Surgiu hoje nas notícias um caso que evoca a questão da imunidade diplomática. É um tema fascinante do Direito internacional público, que ressurge de quando em quando, em especial se, nesse domínio, se registam novos abusos.
Desta vez, ao que parece - e será preciso confirmar que assim foi exatamente - dois filhos do embaixador iraquiano em Portugal terão agredido barbaramente um cidadão em território português. A polícia, atentas as regras da imunidade diplomática, foi obrigada a soltá-los.
Pelas redes sociais vai já uma onda de indignação com a possível impunidade dos agressores, reclamando a sua punição pelas leis portuguesas.Convém parar um pouco para pensar.
É verdade que, a confirmar-se a agressão, os seus responsáveis poderão ficar impunes? É verdade. Isso só não aconteceria em duas circunstâncias:
- se as autoridades iraquianas levantassem a imunidade dos jovens e permitissem que eles fossem julgados em Portugal pelo crime,
ou
- se essas mesmas autoridades repatriassem os jovens e os julgassem no seu país.
Qualquer destas duas circunstâncias não depende da vontade do Estado português e não cabe a Portugal suscitá-las.
Esta situação tem laivos de injustiça objetiva e é natural que seja sentida como tal pela opinião pública. Mas ela é o "preço" a pagar pela salvaguarda da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, um acordo internacional datado de 1961 e que regula a vida diplomática à escala do planeta, sendo considerado quase unanimemente como uma excelente Convenção.
Por que razão a Convenção protege estas "barbaridades"? Para evitar, por exemplo, que em países com alguns regimes sinistros, onde a proteção jurídica é muito frágil, onde a lei e a ordem estão raptadas por agendas de discricionariedade e arbítrio, contra qualquer diplomata estrangeiro possa ser montada uma "operação", na base de falsas alegações, acabando por ser julgado sem garantias, eventualmente fazendo-o passar anos na prisão ou mesmo sujeitando-o à pena de morte, se ela acaso ali vigorar.
É para a salvaguarda da liberdade de atuação e trabalho de uma esmagadora maioria dos diplomatas, cujo comportamento se processa dentro das regras, que a comunidade internacional paga o preço de ter de aceitar não punir os abusos que surjam, no âmbito das legislações nacionais.
O essencial da lógica da Convenção, em termos gerais (e sem entrar em preciosismos e particularismos aqui descabidos) é este: todos os titulares estrangeiros de cargos com acreditação diplomática, bem como os seus familiares (exceto se, por serem nacionais desse país, estiverem sujeitos à jurisdição local), estão isentos de responsabilidade penal por atos praticados nos países onde estão acreditados. (Não refiro aqui a questão complexa da responsabilidade civil).
Mas, então, Portugal não pode fazer nada neste caso? Pode.
Se considerar que se confirmam os indícios de que aqueles cidadãos praticaram atos que configuram abusos da imunidade diplomática que lhes havia sido concedida, o governo português tem a possibilidade de considerar esses titulares de imunidade "personae non grata" e obrigar à sua saída do país, num dado prazo.
Uma coisa é clara e importante referir: Por exclusiva vontade própria, Portugal não pode julgá-los de acordo com as suas leis. Isso significaria colocar-se à margem das regras gerais que se comprometeu a observar. Nenhum país o faria, aliás.