sábado, setembro 09, 2017

Hóquei (escrevo assim)


Há dias, numa conversa em noite quente, em Ponta Delgada, eu e um amigo que me acompanhava demo-nos conta de que, sem então nos conhecermos, havíamos estado juntos no "galinheiro" do Palácio de Cristal, no Porto, na noite de 4 de maio de 1968, a vibrar com a vitória de Portugal sobre a Espanha, em hóquei em patins, numa final do campeonato do mundo. 

Ele foi um conceituado praticante da modalidade, eu era apenas um aficionado de bancada e de leitura de imprensa desportiva, além de seguidor e sofredor radiofónico regular durante os relatos vivos que Artur Agostinho nos fazia desse mítico pavilhão desportivo de Montreux (onde um dia me senti na obrigação de ir, numa romagem de nostalgia).

Portugal venceu então, nesse outro maio de 1968(!), "a nossa vizinha Espanha" (expressão do jornalismo sem imaginação) por 2-0. 

O que fará com que, nos dias de hoje, o meu entusiasmo com estas finais seja bem menor? 

À hora de almoço de hoje, quando, aos penalties, "nuestros hermanos" (outra banalidade ritual na imprensa) nos derrotaram em mais uma final mundial, desta vez na China, tive pena (claro!), mas isso não afetou o apetite com que continuei a comer o belo bacalhau que o meu amigo João apresenta na sua "Imperial de Campo de Ourique".

Naquele outro tempo, eu conhecia de cor até a composição da equipa espanhola (como tinha sabido outras, no passado). Hoje, não sei o nome de nenhum jogador português. Como diria, com a sua preverbial expressividade, Donald Trump: "sad!"

O bacalhau do "Progresso"


Diz a "Time Out" que o "Progresso", o café portuense entre a praça Carlos Alberto e o largo do Moínho de Vento, sofreu uma nova remodelação, estando agora centrado na área dos comes-e-bebes. De uma das últimas vezes que por lá passei, a especialidade da casa eram panquecas.

O "Progresso" é um marco da riquíssima geografia cultural dos cafés no Porto. Ao tempo em que me passeei pelas engenharias da Universidade do Porto, aquele café não fazia parte dos nossos roteiros de pouso, porquanto na sua frequência se contavam muitos mais professores "graves" do que aqueles que escolhiam o vizinho "Piolho".

O "Progresso" foi, ao que julgo, dos últimos lugares a ceder à invasão do "cimbalino", mantendo um café de saco que se tornou lendário. A razão por que falo de bacalhau no título deste post é porque subsistiu, por décadas, o mito (ou a realidade?) de que o segredo da qualidade do café de saco do "Progresso" advinha dos rabos de bacalhau que eram colocados no interior na bela máquina que ornamentava a sala.

O apelo de Lisboa


Durante várias semanas, no seu imperdível "folhetim" de verão, em que recupera uma tradição vetusta do "Diário de Notícias", Ferreira Fernandes ficcionou a possibilidade da sede das Nações Unidas ser transferida para Lisboa. A trama baseava-se no interesse imobiliário de Trump pelo terreno nova-iorquino da "Turtle Bay", somado à vontade de Macron de dar à ONU uma centralidade europeia. 

Hoje, na sua conta de Twitter, um dos mais conhecidos jornalistas das coisas europeias, Jean Quatremer, "lança" a ideia de transferir as instituições europeias para Portugal, para um "país normal (belo, de clima são, limpo)". Sabemos o "sucesso" que a ideia vai ter, mas não deixa de ter graça ver um "furioso" europeísta - ainda por cima, francês - propagar a excelência da capital portuguesa.

Factor de primeira


Há dias, entrei numa estação de caminho de ferro de uma cidade de província, daquelas onde o comboio passa "quando o rei faz anos". Não se via vivalma. Fui andando pela plataforma até encontrar uma porta aberta. Estava um tipo lá dentro, de t-shirt e jeans, a quem perguntei: "Sabe dizer-me onde posso encontrar o chefe da estação?". (Por razão que não vem ao caso, eu tinha necessidade de falar com o chefe da estação). O homem respondeu-me: "Sou eu". 

Ele deve ter percebido que eu estava à espera de "outra coisa". Claro que já não aguardava um cavalheiro de fato escuro, gola vermelha, com um pau de bandeira enrolado na mão (e apito pendurado do bolso). Mas esperava que fosse alguém vestido de forma identificável para aquele lugar. Mas, se calhar, as coisas hoje são mesmo assim.

O formalismo dos caminhos de ferro é lendário. Um chefe de estação, no passado, era uma figura com algum destaque nas localidades. E a hierarquia da carreira ferroviária era algo de relevante à escala nacional.

O meu pai costumava contar uma história da sua infância, passada em 1918 ou 1919 Perto da casa da minha avó, em Viana do Castelo, vivia um casal. O cavalheiro era funcionário dos caminhos de ferro. Tratava-se de um homem "grave", de fortes bigodaças, que se passeava com a esposa aos finais de tarde, em passo pausado, pelas ruas da cidade. O meu pai ouvira dizer que o homem o homem era "Factor de primeira", um lugar da hierarquia ferroviária. E a designação do cargo impressionava-o. 

Um dia, numa conversa lá por casa, veio à baila uma figura importante da cidade, o governador civil. O seu poder terá sido mencionado, em contraste com o de outro cargo qualquer. O miúdo de oito ou nove anos que era o meu pai, colocou então à minha avó uma questão que, para sempre, ficou para o anedotário sentimental da família: "Um Governador civil manda mais ou menos que um Factor de primeira?"

sexta-feira, setembro 08, 2017

A vizinhança coreana


Em 2003, fui a Seul, a convite da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), co-presidir e intervir numa conferência sobre a possibilidade das chamadas “medidas geradoras de confiança e segurança”, um conceito muito em voga desde a “détente”, virem a ser aplicadas às tensões político-militares que, desde os anos 50, afetam a península coreana.

Logo no primeiro dia, fui convidado para almoçar por um amigo que era assessor diplomático do presidente da Coreia do Sul. Tínhamo-nos conhecido em Nova Iorque, quando ele era chefe de gabinete do presidente da Assembleia Geral da ONU e eu dirigia a respetiva Comissão de Economia e Finanças. Chama-se Ban Ki Moon e foi depois o secretário-geral da ONU que antecedeu António Guterres.

Eu estava longe de ser um especialista naquela área geopolítica, pelo que a interessante conversa com Ban Ki Moon, além de muitas outras coisas, teve a virtualidade de me alertar para a importância de uma realidade que nem sempre é tida em devida conta no conflito coreano: as posições da República da Coreia e dos Estados Unidos não devem ser dadas necessariamente como homólogas. Há fortes divergências táticas e o facto de Seul contar com os EUA como “escudo protetor” face a Pyongyang não garante uma atitude comum nos passos a dar face ao Norte.

Vivia-se, por essa época, o tempo, para alguns esperançoso, dos chamados “Six-Party talks”, um processo de diálogo político envolvendo as duas Coreias, os EUA, a China, a Rússia e o Japão. O futuro viria a revelar que o processo não iria ter qualquer sucesso. 

Ao observar a pressão que a América exerce hoje sobre a China, não pude deixar de lembrar-me também daquilo que um dia, numa outra conferência, dessa vez em Tóquio, ouvi ao presidente de um poderoso “think tank” chinês. Dizia-me ele que o Ocidente era “demasiado simpático” ao considerar que Pequim tinha um forte poder de influência sobre a Coreia do Norte: “A nossa capacidade de influência acaba onde o orgulho dos nossos vizinhos pode ficar ferido. A partir daí é ingerência e isso tem um preço”. É claro que esta não é toda a verdade: a China detestaria ver a peninsula sob um regime hostil e na esfera americana.

Para tornar tudo mais complexo, há também que contar que o Japão não tem as posições americanas face à Coreia do Norte como sacrossantas. Tóquio sabe, da História, que é trágico ficar preso a uma estratégia alheia na relação com a sua periferia. É a única certeza é que os vizinhos estarão sempre nos caminhos do seu futuro.

A Coreia do Norte sabe tudo isto. E sabe bem o que quer: ser um poder nuclear, ter essa arma que equipara, pelo terror que infunde, quem a possui. Não quer ter o destino do Irão, que, por ora, ficou na soleira do poder nuclear. Quer passar a ter acesso a esse “patamar” estratégico (onde estão Israel, a Índia ou o Paquistão), por forma obter um argumento negocial definitivo.

quinta-feira, setembro 07, 2017

O dedalzinho


Bateram à porta do meu quarto, no "Beach Hotel", de Tripoli, naquele ano de 1976. Pensei que fosse um dos meus companheiros de viagem. "Sim?!", perguntei. "Podia abrir, por favor?". A voz não era conhecida.

Eu era o representante do MNE num grupo técnico interministerial que o governo português decidira enviar à Líbia, para explorar a possibilidade das nossas empresas de construção civil e obras públicas virem a operar naquele país. A ideia tinha sido suscitada por uma delegação líbia a um congresso do PS português, nesse tempo em que Kadhafi tinha ainda uma imagem aceitável na comunidade internacional, poucos anos decorridos depois do derrube do regime do rei Idriss.

Mas de quem seria a voz? Um português na Líbia? Não era Cartaxo e Trindade, um jornalista que era então o "homem de mão" dos líbios em Lisboa, responsável pela edição portuguesa do Livro Verde de Kadhafi, que já tínhamos cruzado na véspera naquele hotel que, num passado recente, era exclusivamente ocupado pelos americanos, a quem a Líbia tinha dado ordem de partida da base militar próxima.

Abri a porta e vi um homem na casa dos trinta e tal anos, que se me apresentou. Disse-me estar a trabalhar desde há quatro meses na Líbia, numa empresa canadiana, já não recordo o setor. O quarto era pequeno, não o mandei entrar, ficando nós a conversar, em voz baixa, no corredor. Disse-me ter encontrado no hall um dos meus colegas de missão. 

Eu continuava sem perceber a razão pela qual o homem cuidara em saber o número do meu quarto, onde me fora procurar, já bem depois do jantar. A conversa andava "às voltas", quando eu arranjei coragem para dizer algo como isto: "Mas precisa de alguma coisa da minha parte?". Vi que o homem hesitava, olhava em volta, e que baixava ainda mais a voz: "Um dos seus colegas disse-me uma coisa: que o meu amigo trouxe algum alcool".

Fiquei furibundo! Era estritamente proibido levar alcool para a Líbia mas eu, num gesto um tanto inconsciente, tinha decidido levar comigo um pequeno frasco metálico com algum whisky. Era uma quantidade muito pequena e, com alguma reserva, já "cedera" uns "golos" a colegas da delegação. Mas era completamente incrível que um deles tivesse dito isso a um estranho! Percebi logo quem tinha revelado o facto e, inclusivamente, dito ao homem o número do meu quarto. Mas a minha fúria começou a desvanecer-se quando o homem me disse: "Quando mencionei ao seu colega que o alcool era o que mais me faltava aqui, ele disse-me que o meu amigo talvez me pudesse "desenrascar", para "matar saudades". Se me pudesse dar um dedalzinho de alcool, ficava-lhe muito agradecido..."

Mandei entrar o homem para o quarto, dei-lhe duas medidas de whisky, fiquei com a sensação de que uma lágrima lhe correu pelo rosto, mas deve ter sido impressão minha...

quarta-feira, setembro 06, 2017

Terceira


Quanta História convoca a ilha Terceira! Por aqui se escreveram páginas gloriosas na luta liberal contra o obscurantismo do "antigo regime". Aqui foram detidos, durante a ditadura, muitos republicanos e anti-salazaristas, alguns envolvidos em bravas tentativas revolucionárias pela liberdade. Aqui estavam, no 25 de abril, por decisão disciplinar, Melo Antunes e Vasco Lourenço, que vieram a ser pilares da Revolução. E por esta ilha ficam também as Lajes, eixo da relação estratégica luso-americana, uma base que também foi palco do triste momento foi a "cimeira" que, em 2003, antecedeu a criminosa invasão do Iraque.

terça-feira, setembro 05, 2017

A Mornaça


Há dias, aqui nos Açores, perguntei uma simpática guia se ela tinha ouvido falar da "Mornaça".

O tempo estava pesado, quente e húmido, qual "Noite de Iguana", embora sem as amenidades do filme. O conceito de "mornaça" é tipicamente açoriano e refere-se a esse ambiente "misty". Com naturalidade, ela julgou que era a isso que eu me estava a referir. Conhecia, claro, a expressão açoreana, mas nunca tinha ouvido falar de um livro de Ferro Alves com esse nome. E era essa a minha questão.

Ferro Alves foi um revolucionário republicano que, enquanto desterrado nos Açores, interveio, em 1931, naquela que pretendia ser uma revolta nacional contra a ditadura, mas que, em termos práticos. acabou por ficar confinada à famosa e frustrada Revolta da Madeira. O livro é de 1935, tem a bela capa da imagem e é hoje uma raridade bibliográfica (tenho um exemplar algures). No fundo, é uma espécie de relato de uma revolução fracassada, tendo como curiosidade principal os telegramas eufóricos, relatando êxitos que não tiveram lugar, com que Ferro Alves debalde procurou "animar as tropas" dos infelizes revoltosos.

segunda-feira, setembro 04, 2017

Marcello Mathias


Leiam, sem preconceitos, esta excelente entrevista do meu colega embaixador Marcello Duarte Mathias, dada a essa ótima jornalista que é Isabel Lucas.

(Aqui, no meio do Atlântico, só hoje dei pela publicação deste texto, no "Público")

Escrevi "sem preconceitos" porque sei que alguns poderão discordar de algumas das posições deste magnífico escritor e brilhante intelectual. Mas o leitor só ganha em ultrapassar essa limitação.

Marcello Mathias é, na minha opinião, uma das pessoas que atualmente melhor escreve em língua portuguesa. Pensa o país ao seu modo muito pessoal, assume-se como um impenitente pessimista, talvez porque lhe fugiu do futuro sonhado um certo Portugal em que investiu emocionalmente a sua vida, desacreditando hoje também desta Europa que por aí anda. Ambos comungamos de uma certa visão de serviço ao país, bem como da preservação do interesse nacional. É talvez por isso que nos damos bem.

Bela entrevista, caro Marcello!

Açoreana


Ontem, numa vilória dos Açores, senti qualquer coisa de íntimo ao olhar esta placa de companhia de seguros. É que a "Açoreana" diz alguma coisa à minha juventude.

Em Viana do Castelo, no início dos anos 60 do século passado, tinha um tio que era correspondente da "Açoreana". No seu escritório de solicitador encartado, entre outras atividades, fazia-se, nos primeiros dias do mês, a coleta dos pagamentos desses seguros. 

Havia para tal um funcionário que, atrás de um balcão, recolhia o dinheiro e emitia os recibos. Era o "Pêssego", nome posto pelo meu tio e por que ficou conhecido na intimidade jocosa da família, dado que era oriundo da localidade de Pessegueiro, na margem esquerda da Ribeira Lima.

O "Pêssego" era, ao que me lembro, um "senhorito" aperaltado, com uma "gravitas" um tanto irritante, para os seus 18 ou 19 anos. Nunca engraçámos muito um com o outro, mas imagino que algumas culpas possam ter cabido à minha atitude pouco respeitadora do seu esforço para se mostrar precocemente "grave". É que o "Pêssego" falava de forma pausada, afetada mesmo. Mas era muito bem tratado: ao final da sua função diária, ao bater das cinco e meia, subia para a casa da nossa família e tomava um valente lanche preparado pela nossa tia Zé. Sobre se o "Pêssego" mantinha ou não uma paixão secreta pela minha bela prima, filha do seu patrão, a doutrina da memória familiar continua a dividir-se.

Um dia, soube-se que o "Pêssego" adoeceu. Foi coisa sem gravidade e por pouco tempo. Eu estava ali por Viana no meu mês de férias, tinha 13 ou 14 anos, e ao ver o impasse criado pela súbita ausência do empregado, disse da minha disponibilidade para o substituir durante as tardes, nessa "magna" tarefa. Recordo-me da leve hesitação do meu tio em atribuir-me o encargo. Mas, para minha surpresa, talvez para testar o meu sentido juvenil de responsabilidade, lá me foi passada a tarefa de recolher o dinheiro da "Açoreana" e entregar os recibos recebidos da companhia. Ainda hoje lembro o "peso" com que aceitei a tarefa - porque implicava dinheiro vivo e isso era coisa séria - e o zelo com que, por esses escassos dias, me dediquei à função, no escritório do meu tio. Nunca soube se o "Pêssego" apreciou a valorosa substituição.

Há pouco, ao olhar a placa na imagem, senti que a "Açoreana" ainda hoje pode dizer de mim a clássica expressão da senhora Thatcher quando designava um amigo político mais fiel: "He is one of us"! 

domingo, setembro 03, 2017

O amor à açoreana


Margarida Vitória Borges de Sousa Jácome Correia (1919-1996) é um nome de uma curiosíssima figura açoreana que publicou um livro de memórias ("confissões") com o título bizarro de "Amores da cadela 'pura' ", assinado sob o nome de Margarida Victória.

Mulher muito bonita e dotada de um temperamento altamente fogoso ("to say the least"), teve uma vida hiper-aventurosa e de luxo, que a levou por diversos lugares mundo e por braços de variados amantes. O escritor Vitorino Nemésio, no final da sua vida, haveria de se render por completo aos encantos da senhora, com a qual se envolveu romanticamente. Foi ela quem inspirou o período erótico da sua escrita na obra "Cadernos da caligraphia", na qual a dama amada surge sob vários e sugestivos nomes.

Ontem, em Ponta Delgada, debalde procurei o livro de Margarida Victória, que tencionava oferecer. "Está esgotado", ouvi em toda a parte. É pena! Os Açores atuais mereciam conhecer esta história de vida.

sábado, setembro 02, 2017

Pistoleiro


Há uma figura pitoresca, de poupa armada e ar grave, que tem uma fixação recorrente pela minha pessoa. Talvez porque um dia considerei risíveis as suas pretensões políticas, feitas de uma patusca agenda justicialista - criador de suspeições nunca provadas, assentes em ridículas teorias conspirativas -, o fulano criou-me um ódio persistente que, de quando em vez, renasce nas várias plataformas em que esforçadamente se desdobra, para gáudio dos seus prosélitos, recrutados entre os furibundos comentadores de caixas de comentários. 

Ontem, depois do anúncio da minha indigitação para um cargo "pro bono" na RTP, comentei, já divertido, com um amigo: "Quantas horas demorará o tipo a reagir?" Foram 12 horas! Coitado, está a perder a mão! Como pistoleiro, devia ser mais rápido... 

sexta-feira, setembro 01, 2017

RTP


Foi com grande gosto que aceitei o convite do governo para integrar o Conselho Geral Independente que tem por missão supervisionar o serviço público de televisão e de radiodifusão.

Se a minha indigitação for aprovada pela Assembleia da República, exercerei essa função sem o menor encargo financeiro para o Estado.

Abade de Priscos com tripas?


Ontem, no aeroporto de Lisboa, numa loja com livros (livraria é outra coisa), ouvia-se, bem alto, Toni de Matos. Não sei o que pensavam os estrangeiros daquele estranho « musak » com palavras, por certo o levam à conta de toada melancólica mediterrânica, pelo típico gemido vocálico. Logo a seguir, no altifalante da loja, num « medley » improvável, surgiu Keith Jarret. Como entretanto saí, não esperei para ver se se seguia Quim Barreiros – mas já ninguém se surpreenderia. É que, em matéria de oferta turística, hoje já vale tudo ! 

Somos, de há muito, um país turístico. O Algarve (com a Madeira noutro registo) foi a primeira montra do sol & mar para « camones » e míticas suecas. Por anos, fado, Lisboa e uma vida simplória (« so typical ! »), eram o seu complemento. Com a procura global de cenários alternativos, olhou-se o Douro para além do vinho do Porto. Os saldos da Ryanair revelaram a graça única da capital do Norte. Entretanto, a Costa Vicentina passou também a ser « bem », com os Açores a assumirem-se como a última “descoberta da pólvora”. E há, claro, as novas rotas judaicas, transformadas em maná comercial pela diáspora israelita, com que nos absolvemos das judiarias que lhes fizemos.

O tempo transformou o Algarve num espaço para ressacas de pifos nórdicos e retiro de idosos à cata de sol e impostos baixos. A Europa passou a dar mais atenção a outras zonas de um país de gente acolhedora, com uma invejável rede viária, alimentação excelente e às vezes barata (mas já aprendemos, como o restaurador gatuno da Baixa lisboeta provou!), ruas onde a insegurança não passa em regra do vigaristote de mão-baixa. Não fora a cupidez do patobravismo autarquicamente protegido e a costa portuguesa poderia ser hoje um paraíso quase sem paralelo na Europa.

O turismo é uma imensa riqueza que temos e faz jus à hospitalidade que está no nosso DNA. É muito importante economicamente, abre-nos ao mundo e apenas há que saber regulá-lo com bom senso e bom-gosto, para que, pelo excesso da sua pressão no ambiente urbano, não venha a gerar uma “turismofobia”, como noutros lugares já ocorreu.

E volto ao Toni de Matos (cuja voz muito aprecio, aliás). Sabemos que a oferta ao turista daquilo que é português não pode dispensar o “kitsch"– da guitarra plástica ao azulejo “a fingir”, talvez já “made in China”. Mas, mesmo no “business-friendly” que hoje liberalmente impera, há que tentar evitar o gato-por-lebre que por aí anda. Deixar sem denúncia oficial que nada há de típico no pastel-de-bacalhau com queijo da serra é a porta aberta a que, um destes dias, possa surgir um fabiano pelo Norte a vender que bom, bom é o pudim abade de Priscos lardeado com tripas à moda do Porto...

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 31, 2017

Turismo

Ouvir Toni de Matos na FNAC do aeroporto de Lisboa é uma nova e curiosa sensação, neste Portugal 2017. Confesso que se fosse Quim Barreiros ou Toni Carreira, a seguir a Keith Jarrett ou Madonna, era a exatamente a mesma coisa. Já nada nos espanta e tudo espanta o estrangeiro visitante, que nos olha como o seu novo objeto etno-antropológico. O bandido do restaurante gatuno da Baixa vem já incluído no pacote de viagem de quem se prepara psicologicamente, antes de cá chegar, para ser assaltado no 28 dos Prazeres ou que é alvo preferido da "pancada" no bolso dada pelo taxista vígaro do aeroporto. Depois, com um azulejo e uma guitarra de plástico, vendem-lhe como típico o pastel de bacalhau com queijo da serra. E se alguém, no Porto, tiver a ideia de lançar um pudim abade de Priscos lardeado com tripas, aposto que também "marcha". É que, por estes dias, já vale tudo, nesta máquina registadora chamada Portugal. Dias felizes, não é, Mário Centeno?

quarta-feira, agosto 30, 2017

Mais valia...


Há quantos anos não vou à Festa do Avante! No seu início, esta "feira popular" dos comunistas portugueses, que copiava o modelo italiano do L'Unità e francês do L'Humanité, convocou a curiosidade de muita gente, muito para além dos comunistas. Havia livros e discos com desconto, arte a preços convidativos e uma oferta de gastronomia regional que, somada aos espetáculos, atraía (e julgo que ainda atrai) pessoas de várias orientações políticas.

Nos primeiros anos a seguir ao 25 de abril a novidade levou-me por lá, a uma meia dúzia de edições. Numa delas fui com o meu amigo Alfredo Magalhães Coelho, um homem cordial, divertido e com imenso sentido de humor. A certo ponto do percurso pelas tasquinhas, pedimos dois copos de vinho, talvez para "olear" duas sandwiches de panado. O "camarada" que nos serviu foi parco na quantidade do líquido, deixando uma boa parte por encher. O Alfredo indignou-se logo:

- Ó camarada. Então aqui também há exploração do homem pelo homem? Então não se enchem os copos? Sabe como se chama a diferença entre o vinho que colocou e o copo cheio?

O homem, coitado, não sabia e ficou atrapalhado. O Alfredo, forte do seu conhecimento de economia marxista, esclareceu:

- É a mais-valia, camarada. Já o grande Marx ensinava. Ora ateste aí a mais-valiazinha que está a faltar!

E lá bebemos nós o copo bem cheio, de um vinho que, afinal, era uma zurrapa. Afinal, mais valia o Alfredo não ter protestado.

Enganos felizes


O erro foi fatal: saí de Ginzo de Limia (os galegos dizem Xinzo) pela estrada errada. Pretendia, na tarde de sábado, ir para Montalegre... e perdi-me! 

Antes, tinha almoçado (muito bem!) no "Costa do Sol", em Vila Pouca de Aguiar, e, à saída, deu-me um "vaipe" de passar por Orense. A cidade, contudo, nessa tarde, estava mais "cerrada" do que o Alcázar de Toledo (não pude, assim, visitar a Tanco, a sua melhor livraria). 

Optei por ir lanchar, ao final da "siesta" espanhola, numa esplanada dessa pérola galega que é Allariz. Em seguida, fui recordar como era a estrada velha para Ginzo, que tantas vezes fiz. E foi então que meti pela direção errada. Fui dar a Bande e aí o "Portugal" que se me oferecia nas placas era já o Lindoso (!) ou a Portela do Homem... Ó diabo! Eu estava já quase no Minho!

Não empaniquei porque tinha gasolina e tempo. Optei por ir pela Portela (ainda encontrei um desvio para Pitões das Júnias, mas o meu espírito David Crockett baixa rapidamente com o sol a pôr-se).

Subi a densa encosta para a Portela do Homem, depois do vale espanhol que se vê na imagem, descendo para o Gerez ainda com luz, com uma paisagem deslumbrante. Fui ainda bem a tempo de jantar na bela varanda do "Hotel Águas do Gerês" - um serviço simples, mas "de primeira", e uma carne tão soberba como a do bife à Marrare que o "Café de S. Bento", aqui em Lisboa, me "deu" na noite de 2ª feira.

Acabado o repasto no Gerês, subi às Cerdeirinhas mas não ousei a estrada de Chaves, nem o percurso pelo Basto, que o GPS recomendava: fui de Braga pelo "défice" (perdão, pelas auto-estradas) até Vila Real, onde cheguei antes da meia-noite. 

Se, à uma e meia da tarde daquele dia, à hora da minha saída de Vila Real, alguém me tivesse sugerido o percurso que acabara de fazer, nem sei o que lhe chamaria... E, no entanto, não saberia o que iria perder.

terça-feira, agosto 29, 2017

De Angola à contracosta política


O antigo primeiro-ministro angolano, Marcolino Moco, não gostou de declarações que proferi sobre Angola e disse-o numa entrevista a "O Sol", em que cita o que eu referi à Lusa, à TSF e ao Jornal de Notícias.

Eu havia notado, à Lusa e TSF, que não me parece correto procurar comparar Angola com modelos políticos europeus ou latino-americanos, dado que o país deve ser avaliado à luz do resto de África. Repetindo o argumento ao JN, fui de opinião que o regime angolano não deve ser posto em paralelo crítico com sólidas democracias existentes noutras geografias, como a Noruega ou a Suíça, mas que, posto lado-a-lado com outros regimes africanos, como a Guiné-Equatorial ou a República Centro-Africana, é uma evidência que a Angola atual compara positivamente.

Marcelino Moco entende que o que eu escrevi me coloca "a falar sempre a favor do regime angolano" e que isso são "bitolas para baixo", tratando os angolanos como "seres inferiores" que "têm de se contentar com qualquer coisa".

Estamos aqui perante perspetivas diferentes. 

Desde logo, eu discordo de Marcolino Moco quando ele fala de "seres inferiores" a propósito de comparar Angola com outros Estados africanos. Há aqui, parece-me, alguma sobranceria assumida face a vizinhos, que não são "qualquer coisa", atitude que não fica bem a alguém que já teve fortes responsabilidades em Angola.

Além disso, eu entendo, errado ou certo, que o regime angolano, saído há 15 anos de uma sangrenta guerra civil, que se sucedeu a uma das mais traumáticas transições coloniais de toda a África, fez uma evolução importante, desde o regime de partido único de inspiração marxista-leninista para um modelo democrático, seguramente ainda muito imperfeito, mas que representa, em si mesmo, um indiscutível avanço. 

Sem ironias, esse foi um "salto" similar ao que o próprio Marcelino Moco efetuou, desde os tempos em que foi primeiro-ministro dessa República Popular de Angola. Recordo-me de como defendia então um regime assumidamente totalitário, tendo evoluído até às posições democráticas em que hoje se revê, que legitimamente assume e que o coloca em oposição aos seus antigos camaradas de ideologia. E os Estados, como Marcolino Moco deve reconhecer, são como as pessoas.

Angola é, goste-se ou não, um regime politicamente em transição, como há muitos pelo mundo - um regime que partiu do totalitarismo para uma abertura democrática. A única questão é saber se essa abertura se fez ou está a fazer de modo correto e a um ritmo razoável, ou se há uma excessiva lentidão e deficiências graves nesse processo. 

Podemos discutir isso, mas, repito, é insensato tentar aplicar a Angola uma matriz de exigência como a que se aplicaria a sólidas democracias, com muitas décadas de cultura democrática. Mais: nem só é insensato pedir isso, como é uma óbvia realidade que Angola está, infelizmente, ainda longe desses países com essa solidez democrática.

Esta minha constatação não absolve ninguém em Angola, ao contrário do que Marcelino Moco e alguns "futungólugos" lusitanos parecem julgar. É que, gostem eles ou não, ainda há em Portugal vozes independentes a olhar para a situação política angolana, que não são nem seguidistas do regime nem estão conquistados pela bondade das oposições.

segunda-feira, agosto 28, 2017

Dez anos depois

Passam hoje dez anos sobre a data do falecimento do meu pai. Quis estar em Vila Real neste dia. Sinto uma imensa serenidade ao lembrar a morte, aos 97 anos, de um homem que teve um casamento muito feliz, de mais de meio século, uma carreira profissional plenamente realizada, uma vida quase sem maleitas, em que fez grandes amigos sem criar um único inimigo, em que viajou por quase todos os lugares que quis conhecer, sem grande fortuna mas também sem problemas financeiros. Quantos me leem, pela presença frequente do meu pai em histórias que por aqui conto, já devem ter percebido a importância que ele teve na minha vida, uma vida em que tantas vezes discutimos sem nos zangarmos, em que confrontámos temperamentos que eram muito diferentes. Às vezes, ao citá-lo tanto, temo estar a cometer uma grande injustiça para com a memória da minha mãe, que desapareceu uns anos antes dele, a quem devo muito do que sou como pessoa, nos valores e até na atitude perante a vida, que muito mais se aproximava da minha. Este não é, contudo, um post nostálgico: não tenho ilusões, tenho plena consciência de que os meus pais não poderiam estar hoje comigo, em condições de eu os poder fruir. Pode parecer estranho, mas é uma grande alegria o sentimento que hoje sinto por ter tido o privilégio, como seu filho único que fui, de os ter tido como pais e de poder recordá-los assim, de uma forma serena e feliz. Para sempre.

domingo, agosto 27, 2017

Vila Real - um outro Verão quente


Corria o Verão Quente de 1975. Ao final de um desses dias, uma manifestação católica, creio que em favor da liberdade religiosa, organizada por grupos de cidadãos, mas com apoio aberto de partidos como o CDS e o PPD, iria ter lugar nas ruas de Vila Real. Noutras cidades nortenhas, este tipo de iniciativas, que se sabia estarem infiltradas pelo ELP e pelo MDLP, tinham acabado por dar origem à destruição das sedes do PCP e do MDP-CDE, nalguns casos provocando feridos e até mortos. A cidade estava, assim, sob alguma tensão.

Passei pela livraria "Setentrião" e Otílio de Figueiredo, médico prestigiado e figura grada da antiga oposição democrática à ditadura, agora próximo do MDP-CDE, revelou-me a sua preocupação: "O meu amigo, que é militar, é que poderia tentar alguma coisa junto do Regimento de Infantaria 13". Eu estava de férias em Vila Real, prestes a ser desmobilizado e a entrar para o MNE, em cujo concurso de admissão tinha sido aprovado. Na "tropa", trabalhava então ainda no SDCI, uma estrutura "esquerdista" que tratava da "intelligence" do Conselho da Revolução. A minha legitimidade institucional para intervir era nula, mas a irresponsabilidade foi superior à prudência.

Comecei por visitar os três partidos da esquerda. No PS, encontrei uma grande serenidade. Estando na linha da frente do combate anti-comunista, os socialistas, embora não formalmente envolvidos na manifestação, nada temiam do seu desenrolar. O MDP-CDE, que ocupava a casa que fora da União Nacional, perto da avenida central da cidade, era uma estrutura muito vulnerável. Detetei essa fragilidade na conversa com seus responsáveis. Fria serenidade dominava o ambiente no "centro de trabalho" do PCP, na estreita rua da Misericórdia. As pessoas com quem por lá falei, caras novas para mim, revelavam determinação e vontade de resistir a qualquer assalto. À saída, numa confissão cúmplice ou de bravata, um deles disse-me: "Temos por aí umas caçadeiras de canos cortados, para o que der e vier!"

À tarde, desloquei-me ao quartel. Falei com o tenente-coronel Barros Adão, creio que então segundo-comandante, mas que chefiava a unidade. Conhecia-o da cidade, tinha uma boa relação com os meus pais, mas foi um pouco relutante em conceder-me o encontro. De facto, eu não me "enxergava": ali estava eu, apenas alferes, a querer ser interlocutor de um oficial superior e a tentar "forçar-lhe a mão". Mas eu devia pensar que, para grandes males, grandes remédios. 

Adão não participara no 25 de abril, mas tinha sido "cooptado", pertencendo agora à ala militar conservadora. Era um homem de bem, com uma missão complicada. Fiz-lhe ver, dizendo ter sobre isso informações "seguras" de Lisboa (o que era falso!), que a probabilidade de virmos a ter atos de violência nessa noite era muito elevada, pelo que se justificava, na minha opinião, que fossem colocadas algumas forças militares nas ruas, pelo menos para proteger as sedes do PCP e do MDP-CDS. Não foi nada aberto à minha ideia, dizendo que era à PSP que competia essa segurança e que, não tendo recebido instruções superiores, nada faria no sentido daquilo que eu propunha. Sugeri-lhe então, em alternativa, que, à hora da manifestação, reforçasse os piquetes da Polícia Militar que, regularmente, se passeavam pela cidade, o que sempre funcionaria como um subliminar fator de dissuasão. Sem entusiasmo, disse que ia pensar nisso. A certo ponto, para seu visível desagrado, conclui dizendo-lhe que, depois daquela minha diligência, se acaso viessem a ocorrer incidentes graves, que uma presença militar nas ruas seguramente evitaria, ele seria, de certo modo, co-responsabilizado pelo que eventualmente viesse a acontecer.  E, num ambiente gélido, despedi-me dele e de um capitão que, silencioso, o acompanhava. Chegado a casa  dos meus pais, telefonei a um quadro superior do MFA, em Lisboa, recomendando um telefonema imediato ao tenente-coronel Adão. Nunca soube se foi feito.

Para o que importa, a manifestação realizou-se sem incidentes (lembro-me da figura de Jorge Sá Borges, e talvez Vasco Graça Moura, nas primeiras linhas), a Polícia Militar foi visível pela cidade, as sedes dos partidos não foram atacadas e as tais caçadeiras do PCP, a existirem de facto, permaneceram guardadas. Quando os manifestantes entraram na avenida Carvalho Araújo, eu estava encostado à parede do antigo Hotel Tocaio e ouvi de alguns acusações de "seu comuna!" e outras "meiguices" assim. Eu não era "comuna", mas hoje percebo melhor o sentimento de quem me dirigia o epíteto. Tudo acabou em bem.

Maduro e a democracia

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