domingo, setembro 09, 2018

Sporting

Não conheço Frederico Varandas, o novo presidente do (meu) Sporting, a não ser pela sua imagem televisiva. A primeira impressão é positiva. Sinto-me bastante confortado por, aparentemente, o clube ter saído da era de javardice paranóica em que tinha caído. Isso representa já uma primeira vitória.

Sei que, para a generalidade dos sócios e adeptos, o importante são os resultados desportivos, em particular no futebol. Para mim isso também é naturalmenteimportante, mas há algumas outras coisas - muito em especial, a decência, que se reflete na qualidade da atitude pública assumida na defesa dos interesses do clube - que sempre prezei, quando estiveram presentes nas lideranças do Sporting. E estiveram muitas vezes. 

Em regra, todos começamos por ser adeptos de um clube (e não de outro) por uma mero acaso (geografia, família, amigos, fascínio pelo sucesso, etc). No meu caso, para além de uma causalidade familiar, habituei-me a ter razões, bem sólidas, para permanecer como adepto do Sporting (e não de outros). Ainda sou do tempo em que, no futebol, o meu clube tinha excelentes resultados, coisa que há muito deixou de ter. Mas, devo confessar, a expetativa de obtenção de títulos nunca esteve no topo das razões da minha ligação afetiva ao clube. Outras existem. E, nos últimos anos, estava a começar perder essas mesmas razões. Gostaria agora de poder mantê-las.

Porém, espero que, com Frederico Varandas, o (meu) Sporting deixe de ser o clube essencialmente “católico” que tem sido: isto é, que não ganhe só “quando deus quiser”...

sábado, setembro 08, 2018

Aviso à navegação

Com especial incidência nas últimas semanas, tem-se verificado, na caixa dos comentários dos posts, alguma “turbulência”, com derivas insultuosas entre os comentadores, que tenho deixado prosseguir, quase por “voyeurisme” sociológico. Como as coisas já passaram alguns limites, aviso que vou ter de intervir com o lápis azul, no futuro, para manter alguma salubridade neste espaço.

Caso diferente é o dos “haters” anónimos que me têm como alvo pessoal, do insulto às ameaças. Neste caso, limito-me a colecionar e a pedir profissionalmente a identificação das moradas dos seus IP’s (registo de origem dos computadores, pela coincidência entre a hora do comentário e a visita ao blogue), verifico a repetição dos “heterónimos” (alguns tendem a ser “criativos”, na esforçada diversidade de estilo dos textos) e, depois de receber os relatórios (não é muito caro, se quiserem experimentar), dou frequente conta de que a passagem pelos corredores do MNE de alguns desses corajosos escribas (tive algumas surpresas, confesso) não teve o efeito de ajudar a melhorar o seu caráter. São uns patuscos, alguns ressabiados, todos invejosos e frustrados. Mas fiquei conhecê-los um pouco melhor! Ah! E, bem entendido, a sua soez “produção” vai para o lixo, claro. Caso diferente são as ameaças físicas (é verdade, surgem por épocas), que têm o destino policial devido. Isto até tem graça! Fica-se a conhecer melhor o mundo.

“Jornal Económico”


Correspondendo a um amável convite do “Jornal Económico”, passarei a escrever nesse semanário uma coluna mensal (infelizmente, não tenho tempo para mais), que se chamará “Antes que me esqueça”. A “estreia” é para a semana.

sexta-feira, setembro 07, 2018

O almoço das quintas



“Não queres responder àquele cronista que há dias te criticou num jornal?”, perguntava-me um amigo, no almoço das quintas, quando eu confessava hesitar quanto ao assunto a abordar nesta crónica. Respondi que não: quem escolhe os meus interlocutores sou eu, não o contrário. Em especial, quando as pessoas estão de evidente má fé, treslendo o que escrevi, como foi o caso. “Talvez valha então a pena falares das trapalhadas do Benfica!”, alvitrou outro. A ideia nem era má, mas o que é que alguém pode dizer sobre o assunto, sem se pensar logo que a opinião está manchada por clubite? A única coisa que sei, de ciência certa, é que vamos ter uma novela para vários anos, com recursos e contradições judiciais. No final, até aposto!, a montanha vai parir um rato ou um bode expiatório. Não, não vou falar de futebóis, muito menos das eleições de amanhã, no meu Sporting. Outro conviva deu então uma nova dica: “E se comentasses as sondagens que saíram?”. Escrever sobre o tombo do Bloco, pelo efeito Robles, ou de como o PS ainda fica longe da maioria absoluta? “E, de caminho, anotavas que agora já não é a água que vai pelo rio abaixo, mas que é o Rio que vai por água abaixo...”, sorriu o meu parceiro do lado, gozando a “trouvaille”. Não, com as eleições ainda longe, deixo isso para os exegetas televisivos. 

O almoço continuava e eu continuava sem tema. Isto de regressar de férias acarreta sempre um certo torpor, porque a adrenalina ainda não atingiu os patamares necessários. E, embora possa parecer o contrário, não sou um “tudólogo”, cuido sempre em só escrever sobre aquilo em que julgo poder acrescentar alguma coisa: “Ora aí está! Podes escrever sobre as eleições brasileiras e explicar o que é que o Lula afinal pretende com a sua tática de recursos”. Como se eu soubesse! A única explicação é que está a levar a vitimização tão longe quanto possível, para que a emotividade nos apoiantes se transfira, no fim, para a candidatura de Haddad. Mas já escrevi isto algures! “E o livro do tipo do Watergate sobre o Trump, com o escândalo do artigo anónimo no “New York Times”?” Não, quero ler o livro antes. Foi então que alguém decretou:  “O que eu te queria ver era a falar sobre o Marcelo, sobre as selfies, sobre os banhos de rio, aquela “Corte na Aldeia”! Mas sobre isso, é o falas! Vocês têm todos um respeitinho reverencial pelo homem”. Não comentei, nem para lhe dizer que me tinha dado em excelente ideia, para a semana. E foi assim que se passou (ou não) o meu almoço das quintas. 

quinta-feira, setembro 06, 2018

“E então o ... ?”

Anda agora por aí muito “whataboutism”. Isto é, mal se fala de uma coisa, há logo quem replique, em jeito compensatório, com outra “Ai é?! E então o...?”. 

Talvez um dia, quando formos “crescidos”, as pessoas se habituem a falar das coisas com base nos seus próprios méritos ou deméritos, sem desculparem ou relativizarem mediocremente com outros exemplos. O facto de agora o fazerem apenas demonstra má consciência e escassez de argumentos.

A ver vamos

O caso de corrupção & delitos correlativos em que o Benfica se vê envolvido pode vir a ser um teste interessante. Desde logo, à independência do poder judicial face ao peso fático e oculto dos lóbis do futebol na sociedade portuguesa, a começar pelos jornais e pelas televisões, onde reina a guerrilha entre as seitas fanáticas dos emblemas. Depois, sobre a consistência efetiva da acusação, num país onde, neste domínio, é vulgar estas coisas da bola ficarem em águas de bacalhau, seja por debilidade da prova, seja porque é sempre tudo muita “fruta” ao início, mas depois a colheita costuma ser fraca e, sempre, tardia, perdida convenientemente no dédalo dos recursos e da conflitualidade interpretativa das instâncias. Finalmente, aposto em como isto servirá também para pôr uma vez mais a nu essa coisa patusca, balcanizada internamente pelo sectarismo clubístico que equilibra as moscambilhas, a que alguns chamam, com alguma graça, “justiça desportiva”.

quarta-feira, setembro 05, 2018

Fotografias

Sei que a arte fotográfica se aprende, se aperfeiçoa. Mas também sei que, para quem não tem uma sensibilidade apurada nesse domínio, a melhoria tem um limite. 

Sempre fotografei pessimamente. Já cheguei, há muito, ao meu "princípio de Peter". E vivo lindamente com ele, continuando a tirar retratos "à minha maneira", porque, para mim, a fotografia é apenas um ajudante da memória, uma espécie de bloco de apontamentos, mesmo quando se trata de guardar o tempo das caras dos outros.

Ao longo da vida. tive muitas máquinas fotográficas, algumas bem razoáveis, o que prova que a culpa nunca foi delas, era apenas minha, de uma endémica falta de jeito. Às vezes, no entanto, por um qualquer bambúrrio, lá me sai uma fotografia "jeitosa", mas essa é a exceção, muito longe de ser a regra.

Quero com isto dizer que, ao usar nas redes sociais fotografias tiradas por mim, e ao compará-las com outras (de profissionais ou bons amadores), dou comigo a pensar que, se calhar, devia ter mais juízo e nunca ilustrar o que escrevo com "produção" própria. 

É o que vou fazer precisamente neste post, em homenagem sincera aos bons cultores dessa arte magnífica, só acessível a alguns eleitos da sorte, da persistência e do trabalho.

terça-feira, setembro 04, 2018

Herman e Rothko


Há dias, diverti-me, por mais de uma hora, a ver e ouvir, no YouTube, uma entrevista, feita já há uns meses, a Herman José, num registo muito solto, na qual o humorista deu conta dos seus gostos, revelou facetas curiosas da sua vida, tudo dito sempre com imensa graça, inteligência e farta cultura. 

Portugal é um país a quem “saiu a sorte grande” ao ter o privilégio de dispor, desde há várias décadas, de uma figura como Herman José. É uma banalidade, mas eu repito-a, dizer-se que a ele se devem alguns dos grandes “retratos” e momentos maiores da história do nosso humor. Pessoalmente, devo-lhe imensas horas de boa disposição e sinto um grande orgulho em tê-lo como compatriota. Para além do que faz em televisão e fez em rádio, Herman brinda-nos hoje, quase diariamente, com fantásticos pequenos vídeos no Instagram, deliciosas “trouvailles” só acessíveis a alguém que é um evidente génio na sua difícil arte.

E é porque Herman José é um homem culto, vivido, com a cabeça aberta às coisas boas do mundo, que conhece muito bem, que fui surpreendido, no meio da entrevista, com a sua ideia de que o reconhecimento de um pintor como Mark Rothko é apenas uma simples “fraude” (não sei se o vocáculo era esse, a ideia sim) inventada por um qualquer galerista que convenceu outros de que se tratava de um grande pintor, daí se gerando uma onda imparável que deu a imensa fama que a obra do artista hoje tem.

Tive pena de ouvir Herman dizer isto. Acho perfeitamente normal que alguém deteste o que Rothko (ou Pollock) pintam. Conheço muita gente que pensa assim. Gostos não se discutem e entendo que Herman possa não apreciar minimamente esse género de pintura. Mas Herman José, precisamente por ser o homem culto e aberto de espírito que é, deve perceber que há outras pessoas - e eu e muitos (mesmo muitos) estamos entre elas - que, não sendo “manobradas” pelos galeristas ou condicionados por movimento artificiais de opinião, consideram Rothko como um dos maiores génios da pintura contemporânea. 

Possuir um Rothko ou um Pollock, ou, domesticamente, alguns fabulosos Hogan ou Pomar, seriam o único alibi que conseguiria encontrar para me arruinar financeiramente.

Artur Portela


Para as novas gerações, o nome de Artur Portela (assina Artur Portela Filho, para não se confundir com o pai, um grande nome do jornalismo português de outros tempos) dirá pouco ou nada. E, no entanto, essa figura consagrada do mundo da publicidade revelou-se uma personalidade muito original na nossa imprensa, devendo-se-lhe também algumas incursões interessantes na literatura e até na história.

Ontem, o “Público”, pela mão de Nuno Ribeiro, fez-lhe uma boa entrevista que revela um Artur Portela que, nos seus 81 anos, está bem atento ao quotidiano político, com os mesmos valores e acutilância a que nos habituou nos anos 70, em especial na sua polémica coluna “A Funda”, publicada no “Jornal do Fundão” e no “República”. E ressalto aqui a dimensão polémica, porque Portela não fugia a ela - e quem é do meu tempo e estava atento a esses meios tem, com certeza, bem presente uma deliciosa e famosa troca de argumentos com Mário Castrim, no “Diário de Lisboa”.

Na entrevista, Portela fala-nos de figuras do nosso atual quotidiano político e também de outras que marcaram os tempos democráticos, sempre com o desassombro e frontalidade que são a sua marca de água. Foi pena a entrevista não ser mais longa, pelo que pressinto que Portela está ainda a dever ao país um bom livro de memórias.

Tive o gosto de conhecer pessoalmente Artur Portela há poucos anos, num almoço organizado por um amigo comum, precisamente com esse objetivo. Ter-lhe-ei dito que, com gosto, tinha lido praticamente todos os seus livros - e não foram tão poucos como isso. Mas julgo que lhe não referi que, então com bastante menos prazer, porque estava à época no outro lado da “barricada”, recordava bem os seus (politicamente ácidos) editoriais no “Jornal Novo”, um órgão de combate político criado por quem se opunha ao PREC, financiado pela CIP, como Nuno Ribeiro lembrou, numa das questões que lhe colocou. Deixo uma fotografia dele, desse tempo.

Na língua portuguesa que Portela usa, de forma imensamente criativa, nos seus textos é clara a influência de Eça - de quem teatralizou “A Capital”, o que motivou um artigo crítico meu, no “Comércio do Funchal” (ou seria no “& etc”?), intitulado “Ora Eça, ó Portela!”, creio que em 1972. Hoje posso confessar que invejava muito a Portela a agilidade da sua escrita, servida por uma cultura rica e diversificada, própria da gente de muito boa qualidade que, por essa altura, andava pelo nosso jornalismo. Ao lê-lo ontem, dei-me conta de que, infelizmente, nos dias de hoje, já por lá não há muita gente assim.

Enfim, descanso!


Acabaram hoje as minhas férias! Mereço, finalmente, algum descanso! 

Terminou, de vez, esta lufa-lufa de andar de-um-lado-para-o-outro (“Cuidado, olha que já estás na reserva do depósito!”), sem rei nem roque (“Não puseste o GPS e depois dá nisto!”), jantares aqui e acolá (“Não reservou? Agora só lá p’rás dez!), longas maratonas de praia (“Ora bolas! Esqueci-me do protetor solar!”), mudanças de hotel (“Como diabo é que abre este chuveiro?”), procura de tabacarias para comprar jornais (“É assim mesmo! Esta semana, o Expresso veio sem a revista...”). 

Pronto! Acabou! Vou finalmente poder dormir na minha almofada! Agora sim, regresso a casa! Agora já posso ser multado pela EMEL, dar voltas a quarteirões para conseguir estacionar, vai chover, vou perder guarda-chuvas, vou constipar-me, vou perder horas em salas de espera de médicos, vou chatear-me com taxistas ou experts nepaleses de tráfico lisboeta contratados pela Uber, vou chegar atrasado a reuniões, vou andar horas nas lojas do aeroporto até encontrar as portas que mudam para fazermos exercício físico. Isto sim, é que é vida!

Um dia, dá-me uma na veneta, perco a pachorra e, pimba!, reformo-me! (“Mas não estás reformado?” “Já nem sei...”). Depois queixem-se!

Bom, e agora vamos a coisas importantes: o Procópio já abriu?

O bispo e as Felicianas


O jornal da diocese, “A Voz de Trás-os-Montes”, estimável folha informativa em que este escriba deu à estampa os seus primeiros artigos (que estão “fora do mercado”, para evitar chantagens), tinha destacado, com grande fotografia de primeira página, a deslocação a Roma do bispo de Vila Real, dom António Valente da Fonseca. Estava-se em meados dos anos 60, período do Vaticano II.

Como administrador apostólico ficou, encarregado da diocese, monsenhor Libânio, uma figura alta que ainda hoje justifica o nome dado a um cadeirão comprido que tenho lá por casa, herdado do meu avô, a que sempre chamamos a "cadeira do padre Libânio", não obstante o próprio, com certeza absoluta, nunca a ter experimentado.

Valente da Fonseca tinha tanto de anafado quanto Libânio tinha de esguio, óculos à Gramsci, andar desengonçado e um ar de intelectual. No que me toca, via-os sempre à distância e nunca falei com qualquer deles.

Nas ociosas noites do verão vila-realense, havia muito pouco que fazer. Por isso, num grupo de amigos, alguém se lembrou de inventar uma chamada telefónica "feita" pelo bispo, desde há semanas em Roma, destinada ao monsenhor Libânio, que então vivia no seminário de Vila Real.

O local do "crime" foi a casa do celebrado fotógrafo da cidade, Mário Silva, "Marius", pela mão do seu filho, António Manuel. O autor material da chamada telefónica foi um primo deste, Dionísio Rodrigues da Silva, o "Nizo", um bom amigo já desaparecido, o elemento mais velho desse pequeno grupo que se juntou para a organização da "partida". Ainda tenho a visão da cena, connosco à volta de uma mesa.

Desconhecedores do que era uma chamada internacional, ao tempo obrigatoriamente feita através de telefonista, inventámos um conjunto de ruídos que supostamente credibilizariam a verosimilhança da comunicação. Ligámos para o número do seminário, pouco depois da hora de jantar. Atendeu-nos uma voz a quem, num italiano de má opereta, demos a indicação de que "don António, di Roma, voglio parlare con il signor don Libânio". As palavras “António”, “Roma” e “Libânio” deveriam ser suficientes para garantir a atenção eficaz do fâmulo. A chamada era entrecruzada por arbitrários silvos e apitos, sons secos e uma profusão de sinais que, no nosso entender, deveriam fazer parte de uma ligação telefónica internacional. A nossa preocupação era perfeitamente escusada: no seminário, o porteiro ou guarda da noite devia saber de italiano e de comunicações internacionais bem menos do que nós...

Após alguns minutos, ouviram-se passos apressados no lagedo de mármore da sala de entrada do seminário, onde se situava então o único aparelho telefónico da casa. Um ofegante dom Libânio surgiu então na linha. 

Do outro lado, "de Roma", o senhor "dom António" interpelou-o, com o ritmo pausado, aquele conhecido tom eclesiástico “de Braga”, abrindo as vogais, esse “template” vocal da hierarquia religiosa lusitana, de que Cerejeira foi o intérprete mais consagrado.

- Olá, Libânio, como vai você? E a diocese?

Extasiado com a oportunidade proporcionada pela maravilha das comunicações, dom Libânio respondeu, com natural nervosismo de atender uma chamada internacional:

- Muito obrigado, senhor bispo. Vai tudo muito bem, graças a Deus. E como passa vossa excelência reverendíssima?

- Estou bem, Libânio, estou bem. Mas diga-me uma coisa, ó Libânio: e como é que vão as nossas Felicianas*?

Dom Libânio presumiu ter ouvido mal, tanto mais que as comunicações, à época, eram más e o lenço que utilizávamos para tentar disfarçar o som, com uma folha de papel no meio para baralhar o tom de voz do Nizo, criava uma distância que afetava a audibilidade das mensagens.

- Como? Não estou a ouvir bem... Como disse, excelência reverendíssima?

- As Felicianas, Libânio, aquelas pequenas da Vila Velha que às vezes chamamos, para nos alegrarem as noites por aí...

O pobre do administrador apostólico deve ter ficado à beira de uma apoplexia. As Felicianas era um plural, embora pouco majestático, para designar umas raparigas, todas da mesma família, que, na cidade, facilitavam alguns prazeres físicos tarifados, e que eram bem conhecidas de toda a gente. Embora não houvesse nota de deslocações de “room service” ao seminário...

- Não consigo ouvir, senhor bispo! Não ouço quase nada! Vou ter de desligar...

E assim fez. Ainda bem! É que nós estávamos já no limite da gargalhada coletiva. Mas tínhamos ganho uma excelente noite.




(* o nome coletivo das raparigas talvez não fosse bem este, mas quem ousar retificá-lo num comentário vê-lo-á eliminado. Não quero intrigas na minha terra natal...)

segunda-feira, setembro 03, 2018

O trono

Ardeu o trono de dom João VI, no incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. E ardeu todo o resto do museu, um espólio insubstituível sobre a História do Brasil e de quando Portugal andou por lá. 

Descaso, incúria ou seja lá o que for, o que verdadeiramente importa é que esse testemunho do passado já não existe. Agora, vai avançar a discussão sobre as culpas, a qual, como de costume, a muito pouco levará. Os crimes sobre o património indignam e emocionam sempre muito no momento das perdas mas, depois do “rigoroso inquérito” que o tempo amaciará, dão quase sempre em muito pouco. É que as famílias das “vítimas” não estão lá para exigir nada. Por isso, como antes se dizia, siga a marinha!

domingo, setembro 02, 2018

O carro do Guerra



Não sei há quantos anos morreu o Guerra Liberal. Era assim mesmo o nome desse amigo, um pouco mais velho do que todos nós, mas que nos acompanhava, com uma camaradagem excecional, nas noites e madrugadas de Vila Real, nos verões dos anos 60. Era uma figura encantadora, disponível, amigo-do-seu-amigo, como então se dizia.

O Guerra, como o chamávamos, era proprietário de um carro grande, velhíssimo, um Vauxhall preto, de quatro portas, que vulgarmente estava estacionado em frente ao Hotel Tocaio, a dois passos da Pastelaria Gomes. O carro estava sempre aberto e, recordo-me, em épocas de enchente na esplanada da Gomes, convertia-se numa espécie de “sala de estar” dos amigos do Guerra, mesmo sem ele. Grandes conversas lá tive! 

Há duas aventuras (só conto duas, porque outras houve!) passadas com o carro do Guerra - porque o carro andava! - que nunca mais esquecerei. O primeira foi algo perigosa, a segunda foi divertidíssima.

Uma noite, houve uma ideia maluca, logo complementada por uma aposta. Tratava-se de conduzir o carro do Guerra até ao fundo da reta de Mateus, no alto do Bairro dos Prazeres, desligá-lo e deixá-lo deslizar por ali abaixo, praticamente sem “tocar no travão”, tentando que ele chegasse tão longe quanto possível, nesse trajeto, quase sempre a descer, do antigo “circuito”. Íamos quatro lá dentro, com o Guerra a conduzir. A operação era muito arriscada, porque se utilizava toda a estrada, na esperança (felizmente concretizada!) de que não surgisse ninguém em sentido contrário. Largado o carro, passada “na mecha” a curva da Araucária, em direção à garagem do Antoninho do Talho, junto à casa do Granjo, o Vauxhall preto fazia uma perigosa tangente na casa do chefe da Estação, entrava, “com o balanço”, na pequena reta do colégio, descia para a ponte metálica e ia morrer algures no seu termo. A grande questão é se chegava à tasca da Cardoa ou não. Eu apostei que sim... e perdi cinco paus! Inconsciências! 

Da segunda aventura, fui apenas observador, colocado com outros, discretamente à distância, na esquina do Patinhas. O Guerra tinha conseguido negociar com uns ciganos, a troco já não sei de quanto, a cedência de um pequeno burro. Já bem de madrugada, pelas quatro ou cinco da manhã, meteu-se o burro no carro, com a cabeça de fora, do lado do condutor. A operação foi concluída em frente ao Tocaio. Dentro do carro, deitado, com uma mão no volante e um pé no travão, ia um voluntário. O carro foi empurrado, fez uma curva para a direita na esquina no hotel e passou, bastante devagar, em frente à Polícia e à garagem S. Cristóvão. À porta da PSP, numa guarita que por ali havia, estava um cívico de capacete, que deve ter pensado ser uma “miragem” ver deslizar, sem ruído de motor, um carro “conduzido” por um burro... O homem ter-se-á assustado e entrou para dentro da esquadra (nós cocávamos, de longe), enquanto o carro deslizava pela estrada abaixo, desaparecendo no caminho em direção à ponte do Cabril. Passado aí um quarto de hora, o Austin, desta vez bem a trabalhar, subiu o caminho inverso, conduzido pelo Guerra (que entretanto tinha ido pela Marechal Teixeira Rebelo ter com o carro às Florinhas da Neve, onde o cigano recebeu o burro de volta). Na esquina da PSP, estava o guarda e um colega. Mandaram parar a viatura. O primeiro guarda inquiriu: “Este carro não passou há bocadinho aqui, com um burro?” O Guerra fez-se de ofendido: “Ó senhor guarda! Desculpe lá! Eu não lhe admito que me chame burro! Eu passei para baixo, há pouco, em ponto morto, mas não sou nenhum burro!”. Criou-se uma perplexidade entre os polícias, com o primeiro, desesperado, a teimar: “Mas eu vi um burro neste carro! Lá isso é que vi!”. O Guerra insistia, dizia que, se continuasse a ser insultado, iria falar com o comandante no dia seguinte e coisas assim. E, com a cumplicidade implícita do segundo guarda, que já não “comprava” a história do seu colega, lá conseguiu seguir. Disse-nos, depois, que foi logo tomar banho: o carro ficou a cheirar a burro por semanas...

(Quem não é de Vila Real daquele tempo terá de desculpar o peso toponímico do texto)

sábado, setembro 01, 2018

Ary e o aborto


Há pouco, vi colocado um “like” na minha página de Facebook por alguém de apelido Torga. E embora todos devamos saber que Miguel Torga era um pseudónimo e que o escritor e médico, na realidade, se chamava Adolfo Correia da Rocha, posso imaginar a quantidade de vezes que a essa pessoa alguém deve ter já perguntado: “é parente do Miguel Torga?”.

E como isto é como as cerejas, lembrei-me de um episódio.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, tive um colega, bastante mais velho, chamado Carlos Ary dos Santos. Foi chefe do Protocolo e embaixador em vários postos. Era uma figura clássica, um homem muito educado, de excelente trato, com quem sempre tive uma magnífica relação, pessoal e profissional. 

Sendo primo do famoso poeta, letrista e declamador José Carlos Ary dos Santos, constava, como mais tarde vim a saber, que não lhe agradava excessivamente que as pessoas lhe lembrassem esse parentesco - quiçá por razões políticas, quiçá por outras.

Um dia dos anos 80, fui em missão de trabalho ao Luxemburgo, onde Ary dos Santos era embaixador, tendo ele oferecido um jantar à delegação. Depois da refeição, à conversa, perguntei-lhe, casualmente: “O senhor embaixador é com certeza parente do ...”. 

Ainda a frase não estava concluída e eu já via a cara do embaixador formar um esgar estranho, misto de desagrado e maçada. “Lá vem o meu primo à conversa”, devia estar ele a pensar. Eu desconhecia então que ele não gostava da associação ao primo, porém pressenti-o naquele preciso instante.

Acontece que a minha pergunta não era sobre o seu primo e poeta José Carlos. E concluí a frase: “... parente do jurista Ary dos Santos, de quem tenho uma obra publicada sobre o aborto”.

Imagino que, entre os circunstantes, alguém devesse ter-se interrogado por que luas eu me tinha interessado em adquirir uma obra jurídica do pai do embaixador, logo sobre um tema tão bizarro como o aborto. Mas nada esclareci, confesso, por embaraço. Vou fazê-lo agora.

Fora uns bons anos antes, na década de 70, na feira do livro de Lisboa, na noite do último dia, antes do fecho definitivo. Eu procurava, nos stands de livros usados, algumas pechinchas, nessa altura vendidas ao desbarato, nas últimas horas da feira. Já ia carregado de sacos quando vi, no topo de uma das bancadas, longe para lhe poder chegar com a mão, um livro de Ary dos Santos, com o título “O crime de aborto”. Por baixo, trazia a menção “advogado”. Acaso seria o poeta advogado? Eu sabia lá! A edição parecia antiga, o preço eram, creio, 15 tostões. Obra “de juventude”? Nunca tinha ouvido falar. Era um título forte. Seria poesia? Seria um manifesto de polémica? Pelo sim pelo não, disse ao livreiro, apontando: ”ponha esse aí também!”. O volume veio assim na molhada que levava dessa bancada dos “quinze tostões”, num saco. Só chegado a casa é que vi o “barrete” que enfiara. O livro era mesmo uma tese ultra-conservadora sobre o aborto, de Alfredo Ary dos Santos. De 1935...

Voltemos à sala do Luxemburgo. O sorriso aliviado de Carlos Ary dos Santos, ao ouvir o termo da minha pergunta, acompanhou uma detalhada explicação de que se tratava, de facto, do seu pai, de cuja carreira e obra nos falou, com muito orgulho. 

Carlos Ary dos Santos continuou a tratar-me lindamente, todas as vezes que nos voltámos a cruzar, no futuro. Se calhar, desde essa data, até um pouco melhor do que antes...

sexta-feira, agosto 31, 2018

A diversidade europeia

A diversidade tem sido, historicamente, a grande riqueza da Europa. Nenhum espaço geográfico desta dimensão apresentou, até hoje, uma tão grande variedade de expressões culturais, linguísticas e institucionais como o continente europeu. Daí que mesmo os mais ardentes defensores da unidade política da Europa se tivessem resignado, desde o primeiro momento, à necessidade de fazer conviver essas expressões distintas, fruto de uma História que, tendo uma raiz comum, têm também ideossincrasias que será sempre utópico tentar fundir. 

É um pouco por essa razão que muitos europeístas, com um sentido realista das coisas, foram dizendo que nunca teríamos uns “Estados Unidos da Europa”, porque a realidade objetiva do continente impede que por aqui se crie uma espécie de grande país. Jacques Delors, que junta ao sonho um são pragmatismo, disse um dia que as instituições europeias eram para ele um OPNI, um “objeto político não identificado”. Com isso, queria significar que essa Europa tinha de assumir um contorno institucional diferente dos modelos tradicionais, assemelhando-se-lhe na matriz do equilíbrio de poder que vinham da lógica de Montesquieu e que, em princípio, todos aceitavam, mas, ao mesmo tempo, preservando a necessidade de ser compatível com as expressões de soberania nacional que permaneciam a nível dos Estados membros. Isso não significava, antes pelo contrário, que a Europa comunitária não devesse caminhar no sentido de identificar e tratar, em comum, aquilo que lhe era comum. O processo (e não o projeto) de integração europeia é precisamente isso mesmo: criar mecanismos que permitam, com a economia que só a escala dá, gerir interesses oriundos de entidades nacionais muito diversas. 

A Europa comunitária caminhou nesse sentido. Federada pelo trauma da guerra, depois pela ameaça soviética, gizou lógicas conjuntas para o comércio, passando para além do livre-cambismo e estabelecendo uma fronteira comercial comum. Depois, desenhou e aperfeiçoou o mercado interno nesse espaço, a libertação das peias nacionais que impediam a livre circulação - desde logo das mercadorias, depois dos capitais, serviços e, finalmente, das pessoas. Conscientes dos custos da “não-Europa”, os então Estados membros, com maior ou menor dificuldade, desmantelaram defesas obsoletas, na garantia de um ganho maior. Foi um processo nunca totalmente concluído, como quem conhece os assuntos europeus muito bem sabe. E sabe porquê.

Com o fim da União Soviética, a Europa sonhou somar ao “gigante económico”, que já era, algo que fosse diferente do “anão político” que continuava a ser. O continente, com a nova Rússia em baixa e a China então ainda distante da grelha de partida, olhava para o outro lado do Atlântico, para o “amigo americano”, que até aí fora o seu aliado (e, vá lá!, tutela) estratégico, como um competidor sério. Mas, ainda assim, parceiro nos valores, desde logo do multilateralismo e das liberdades. Mas a Europa começava, sem o dizer, a dar razão a Jean-Jacques Servan-Schreiber, que, faz agora meio século, escreveu o premonitório “Desafio Americano”. Guterres, com a Estratégia de Lisboa, procurou potenciar esse esforço, pretendidamente comum, de solidificação do papel europeu na nova economia. Mas, já aí, a diversidade de que falei no início do texto impôs-se e arruinou a iniciativa. Depois, chegou o grande alargamento.

Agora, o mundo mudou. A diversidade europeia, que começou em Schengen e no euro, revelou-se escandalosa na crise financeira. E nos refugiados, nos migrantes, no desafio do Brexit. Trump faz agora o resto.

A diversidade da (e na) Europa, que é a sua maior “graça” e é algo de permanentemente inevitável, configura-se hoje como a grande dificuldade à afirmação da expressão política da União Europeia. Há dois dias, quando olhava o encontro ítalo-húngaro, com propostas tão contrastantes com aquilo que era o discurso europeu “mainstream” de há poucos anos, quando via as imagens das agressões xenófobas em Chemnitz, quando constatava o fosso que permanece no Brexit, dei comigo a interrogar-me como vai ser possível sairmos disto. Mas terá de haver uma saída: a História não tem becos.

As tarefas de Macron


Emmanuel Macron surgiu em França como uma figura política de conjuntura. Se François Fillon não tivesse empregado ficticiamente a sua própria mulher, estaria hoje a habitar Eliseu. Com ela por lá. Macron acabou por ser o candidato anti-Le Pen. Importantes setores da direita e da esquerda votaram nele apenas para afastar, uma vez mais, o fantasma da extrema-direita.

Macron provou, mas só depois, ser mais e melhor do que isso. Revelou ter um pensamento estruturado sobre a Europa, ideias arrumadas sobre o que é necessário fazer para apoiar o euro, uma leitura estratégica da ambição que a Europa deve ter, neste tempo conturbado em que Trump dá as cartas, baralha o jogo e nem precisa de fazer bluff para condicionar o mundo. Macron pode vir a não conseguir levar a sua avante, por oposição alemã, mas mostrou já estar à altura das responsabilidades de uma potência que, após o Brexit, assumirá necessariamente um papel de singular destaque na Europa.

No plano interno, Macron começou por afirmar não ser “nem de esquerda nem de direita”, o que, como se sabe, é sempre um auto-confissão conservadora. E, uma vez mais, isso ficou provado. A política social do novo presidente, sem surpresas, seguiu uma agenda “reformista” e “modernizadora”, com tudo o que isso quer dizer no jargão do liberalismo económico. E, claro, pagou um preço nas ruas. E foi também nas ruas que outros problemas iriam surgir, com um seu colaborador muito próximo, disfarçado de polícia, a ser apanhado a reprimir manifestantes, criando um escândalo reputacional muito sério ao presidente. 

Na composição do seu governo, Macron havia conseguido incluir, como ministro de Estado, Nicolas Hulot, uma espécie de “papa” francês do Ambiente, que havia resistido a convites anteriores de Sarkozy e de Hollande. Foi um fator importante de credibilidade para o novo executivo. Macron disse então querer colocar as questões do clima e da transição energética como sua prioridade central. E tem-no repetido. Há dois dias, Hulot bateu com a porta, com estrondo, alegando não conseguir impor as suas políticas. 

Conseguirá Macron virar o jogo, retomar a iniciativa, recuperar da clamorosa perda de popularidade que hoje o atinge? Com o Brexit no horizonte dos problemas, com Merkel acossada, com a Itália sob uma agenda radical, uma Espanha em equilíbrio precário, quem terá força para garantir sucesso à reforma europeia? Para um país como o nosso, fortemente empenhado na agenda da Europa, a fragilidade de Macron não é uma boa notícia.

Tocaio

A “Sábado” traz ontem um artigo sobre o antigo Hotel Tocaio, em Vila Real, assinado por Maria Espírito Santo. 

Como o texto bem destaca, o Tocaio foi, por muitos anos, o centro cosmopolita de uma cidade onde só raramente aportavam figuras de destaque, as quais, naturalmente, era por ali que se alojavam. O artigo traz, nesse particular, algumas histórias curiosas. A cidade fazia alguma “cerimónia” com o Tocaio, com exceção, a partir de certa altura, do bar do hotel, que passou a ser frequentado como espaço social mais aberto.

O Tocaio, contudo, havia deixado de funcionar já há décadas, mantendo-se como uma triste ruina, no centro da mais emblemática avenida da cidade. Vai agora ser transformado numa clínica privada, mantendo a traça da sua última versão arquitetónica. Do mal o menos! Numa metáfora que se liga à sua futura utilização, pode dizer-se que é sempre preferível uma “cicatriz”, mais ou menos bonita, à “ferida” que Vila Real ali teve aberta por muitos anos. E ganha-se um equipamento de saúde, o que não é despiciendo.

Sou testemunha pessoal de que, desde o início do seu mandato, o atual presidente da Câmara, Rui Santos, se empenhou fortemente na procura de uma solução para uma reutilização do espaço do antigo Tocaio. Com o entendimento encontrado com a família Serôdio, proprietária do edifício, a cidade a ele muito fica a dever a descoberta da solução que foi possível para o problema. 

quinta-feira, agosto 30, 2018

Toca da Raposa




Terá sido inaugurado em junho de 1960. Para Vila Real, este espaço, que originalmente com tinha um balcão corrido do lado direito, de bancos altos, e, ao fundo, uma pequena sala de refeições, representou uma imensa novidade. Era um “snack-bar”, algo que, na realidade, correspondia a um restaurante - e esse era um tempo em que, na cidade, não havia nenhum! (O restaurante que se lhe seguiu foi a “Churrasqueira”, em frente à Pastelaria Pompeia. O saudoso e justamente afamado “Espadeiro” só seria inaugurado em 1969).

Por aquele tempo, em Vila Real, só havia pensões - Excelsior, Mondego, Coutinho, Areias e poucas outras - e “casas de pasto”, neste caso inúmeras, quase sempre com portas de entrada “à Texas”, balcão com pipos por detrás, vinho ao copo e petiscos. Lembro (de memória rápida e muito, mesmo muitíssimo, longe de pretender exaustiva), o Alemão, a Cardoa, o Barracão, o Chaxoila, o 22, a Pépia, o Carrico, etc. Ah! E o Alcino, no largo Camões, em frente ao tribunal, de que deixo uma história (muito pessoal) ligada à Toca da Raposa.

Um dia, o Zé Luis Carneiro (hoje médico nos EUA) e eu, aí nos nossos 13 ou 14 anos, lembrámo-nos de telefonar de minha casa para o Alcino, em nome do dono da Toca da Raposa (que a cidade sempre conheceu como o “António da Toca da Raposa”), pedindo para lhe mandar, com urgência, uma grade de vinho tinto. Não sei qual de nós foi a voz do “António”, embora desconfie. Ao telefone, o “António” explicou então ao Alcino que tinha a casa cheia de gente chegada “do Porto” e que lhe tinha “falhado” o vinho. 

Minutos depois, pela Avenida Carvalho Araújo abaixo (a tasca do Alcino e a Toca da Raposa ficavam exatamente nos extremos opostos, vivendo eu também por ali) avançaram dois empregados do Alcino, carregando a grade de vinho “pedida”. Nós, entretanto, sentámo-nos a beber qualquer coisa no balcão da Toca da Raposa. 

A certo passo, da porta, ouvimos: “Ó senhor António, está aqui o vinho!”. Intrigado, o António saiu de lá de dentro e interpelou os rapazes: “Vinho?! Que vinho? Não pedi vinho nenhum!”. Eles lá explicaram que eram ordens do senhor Alcino, uma ”encomenda do senhor António”. Este decidiu tirar tudo a limpo e, à nossa frente, passou a desenrolar-se então uma conversa telefónica, crescentemente pouco serena, entre o António e o Alcino. Eu nem tinha coragem de olhar para o Zé Luis, com a vontade de rir, perante a ira do António com o Alcino, seguramente confrontado com a teimosia deste, que devia estar a insistir em ter dele recebido o pedido do vinho. Pouco antes da chamada ser desligada, ainda ouvimos o António berrar, no limite da fúria, que o Alcino devia meter o vinho dele num local físico que os limites de linguagem deste espaço me não permitem nomear. E lá vimos os rapazes, igualmente furiosos, regressar carregados com aquele que (não) terá sido o último vinho encomendado pela Toca da Raposa à tasca do Alcino.

Era assim, essa Vila Real dos anos 60, tempo de “partidas” simples que, com toda a certeza, tinham uma graça diretamente proporcional ao desagrado quem as sofria. Mas tudo já “prescreveu”, razão por que posso agora relatar isto, impune, escrevendo o que leram na esplanada da Toca da Raposa, ontem, num belo fim de tarde de verão. Mas não pedi vinho...

quarta-feira, agosto 29, 2018

À boleia na Guerra Fria



Há dois dias, falei por aqui de boleias. De quando isso era corrente e do modo como essa prática tem vindo a ser afetada pelo correr dos tempos.

Hoje deixo uma memória de uma dessas boleias que “apanhei”. Já não me recordo bem qual a cidade do sul da Alemanha que, naquele dia de século passado, eu pretendia alcançar. Recordo-me que, a certo passo, parou um automóvel, conduzido por um cavalheiro idoso. Num inglês algo macarrónico mas suficiente, confirmou o meu destino e convidou-me a entrar no carro.

Nesse instante, dei-me conta que era uma pessoa que não utilizava os pedais da viatura, devido a uma acentuada deficiência física. Junto ao volante, tinha manípulos para o acelerador e o travão. Terá sido porventura o olhar menos discreto que deitei para tão pouco usuais instrumentos que levou o meu disponível anfitrião a explicar que havia sido ferido na Segunda Guerra, na frente leste. "Foram os russos que me fizeram isto", disse, com uma voz cortante, para logo acrescentar: "E foram também os russos, durante a invasão do meu país, que mataram a minha mulher". 

Não me recordo da minha reação, porque havia muito pouco que eu pudesse dizer, perante a tragédia que afetara, de forma tão brutal, a vida aquele homem. O tempo que vivíamos era de plena Guerra Fria, havia ainda duas Alemanhas, com o Muro bem no seu lugar, os soviéticos e a sua influência estavam por muito perto, apenas a algumas dezenas ou centenas de quilómetros.

O meu condutor sentiu-se estimulado a continuar a falar contra os russos, contra o comunismo, contra o executivo alemão da "grande coligação", entre os cristão-democratas da CDU e os social-democratas do SPD, que então governava em Bona (como hoje governa em Berlim), em particular contra o então MNE Willy Brandt, que ele achava "um traidor", um esquerdista "vendido aos vermelhos". Ora eu, à época, até considerava Brandt um excessivo moderado, e a expressão "social-democrata", no nosso jargão político-radical de então, tinha uma sonoridade quase insultuosa. Por uma proverbial prudência, mantive-me calado, evitando qualquer comentário que pudesse aumentar a quase ira que jorrava do discurso prolixo e incessante do meu interlocutor.

"Mas isto vai mudar, você vai ver! Aqui na Alemanha, estamos a organizar um novo partido, o NPD, e vamos dar a volta a isto. Um destes dias, vamos acabar com esses vermelhos e vamos criar um regime novo. A Alemanha é um grande país. Temos de resgatar a nossa memória e deixar de ter complexos quanto ao regime que tivemos durante a guerra, que só foi derrotado pela aliança entre as democracias corruptas do ocidente e os bandidos comunistas. Vou hoje para uma reunião do NPD onde, com gente que combateu na Wehrmacht, mas também já com muitos jovens patriotas, estamos a preparar o futuro. Os Brandts e estes democratas traidores que nos governam vão ter a devida lição".

Importa lembrar, chegado a este ponto, que o NPD foi um partido neonazi criado em 1964, que nunca conseguiu fazer-se eleger para o parlamento federal, mas que chegou a estar representado em assembleias estaduais. A sua influência foi sempre muito diminuta na política alemã e alguma radicalização da conservadora ala bávara dos cristão-democratas, a CSU, de Franz-Josef Strauss, terá contribuído para esse inêxito. Nos dias de hoje, o NPD já não existe, mas há agora a AfD, a Alternativa para a Alemanha, um novo modelo de extrema-direita que começa a ter um preocupante sucesso eleitoral.

Mas voltemos à viagem. Ela estava a ser-me muito incómoda. Ia-me enterrando cada vez mais no banco do automóvel, desejoso que aquilo acabasse rapidamente, perturbado por aquele insólito encontro com uma Alemanha que apenas pelos jornais sabia que existia. Mas, ao mesmo tempo, olhando para o drama pessoal daquele homem, até era levado a entender que ele pudesse pensar da maneira que o fazia. Num certo momento, num cruzamento, tive uma inspiração: disse-lhe que, afinal, tinha mudado de ideias e que ficaria por ali, mudando os meus planos de percurso. Parou, eu retirei a mochila do banco de trás, agradeci a amabilidade da boleia e, quando me preparava para fechar a porta, ouvi-o perguntar "Você disse que era português?" Confirmei, para logo o ouvir de volta: "Que sorte que você tem de viver num país que tem à frente o Salazar. Aquilo é que é um homem!".

Não tenho a certeza, mas, baralhado como eu estava e desejoso de me ver livre do neonazi que, no fundo, tão amável tinha sido para comigo, confesso que não estou nada seguro de não ter dito que sim, que estávamos “felizes” com o paroquial ditador de Santa Comba que nos tinha saído em rifa, o qual, no mundo sinistro dos seus comparsas europeus, até passava por moderado.

terça-feira, agosto 28, 2018

O meu dia 24 de abril

Saí de manhã de casa, em Santo António dos Cavaleiros, onde vivia, desde que casara, quatro meses antes.  No meu carro, entrei na Escola Prá...