". Eu e Pina Moura mantinhamo-nos calados. Lima Pimentel fazia a despesa da conversa e das perguntas.

"Com a saída do governo do Vitorino, por aquele assunto da sisa da propriedade no Alentejo, não há um sucessor natural para mim. Se eu anuncio a saída, o PS parte-se, saltam dois ou três putativos substitutos e o mais provável é que quem ganhe o partido venha depois a perder as eleições legislativas, daqui a um ano. Nessa altura, eu estaria já em Bruxelas e o partido nunca me iria perdoar. Não posso sair". 

A reserva impede-me de referir a análise que, na ocasião, fez a cada um dos nomes possíveis, como hipóteses para o substituirem como líder. Foi interessante o modo como avaliou, com respeito político e pessoal mas com realismo, o perfil de cada um, para depois os excluir a todos, por não terem, não obstante as suas qualidades, um sucesso garantido, no partido e no eleitorado. 

Mas senti que havia ali mais qualquer coisa. Havia já um desânimo, uma falta de motivação. A morte de Luísa, cuja doença todos tínhamos acompanhado no governo, tinha ajudado a criar um outro António Guterres. 

A noite acabou comigo e o Joaquim Pina Moura a passear no frio da Kärntner Strasse, a caminho dos diferentes hotéis em que estávamos alojados. De certo modo, ambos nos sentíamos um pouco aliviados. A continuidade de Guterres na liderança do governo sossegava-nos. A situação política interna não se apresentava brilhante, a imprensa, depois de um longo estado de graça, tinha "virado" e, nessas circunstâncias, ele era a melhor cara para tentar conseguir uma nova vitória, em outubro do ano seguinte. 

Na manhã seguinte, partimos para Pörtschach, no sul da Áustria, para uma reunião informal de líderes europeus. Pina Moura regressaria a Lisboa. O ministro das Finanças, Sousa Franco, iria a juntar-se-nos, para parte dessa reunião. 

Vivia-se então um tempo intenso e muito difícil de negociações financeiras, na preparação do quadro de financiamento que iria vigorar nos sete anos seguintes a 2000. Muitos jornalistas portugueses acompanhavam a nossa delegação. Antes do encontro europeu, não havia muito para dizer, mas Guterres entendeu que era importante que Sousa Franco e eu falássemos à imprensa. Acabou por não ser um bom momento. O ministro estava tenso e teve uma troca de argumentos menos simpática com Sérgio Figueiredo, diretor do "Diário Económico", que procurei atenuar. Valeu a conferência de imprensa final, em que Guterres esteve, como sempre, muito bem.

Nesse mesmo dia, o meu gabinete tinha-me enviado, por fax, o texto de uma longa entrevista ao "Público" que, dois dias antes, eu tinha dado a Teresa de Sousa, a propósito das negociações financeiras então em curso na Europa. Com má fé, a paginação do jornal tinha-a ilustrado com uma inesperada e oportunista fotografia minha a colocar as mãos sobre os olhos, como que a traduzir desespero. A Teresa, ali mesmo, pediu-me desculpa pelo incidente, a que era em absoluto alheia. 

Aquilo era, no entanto, significativo. O estado de graça do governo Guterres, perante a imprensa, que se tinha prolongado por imenso tempo, já tinha acabado. O vento tinha, definitivamente mudado. E nós passámos a navegar contra ele.

A Casa de Saud


O caso do jornalista saudita, barbaramente assassinado no consulado do seu país em Istambul, recorda-nos os extremos impensáveis a que a violência de Estado pode chegar. E convida-nos a refletir sobre o estatuto de impunidade de que certos países têm vindo a usufruir na cena internacional.

É um segredo de Polichinelo o terrível panorama dos Direitos Humanos em algumas monarquias do Golfo, em especial na Arábia Saudita, país a que igualmente a ninguém passa pela cabeça exigir um mínimo de respeito pelas regras básicas de gestão democrática, quanto mais a observância dos preceitos do Estado de direito, como a separação de poderes. O medievalismo institucional que por ali se vive é, de há muito, uma espécie de dado adquirido e praticamente incontestado, salvo quando a pressão mediática obriga a atenção, geralmente em face de algum arbítrio cometido contra cidadãos estrangeiros. Cortar mãos a ladrões, chicotear prisioneiros ou fazê-los desaparecer, bem como outras barbaridades similares, parece serem práticas entendidas como fazendo parte de uma espécie de excecionalidade cultural. Sublinhe-se que nem todos os países do Golfo se comportam da mesma maneira, sendo a Arábia Saudita o caso mais marcante pela negativa.

Com o anunciado recuo físico dos Estados Unidos da região, os sauditas, que vivem num histórico pânico estratégico face ao Irão, só atenuado ao tempo do equilíbrio armado Irão-Iraque, foram levados a concluir que têm de assumir rapidamente a liderança da sua própria defesa e mesmo tomar a ofensiva em zonas de confluência de poderes, como é o caso do Iemen. Barack Obama tinha deixado claros os limites da complacência da América de então, e todos recordamos o ambiente gélido com que saiu, pela última vez, de Riade. Trump, pelo contrário, sem os pruridos do seu antecessor, usou a orfandade saudita para anunciar vendas fabulosas de armamento, sob o aplauso de Israel, objetivamente e de há muito o grande aliado da Arábia Saudita na região.

A “Casa de Saud” tinha, nos últimos tempos, tentado “vender” uma nova imagem, “modernizante” – expressão que no Golfo é usada para aplaudir qualquer mínima abertura no ambiente concentracionário que ali se vive, de discriminação e desrespeito pelas mulheres e minorias. O novo príncipe, designado mediaticamente por uma sigla, passeava-se de jeans e era parceiro dos familiares do presidente americano. Só que, por detrás das aparências, havia a realidade e essa, ao que agora se sabe, é sinistra e violenta. Algum mundo reagiu. Até quando?

terça-feira, outubro 23, 2018

Brasil


Monsanto

Anda por aí uma polémica sobre a cedência, a uma entidade privada, da casa municipal existente no parque de Monsanto, que alguns pensavam ser a "residência oficial" do presidente da Câmara de Lisboa mas que, afinal, era apenas do antigo responsável do parque.

Acho que nos estamos a esquecer do papel desempenhado por aquela residência na História pátria. Foi lá que Dias Loureiro e Santana Lopes prepararam o discurso de posse deste último como primeiro-ministro, uma cena imorredoura para quem teve o privilégio de a observar.

segunda-feira, outubro 22, 2018

Os tempos de Cavaco

Não há, em tese, uma distância temporal mínima para se escreverem memórias. Mas relatar conversas políticas sensíveis, decorridas há menos de três anos, sem a anuência dos interlocutores, parece-me uma manifesta falta de sentido de Estado. Agora posso perceber melhor a expressão “período de nojo”...

O Brasil não é linear


O Brasil é, por estes dias, um país estranho. A divisão esquerda-direita, que faz as delícias da caricatura política pela Europa, não funciona por lá exatamente da mesma forma, no instante do voto. E na memória das pessoas.

Vou contar um episódio passado em Salvador da Bahia, em 2006. Numa reviravolta política que, à época, pareceu surpreendente para muitos, o PT tinha acabado de ganhar, na pessoa de Jacques Wagner, o governo do Estado, simultaneamente com a reeleição de Lula para a presidência da República. O anterior governador, Paulo Souto, fora copiosamente derrotado. Ele era, a nível local, a face mais evidente da força de um grande “cacique” político, António Carlos de Magalhães, conhecido por ACM, que acabara de sofrer talvez a sua maior derrota política.

ACM era uma figura muito polémica. Fora um “filho” da ditadura militar, membro da Arena, o “partido” dos militares, que a democracia viria a converter em PFL e, depois, no DEM, que hoje existe. ACM era tudo isso mas, para nós, fora sempre um amigo de Portugal, fiel em momentos difíceis. E o embaixador português, nesse momento de derrota do velho político, não podia esquecer isso.

Nessa manhã, o novo governador, o “petista” Jacques Wagner, dera-me uma receção de luxo - aliás, portar-se-ia impecavelmente connosco, ao longo do período do seu mandato em que com ele coexisti. No final do encontro no palácio do governo, não longe do aeroporto, onde o fui cumprimentar, escassos dias depois da sua retumbante vitória (eu queria ser o primeiro embaixador a fazê-lo), deixei as coisas bem claras: “Gostava que soubesse que, esta noite, no hotel Convento do Carmo, onde ficarei, vou oferecer um jantar a ACM. Sempre foi um bom amigo de Portugal e nós não esquecemos isso”. Wagner olhou-me, da sua barba quase cubana num perfil sereno de burguês, e comentou: “Faz muito bem, embaixador. O ACM é um político que faz parte da história do Brasil. Teve a gentileza de me ligar na noite das eleições. Eu era amigo do seu filho, o Luiz Carlos, que morreu. Um destes dias, vou encontrar-me com o ACM. Preciso de conversar com ele”.

Nessa noite, a jornalista Maria João Avillez, que por acaso estava na Bahia, testemunharia a confirmação que ACM me fez da amizade e respeito entre o seu filho e Jacques Wagner, por cima da política que os dividia.

Continuei depois a viagem para o hotel, no carro do governo. O motorista era um homem bem disposto, com quem fui trocando impressões sobre a vida, sobre Salvador. A certa altura perguntei-lhe: “Está contente com a vitória do Lula?” O presidente tinha acabado de ser reeleito, com uma forte votação na Bahia. “Muito! O Lula é excelente! É um grande presidente. Vai fazer muito pela Bahia”. Continuávamos pela estrada que nos levava ao centro da cidade, com muita obra de infraestrutura à vista. E não resisti: “E o ACM? O que é que as pessoas, aqui na Bahia, acham do ACM?” A pergunta ia em claro contraciclo do elogio que o homem acaba de fazer a Lula, adversário jurado do político baiano. Mas eu é que estava equivocado, porque, para ele, a resposta era muito simples: “O ACM? Foi ele quem nos deu tudo isto! O ACM foi um grande homem. Devemos-lhe muito!” E continuou a conversa.

Hoje, o “Público” cita um alegado familiar de Francisco da Costa Gomes a dizer: “O que temos devemos aos militares”. Partindo do princípio de que não estava a falar do apelido comum, mas da herança da clique fardada que deu ao país mais de vinte anos de ditadura, só podemos concluir que, em política, o Brasil está longe de ser um país linear.

domingo, outubro 21, 2018

A Justiça brasileira e o vento


O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do Brasil, que é, em parte, uma secção do Supremo Tribunal Federal (STF) do país, tem em análise uma queixa contra o candidato favorito à eleição presidencial, Jair Bolsonaro, relativa à descoberta do uso abusivo do Whatsapp, financiado com fundos privados, para espalhar notícias falsas sobre o seu rival Fernando Haddad. Em teoria, a ser provado que a sua eleição na primeira volta beneficiou de apoios indevidos que pudessem ter influenciado fortemente o sentimento dos eleitores, Bolsonaro poderia ser afastado da corrida presidencial.

Na segunda metade de Outubro de 2006, viviam-se as três intermináveis semanas que, no Brasil, separam os dois turnos das eleições. Era mais do que evidente que Lula ia ser reeleito, face a Geraldo Alckmin, mas a margem dessa vitória era muito importante. Uma vitória tangencial dar-lhe-ia uma legitimidade reduzida.

Por esse tempo, o escândalo do “Mensalão” - pagamento a deputados para apoiarem o governo, com recurso a fundos ilícitos - tinha-se aproximado muito da figura do presidente. Várias peças do aparelho político à sua volta tinham já sido atingidas e Lula tivera de se separar de alguns dos seus apoios mais importantes. A cada dia, surgiam dados envolvendo mais pessoas e que tornavam implausível que o presidente nada soubesse desse mecanismo de financiamento, que falseara fortemente a vida democrática do país. Contudo, Lula parecia imune, no julgamento popular, a todas essas imputações. Era como se o Brasil “fizesse de conta” de que acreditava na inocência de Lula. A economia ia bem, a sua popularidade era grande, o mundo testemunhava-lhe respeito. Por essa razão, a reeleição continuava garantida.

Num almoço de despedida a um embaixador estrangeiro, em Brasília, em casa de amigos comuns, aproveitei o facto de ser um “buffet” para procurar um lugar junto de um importante juíz do STF. Como embaixador de Portugal, eu conhecia pessoalmente todos os onze integrantes do STF e, com esse que estava presente ao almoço, tinha criado, de há muito, uma relação agradável. Aproveitei para inquirir se ele achava que, não obstante a sua provável reeleição, Lula corria ainda riscos sérios de ser afastado por “impeachment”. O juíz, baixando a voz, disse-me com firmeza: “O que há contra Lula continua a ser muito sério! Muito sério mesmo, embaixador! Mesmo com a reeleição, o “impeachment” tem muitas hipóteses, pode crer. Ninguém fala disto, mas é assim mesmo”.

Ainda deve andar pelos arquivos do MNE o telegrama no qual, no dia seguinte, eu terei informado Lisboa desta conversa - que ia um pouco a contraciclo do ambiente de otimismo que rodeava a possível recandidatura de Lula. Enviar informações contra o pensamento dominante é algo que os embaixadores não gostam de fazer. Mas que devem fazer. E eu sempre assim fiz.

Passaram umas semanas. Lula acabou por ser reeleito com mais de 60% dos votos. Mesmo na imprensa mais hostil, a hipótese de um “impeachment” ao presidente reeleito deixara por completo de ser mencionada. O PSDB, o partido do derrotado Alckmin, parecia ter deixado cair a ideia, que alimentara conjuntamente com o mais conservador PFL (que só mudaria de nome para DEM, meses depois). A informação que eu passara a Lisboa, no meu telegrama “a contraciclo”, não parecia ter já o menor sentido.

O juíz de que atrás falei foi um dia à nossa residência, já não recordo se para um cocktail ou um jantar. Achei curioso testar aquela ideia da plausibilidade do “impeachment”, de que ele me tinha falado, semanas antes. E, muito diretamente, perguntei-lhe se o processo de que me falara ainda tinha “pernas para andar”. A resposta foi exemplar: “Com uma vitória com mais de 60%, Lula garantiu a benção de todas as ‘mães-de-santo’ do Brasil, caro embaixador. Agora, ninguém lhe toca, até ao fim do mandato. A justiça, neste país, só consegue exercer-se se estiver no sentido do vento do sentimento popular”.

Lembrei-me disto hoje, ao ler sobre o processo contra Bolsonaro. A estátua da Justiça, na praça do Três Poderes, lá em Brasília, pode estar vendada, mas sente o vento que sopra. E o sentido do vento popular já colocou Bolsonaro no Planalto. A Justiça, no Brasil, não vai “contra o vento”. Aposto.

sábado, outubro 20, 2018

História das Arábias


O triste episódio do dissidente saudita assassinado no consulado de Riade em Istambul trouxe-me à memória um episódio com quase 20 anos.

Estávamos, creio que por esta altura do ano, em 1999, em plena presidência finlandesa da União Europeia. Portugal era membro da "troika" e preparávamos então a agenda para a nossa presidência, que teria lugar no primeiro semestre de 2000.

Por esses dias, fui ao Dubai, como responsável português dos Assuntos Europeus, com a ministra finlandesa dos Negócios Estrangeiros, Tarja Halonen, para uma reunião ministerial entre os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) e a UE. O CCG tem como país mais importante a Arábia Saudita, incluindo ainda o Bahrein, o Kuwait, o Omã, os (sete) Emirados Árabes Unidos e o Qatar - este último, nos dias de hoje, em crise política com os restantes, em especial com a Arábia Saudita.

Dos então Quinze países da UE, menos de uma meia dúzia decidira fazer-se representar a nível de membros do governo. Isso foi "premiado" pelas autoridades do Dubai com a oferta do nosso alojamento no fabuloso Burj Al Arab, um hotel em forma de vela, de 7 estrelas, então aberto há muito escassos meses. Os delegados dos países que haviam decidido fazer-se representar por embaixadores ou altos funcionários foram colocados numa unidade hoteleira bastante mais modesta.

A agenda de relações externas prevista para a nossa futura presidência era bastante ambiciosa, mas tinha pouca expressão na área do Médio Oriente. O tema veio à baila numa conversa minha com o MNE do Oman, que eu já conhecia de uma anterior reunião, dois anos antes, em Mascate. "Portugal tinha toda a vantagem em organizar uma reunião com o Conselho de Cooperação do Golfo para o ano. Sabemos que vocês têm uma especial sensibilidade para esta região", disse-me o ministro Al-Zawawi (que está no cargo desde 1997!). Fiquei a pensar no assunto, durante os três dias de passados no Dubai. Chegado a Lisboa, "vendi" a ideia a Jaime Gama e, oportunamente, avisámos os nossos parceiros. A reunião UE-CCG far-se-ia nesse primeiro semestre de 2000.

Hoje, tenho fortes dúvidas sobre se foi uma boa ideia.

Na soturna sala do Justus Lipsius, em Bruxelas, em que nos reunimos, meses mais tarde, com o grupo de ministros do Golfo, todos com trajes brancos que, à nossa vista, pareciam idênticos, que já nos haviam obrigado a um penoso almoço acompanhado de sumos e águas minerais, a discussão, para além de temáticas económicas, acabou por cair, a certo ponto, em temas de Direitos Humanos.

Havíamos tido o cuidado de atentar bem nas notas que o Secretariado-Geral do Conselho nos preparara e Jaime Gama, que presidia pelo lado da UE, adotou uma linguagem de medida firmeza: era preciso não nos afastarmos do "discurso" europeu, mas cada presidência podia adaptá-lo com maior ou menor sabedoria. As mesmas coisas podem dizer-se de formas diferentes. E nós sabíamos fazer isso muito bem, sem a menor perda de eficácia. Mas não podíamos evitar, da parte de algumas delegações, que surgissem intervenções bastante "maximalistas" no tom. E isso veio a acontecer. Alguns ministros que não tinham ido ao Dubai, poupando então a presidência finlandesa, "vingavam-se" ali e dificultavam o nosso exercício. 

A reunião, a partir de certa altura, acabou por ser o bom e o bonito! O lado árabe, capitaneado pela Arábia Saudita, reagiu violentamente a algumas das intervenções, invocou "ingerência" nos assuntos internos da região e a reunião descambou num "bate-boca" tenso e incómodo, de certo modo, diluindo os aspetos positivos que, até então, tinham merecido um confortável consenso, nomeadamente em matéria económica. Jaime Gama, com a placa da presidência da UE à frente, voltou-se a certa altura para mim, que chefiava a delegação portuguesa, com um olhar que tinha a seguinte transcrição semiótica: "Que raio de ideia você teve de incluir esta reunião na nossa presidência!". E tinha toda a razão.

As monarquias do Golfo habituaram-se, desde sempre, a uma grande complacência do mundo ocidental pelas suas práticas, quer em matéria de valores democráticos, quer em termos de Direitos humanos, fruto de uma "realpolitik" com cheiro a petróleo que tem sido a regra do jogo do cinismo internacional. O que agora aconteceu no consulado saudita na Turquia não desmerece a prática anterior. A experiência mostra que, depois de alguns sobrolhos carregados, o mundo euro-americano regressará por lá, à cata de encomendas e de bons negócios, colocando os princípios e os valores nos parêntesis da conveniência. 

sexta-feira, outubro 19, 2018


O Sport Clube de Vila Real, o clube da minha terra, que esta noite defrontou o Futebol Clube do Porto para a Taça de Portugal, comemora proximamente 100 anos da sua existência. 

Honra à mais antiga agremiação desportiva de Trás-os-Montes!

Notícias do absurdo


Eram os tempos da eleição presidencial brasileira de 1989. Por um acaso, eu estava de férias no Rio de Janeiro e vivia fascinado com o espetáculo televisivo dos tempos de antena, que, naquele país, têm uma extensão temporal equivalente ao peso relativo dos partidos que apoiam cada candidato. Recordo-me bem de um dentista barbudo, chamado Enéias, que surgia por breves segundos, só tendo tempo para dizer: “Meu nome é Enéias!”

À época, estava em construção a imagem vencedora de Collor de Mello, um candidato sob os favores televisivos da Globo, que o transformava em “mais igual” do que outros. Entre estes, avultava a imagem do líder sindical Lula da Silva, uma figura de discurso engrolado, fácies grave e léxico agressivo. Longe vinham ainda os tempos de 2003, do Lula “paz e amor”, da “carta ao povo brasileiro” que seduziu os meios económicos e lhe faria ganhar o caminho de esperança para o Planalto.

Nesses dias de outubro de 1989, o então cônsul-geral de Portugal no Rio, José Stichini Vilela, convidou-nos para um almoço de domingo, a que estava presente um importante empresário brasileiro. A conversa derivou, a certo passo, para a segurança, ou melhor, para a insegurança - nesses tempos ainda a anos-luz da tragédia que hoje o Rio atravessa. 

O empresário contou que residia numa moradia num ponto alto da cidade, próxima de uma conhecida favela. À nossa curiosidade sobre a sua relação com a vizinhança, esclareceu que tinha, com os líderes daquela comunidade, uma espécie de “gentlemen’s agreement” que, em princípio, o isentava de riscos. Mas contou-nos que, à revelia desse “acordo”, a sua casa fora um dia assaltada. O empresário contactou então os seus interlocutores na favela que, surpreendidos e desagradados, prometeram atuar. E assim aconteceu: “Em poucos dias, apareceu tudo o que fora roubado”, referiu. E, com voz indiferente, isenta de emoção, acrescentou, em jeito de detalhe: “Ah! E os corpos dos bandidos também...” À volta da mesa, algumas faces gelaram, perante a naturalidade assumida da “vendetta”. Mas não, ao que me pareceu, as dos convivas brasileiros.

A ditadura militar, que marcara os dias do Brasil por duas décadas, até quatro anos antes, mantinha-se então viva, e bem positiva, na memória do empresário. Como o estava na de Jair Bolsonaro, que agora vai ser o próximo presidente do Brasil e que curiosamente seria eleito pela primeira vez para um cargo público, no sufrágio desse ano. O regime que perseguiu, prendeu, torturou e matou muitos brasileiros, colando as suas instituições às que padronizaram a vida latino-americana de então, manteve sempre os seus defensores no país. 

Pensava-se, porém, que seria um sentimento minoritário, residual, desaparecido sob as vantagens da democracia. A perceção destas não foi, contudo, suficiente para contrabalançar os medos, as inseguranças, as raivas e a desilusão, capazes de credibilizar uma aposta no absurdo. Se, há uns anos, uma presidência desta natureza iria provocar, pela certa, uma reação escandalizada do mundo, hoje os tempos mudaram e o absurdo tornou-se no novo normal.

quinta-feira, outubro 18, 2018

Gostos e desgostos


A excelente palestra sobre o Gosto que José Bento dos Santos, o indiscutível “papa” da Gastronomia portuguesa, nos fez ontem ao final da tarde de ontem no Grémio Literário, foi um momento muito interessante e instrutivo. Houve várias “experiências” práticas propostas aos participantes, desde molhos mais ou menos “históricos” (dos usados na Idade Média a sabores contemporâneos mais comezinhos) à prova de pães de diversa natureza - da textura à acidez, sublinhando a prevalência em cada um deles de vários componentes. 

A fala terminou com um interessante teste de aferição da variação do gosto dos presentes. Bento dos Santos dividiu os presentes na sala em três grupos, aos quais apresentou outros tantos produtos culinários. Cada um dos grupos só provaria um desses três produtos e, sobre essa sua experiência, cada pessoa deveria fazer, num boletim distribuído para o efeito, uma cruz, numa das três hipóteses: “excelente”, “razoável” ou “horroroso”. O primeiro produto era qualificado como um gelado, o segundo tinha um nome cabalístico do tipo XPTO e o terceiro, que me coube experimentar, era uma mousse fria.

O gelado foi um insucesso: muitas poucas pessoas o consideraram “excelente” e os votos no “horroroso” foram bastantes. O XPTO também não teve muita sorte mas, apesar de tudo, foi aprovado à tangente, somados os “excelente” e os “razoável”. Mais sorte teve a mousse que provei, onde os “excelente” ganharam por larga margem.

No final, José Bento dos Santos revelou: todos tínhamos comido exatamente a mesma coisa! Só o nome variava e, exclusivamente por essa razão, pela adequação do sabor à diferente expetativa criada pelo nome, as pessoas tinham gostado, mais ou menos, desse mesmo produto - uma espécie de pasta de salmão. Curioso, não é?

quarta-feira, outubro 17, 2018

Remodelar


É curiosa a expressão que, entre nós, qualifica as mexidas nos governos. “Remodelar” parece significar a adoção de um novo “modelo”, literalmente uma retificação do anterior, como se as mudanças configurassem, não a descoberta de pessoas para melhor servir o modelo que já lá estava, mas sim construir, com as recém-chegadas, um formato renovado.

Em inglês, “reshuffle” parece mais divertido: é tornar a “baralhar”, numa lógica de um novo conjunto para um novo começo, como num caleidoscópio. Em francês, o conceito é mais burilado: “remanier” acarreta um “manuseamento” por quem detém os cordelinhos dos atores da peça. Mas, no fundo, é tudo a mesma coisa.

As remodelações, ocorram pelos motivos que ocorrerem, fazem parte do dia a dia dos governos. A imprensa fica furibunda quando as não prevê, mas adora-as: especula sobre elas, aponta-lhes candidatos, para as saídas como para as entradas. Uma remodelação é uma festa mediática, presta-se a intrigas, os lóbis funcionam nos seus bastidores. E, entre nós, tem uma regra quantitativa: substituir um ministro ou dois não configura uma remodelação. Nem mesmo três. Mas quatro, já é! Exatamente como as “goleadas”, no futebol.

Sempre entendi que uma remodelação nem sempre é a confissão de uma aposta falhada. Alguns ministros podem ter correspondido ao que deles se exigia. A mudança pode significar apenas que se esgotou o seu tempo útil na governação e que, perante uma fase subsequente na aplicação das políticas públicas para o setor, uma cara fresca permite ganhar tempo, suscitar expetativas, diluir temporariamente a pressão. É que as caras “gastam-se”, os discursos cansam e, mesmo sem o registo cínico do “Leopardo”, às vezes é preciso que alguma coisa mude para que tudo continue na mesma.

Ficou célebre, no Brasil, a história de um não-convite para um governo, numa anunciada remodelação. Alguém havia alimentado a esperança de integrar o executivo. A imprensa já dava o convite em letra de forma, os amigos do visado felicitavam-no por antecipação. Só falhava um “detalhe”: o diabo do convite tardava em surgir. O potencial governante decidiu não fazer esperar a sorte e foi falar com o titular do poder. Este, franco, disse-lhe que, na realidade, nunca tinha pensado nele para o tal cargo. O homem caiu das nuvens! Ia ser um vexame! A família, os amigos, que horror! O chefe do executivo sugeriu uma solução: à saída da audiência, o nosso homem diria à imprensa que tinha sido convidado mas que decidira recusar... E assim foi!

terça-feira, outubro 16, 2018

Há um ano


15 de outubro de 2017, domingo. O telefonema surgiu ao final da tarde: um familiar, bastante doente, acabara de falecer, numa cidade do norte. O funeral seria no dia seguinte. Com duas outras pessoas, parti de Lisboa, pela A8/A17. O tempo estava abafado, muito quente, ventoso. A espaços, começámos a observar clarões, visivelmente de incêndios, num horizonte que, progressivamente, se foi aproximando de nós. Liguei a rádio: música e conversa fiada. A certo ponto, perto da zona do pinhal de Leiria, as chamas aproximavam-se da estrada. Uma viatura de assistência corajosamente ali estacionada dizia para abrandar, mas a vontade era acelerar, para tentar fugir logo daquilo. Senti o vidro do meu lado a aquecer, embora as chamas estivessem bem para além da faixa de rodagem contrária, mas não falei disso a ninguém. Subitamente, porém, vimo-las já do outro lado da estrada, isto é, do nosso lado. Só podíamos prosseguir, ziguezagueando às vezes um pouco, com algum risco, para fugir ao calor das matas ardentes que dava a ideia que iam cair sobre a estrada, com as chamas arrastadas pelo vento. Havia faúlhas incandescentes, que pairavam à nossa frente. O ar adensava-se já dentro do carro, com forte cheiro a queimado. Comecei a ver a inquietação subir nos meus parceiros de viagem. A certo ponto, porém, durante algum tempo, as coisas deram ar de estar a acalmar. Haveria incêndios mais a norte? A rádio, repito, continuava na sua inconsciência lúdica. Não passaram, contudo, muitos mais quilómetros quando, de novo, em dimensões que iam variando mas não diminuindo, novos fogos iam surgindo. A ideia, sugerida por alguém, de comprarmos água, numa estação de serviço, num espaço que parecia menos afetado, depressa foi abandonada: o que era preciso era sair daquela zona, tão rapidamente quanto possível. Foi então que, de um momento para o outro, como se as coisas não estivessem já muito preocupantes, tudo se agravou imenso. Dos dois lados da estrada iam surgindo, em ritmo galopante, novos fogos, soprados por ventos, que se aproximavam dos carros, num baile vermelho, imprevisível e de quase terror. Eu tentava gracejar, no meio dos nervos, “explicando” que se havia cenário para utilizar o termo “dantesco”, usado pelos jornalistas sem imaginação, era mesmo aquele. Mas começava a haver fumo por todo o lado, o ambiente tornava-se dificilmente respirável, os vidros escaldavam, comecei a temer pelo estado dos pneus. Conduzia já com escassa visibilidade, com os outros carros por bem perto, agora com um forte receio de bater noutra viatura. Se houvesse um acidente, impeditivo de prosseguir, que nos aconteceria? Eu fazia das tripas coração, tentando transmitir uma confiança que não tinha, a quem ia comigo. A falta de informação da rádio continuava angustiante. Sair da estrada, numa próxima oportunidade, podia ser uma solução ou condenar-nos-ia a um destino idêntico ao das pessoas que, em julho, tinham morrido num túnel de fogo numa via secundária? Que estradas não estavam então utilizáveis? Sem o deixar transparecer, comecei a ficar já sem saber bem o que fazer, temendo que continuar na auto-estrada deixasse de ser uma opção sensata. Foi então que, finalmente, uma milagrosa brigada da GNR nos travou o caminho e indicou uma saída, na direção de Vagos. Eram, contudo, muitos os carros que por ali iam sendo encaminhados, andando a imensa fila num ritmo muito lento, às vezes com largas paragens, que nos deixavam inquietos, não fosse o fogo aproximar-se. Isso não veio a suceder, felizmente. Demos uma grande volta, mas lá conseguimos atingir um caminho seguro, sem fogos. Chegámos muito tarde ao norte. Vivos. No dia seguinte, um dia triste por razões de morte, o cheiro a queimado, impregnado no carro, recordava a angústia da véspera. Que noite! Não vou esquecê-la nunca!

segunda-feira, outubro 15, 2018

Paris, em meia dúzia de notas (6)


Custou um euro e meio, num alfarrabista no boulevard St. Michel, na manhã de domingo. É um livro de Marie-France Garaud, de 2006. Muitos leitores deste espaço não devem fazer ideia de quem foi. Quem seguiu a vida política francesa, em especial o movimento gaullista pós-De Gaulle, lembra-se bem do “tandem” conspirador que ela fez com Pierre Juillet. 

Marie-France Garaud chegou a ser considerada a mulher mais influente de França. Era uma “viúva” de Pompidou, uma estratega contra Mitterrand, que apoiou Giscard d’Estaing “faute de mieux”, pelo ódio a Chaban-Delmas (o Lisboa-Porto, em França, tem o seu Paris-Bordéus. Alain Juppé que o diga!). Protegeu Jacques Chirac, de quem se afastou com a definição lapidar: “Eu pensava que Chirac era feito do mármore de que se fazem as estátuas. Afinal, é feito da faiança de que se fazem os bidés...”. Teve o “desplante” de tentar concorrer às eleições presidenciais de 1981 (obteve pouco mais de um por cento...), passou depois à França anti-europeia mais radical, ao ponto de vir a apoiar Marine Le Pen, em 2017.

O livro é um expressivo manual de perfídia, que ajuda a perceber os truques e as artimanhas da França conservadora - que tentou atrasar, sem sucesso, as ascensão ao poder da esquerda, em 1981. Dou-me conta de que nunca tinha lido nada desta fantástica “operacional” da política reacionária e, devo dizer, é um texto muito bem escrito. E eu gosto muito de ler livros com que sei que não vou concordar e que pouca gente lê...

Assumo-me como um “dependente” da história política da França contemporânea (como o sou da britânica, da espanhola, da americana e da brasileira - e de mais nenhuma!) e dou comigo a pensar da imensa “sorte” que tive, durante os anos em que por aqui trabalhei, de ter tido os meus dias muito ocupados e sem grandes “escapadelas” para pesquisas de bibliografia lúdica. Ai de mim, se tivesse tido tempo para me “atulhar” destes livros, ao “preço da chuva”, dos “bouquinistes” às vendas a retalho, sobre essas décadas que me interessam imenso. Agora, dentro da reforma, posso dar-me a estes “luxos”, por €1,50... Desde que caibam na mala!

Na esplanada em que ontem almoçava, num dos mais deliciosos fins-de-semana em Paris neste ano, com sol e calor qb, notei que um cavalheiro idoso (isto é, mais ou menos da minha idade), da mesa ao lado, me olhava com circunspecta curiosidade. Por que diabo, devia estar ele a perguntar-se, um tipo de cabelos brancos, pela certa estrangeiro (a minha pronúncia não engana), lia um livro, com mais de uma década, da autoria Marie-France Garaud, dele citando em francês passagens a quem o acompanhava? O homem estava visivelmente perplexo. Tinha uma comenda da Ordem de Mérito, no blazer azul forte, com lencinho vermelho com motivos, a pingar do bolso. Deixei-o no mistério. Afinal, intrigar gente claramente de direita constitui para mim, desde há muito, um bom e justo objetivo de vida.

Paris, em meia dúzia de notas (5)


Foi na (quase insuperável livraria) “L’Écume des Pages” que ontem me cruzei com Élie Cohen. E que logo me lembrei (e já explico porquê) do Artur “Kiko” Castro Neves, um amigo que nos dias de hoje me faz muita falta.

Não sou um amigo antigo do “Kiko”. Comecei a “frequentá-lo” na Mesa Dois do Prócópio, creio que nos anos 90, sob a ”tutela” benévola do também saudoso Nuno Brederode Santos. (E, por saudades, naquela mesa, vale a pena deixar a triste lista: Zé Cardoso Pires, Jorge Fagundes, Raul Solnado, Zé Medeiros Ferreira, Simão Santiago, António Dias).

O “Kiko” baixava do Porto, com o seu ”papillon” e o seu sorriso, trazendo para a tertúlia um sopro de frescura nortenha, algum cosmopolitismo e muita graça. Depois de ter vivido muitos anos em Paris, onde se formou e deu aulas, regressou ao Porto, onde lecionava e publicava. Apareceu-me por mais de uma vez no Brasil, onde me apresentou gente de quem me tornei amigo. Em Paris, onde ia visitar a sua mãe, surgia-me a espaços, às vezes com a Isabel, iluminando-me sobre locais da cidade a que, sozinho, eu nunca chegaria. Era uma excelente “onda”!

Um dia, em Paris, convidou-me para almoçar com Élie Cohen, um economista francês de relevo e de renome, há muito seu amigo. Cohen era próximo de Hollande, ainda antes da chegada deste ao poder e foi-me muito útil para perceber o que seria a orientação económica da França pós-Sarkozy. Foi um contacto que, a partir daí iríamos repetir várias vezes, em algumas ocasiões na embaixada. Cohen é uma figura muito interessante, com a vantagem de ser um espírito livre e pouco ortodoxo. O “Kiko”, que o conhecia de há muito e por quem Cohen tinha imenso respeito, desenvolvia com ele conversas que me foram muito úteis. Cohen e eu comungamos as saudades pelo “Kiko” Castro Neves.

(ps - ilustro o post com uma foto do velho “Aux Trois Canettes”, que há muito fechou, lugar a que o “Kiko” Castro Neves gostava de ir - e onde se dava bem com o Alexandre - mas onde, de facto, nunca se comeu muito bem...)

domingo, outubro 14, 2018

Paris, em meia dúzia de notas (4)


Foi muito bom ter tido ontem a oportunidade de proferir, a convite das estruturas comunitárias portuguesas em França, uma palestra sobre a Europa, nas instalações da Câmara Municipal de Paris. Agradeço a Marie Hélène Euvrard a simpatia do seu convite.

Tendo saído de funções na nossa embaixada há mais de seis anos, foi excelente poder reencontrar antigos colaboradores e amigos de outros tempos e de outras ”guerras”. 

Durante mais de uma hora, discutimos os desafios da Europa, os seus problemas e derivas recentes. Não há pessoas mais bem colocadas para entender as vantagens da cidadania europeia do que os portugueses que, por aqui, eram já parte da Europa comunitária antes do nosso país integrar as instituições europeias. Eles sabem, melhor do que ninguém, o valor acrescentado que esse passo político trouxe às suas vidas.

Paris, em meia dúzia de notas (3)


O Patrice, chefe de sala da Lipp, disse-me não ter visto nem ouvido falar de nada. Na noite de ontem, ficou muito surpreendido quando eu lhe contei que o “Figaro” trazia, nessa manhã, a história dos reis da Suécia que, há dias, ali teriam surgido, sem reserva, à hora de almoço.

Ao que parece, há muito que a Lipp não via realezas por lá, mas a sabedoria imediata de quem por lá reinava, na hora, terá de imediato encontrado uma solução e uma excelente mesa. Talvez a mesma de que Mário Soares muito gostava e que sempre me era mais fácil obter quando, na reserva, eu dizia que ia com ele. Não por acaso, imagino, a mesma de Mitterrand. Como manda a regra, “à tout seigneur, tout honneur”. Republicano ou monárquico.

Paris, em meia dúzia de notas (2)


O episódio sinistro do jornalista saudita que um comando enviado de Riade terá feito desaparecer, há dias, de um consulado da Arábia Saudita na Turquia faz recordar o rapto, e o subsequente assassinato, de Ben Barka, o oposicionista marroquino que, em 1965, foi preso à porta da Brasserie Lipp, com a posterior cumplicidade dos serviços secretos frances. A imagem de Marrocos veio a sofrer bastante com esse facto e só podemos desejar que a da Arábia Saudita, e da sua polémica nova liderança, não venha a escapar à crítica internacional, para além dos efeitos de tensão que o episódio já induziu no eixo sunita.

Durante anos, nas grades das escadas para o parque de estacionamento, entre a Lipp e o Flore, estava a placa que deixo na imagem. Ontem, passei por lá e o memorial tinha desaparecido. Que estranho! Espero que não seja já um efeito de “realpolitik” acomodatícia.

sábado, outubro 13, 2018

Paris, em meia dúzia de notas (1)


O museu d’Orsay tinha aberto há muito pouco tempo. Estávamos na segunda metade dos anos 80. Eu andava numa breve passagem por Paris e tinha grande curiosidade em perceber como é que naquela antiga estação de caminhos de ferro tinham sido acomodados os impressionistas que já não cabiam na l’Orangerie, o espaço das Tulherias, hoje com um destino híbrido. 

De repente, vi dois cavalheiros (conhecidos, mas apenas de vista) de braço dado. Eram figuras portuguesas. Um deles, que se movimentava já com alguma dificuldade, era Azeredo Perdigão, o homem a quem o nosso país deve a Gulbenkian - para mim uma das personalidades portuguesas mais marcantes do século XX. O outro, que o orientava pelo novo museu, era um homem fascinante: José Augusto França. Historiador de arte, mas não só: memorialista, ficcionista, homem dos sete instrumentos culturais, que tive o privilégio de conhecer e que, infelizmente, nos dias de hoje, passa, aqui em França, onde reside, por um período muito difícil de saúde.

Lembrei-me de ambos, ontem, com admiração e respeito, quando voltei (volto lá, de dois em dois anos, para “lavar os olhos”) ao Museu d’Orsay, desta vez para ver algum Picasso, parte do qual nunca esteve no seu museu do Marais (agora renovado, e que também vale muito a pena visitar).

sexta-feira, outubro 12, 2018

RTP

Integro, desde há uns meses, o Conselho Geral Independente (CGI) da RTP, órgão responsável pela definição das orientações estratégicas que a empresa deve observar, em especial das suas obrigações de serviço público, bem como pela designação do respetivo Conselho de Administração. 

Sou também, enquanto simples cidadão, um espetador, tanto quanto possível atento, da generalidade do panorama audiovisual português. 

Nessa singela qualidade, ainda antes de ingressar no CGI, tinha formado a opinião de que a informação da RTP, estando muito longe de ser ideal, era - para mim, sem a menor sombra de dúvida - a mais equilibrada e isenta existente em todo o panorama televisivo nacional, muito em especial nos últimos anos. O CGI não intervem minimamente na condução dessa informação, mas entendo que os seus membros, como é o meu caso, não estão impedidos de, a título pessoal, a apreciarem.

Estes anos foram aqueles em que Paulo Dentinho, que agora abandona a direção de informação da RTP, por virtude de um incidente que, embora inultrapassável e ao que parece claramente impeditivo da sua continuidade em funções, mas que rigorosamente nada tem a ver com a produção noticiosa da estação, foi por esta responsável. 

Naturalmente que, por essa razão, funciona a crédito de Paulo Dentinho, bem como de colaboradores que escolheu para com ele trabalharem, a qualidade de muito daquilo que a RTP fez, desde essa altura, em matéria de informação. E esse é um património que deve e tenho a certeza que vai ser preservado.

Isso deve ser-lhe reconhecido, nesta hora de fim de ciclo, porque joga em favor do seu profissionalismo, do seu sentido deontológico, do grande repórter televisivo que sempre foi e que, seguramente, continuará a ser, para benefício de todos nós, nas funções e tarefas que o seu futuro na RTP estou certo lhe destinará.

Quero aproveitar esta nota para destacar que a RTP tem sido a “bête noire” daquilo que é a sua concorrência no panorama audiovisual português, em sinal aberto ou no cabo. Posso estar equivocado, mas creio que, se acaso dependesse da vontade desta, com certeza que a televisão pública já não existiria.

Talvez por isso, mantêm-se hoje, em especial na imprensa dependente de algumas das empresas que controlam meios televisivos privados, colunas regulares de denegrimento especializado contra a RTP, nas quais, quase diariamente, se procura vilificar o trabalho da televisão pública e dos seus colaboradores. Julgo que era preciso dizer isto, alto e bom som, porque o não tenho visto constatado com a necessária frontalidade.

O mais pequeno sobressalto interno na RTP é hoje explorado e potenciado, como se de uma imensa crise existencial da empresa se tratasse. Nomeadamente, vejo combatido, com escandalosa demagogia, o princípio do custeio do serviço público de rádio e televisão através da taxa incluída na fatura energética - escondendo que a RTP custa ao contribuintes portugueses uma fração ínfima daquilo que é praticado pelos seus congéneres estrangeiros, que a RTP tem apenas metade do tempo de publicidade que por cá é permitido aos operadores privados, com limites absurdos neste domínio na TDT, que a empresa suporta as obrigações estratégicas que o país tem perante a África e no quadro do seu serviço internacional (coisa que não se passa noutros países), e que os canais de rádio, portugueses e universais, mantidos pela RDP, neste caso sempre sem recurso a qualquer apoio de publicidade, prestam hoje um inestivável serviço ao país, às suas relações externas e às diversas culturas que se expressam em língua portuguesa.

E, convém lembrar, porque alguns parece que teimam em esquecer, que, em incumprimento daquilo que a lei postula, a “contribuição audiovisual” não tem sido atualizada à luz da inflação e o Estado não tem feito o reforço do capital da empresa a que está obrigado. Pena é que a Assembleia da República persista em manter, sobre este assunto, um estranho silêncio.

Como cúmulo da atenção negativa sobre a RTP, há hoje por aí alguns cronistas/jornalistas, alguns na indisfarçável nostalgia de tempos em que estiveram avençados pela RTP, que fazem do ataque à RTP e ao próprio princípio do serviço público audiovisial o seu “fond de commerce” e de ácido comentário. Trata-se de um “jornalismo” estranho, bizarro, que será facilmente identificável em algumas reações que este meu post virá com certeza a suscitar, bem como na exploração que o caso ocorrido com Paulo Dentinho, mobilizará, com toda a certeza, nos próximos dias.

Tem isto alguma importância? Na realidade, nenhuma! Mas é um sintoma que não deixa de ser preocupante, revelador de um país que vive mal com um setor que representa, com toda a liberdade e equilíbrio, o interesse coletivo e público que é comum a todos nós.

Seria mais fácil, e até mais cómodo, não escrever o que acabo de escrever? Seguramente. Mas entendo ter o direito de, de uma vez por todas, chamar os bois pelos nomes e o dever de não fugir à verdade das coisas, doa a quem doer. E entendi - repito, a título exclusivamente pessoal - que esta era a ocasião adequada para o fazer.

quinta-feira, outubro 11, 2018

Estrangeiro


Ontem, num gesto de rotina, perguntei a alguém se queria alguma coisa do “estrangeiro”, para onde parto daí a pouco. A resposta foi natural: “Não, obrigado. Já há cá tudo e, se não houver, manda-se vir pela Amazon ou diretamente das lojas”.

De facto, o mundo do comércio mudou muito, já há tudo em toda a parte. Há uns tempos, passeei por Tallin, na Estónia, numa tarde, a “fazer horas” para o avião. Com exceção de imprestáveis lojas de artesanato e de inúteis livrarias numa língua rara, as marcas comerciais eram-me quase todas familiares. Flanar ali num shopping, para escapar ao frio da rua, acabou por ser um imenso e bocejante “déjà vu”. E se atravessasse a fronteira para as terras do “amigo” russo, o panorama comercial não variava muito.

Dei então comigo a pensar o “mundo” fantástico que, nos anos 60, era o da pequena localidade de Verin, na Galiza, perto de Chaves, onde se ia, de Vila Real, uma vez por ano, pela festa do Lázaro. Aquela vilória, hoje sem o menor interesse, era então um deslumbre de coisas “diferentes” das nossas. Quantas inutilidades por ali comprei, a contar as pesetas que o meu pai me dava para “extravagâncias”!

Hoje, lembrei-me da Mothercare, umas lojas de roupa de criança que havia em vários locais de Londres (a maior era em Tottenham Court Road, creio) e que, imagino pela diferença face ao que por cá então existia, se tornou na coqueluche da minhas amigas portuguesas, nos anos 70. Sempre que ia a Londres (e ia bastantes vezes a Londres, sei lá bem porquê), era certo e sabido que levava encomendas, feitas de uns “códigos”, que eu, meio sem jeito, passava às empregadas da loja. Depois, vinha de lá atulhado de roupa e acessórios para bebés. Há dias, num “site” sobre retalho, que agora consulto por razões profissionais, li que a Mothercare está em grande dificuldades. Acontece aos (que foram os) melhores.

quarta-feira, outubro 10, 2018

Meu caro amigo...


O meu Brasil, como você sabe, já é antigo. Começou por me chegar nas latas de goiabada que primos já com sotaque nas vogais nos mandavam, nos exemplares das Seleções (isso mesmo, já sem “c”) onde testávamos os “Flagrantes da Vida Real”, ainda antes de por aí terem deixado de ter graça as “Piadas de Caserna”. Ri muito com o Amigo da Onça, com o Juca Chaves, com o Jô e outros tantos, portadores geniais do sorriso do tal país cordial que alguns de vocês sempre rejeitaram como retrato. Com as novelas e alguma cinematografia, comecei um dia a entender que também se chorava em “brasileiro”, que nem tudo era “dia de luz, festa de sol, um barquinho a deslizar no macio azul do mar”. Nos 23 Estados brasileiros que visitei (são 27, não é?), pude apreciar a grandeza da vossa esperança, a diversidade da vossa gente, a brasilidade que a todos marca os genes. Li - li muito! - da vossa extraordinária literatura, do romance aos poetas e aos cronistas do quotidiano. Passei muitas horas nas vossas universidades, com gente de grande qualidade, figuras de excelência que pedem meças no mundo académico global. Por noites infindas, em botecos ou tertúlias, entre copos de amizade, discuti convosco o vosso/nosso dom Pedro – mas também o pai João que aí se fez rei e a espanhola que lhe queria trocar as voltas. E, com a abertura que só vocês permitiriam, afrontei por escrito, com desassombro quase pouco diplomático, uma lusofobia que ainda espreita em algumas esquinas do preconceito. Mas, sempre, gozando do espírito de tolerância, do debate contraditório, com admiração por um país que sempre vi eternamente grávido de uma saudável esperança no futuro. Criei por aí uma imensidão de amigos. Exultei com os vossos sucessos, tentei explicar o Brasil a tantos que nunca o perceberam e a outros tantos que nunca o perceberão. Mais do que um posto diplomático, o Brasil foi para mim uma segunda casa, onde quase “I went native”, no maior erro que os diplomatas podem cometer. Falei com gente de todas as lateralizações ideológicas, dos “petistas de carteirinha” aos nostálgicos da “revolução”, como os que vertem lágrimas pelo regime das fardas chamam à ditadura, passando pelos moderados de várias tonalidades. Tentei entender o país, as suas raivas e as suas ambições, os seus medos e as suas angústias. E, claro, vi chegar o que agora por aí têm. De novo com tanto mar a nos separar, só queria dizer-lhe que, vista daqui, a coisa aí está preta, meu caro amigo!

terça-feira, outubro 09, 2018

Jamais!

E aquela figura, acusada de um procedimento errado, que negava veementemente, repetia a quem o queria ouvir:

- Nunca fiz isso e nunca mais volto a fazer!

E chegou longe na vida...

segunda-feira, outubro 08, 2018

O craque insuspeitado


O escritor Hélder Macedo é um contador de histórias admirável. Há dois dias, durante uma viagem de automóvel que fizemos, recordou os tempos em que, para além do trabalho docente na universidade, em Londres, colaborou com o serviço português da BBC.

Em 1962, o Benfica foi a Inglaterra jogar com o Tottenham. A equipa integrava dois famosos jogadores de quem tinha sido amigo e companheiro de “peladas”, em Lourenço Marques, onde tinha passado a sua infância e juventude: Coluna e Costa Pereira. Segundo o Hélder, nesses tempos já então idos há muito, todos haviam participado em improvisadas partidas de futebol, com a particularidade de Costa Pereira aparecer pelo meio dos jogos, a oferecer-se para “reforçar” a equipa que estivesse a perder...

No final do jogo de Londres, que aliás o Benfica viria a perder por 2-1 face aos “Spurs”, Hélder Macedo foi, pela BBC, ao balneário, para recolher algumas entrevistas. Mário Coluna acolheu-o com grande simpatia, falando-lhe desse velho tempo comum. Também Costa Pereira o reconheceu, dando-lhe um grande abraço e surpreendendo-o com a pergunta insólita: “Ó Helder! Onde é que agora tu estás a jogar?”. 

Hélder Macedo, que me confessou nunca ter passado de um jogador apenas razoável, não deixou de ficar “inchado” com a elogiosa pergunta do grande guarda-redes do Benfica e da seleção.

domingo, outubro 07, 2018

Caballé e Marti


Ontem, morreu a grande soprano Monserrat Caballé.

Um dia dos anos noventa, recebi um convite para ir ouvi-la ao CCB. Numa parte do espetáculo, seria acompanhada da sua filha, Monserrat Marti.

Algumas figuras sociais ficaram numa área reservada. No intervalo, no regresso aos lugares, estava a cena preste a reabrir-se, veio à conversa, no grupo, a questão de saber de onde viria o nome "Marti", da filha de Caballé. 

Pensando fazer uma graça que logo daria lugar a algumas gargalhadas, pelo ridículo da sugestão, adiantei:

- Deve ter sido o resultado de algum "caso" entre a Monserrat Caballé e o revolucionário cubano José Marti...

À minha volta, fez-se um silêncio reverente, prenhe de respeito pelo meu "conhecimento" histórico e biográfico. José Marti viveu no século XIX, tendo morrido em 1895. 

De todos os presentes, apenas Manuel Maria Carrilho fez um largo e culto sorriso de gozo. E eu entrei em silêncio, porque há muito já aprendi que é muito sério brincar com a ignorância.

sábado, outubro 06, 2018

Helder Macedo


No dia de hoje, Helder Macedo recebe o Prémio D. Dinis, pelo seu livro “Camões e outros contemporâneos”. Como seu amigo e admirador, fico muito satisfeito por mais este reconhecimento da valia de alguém que, vivendo há muito em Londres, onde hoje é professor catedrático emérito do King’s College, se converteu numa das mais prestigiadas figuras da cultura portuguesa. Tal como, há quase três anos anos, tive o gosto de estar presente na homenagem que a Universidade de Oxford lhe prestou, também hoje vim a Vila Real para dar ao Helder um forte abraço, celebrando a partilha de uma cumplicidade já de décadas, em diversas dimensões da vida e das ideias. Deixo um beijo a Suzete, que não tendo podido acompanhar-nos nesta jornada celebratória, estará virtualmente connosco, desde Hampstead, neste dia também para ela feliz.

Mateus



A fotografia não é de hoje, os sorrisos sim. 

A Maria Amélia e o Fernando Albuquerque são a “cara” da Casa de Mateus, que constitui o centro da respetiva Fundação - uma estrutura que, com delicada discrição, mas sempre com imensa elevação, presta, há muitos anos, um importante serviço à cultura portuguesa.

O “diálogo” da Fundação da Casa de Mateus com a cidade de Vila Real passou por vários e diversos tempos, na leitura que faço como observador exterior e distanciado, só muito raramente presente ao corpo de iniciativas levadas a cabo. É para mim uma evidência que o saldo do que tem sido feito em Mateus resultou amplamente positivo para a imagem da cidade e da região. 

Deixo aqui - como vila-realense, mas também como português - o meu sincero apreço e admiração pelo trabalho desenvolvido pela Fundação da Casa de Mateus.

quinta-feira, outubro 04, 2018

Ordem e Progresso?


A segunda volta das eleições brasileiras terá Bolsonaro e Haddad.

Bolsonaro é o que é, Haddad é visto por muitos como uma mera extensão de Lula. 

Há quem vote em Bolsonaro pelo que ele é, por acreditar no projeto autoritário e de violência institucional de Estado que a sua candidatura transporta. Goste-se ou não, é um voto coerente com uma certa visão do futuro do Brasil. 

Percebo que quem rejeita Lula, quem não valoriza o seu tempo de governo, quem considera o PT o grande culpado da corrupção que alastra no Brasil e o seu candidato um mero expediente para o regresso ao poder de um setor político-partidário hoje altamente diabolizado, não encare nunca a possibilidade de votar em Haddad.

O que eu nunca perceberei é que alguém, com um mínimo sentido de decência democrática, acabe por votar em Bolsonaro apenas como forma de rejeitar Haddad. 

A abstenção foi criada para essas situações. 

Há votos ditos úteis que não são mais do que expressão de miséria moral. 

Não me apetecia dizer isto, mas é sinceramente o que penso.

Tarde


É uma hora que não tem a menor graça quando já regressámos a casa. Tem ainda bastante menos quando estamos a trabalhar. Mas sempre achei magnífico o final dos dias nos cafés das cidades, em especial nos inícios do outono. Já não há por ali grupos de tertúlia, como nas manhãs ou a meio da tarde. Os espaços rarefazem-se progressivamente de gente, porque o jantar se aproxima e a novela (ou qualquer outra coisa) convoca. É a hora dos solitários ou de quantos, por qualquer razão, vão atrasando o regresso a penates (ainda alguém sabe o que isto significa?). Quase que nos empurram das mesas, os que por ali estão, sem gosto, no último turno de serviço e nos olham com alguma piedade desconfiada (“o que é que este tipo ainda faz por aqui?!”). No que me toca, sempre vi esta hora como mágica - e lembro-me dela, por décadas, em várias cidades, em muitos cafés, em diversos climas, em ocasiões muito diferentes. Alguns, ao que parece, acham-na triste. Coitados, não percebem nada! Talvez porque eu seja “do contra”, sempre adorei esta hora magnífica! À saída do café (que interessa onde é?), estavam estas árvores e esta luz. Percebem agora?

quarta-feira, outubro 03, 2018

Os destinos de Ronaldo


Cristiano Ronaldo entrou num capítulo muito complexo da sua vida. A acusação de que é alvo nos Estados Unidos - e logo nos Estados Unidos! - é de um grande gravidade, nos tempos que correm. Agora, tudo pode acontecer.

Especularmos, sem nada sabermos, sobre se a acusação tem fundamento, sobre se este tipo de imputações tardias tem algo de oportunismo, sobre se o “cheiro” do dinheiro não será a mola real do assunto - tudo isso é muito bonito, espicaça o nosso “achismo”, mas não nos leva a nada, significa apenas mera conversa “de café”, para uso em redes sociais. Não vou por aí.

A única coisa que me parece segura é que um “herói” popular português, cujas magníficas glórias desportivas têm levado, de forma saudável, o nome de Portugal pelo mundo, pode estar a entrar num momento bem difícil, com os caminhos do destino a hesitarem à sua frente. Por mim, seja Ronaldo culpado ou não, fico bastante triste. Só isto.

A nostalgia ainda é o que era


Simone Signoret tem uma biografia intitulada “A nostalgia já não é o que era”. A companheira de Yves Montand, se fosse viva e tivesse assistido ao dia de ontem, talvez concluísse que o título do seu livro estava longe de ser uma verdade universal. A morte de Charles Aznavour fez perpassar pela França, onde escrevo este texto, um sentimento de perda muito pouco comum. Salvo gente muito jovem, cuja lista de gostos é agora outra (“esse Aznavour era quem?”, ouvi uma adolescente perguntar à mãe, numa esplanada de Paris), fica claro que o cantor que atravessou três gerações deixou uma imagem impressiva e duradoura.

E, contudo, percebia-se que Aznavour estava longe de ser uma figura dotada de espontânea afetividade. Esta só emergia a espaços, perante causas específicas, que o aproximavam de muitos que apreciavam a sua música. Pelo contrário, como obsessivo apreciador (ele dizia-se “colecionador”) do dinheiro, a sua imagem pública era desenhada, um tanto caricaturalmente, pela posse de carros de extremo luxo, pelo usufruto de uma vida a que os franceses chamam de “bling-bling”. O seu lado publicamente mais empenhado surgiu, curiosamente, ligado à origem dos seus pais, quando se tornou numa espécie de bandeira da Arménia, um país de história e existência complexas, que o faria seu embaixador, no sentido real do termo, com funções - imagino que mais teóricas do que práticas - em Genebra e depois na Unesco, tarefa esta em que coincidimos mas nas quais acabei por nunca cruzá-lo pelas reuniões e corredores. 

Aznavour era culto e inteligente. Fez muito cinema, subscreveu êxitos da canção que marcaram muitos de nós. Desde a adolescência que me ouço a trauteá-lo, em letras que sempre passaram muito para além da simplicidade da cançoneta mas que, ao que parece para seu grande desgosto, colocavam o seu nome fora de um pódio de apreço musical onde sempre surgiam Brel, Ferré e Brassens. É discutível, mas de discussão irrelevante, se nisso havia alguma injustiça, quiçá com algum viés político à mistura. Uma coisa é certa: na hora da morte, só Brel e, noutro registo, Johnny Halliday, se lhe aproximaram, em termos de impacto público.

Ao assistir à comoção provocada pela desaparição de Aznavour, fico com a difusa sensação de que alguma França pressente que sai de cena alguém que, de certo modo, simbolizava um outro país, diferente deste que está em radical redefinição identitária. E essa, de facto, posso perceber que configure uma imensa e inultrapassável nostalgia.

O outro lado do vento

Na passada semana, publiquei na "Visão", a convite da revista, um artigo com o título em epígrafe.  Agora que já saiu um novo núme...