domingo, abril 29, 2018

Os leitores de títulos



Estejam bem atentos! De madrugada, as televisões apresentam as capas dos jornais do dia seguinte. De manhã, preguiçosas, fazem os seus alinhamentos noticiosos pirateando grande parte desses temas, enchendo-os depois de “chouriços” de video de arquivos, repescando peças antigas, chamando uns políticos para comentar aquilo que nem sequer investigaram, ao menos para saberem se era verdade ou não o que os jornais traziam em título (há mesmo um jornal que só existe pelos seus títulos). Às vezes, até parece ser interessante que o título seja falso, para alimentar a polémica, desresponsabilizando-se naturalmente o canal pelo estardalhaço que entretanto fez, à pala dessa falsidade. Se, nesse dia, houver “bola” ou entretanto estourar um outro “escândalo”, esses assuntos acabam por esvair-se. Se não, vão sobrevivendo pela tarde, pelos canais noticiosos, repetidos à exaustão. Se, mesmo assim, ao fim dessas horas, o tema ainda ”estiver a dar”, vai acabar por engrossar os telejornais das oito, a vala comum da tríade “futebol, politiqueirice & o que está a correr mal”, que por cá se tem como sinónimo de jornalismo. Depois, chegam a noite e as novas primeiras páginas. E tudo se repete.

Indicações

“Luanda não vai indicar já o novo embaixador em Lisboa”, diz o “Expresso”. Não vai “indicar”? Foi este governo angolano que solicitou “agrément” para o nome de um novo embaixador, que já foi concedido. Luanda pode atrasar a vinda do embaixador, mas é um facto que já o “indicou”.

Tempo

No ano passado, tivemos meses seguidos sem chover, dias contínuos de sol até dizer basta! Este ano, a chuva regressou, por dias que pareceram intermináveis para alguns, intermeada por jornadas de calor intenso, quase estranho. De súbito, tudo mudou. Agora, como ontem e hoje, há vários climas num só dia, da chuva-de-molha-tolos a “boas abertas” (por que será que esta deliciosa expressão desapareceu do léxico climático?), de bons ventos a um fresco quase fora de época. Grande natureza! Ela é que “a leva direita”, faz o que quer e sobra-lhe... o tempo!

sábado, abril 28, 2018

”Fair play” solar


O “Sol” replica hoje à minha resposta a uma sua anterior nota. Tudo isto começou porque eu havia chamado “clandestino” ao semanário, por não conhecer a sua tiragem. Aqui entre nós, a nota do jornal tem uma precisão mais do que discutível, porque, em matéria de números concretos, ficamos na mesma. E, se falássemos de sobras, então as coisas fiavam mais fino. Mas anoto, com gosto, o “fair play” solar.

Mal fica

Eu nem sequer ouso perguntar a alguns amigos benfiquistas, que coincide serem pessoas de bem, como se sentem ao verem o seu clube - o tal que se queixa de ver o seu “bom nome” posto em causa por aí - ser representado por quem foi na Assembleia da Liga.

Franco Charais


Numa livraria, encontrei ontem, a preço reduzido, um livro de memórias do general Franco Charais - ”O Acaso e a História, Vivências de um Militar”. Foi publicado pela Âncora Editora, em 2002. Li-o em algumas horas.

Para as novas gerações, o nome dirá pouco. Franco Charais foi um oficial de Artilharia que esteve envolvido no 25 de abril. Integrou o Conselho de Estado, fez parte do Conselho da Revolução, foi comandante da Região Militar Centro e foi um dos subscritores do chamado “documento dos nove” - um manifesto de nove figuras moderadas do MFA, publicado no auge do “Verão quente” de 1975, de “resistência” ao “gonçalvismo”. Foi uma figura de grande equilíbrio no período revolucionário, com um perfil sóbrio de militar e genericamente apreciado pela sua seriedade.

Cruzei-me com Franco Charais no palácio da Cova da Moura, em maio de 1974. Ele era tenente-coronel e trabalhava com o general Costa Gomes. Eu era então aspirante a oficial miliciano e adjunto da Junta de Salvação Nacional, ligado às questões da extinção da PIDE/DGS, no gabinete do general Galvão de Melo. Recordo-me que Charais ocupava por ali um belo gabinete com azulejos. O mesmo que, precisamente duas décadas depois, em 1994, eu viria a ocupar, por uns meses, como subdiretor-geral dos Assuntos Europeus.

Ainda em 1974, já a Junta tinha sido dissolvida na sequência do 28 de setembro, vim a estar presente (acompanhando o então major Costa Neves, ainda hoje estou para saber a que título, mas esses tempos eram mesmo assim!) numa reunião chefiada por Franco Charais, no edifício que é hoje o Instituto de Defesa Nacional, e que surge descrita no livro, na qual o CDS, em face das dificuldades sentidas para a sua implantação em liberdade, informou a “comissão coordenadora” do MFA de que estava a encarar a possibilidade de se extinguir. O que, claro, não veio a suceder. A certo passo da conversa, Charais disse: “Os senhores não são os únicos a queixarem-se. Outro partido de direita, o PPD tem os mesmos problemas”. A reação do CDS foi a esperada: “Nós somos um partido de centro!”. 

O livro tem uma estrutura narrativa às vezes não muito fácil, porque feita de saltos no tempo, com peças sobre a sua vida pessoal e militar. Para além de alguns registos curiosos sobre o tempo colonial, na perspetiva de um militar no terreno, a principal curiosidade para mim foi apreciar o modo como Franco Charais interpretou o seu papel no xadrez do MFA, como viu e interveio nas relações de força e, muito em especial, como sofreu o “phasing out” do papel político dos militares. Charais chegou a general, mas o livro deixa abundante material para mostrar o revanchismo de uma hierarquia militar conservadora que entretanto ascendeu ao poder e que prejudicou fortemente a carreira de quem fez o 25 de abril (e não estamos a falar apenas de militares tidos por radicais). Tudo isso feito com a cumplicidade objetiva, e deliberada, do PS, do PSD e do CDS, convém que se diga, alto e bom som.

Charais dedica-se hoje à pintura e realiza-se por essa via. Achei interessante ler este seu livro, coincidindo com mais uma celebração do 25 de abril que também lhe devemos.

sexta-feira, abril 27, 2018

O futuro das Coreias


Só o futuro nos irá ajudar a perceber o significado real do encontro de hoje - sem dúvida, histórico - entre os presidentes das duas Coreias. (Esperemos, contudo, que o Comité Nobel de Oslo não se precipite a dar-lhes o Prémio Nobel da Paz, repetindo a patetice que fez com Obama). 

O tempo nos dirá os eventuais efeitos daqulo que hoje ocorreu para uma distensão sustentável entre os dois países. Uma coisa me parece muito clara: as hipóteses de reunificação continuam muito remotas.

Há um ponto para o qual gostaria de chamar a atenção. 

Quem conhece alguma coisa da política da Coreia do Sul sabe que os seus líderes não têm, necessariamente, uma permanente sintonia com os governos de Washington. No passado, Seul deu algumas vezes mostras de agastamento, pelo facto dos EUA abusarem da sua função de garante militar do “statu quo”, em moldes que procuravam condicionar a sua própria estratégia nacional. Ao longo destas complicadas décadas, houve vários desentendimentos entre a Coreia do Sul e os EUA sobre o modo como lidar com o volúvel vizinho do Norte. 

Quero com isto dizer que não nos deveremos surpreender se Washington vier a mostrar reticências aos termos do entendimento que hoje foi assinado. Os coreanos do Sul têm uma lógica de movimentação face ao “irmão“ do Norte que nada garante que seja totalmente subscrita pelos EUA. Sendo que da atitude destes depende muito o sucesso ou insucesso do que hoje se iniciou.

Um “player” da região tem todas as razões para estar satisfeito: a China. Pequim viu serem dados passos no sentido daquilo que é o seu óbvio interesse: uma península coreana desnuclearizada e menos tensa militarmente, sem que haja uma alteração significativa na lógica de alinhamento internacional da Coreia do Norte. Se a isto se somar algum potencial ganho económico para o regime de Piongyang (que se especula poder fazer parte de um acordo secreto complementar), que venha a atenuar a tragédia humanitária que o país vive (e que podia “sobrar” para a China, em caso de implosão política), será ouro sobre azul para Pequim.

O outro Paralelo 38




Nesta madrugada, ao ver Kim Jong Un e o seu homólogo sul-coreano cruzarem-se no Paralelo 38, que desde 1953 marca a divisão das duas Coreias, na minha memória gastronómica soou uma campaínha.

Existia, em Loulé, o restaurante Paralelo 38, uma casa simples com ótimo peixe, cujo dono, um simpático velhote (que agora me lembram que se chamava Abílio, “Abilinho”), nos anos 70, se gabava das visitas de Mário Soares e nos servia, no final, uma bela aguardente de medronho.

Varoufakis

Olhando para a comunicação social internacional, fica muito claro o que significou esta deslocação de Varoufakis a Lisboa. 

O antigo ministro grego das Finanças quis “apanhar boleia” da festa da Revolução portuguesa para lançar o seu movimento político para as eleições europeias, precisamente no país do presidente do Eurogrupo, onde se situa o essencial das políticas que combate. 

A luta de Varoufakis é hoje também contra o primeiro ministro Tsipras, como se viu em todas as entrevistas, pelo que a Avenida da Liberdade foi a “praça Sintagma” que arranjou mais à mão. 

O partido português “Livre”, que pertence ao mesmo movimento político europeu, deu um deliberado palco a Varoufakis e aproveitou para se promover.

Notou-se o silêncio embaraçado do Bloco de Esquerda, que tanto tinha endeusado Varoufakis no passado. É que, embora os bloquistas, lá no fundo, concordem em pleno com as críticas feitas por este a Centeno, estar a destacá-las neste contexto seria ajudar à propaganda rival do “Livre”.

A Avenida


No 25 de abril, estive e sempre estarei de cravo vermelho ao peito.

A data da Revolução, para a qual, há 44 anos, dei o meu ínfimo contributo pessoal, é por mim comemorada, desde então, com uma sinceridade que não tem par com outros eventos a que me associo. Vivi-a em oito países diferentes, às vezes em família, outras com amigos, algumas vezes com cerimónias de permeio.

Fui, em algumas ocasiões, sempre por dever de ofício, à cerimónia na Assembleia da República. Nesses momentos, para além da observação coletiva de quem levava ou não um cravo ao peito, assisti à cansativa sucessão de discursos políticos e partidários, que, invariável e oportunisticamente, utilizavam a comemoração para tratar da conjuntura do momento.

Aquilo que poderia ser um espaço de proclamação de elegias à liberdade conquistada naquela data acabava por se transformar numa arena de severo combate político, com as diversas leituras de "abril" a servirem de arma de arremesso, de forma quase sempre pouco subliminar.

Com sinceridade, ninguém acreditará que essa maratona declaratória contribuía, minimamente, para levar as virtualidades da Revolução às novas gerações, para nelas ajudar a construir o culto desse momento fundacional da nossa democracia. Nos últimos dois anos, parece que este vício terá sido um pouco corrigido.

Depois, há a Avenida. Do Marquês ao Rossio, um certo país político-militar faz à tarde a sua festa. De início, parecia que essa romaria laica poderia vir a ter o caráter daquilo que foi o primeiro 1° de Maio: uma festa plural, em que a bandeira comum fosse vermelha, claro, mas com o verde da nossa República.

Cedo se percebeu que não ia ser assim, que uma certa lateralização ideológica ia prevalecer. E a Avenida logo passou a uma manifestação com com bandeiras sectárias e slogans, uma espécie de comício ambulante, onde certas forças políticas, com os seus apêndices multiplicadores de imagem, ganharam um espaço claramente desproporcionado face àquilo que vontade do povo regularmente expressa nas urnas.

Comemorar o 25 de Abril, celebrar essa magnífica Revolução que, por uma vez, quase que fez o milagre impossível de unir o país, deveria passar por uma despartidarização e consubstanciar-se na organização de festas populares - com música, com juventude, com alegria. E sem discursos, sem desfiles políticos, sem slogans. Como, em França se faz com o "14 juillet". Ah! Mas sempre, claro, com muitos cravos.

É que, no 25 de abril, estive e sempre estarei de cravo vermelho ao peito.

quinta-feira, abril 26, 2018

Vermo-nos gregos

Partilhando a alegria de alguns amigos, felizes por verem Varoufakis descer ontem a Avenida da nossa Liberdade, não tenho coragem para lhes dizer que essa presença separa mais do que une. Mas tudo bem! Viva o 25 de abril.

A raiz do pensamento

Seria muito bom saber o que, no íntimo, alguns deputados sem cravo ou ausentes de S. Bento pensam, com sinceridade, sobre o 25 de abril. Mas não temos o direito de perguntar-lhes: foi também para isso, para cada um pensar o que lhe apetece, que se fez o 25 de abril.

quarta-feira, abril 25, 2018

Um bom 25 de abril, meu capitão!


Um dia, o capitão Teófilo Bento surgiu na parada com um megafone. Estávamos nos primeiros meses de 1974, na Escola Prática de Administração Militar (EPAM), na Alameda das Linhas de Torres, uma unidade que, tempos depois, iria ser uma das primeiras a “sair para a rua”, para tomar o objetivo estratégico próximo, que eram os estúdios da RTP.

Lembro-me de alguns de nós termos estranhado o inusitado uso daquele aparelho nas mãos do Bento, porque nada o justificava. Creio que a ninguém passou pela cabeça ligar o uso do aparelho à Revolução que aí vinha. Porém, esse megafone iria ser a sua imagem de marca no 25 de abril, que se aproximava.

À época, eu era, simultaneamente, bibliotecário, diretor do jornal da unidade “O Intendente”, oficial e instrutor de Ação Psicológica na EPAM. Meses antes, ao ter ficado classificado em primeiro lugar entre os nove selecionados para a tal APSIC, fora convidado para ficar na EPAM naquele cúmulo de funções, tendo como principal missão coordenar os cursos de formação dos futuros oficial daquela especialidade.

Devo dizer que nunca percebi como fui parar à APSIC. Embora sem nunca ter pertencido a nenhuma estrutura política clandestina, tinha tido uma atividade bastante visível na CDE de Vila Real, durante as eleições de 1969. Na universidade, a minha eleição para órgãos associativos fora “não homologada” duas vezes, por decisão do governo, tendo ainda sido objeto de uma suspensão por “agitação académica”, que me impedira de frequentar as aulas e só ser autorizado a fazer as ‘frequências” e os exames finais. Estava longe, contudo, de ser um ativista ou um “politicamente ativo”, na gíria da PIDE/DGS. Por isso, estranhei um pouco a minha seleção para uma especialidade militar daquela natureza. Mas esses erros não eram incomuns: meses antes, António Reis, com muito destacada ação política e que fora candidato a deputado pela CDE, também viria a integrar o curso de APSIC.

Voltemos ao capitão Teófilo Bento. Uma tarde de fevereiro de 1974, no meio da parada da unidade, Bento, com quem eu tinha uma relação simpática, mas respeitosamente distante, dirigiu-se-me:

“Ó Seixas da Costa, preciso de falar consigo!” E como se fosse a coisa mais natural do mundo, foi adiantando: “Você estaria disponível para nos ajudar numa ação militar para deitar abaixo o regime?

Caí das nuvens! Tinha algum conhecimento da agitação que atravessava os meios militares, tinha estado presente em duas reuniões clandestinas de milicianos (uma num apartamento em Campolide, outra perto do Areeiro), mas não tinha a menor ideia de que a EPAM estivesse envolvida e de que Teófilo Bento tivesse um papel nesse contexto. Reagi, por isso, com grande prudência, não fosse tratar-se de uma provocação:

“Ó meu capitão! Isso é um assunto que não pode ser tratado assim! Tenho de ter mais informações para pensar nele”.

“Muito bem. Um destes dias falamos melhor”, respondeu-me Bento.

Nessa tarde, falei com o António Reis, que politicamente “bebia do fino” e que, rindo-se da inabilidade conspirativa do Bento, me confirmou que o capitão era a figura central da EPAM para as movimentações do que estavam em preparação. E que falaria com ele sobre o “incidente”.

Depois, as coisas aceleraram. Veio o 16 de março e, pelo modo como as pessoas na unidade reagiram a esse golpe frustrado, ficou mais claro quem estava com que lado.

Na madrugada de 25 de abril, o capitão Teófilo Bento, acompanhado do alferes Geraldes e do aspirante António Reis, teriam papel destacado na sublevação da unidade e na organização da coluna que iria tomar a RTP.

Na noite desse dia, foi Teófilo Bento quem, com todos nós a seu lado, fez as “honras da casa” na RTP a Spínola e à Junta de Salvação Nacional, que dali se dirigiu ao país.

Dois dias depois, a 27 de Abril, Teófilo Bento, que interinamente passou a chefiar a RTP, coordenou, na sala da biblioteca da EPAM, um encontro com um impressionante grupo de intelectuais, num "brainstorming" em que foi acolitado por António Reis e por mim. Pela sala espalhavam-se figuras como Luís de Sttau Monteiro, Mário Castrim, Luis Francisco Rebelo, Álvaro Guerra, Manuel Jorge Veloso, Manuel Ferreira, Adelino Gomes, Orlando da Costa e creio que cerca de duas dezenas mais de figuras cimeiras da nossa vida cultural e jornalística (ficarei muito grato a quem puder ajudar a completar esta lista).

Spínola tinha entretanto outras ideias para a RTP e elas não passavam pela manutenção de Teófilo Bento e dos militares da EPAM por lá, em funções que ultrapassassem a segurança das instalações. (No 25 de novembro do ano seguinte, o meu amigo Duran Clemente ainda procurou “recordar”, na RTP o papel original da EPAM).

Teófilo Bento viria a sair da EPAM. Iria mais tarde dirigir o empreendimento agrícola do Cachão, perto de Mirandela. Perdemo-nos de vista por muitos anos. Cruzámo-nos episodicamente e mantemos uma relação solidária de camaradagem, fruto desses dias únicos que vivemos em conjunto.

Um forte abraço, amigo Teófilo Bento! 

terça-feira, abril 24, 2018

Os direitos

Contrariamente ao que alguns pensam, exercer uma democracia opinativa, através da comunicação social, não é sinónimo de lançar debates questionantes sobre a legitimidade dos direitos constitucionais dos portugueses. Como se esses direitos devessem ser referendados no quotidano.‬

A cidade de Ontem


Neste dia 24 de abril, lembrei-me de reeditar um post antigo. 

“Ao ler que a Santos Júnior, polícia-mor de um dos períodos mais sinistros da ditadura, foi atribuído o nome de uma rua em Coja (se fosse em Corja, não me admirava), dei comigo a pensar se, de facto, não seria justo, para cultivo de uma certa memória afetiva, ser criada, algures no nosso país, uma cidade que tivesse o nome de Ontem. Para aí irem viver poderiam ser convidados, em prioridade, todos quantos, nas redes sociais e nas caixas de comentários dos sites e jornais, permanecem fiéis a um saudoso passado em que, pelos vistos, se sentiam tão felizes. Mas muitos outros seriam elegíveis, como se intui em colunas de jornais e até em certas tribunas políticas residuais. Em Ontem, o Diário da Manhã e o Novidades dariam, ao alvorecer, as notícias a que os seus cidadãos tinham direito - mas nem mais uma, ou, então, "factos alternativos", como fazem as relações públicas de Trump! E iríamos vê-los felizes, cara ao sol, sentados na esplanada do Café do Aljube, com vistas para a Praça do Tarrafal (no centro da praça, em dias de calor haveria um lugar a que chamariam "frigideira"), à qual se acederia pela grande Avenida Oliveira Salazar, de sentido único, que, lá bem ao fundo, conduzia ao Beco Américo Tomaz (com Z). No Centro Social Silva Pais, não muito distante, ouvir-se-ia a Emissora Nacional que os "senhores óvintes" quisessem, obrigatoriamente abrindo com "Uma Casa Portuguesa" ("a alegria da pobreza está nesta grande riqueza de dar e ficar contente"). Na Alameda Barbieri Cardoso, ficaria a Livraria Lápis Azul, que só venderia livros rigorosamente conformes aos cânones do antigo e benquisto regime, sendo de todo excluídos aqueles em que as palavras "liberdade", "democracia" e "povo" pudessem surgir. Em Ontem, Pide seria o nome de uma associação de beneficência, com o Centro de Artes "Estátua", recuperando a tradição de uma instituição com uma benéfica ação que tão deturpada tem sido - embora, felizmente, já haja por estes dias um grupo dedicado de rapazes da historiografia que começa a tentar mudar tais erróneas perceções. O fotógrafo oficial da cidade de Ontem, um tal Rosa Casaco, faria os retratos à maneira, de preferência um "photomathon" com frente e duas laterais, numa moda estética lamentavelmente caída em desuso. E, por falar em "casaco", iria ser com certeza um sucesso o alfaite o local, o conhecido "Vira Casacas", que tanto trabalho tinha tido no 25 de abril. Perguntará o leitor: E a Justiça? E a Saúde? Quem assistiria nesses domínios os habitantes de Ontem? A Justiça, ora essa!, estaria a cargo dessas vestais do direito que eram os juízes dos Tribunais Plenários! E a Saúde, essa não poderia ficar em melhores mãos do que de esses dignos seguidores de Hipócrates que eram os médicos do Tarrafal, de Peniche e de Caxias. Mas não se fala da Educação? Não, porque em Ontem ela não seria necessária, orgulhosa do analfabetismo sadio que outrora imperava. E, sejamos óbvios, os que fossem educados só por engano é que iram viver para Ontem. Resta a ordem pública? Nem por isso! Bastava ficar por lá o capitão Maltez (nunca percebi porque nunca foi promovido, ou, se calhar, foi, depois do 25 de abril e ninguém nos avisou) e nem uma agulha bulia na serena melancolia da paz dos cemitérios. Ah! E, em Ontem, haveria também uma Colónia de Férias (então eles passavam lá sem ter uma coloniazita...). Pela certa, finalmente, a cidade não enjeitaria uma geminação com Santa Comba ou com a angolana São Nicolau, porque há memórias que calam fundo - e calar é algo que Ontem saberia sempre fazer. Um ponto muito importante seria permitir que os cidadãos pudessem sair de Ontem sempre que lhes apetecesse. Não há, porém, a certeza de que isso, necessariamente, lhes agradasse, porque a liberdade é, no fundo, aquilo que eles menos apreciam. Enfim, Ontem é, talvez, o futuro que alguns desejariam. Por que não fazer-lhes a vontade? Será que para a criação desta urbe da saudade se arranja, finalmente, uma maioria decente na Assembleia da República?.”

Até amanhã!

Um dia, no Brasil, no auge de um tema que dominava toda a comunicação social, almocei com um político. Disse-me: “Verá que amanhã vai surgir outro escândalo! Não sei o que será, mas é única forma de desviar a atenção deste”. Lembrei-me ontem disto, ao ouvir falar da Misericórdia.

segunda-feira, abril 23, 2018

Nem às paredes confesso

Adoro os filmes “à Poirot” em que, quase no final (há sempre uma cena depois, repararam?), todo o pessoal se junta numa sala até queum confessa o crime, conquistado pela perspicácia do investigador. Ando há anos a treinar para não confessar, mesmo que muito pressionado. Acho que vou conseguir.

Paralelo 38

Alguém me há-de explicar um dia por que razão nenhum órgão de comunicação social portuguesa foi até hoje capaz de descobrir o estudante português que foi colega de quarto do líder coreano Kim Jong-un, quando este estudou na Suíça, entre 1996 e 2000.

Os puros

Nos desabafos catastrofistas sobre o futebol nacional - trafulhices dos dirigentes, conluios com arbitragens, golos mal assinalados, tempo a mais no jogo, alegados subornos a jogadores “adversários”, há sempre um clube miraculosamente impoluto: o nosso. Por que será? Tenham juízo...

O pé da Luisinha Carneiro


Ontem, ao voltar a página, rápida e indiferentemente, sem ler o texto da notícia, de um jornal que referia em título os mais de 60 mortos num atentado suicida no Afeganistão, pensei para mim mesmo: será que já estou conquistado pela síndroma “Luisinha Carneiro”? Mas quem é Luisa Carneiro?

Num texto que ficou para a história pela sua genialidade, Eça de Queiroz imaginou um dia uma cena de província, com uma senhora a dar conta, num grupo reunido em sua casa, das notícias que vinham no jornal local, acabado de chegar. Os “horrores” dos vários desastres pelo mundo (o “Correio da Manhã” não nasceu do nada, podem crer!) sucediam-se, com apartes de aborrecimento e ar pesaroso dos circunstantes, mas não muito mais: um terramoto que matara duas mil pessoas na ilha de Java, na Hungria um rio transbordara e causara vítimas e prejuízos sem fim, na Bélgica greves e repressão, um descarrilamento trágico no sul de França, etc. 

A senhora sobre quem convergiam as atenções, que permanecia agarrada ao jornal, do qual extraía todas aquelas pouco excitantes notícias, de súbito “solta um grito, leva as mãos à cabeça: Santo Deus!” Eça relata a cena com deliciosos pormenores: “Todos nos erguemos, num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando: ‘foi a Luísa Carneiro, da Bela Vista, torceu um pé!’ Então a sala inteira se alvoroçou, num tumulto de surpresa e desgosto”. É que “todos nós conhecíamos a Luisinha” e ninguém sabia quem eram os javanezes, os húngaros, os belgas ou os franceses atingidos pelas tragédias distantes.

Os meus “javanezes”, ontem, foram os afegãos mortos em Cabul, entretanto já sepultados pela minha indiferença. E a “minha” Luísa Carneiro está, com certeza, numa novidade de proximidade da perna partida de um amogo que alguém me traga, daqui a pouco. Este é um mundo que nunca muda muito.

O herói

25 de Abril de 1974. Escola Prática de Administração Militar (EPAM). Eram aí 11 horas da manhã. Abri a fechadura da sala do quarto do oficia...