Vou contar uma história dos anos 90. Um dia, no governo, desloquei-me à capital espanhola, para um encontro bilateral sobre assuntos da União Europeia. Era então meu contraparte Ramón de Miguel, também secretário de Estado dos Assuntos Europeus.
Ao longo da minha carreira, nas conversas informais com os meus amigos e interlocutores espanhóis, habituei-me a usar sempre o meu “portuñol”, porque entendo sempre muito bem o castelhano deles.
A reunião de Madrid, que tinha um caráter formal, começou com uma proposta de Ramón de que eu, tal como os colaboradores que me acompanhavam, falássemos em português, com os espanhóis a usarem sua própria língua. O meu interlocutor percebia muito bem o português, porque fora diplomata em Lisboa. Mostrava-se convencido de que tudo correria bem, dessa forma. Eu, confesso, não estava, mas aceitei o desafio.
A conversa até começou bem. Porém, a certo passo, comecei a dar-me conta de que os integrantes da delegação espanhola, com exceção de Ramón de Miguel, davam claras mostras de não estarem a conseguir seguir aquilo que eu dizia, muito embora eu me esforçasse para falar lentamente e com frases simples (o que, aliás, me dava um trabalho acrescido). E, embora em menor escala, verifiquei que, do nosso lado, a compreensão da língua de Cervantes e dos nossos interlocutores estava também longe de ser total. A situação ameaçava, assim, tornar-se embaraçosa.
Não sei se foi Ramón de Miguel se fui eu quem, num determinado momento, interrompeu a reunião, propondo mudarmos ambos de língua, para que toda a gente entendesse tudo bem. Julgo que teremos passado para o francês. De um momento para o outro, o ambiente mudou, para melhor, com a angústia de alguns visivelmente a atenuar-se, de ambos os lados da mesa.
Para quem, como todos nós naquela sala, andava pelos corredores comunitários de Bruxelas, onde então o francês e o inglês se equiparavam no uso, e até se misturavam algumas vezes (o chamado “franglais”), foi de grande comodidade recuperar o léxico do “europês”, que fazia parte do nosso dia-a-dia. Mas não deixava de ser estranho que delegações de dois países com línguas muito similares se vissem forçadas a usar um terceiro idioma para se fazerem compreender plenamente.
Hoje, daqui a umas horas, vou estar em Madrid, para reuniões de trabalho. Como acontece, muitas vezes, em todas as empresas multinacionais com as quais trabalho, essas reuniões vão passar-se exclusivamente em inglês, única língua veicular comum a todas as pessoas que vão estar presentes na sala (ou intervenientes por video ou audioconferência).
Mas há que reconhecer que esta “ditadura” do inglês é terrível! Nos últimos anos, no âmbito de reuniões dessas empresas, já tem sucedido ficarmos, por algum tempo, apenas portugueses na sala de uma reunião. E é bizarro verificar que, em regra, mesmo nessa circunstância, continuamos a falar inglês, porque toda a documentação em que nos apoiamos está exclusivamente escrita nessa língua, pelo que é muito mais fácil continuar a operar com base em conceitos cuja tradução portuguesa seria difícil - e, pior do que isso, completamente desnecessária para a finalidade do nosso trabalho.
Os britânicos estão prestes a sair da União Europeia. Mas, na língua, já nos “colonizaram” para sempre.