sexta-feira, maio 04, 2018

Dhlakama


Morreu Afonso Dhlakama, líder da Renamo. Nunca consegui ter uma opinião definitiva sobre se o essencial das suas reivindicações políticas face ao governo da Frelimo tinha alguma real legitimidade ou se apenas decorria de uma atitude de não aceitação do resultado do escrutínio democrático e do desejo de ver consagrada, “de facto”, uma espécie de balcanização de Moçambique.

Dhlakama parecia ser uma figura humana curiosa, a acreditar em vários testemunhos. Jaime Nogueira Pinto, no seu livro “Jogos Africanos”, dedica-lhe alguns comentários interessantes, que ajudam a definir a sua personalidade e até a sua “aprendizagem” ao mundo político, tutelada por amigos e parceiros (alguns bem estranhos) estrangeiros. Mas, ao escrever o que então escreveu (livro que recordo bem, porque vim propositadamente de Brasília a Lisboa para o apresentar), Nogueira Pinto não pôde deixar de ter em atenção de Dhlakama estava ainda no “ativo”, pelo que não deixou por escrito alguns outros pormenores interessantes sobre aquela figura, que agora pode vir a ser tentado a revelar. Ou talvez não, porque a morte “santifica” os amigos.

Dhlakama foi, durante muito tempo, uma personalidade quase mítica, sobre a qual pouco se sabia. Um dia de 1992 ou 1993, o nosso embaixador em Nairobi, Paulo Barbosa, foi autorizado a ter um encontro com Dhlakama. O diplomata mandou depois, por DHL, através de Londres, um “apontamento de conversa” em que estabelecia um interessante perfil do lider rebelde. Recebi esse texto em Londres, onde estava nessa altura, e reencaminhei-o para Lisboa. Ainda me lembro bem da leitura que o meu colega (que infelizmente já morreu há alguns anos) fazia dos traços de personalidade do político (aparentemente “naïf) que titulava a guerrilha contra a Frelimo. 

Tudo se tornará mais calmo em Moçambique após a morte de Dhlakama? Não sei. Em Angola, a morte de Jonas Savimbi abriu caminho à pacificação do país, mas cada caso é um caso.

A batalha do cheque


Uma noite primaveril de 1996, sentado numa esplanada de Roma com um colega que, tal como eu, era responsável pelos Assuntos Europeus no seu governo, depois de um jantar de trabalho, falei da questão do poder entre os países da União Europeia. Disse da dificuldade que Portugal por vezes sentia para conseguir defender os seus interesses, situados que estávamos num patamar diferente daquele que prevalecia no processo decisório em Bruxelas. E acrescentei que essa marginalização podia, a prazo, vir a reduzir a legitimidade das instituições comunitárias aos olhos dos cidadãos do meu país.

O meu colega sorriu e disse-me: “Na Europa, meu caro, o poder é importante, não por si, mas apenas porque significa dinheiro! Sem dinheiro, pode haver belos discursos, mas ninguém acredita na Europa. As “trente glorieuses” (os trinta anos de desenvolvimento e bem-estar que marcaram o início das Comunidades) só foram “gloriosas” por isso: mudanças na paisagem, dinheiro nos bolsos e, claro, uma sensação de real bem-estar. Por isso, a luta permanente é pela riqueza, pelo cheque nacional, a cada sete anos, quando chega o momento de divisão do orçamento comunitário. Sem isso, os povos não aderem à Europa”.

Ontem, ao ouvir notícias sobre a proposta modesta do novo orçamento plurianual da União Europeia, lembrei-me do comentário daquele meu colega. E voltei ao dia em que, um ano mais tarde, tinha recebido um documento idêntico, para as finanças europeias entre 2000 e 2006. Recordei o nosso desapontamento face ao que foi apresentado pela Comissão, não obstante o imenso trabalho que tínhamos feito a montante da divulgação do projeto. Guardo a imagem de uma reunião muito preocupada em S. Bento, com António Guterres e Jaime Gama, onde se estabeleceu a estratégia a seguir. Depois, foram centenas de horas de reuniões, durante dois anos, por várias capitais europeias, até àquela noite final de março de 1999, em Berlim, em que, lá pelas seis da manhã, fechámos as negociações. Com êxito, diga-se.

Este quadro financeiro europeu vai ser o mais difícil de todos, pelo que não invejo a tarefa do governo de António Costa. Com a saída do Reino Unido, importante contribuinte para o orçamento, e a pressão para o reforço de novas políticas, em especial ligadas à segurança e ação externa, com a palavra solidariedade em baixa de popularidade nos corredores de Bruxelas, esperam-se dias muito difíceis para Portugal nesta nova “batalha do cheque”. 

A Europa não é só o dinheiro, ao contrário do que dizia o meu amigo calvinista. Mas, sem ele, não há Europa.

quinta-feira, maio 03, 2018

3ª Conferência de Lisboa


Tive hoje muito gosto, como presidente das Conferências de Lisboa, de acolher o presidente da República na abertura dos trabalhos que se prolongam até ao final da tarde de amanhã, na Fundação Calouste Gulbenkian. 

As Conferências de Lisboa têm lugar cada dois anos, sob a chancela do Clube de Lisboa, cujo site pode ser consultado aqui.

A Conferência deste ano tem como título “Desenvolvimento em tempos de incerteza” e conta com a participação de especialistas estrangeiros nas várias temáticas abordadas nos seis painéis - Poder, Segurança, Globalização, Planeta, População e Europa

A intervenção do presidente Marcelo Rebelo de Sousa pode ser vista aqui e as palavras com que abri os trabalhos aqui.

2 de maio de 1972


Onde diabo é que eu estaria no dia 2 de maio de 1972? Andava há muito cá por Lisboa, trabalhava na Caixa Geral de Depósitos, no Calhariz. Provavelmente, ao final da tarde, teria passado pelo bar que havia no topo da livraria Opinião, na rua da Trindade, para uma "cuba libre". Ou teria tido a uma aula de um curso de Semiologia, dado pelo Eduardo Prado Coelho, no Centro Nacional de Cultura, nas traseiras da Moraes. Depois, apanhado que fosse o 21, no Rossio, tinha ido jantar a casa, aos Olivais. Ou talvez não: talvez tivesse ficado pela zona do Monte Carlo, jantando no Toni dos Bifes, indo depois para a conversa no grupo do café, a comentar a confusão que, na véspera, tinha testemunhado no 1º de maio, no Rossio.

De uma coisa tenho a certeza: não estive nessa noite na inauguração do Bar Procópio, da minha amiga Alice Pinto Coelho. E ninguém (ou melhor, ela fê-lo, mas apenas hoje) me avisou a tempo para eu ir lá comemorar. Com todas estas desconsiderações, qualquer dia, levo a mal, desço as escadas e passo-me para a Tasca do Papagaio. É o mais certo!

terça-feira, maio 01, 2018

Israel e o Irão

Percebo que o programa nuclear iraniano crie sérias preocupações. Por essa razão, deve ser preservado, a todo o custo, o laborioso acordo negociado entre Teerão e a comunidade internacional, que prevê mecanismos de controlo sobre a atividade iraniana nesse domínio. Só irresponsáveis podem defender que mais países possam ter acesso a meios nucleares para fins potencialmente bélicos. 

Acho, contudo, de uma desfaçatez sem limites que Israel surja a mostrar indignação sobre o assunto, sem que o mundo solte uma gargalhada. É um segredo de Polichinelo que Israel mantém um programa análogo e tudo indica que possui já a arma nuclear. Talvez não seja por acaso que Israel se recusa assinar o Tratado de Não Proliferação e que, desde sempre, rejeitou quaisquer inspeções da Agência Internacional de Energia Atómica. As quais, note-se, o Irão tem vindo a aceitar, nos termos em que se comprometeu.

segunda-feira, abril 30, 2018

Rugby



Não sei nada de rugby, mas andei anos convencido de que, por detrás daquela confusão em campo, havia um desporto de “senhores”, onde prevalecia o “fair play”. Agora, leio que o campeonato nacional da modalidade foi interrompido por violência. Já não percebo nada! 

Sarney



José Sarney tem 88 anos, mas tem a política no corpo. 

Chegado à presidência brasileira pelo mais famoso golpe constitucional da história do seu país - ascendeu ao lugar por decisão dos militares, como vice de um presidente eleito mas que não tinha chegado a tomar posse -, viria a ser ele a inaugurar a era democrática, depois da sinistra ditadura dos generais. 

Antes, Sarney tinha chegado a presidente da Arena, o “partido” mais próximo dos militares, que contrastava com o mais democrático MDB. Curiosamente, Sarney virá a consagrar-se, depois da saída do Alvorada, como um dos principais caciques do PMDB, que sucederia ao MDB. É nessa qualidade que irá surgir como um dos mais seguros apoios de Lula, durante os seus dois mandatos, conseguindo sempre uma quota significativa de ministros e cargos públicos para os seus protegidos, ao longo de todo esse período.

Suscito isto hoje aqui porque acabo de ler na imprensa brasileira que Sarney mudou a sua inscrição eleitoral para o Maranhão. Este é o Estado que a família Sarney dominou por décadas, por familiares ou protegidos, mas cujo governo perdeu nas últimas eleições. O próprio Sarney, contudo, tinha-se entretanto “transferido” politicamente para o Amapá (um Estado resultante de uma partilha do Pará), por onde é há muito senador e onde estendeu a sua influência. Agora, parece querer regressar ao seu feudo tradicional, onde um dia mandou construir um museu-mausoleu cuja saga faz parte do anedotário do Brasil.

José Sarney não se afasta muito da generalidade dos políticos brasileiros, que sempre assentam o seu poder em Brasília na expressão política que retiram do seu Estado de origem. No seu caso, porém, há uma diferença que o não favorece, face a alguns outros desses caciques. É que, sob o seu reinado, o Maranhão estiolou economicamente, progrediu muito pouco na área social, manteve-se numa grande pobreza e tem sido regular pasto de corrupção - a qual, diga-se em abono da verdade, não abrange apenas o partido e a gente de Sarney.

O visível descaso de Sarney pelo Estado ao qual agora, pelos vistos, pretende regressar contrasta, por exemplo, com o desenvolvimento que foi induzido ao Estado da Bahía pelo também “coronel” (designação tradicional brasileira para os antigos caciques locais) António Carlos Magalhães, o famoso ACM, ou “Toninho Malvadeza”, para os seus detratores. Mesmo os críticos de ACM são forçados a reconhecer ter ele sido responsável por um notável surto de desenvolvimento em Salvador e em outras áreas do seu Estado. Aliás, ainda hoje ali mantém, depois da sua morte, uma alargada veneração pública, que, em parte, justifica que o seu neto (e homónimo) seja hoje prefeito de Salvador, num Estado onde o PT consegue ainda manter o lugar de governador. Nenhum reconhecimento similar marca a imagem de Sarney no Maranhão.

Uma nota final, agora luso-portuguesa: quer José Sarney quer António Carlos de Magalhães sempre foram bons amigos de Portugal, com claras expressões disso dadas em diversas ocasiões. O que só prova uma tese que há muito alimento: no Brasil, é quase sempre na direita que é possível encontrar os melhores amigos do nosso país. A exceção, relevante, foi Lula da Silva.

Pinho

O PS perdeu uma grande oportunidade: ter tido dele a decisão de chamar Manuel Pinho ao parlamento. Um lugar de onde ele saiu um dia, recordemo-nos, por uma indecente e má figura. Fez bem o PSD em propor a convocatória do antigo ministro (estranho mesmo é que não tenham sido o PCP ou o Bloco a fazê-lo). Se Pinho recusar ou atrasar a convocatória, então só há uma solução: a criação de uma comissão parlamentar de inquérito, perante a qual não poderá recusar-se a comparecer.

“Delito de Opinião”


O “Delito de Opinião” é um excelente blogue coletivo, com uma existência de quase uma década.

Para uma antologia de textos que decidiu agora publicar, o “Delito” convidou dois prefaciadores - Ferreira Fernandes e eu próprio - e um pósfaciador, João Taborda da Gama.

Eis aqui o meu texto, a que chamei “Palavras liminares

Daqui a uns anos, quando o mundo digital vier a fazer a sua arqueologia, estou certo de que dedicará um capítulo generoso ao tempo dos blogues. Neles distinguirá aqueles que, com genuinidade, os utilizaram para o debate de ideias, às vezes integrado na luta política conjuntural, de quantos, de forma mais ou menos ostensiva, os colocaram ao serviço da promoção de negócios. Mas até o sucesso destes últimos é, em si mesmo, revelador da eficácia deste modelo de plataforma. Mesmo a montante desse inventário crítico, não hesito em constatar que a blogosfera representou - no Portugal do início do século XXI - um valioso espaço alternativo para confronto de perspetivas, um inesperado e criativo complemento da comunicação social tradicional. E não deixa de ser interessante notar que muitos cultores do jornalismo encontraram nos blogues um espaço para exercitar uma outra linguagem e muitos “bloguistas” iniciaram por aqui um caminho que os viroa a conduzir à expressão na comunicação social.

O “Delito de Opinião” surgiu semanas antes da primeira publicação que fiz no blogue diário que eu próprio alimento desde 2009, inaugurado no dia em que assumi o cargo de embaixador em Paris (embora tivesse já outras experiências no “ramo”). Aliás, o “Delito” foi dos primeiros blogues a acolher e referenciar o meu “Dois ou Três Coisas”, o que desde logo achei muito simpático, tanto mais que os seus autores, na sua ampla diversidade, eram e viriam a confirmar situarem-se em escolas de pensamento, e particularmente de atitude política, um tanto distantes da minha - e isto é um eufemismo.

Com algumas exceções, verifico que o “Delito” é escrito por gente de uma geração bem diferente da minha, creio que, na maioria, já oriundos de experiências anteriores na blogosfera. Para quem, como eu, tinha voltado a viver fora de Portugal, neste caso há mais de uma década, o “Delito”, até pelo seu saudável hábito de citar e fazer links para outros blogues, sempre funcionou como uma janela sobre um país digital que me era alheio. E como tenho o “vício” de dar prioridade na leitura àqueles com quem sei que não vou concordar, eu recolhia, e ainda recolho, no “Delito” o alimento para essa minha faceta masoquista.

Ao longo deste tempo que (caramba!) caminha para uma década, fui “zurzido” por mais de uma vez em posts e comentários no “Delito”, o que é da lei da vida. O Acordo Ortográfico foi um tema recorrente nesses embates, mas outras contradições continuam a emergir, permanecendo em autores do blogue alguns sobrolhos carregados (“to say the least”) quanto à minha pessoa. Isto só torna mais nobre o gesto de me terem convidado para escrever este breve prefácio.

Os blogues coletivos com sucesso têm, em geral, uma “alma” motora por detrás, um “teimoso” que não deixa que a máquina esmoreça. No que me é dado ver, no “Delito”, o Pedro Correia encarna essa figura, ele próprio um criativo que inaugura e alimenta linhas sequenciais de posts (músicas, palavras detestadas, etc.) que exigem pesquisa, constância e uma pertinaz vontade para prosseguir. Por ser escriba de um blogue individual, com publicação insistentemente diária, sei por experiência própria a dificuldade inerente a este tipo de trabalho. E daí a grande admiração que o “Delito” me merece.

Fiquei muito honrado com este convite do “Delito de Opinião” a alguém que vem de “outra freguesia”, para deixar umas palavras na abertura desta sua antologia. (Não sei mesmo se não vou aproveitar a ideia...). Ao blogue e aos seus autores só posso desejar determinação para prosseguir, no fundo, o mesmo que (até ver!) imponho a mim mesmo.

ps - em homenagem ao “Delito”, decidi, por uma vez, evitar contradições ortográficas...

Convido-os a visitar o “Delito de Opinião”, clicando aqui.

domingo, abril 29, 2018

Nuno


Há precisamente um ano, desapareceu o Nuno Brederode Santos. 

Fareed Zakaria


Desde há dois anos que, no outono, me tenho cruzado com Fareed Zakaria, jornalista que apresenta semanalmente o excelente GPS – Global Public Square, na CNN. É em Kiev, na Ucrânia, num congresso internacional em que ambos participamos, com ele como um dos moderadores de interessantes debates. 

“Cruzado” é uma maneira de dizer: nunca tinha falado com ele, no meio daquelas centenas de participantes, entre figuras políticas, que vão de Tony Blair a Strauss-Kahn, de John Bolton a Paul Krugman ou a David Cameron, passando por jornalistas que cobrem o Leste europeu, para além de gente ligada às relações internacionais.

A conferência tem lugar num antigo arsenal militar, a uns quilómetros do hotel onde fico hospedado, com um transporte vai-e-vem sempre disponível, através de pequenos autocarros. Num final de tarde, vi-me sozinho, numa dessas vans, com Zakaria. Meti conversa.

Veio à baila um painel dessa tarde e, ao falar-se da Europa, vi que ficou interessado em algo que eu disse sobre Angela Merkel e a Comissão Europeia. “Podemos falar um pouco, no hotel?”, sugeriu. Estávamos ambos hospedados no “Premier Palace”, com muitos outros participantes do congresso. Sentámo-nos no bar. 

Zakaria era é uma figura pequena, quase frágil, com um olhar vivo e muito atento. Com uma cordialidade profissional, olhava o interlocutor de frente, o que é sinal de segurança. Não tocou numa gota de álcool, não me acompanhando numa excelente cerveja ucraniana que lhe ofereci.

Pela nossa conversa, que durou bem mais de meia hora, passou, curiosamente, uma assimetria de interesses, em matéria de informação. 

Ele queria falar da Europa, do modo como andavam os equilíbrios entre Macron e Merkel, das hipóteses de evolução institucional, das consequências do Brexit, do futuro político da Itália, do sentimento diferenciado no continente face à Rússia. Portugal não lhe interessava minimamente, mas a Catalunha sim.

O meu objetivo era ter dele uma leitura crítica dos tempos turbulentos da administração Trump, das mudanças na Casa Branca, com análise prospetiva de algumas dinâmicas, fosse no Congresso, fosse na atitude americana nos grandes dossiês internacionais, em especial no tocante à China e Rússia. 

Lá lhe fui dizendo o que pensava, em temas em que tinha uma opinião, mas nos quais eu era seguramente muito menos informado do que ele seria sobre aquilo que verdadeiramente me interessava. Não sei se o que disse lhe serviu de muito, ou talvez o possa ter ajudado a precisar alguns pontos específicos. No que me adiantou, confesso, não houve nenhuma surpresa – ou talvez seja o facto de regularmente o ouvir na CNN que me tenha dado a ideia de que conhecia o que ele pensava.

No final, trocámos os cartões da praxe, como acontece nestas ocasiões, sem que isso sirva depois para nada. Às vezes, os encontros são quase desencontros, por mais simpáticos que sejam, como foi o caso.

Os leitores de títulos



Estejam bem atentos! De madrugada, as televisões apresentam as capas dos jornais do dia seguinte. De manhã, preguiçosas, fazem os seus alinhamentos noticiosos pirateando grande parte desses temas, enchendo-os depois de “chouriços” de video de arquivos, repescando peças antigas, chamando uns políticos para comentar aquilo que nem sequer investigaram, ao menos para saberem se era verdade ou não o que os jornais traziam em título (há mesmo um jornal que só existe pelos seus títulos). Às vezes, até parece ser interessante que o título seja falso, para alimentar a polémica, desresponsabilizando-se naturalmente o canal pelo estardalhaço que entretanto fez, à pala dessa falsidade. Se, nesse dia, houver “bola” ou entretanto estourar um outro “escândalo”, esses assuntos acabam por esvair-se. Se não, vão sobrevivendo pela tarde, pelos canais noticiosos, repetidos à exaustão. Se, mesmo assim, ao fim dessas horas, o tema ainda ”estiver a dar”, vai acabar por engrossar os telejornais das oito, a vala comum da tríade “futebol, politiqueirice & o que está a correr mal”, que por cá se tem como sinónimo de jornalismo. Depois, chegam a noite e as novas primeiras páginas. E tudo se repete.

Indicações

“Luanda não vai indicar já o novo embaixador em Lisboa”, diz o “Expresso”. Não vai “indicar”? Foi este governo angolano que solicitou “agrément” para o nome de um novo embaixador, que já foi concedido. Luanda pode atrasar a vinda do embaixador, mas é um facto que já o “indicou”.

Tempo

No ano passado, tivemos meses seguidos sem chover, dias contínuos de sol até dizer basta! Este ano, a chuva regressou, por dias que pareceram intermináveis para alguns, intermeada por jornadas de calor intenso, quase estranho. De súbito, tudo mudou. Agora, como ontem e hoje, há vários climas num só dia, da chuva-de-molha-tolos a “boas abertas” (por que será que esta deliciosa expressão desapareceu do léxico climático?), de bons ventos a um fresco quase fora de época. Grande natureza! Ela é que “a leva direita”, faz o que quer e sobra-lhe... o tempo!

sábado, abril 28, 2018

”Fair play” solar


O “Sol” replica hoje à minha resposta a uma sua anterior nota. Tudo isto começou porque eu havia chamado “clandestino” ao semanário, por não conhecer a sua tiragem. Aqui entre nós, a nota do jornal tem uma precisão mais do que discutível, porque, em matéria de números concretos, ficamos na mesma. E, se falássemos de sobras, então as coisas fiavam mais fino. Mas anoto, com gosto, o “fair play” solar.

Mal fica

Eu nem sequer ouso perguntar a alguns amigos benfiquistas, que coincide serem pessoas de bem, como se sentem ao verem o seu clube - o tal que se queixa de ver o seu “bom nome” posto em causa por aí - ser representado por quem foi na Assembleia da Liga.

Franco Charais


Numa livraria, encontrei ontem, a preço reduzido, um livro de memórias do general Franco Charais - ”O Acaso e a História, Vivências de um Militar”. Foi publicado pela Âncora Editora, em 2002. Li-o em algumas horas.

Para as novas gerações, o nome dirá pouco. Franco Charais foi um oficial de Artilharia que esteve envolvido no 25 de abril. Integrou o Conselho de Estado, fez parte do Conselho da Revolução, foi comandante da Região Militar Centro e foi um dos subscritores do chamado “documento dos nove” - um manifesto de nove figuras moderadas do MFA, publicado no auge do “Verão quente” de 1975, de “resistência” ao “gonçalvismo”. Foi uma figura de grande equilíbrio no período revolucionário, com um perfil sóbrio de militar e genericamente apreciado pela sua seriedade.

Cruzei-me com Franco Charais no palácio da Cova da Moura, em maio de 1974. Ele era tenente-coronel e trabalhava com o general Costa Gomes. Eu era então aspirante a oficial miliciano e adjunto da Junta de Salvação Nacional, ligado às questões da extinção da PIDE/DGS, no gabinete do general Galvão de Melo. Recordo-me que Charais ocupava por ali um belo gabinete com azulejos. O mesmo que, precisamente duas décadas depois, em 1994, eu viria a ocupar, por uns meses, como subdiretor-geral dos Assuntos Europeus.

Ainda em 1974, já a Junta tinha sido dissolvida na sequência do 28 de setembro, vim a estar presente (acompanhando o então major Costa Neves, ainda hoje estou para saber a que título, mas esses tempos eram mesmo assim!) numa reunião chefiada por Franco Charais, no edifício que é hoje o Instituto de Defesa Nacional, e que surge descrita no livro, na qual o CDS, em face das dificuldades sentidas para a sua implantação em liberdade, informou a “comissão coordenadora” do MFA de que estava a encarar a possibilidade de se extinguir. O que, claro, não veio a suceder. A certo passo da conversa, Charais disse: “Os senhores não são os únicos a queixarem-se. Outro partido de direita, o PPD tem os mesmos problemas”. A reação do CDS foi a esperada: “Nós somos um partido de centro!”. 

O livro tem uma estrutura narrativa às vezes não muito fácil, porque feita de saltos no tempo, com peças sobre a sua vida pessoal e militar. Para além de alguns registos curiosos sobre o tempo colonial, na perspetiva de um militar no terreno, a principal curiosidade para mim foi apreciar o modo como Franco Charais interpretou o seu papel no xadrez do MFA, como viu e interveio nas relações de força e, muito em especial, como sofreu o “phasing out” do papel político dos militares. Charais chegou a general, mas o livro deixa abundante material para mostrar o revanchismo de uma hierarquia militar conservadora que entretanto ascendeu ao poder e que prejudicou fortemente a carreira de quem fez o 25 de abril (e não estamos a falar apenas de militares tidos por radicais). Tudo isso feito com a cumplicidade objetiva, e deliberada, do PS, do PSD e do CDS, convém que se diga, alto e bom som.

Charais dedica-se hoje à pintura e realiza-se por essa via. Achei interessante ler este seu livro, coincidindo com mais uma celebração do 25 de abril que também lhe devemos.

sexta-feira, abril 27, 2018

O futuro das Coreias


Só o futuro nos irá ajudar a perceber o significado real do encontro de hoje - sem dúvida, histórico - entre os presidentes das duas Coreias. (Esperemos, contudo, que o Comité Nobel de Oslo não se precipite a dar-lhes o Prémio Nobel da Paz, repetindo a patetice que fez com Obama). 

O tempo nos dirá os eventuais efeitos daqulo que hoje ocorreu para uma distensão sustentável entre os dois países. Uma coisa me parece muito clara: as hipóteses de reunificação continuam muito remotas.

Há um ponto para o qual gostaria de chamar a atenção. 

Quem conhece alguma coisa da política da Coreia do Sul sabe que os seus líderes não têm, necessariamente, uma permanente sintonia com os governos de Washington. No passado, Seul deu algumas vezes mostras de agastamento, pelo facto dos EUA abusarem da sua função de garante militar do “statu quo”, em moldes que procuravam condicionar a sua própria estratégia nacional. Ao longo destas complicadas décadas, houve vários desentendimentos entre a Coreia do Sul e os EUA sobre o modo como lidar com o volúvel vizinho do Norte. 

Quero com isto dizer que não nos deveremos surpreender se Washington vier a mostrar reticências aos termos do entendimento que hoje foi assinado. Os coreanos do Sul têm uma lógica de movimentação face ao “irmão“ do Norte que nada garante que seja totalmente subscrita pelos EUA. Sendo que da atitude destes depende muito o sucesso ou insucesso do que hoje se iniciou.

Um “player” da região tem todas as razões para estar satisfeito: a China. Pequim viu serem dados passos no sentido daquilo que é o seu óbvio interesse: uma península coreana desnuclearizada e menos tensa militarmente, sem que haja uma alteração significativa na lógica de alinhamento internacional da Coreia do Norte. Se a isto se somar algum potencial ganho económico para o regime de Piongyang (que se especula poder fazer parte de um acordo secreto complementar), que venha a atenuar a tragédia humanitária que o país vive (e que podia “sobrar” para a China, em caso de implosão política), será ouro sobre azul para Pequim.

O outro Paralelo 38




Nesta madrugada, ao ver Kim Jong Un e o seu homólogo sul-coreano cruzarem-se no Paralelo 38, que desde 1953 marca a divisão das duas Coreias, na minha memória gastronómica soou uma campaínha.

Existia, em Loulé, o restaurante Paralelo 38, uma casa simples com ótimo peixe, cujo dono, um simpático velhote (que agora me lembram que se chamava Abílio, “Abilinho”), nos anos 70, se gabava das visitas de Mário Soares e nos servia, no final, uma bela aguardente de medronho.

Vou ler isto outra vez...