domingo, agosto 06, 2017

No programa do Jô


Há cerca de uma década, quando era embaixador no Brasil, fui convidado para ir ao programa do Jô Soares. Devo dizer que não foi das "prestações" de que mais me orgulhe. Pensava-a perdida, mas descobri-a agora na net. Ela aqui fica, para quem estiver interessado.

Chávez e Lula


Hugo Chávez morreu. Lula da Silva necessitaria de um milagre para ressuscitar politicamente. Deixo aqui um episódio dos dois.

Um dia, um importante ministro brasileiro, que acompanhou Lula numa das suas frequentes visitas a Caracas, contou-me uma história significativa que era bem reveladora do pensamento íntimo de Chávez. 

Numa conversa em Caracas, Lula fazia notar a Chávez que os ganhos do Brasil, no seu comércio com a Venezuela, eram exponenciais. O Brasil nunca lucrara tanto nos seus negócios no país, nunca a balança comercial lhe fora tão favorável. E, no entanto, "com amizade", afirmou que o Brasil não se sentia bem nessa relação tão desequilibrada, em grande parte devida à ausência de um setor produtivo venezuelano que se pudesse desenvolver e criar produtos essenciais à satisfação de áreas essenciais, nomeadamente no domínio alimentar. O Brasil estaria disposto a ajudá-lo nisso, na criação de empresas industriais que pudessem substituir importações e reforçar a produção industrial venezuelana. 

Chávez olhou para Lula, percebeu a genuinidade do gesto e adiantou: "Tens razão! Já tinha pensado nisso e tenho um grupo a estudar a criação de um conjunto de empresas estatais dedicadas a vários setores de produção de produtos essenciais". O presidente brasileiro deu um salto na cadeira: "Eu queria dizer empresas privadas, não empresas estatais!" Foi a vez de Chávez se alarmar: "No, privadas, jamás!" Para logo acrescentar: "Os privados ligam-se logo à reação contra mim!".

Era assim Chávez. Era assim Lula.

Bica profissional


O café feito em nossas casas era, por muitos anos, bem distinto daquele que as máquinas de "expresso" dos cafés nos proporcionavam. De cafeteira, saco ou balão, o seu gosto estava longe do amargo diferente daquilo que no Porto se convencionou chamar um "cimbalino". 

Por essa época, quando decidia tomar a bebida num estabelecimento comercial, uma amiga referia sempre que ia por uma "bica profissional". A expressão ficou consagrada entre nós.

As máquinas caseiras de "expresso" mudaram entretanto tudo isso. Hoje todos temos em casa desses aparelhos - da Nespresso, da Delta ou das grandes cadeias. Cada vez mais, tem-se à mão uma maneira de "produzir" um café bastante idêntico dos estabelecimentos comerciais.

Mas a frase "pegou". Ainda hoje, pela manhã, ao decidir-se sair para um café, lá veio a expressão: "Vamos a uma bica profissional?"

sábado, agosto 05, 2017

Fernando Reino


O meu primeiro embaixador, quando no final dos anos 70 fui colocado em posto na Noruega, foi Fernando Reino. No Ministério dos Negócios Estrangeiros desse tempo, o transmontano Fernando Reino fazia parte de um escasso grupo de diplomatas europeístas (coisa que, à época, eu estava muito longe de ser). Culto, inteligente e cheio de iniciativa, era claramente um "highflyer", como o futuro haveria de confirmar, em postos com a importância de Madrid ou da ONU. Democrata assumido, foi um dos rostos mais proeminentes da geração diplomática que viria a fazer a transição dos regimes separados pelo dia 25 de abril de 1974.

Eu só conhecia Fernando Reino pela sua fama profissional. Por pouco nos não cruzámos na Comissão Nacional de Descolonização, de onde ele saíra antes de eu ser por lá ter sido colocado. Mas sabia que era um "workoolic" impenitente, que tinha transformado um posto periférico como era a capital norueguesa numa "agitada" unidade diplomática, bastante visível em Lisboa. 

Verdade seja que, por esse tempo, entre Portugal e a Noruega havia fortes programas bilaterais de cooperação. Fruto da simpatia dos trabalhistas noruegueses pela Revolução portuguesa, os governos daquele país tinham, entre muitas outras iniciativas para favorecer o nosso país, dado forte ajuda à instalação habitacional dos "retornados", haviam oferecido um navio hidrográfico a Portugal e vieram a ser responsáveis pela criação no novo hospital da minha terra, Vila Real (mas nada tive a ver com isso, que fique muito claro). A embaixada em Oslo vivia então um "corropio" de agitação, numa certa "competição" com a embaixada norueguesa em Lisboa, a qual, com alguma naturalidade, procurava ser protagonista dos programas de cooperação. Essa tensão criativa passou a fazer parte do meu quotidiano.

A fragilidade de quem ia para primeiro posto, somada à impulsividade de Fernando Reino, conduziu-me, inicialmente, a uma dependência inusitada face ao meu futuro embaixador: à chegada a Oslo eu já tinha casa destinada e até um berrante Golf encarnado estava já à minha espera. Esta "tutela" era fruto de um simpático e generoso sentido protetor, de que custou a libertar-me...

Trabalhar com Fernando Reino não era fácil. Numa embaixada (chancelaria na imagem) tão pequena como aquela - éramos os dois únicos diplomatas, com cinco unidades administrativas -, o seu "génio" tornava frequentemente os dias um tanto tensos. Olhando em perspetiva, posso compreender que um profissional da sua qualidade se sentisse frustrado por estar a operar num posto que, decididamente, não estava ao nível das suas capacidades e legítimas ambições. Só que quem com ele colaborava era, não raramente, uma "colateral casualty" desse seu evidente mal-estar. E eu, claro, na primeira linha. Alguns conflitos tivémos, mas nenhum que tivesse afetado a amizade que entre nós se estabeleceu e a profunda admiração, pessoal e profissional, que por ele passei a ter.

Fernando Reino ficou menos de um ano na Noruega, depois da minha chegada a Oslo. Viria a ser convidado a ser chefe da casa civil do presidente Ramalho Eanes. Os nossos destinos nunca mais se voltaram a encontrar profissionalmente. Mais recentemente, por iniciativa de amigos comuns, temos-nos visto em simpáticas almoçaradas.

No dia de hoje, Fernando Reino completa 88 anos. Deixo aqui um forte abraço de parabéns, com votos de muita saúde, a um amigo que foi o meu primeiro embaixador.

Às Voltas com um nome


Começou a Volta a Portugal em bicicleta. Olho o espetáculo na televisão com uma curiosidade limitada. Não conheço os ciclistas, hoje interessa-me muito pouco a prova, salvo as subidas à Senhora da Graça e à Estrela (mas nem sei se fazem parte da prova deste ano). Acompanho com bastante mais interesse o "Tour de France" do que a nossa Volta, confesso.

Mas nem sempre foi assim, como por aqui creio já ter dito. Na minha juventude, sabia de cor os segundos que separavam os dez primeiros classificados da "geral", tinha os meus favoritos para os "sprinters" dos pontos, para os "heróis" da montanha, para a classificação por equipas.

Num ano da década de 60, uma fábrica de boinas de Viana do Castelo decidiu constituir uma equipa de ciclismo - a Cedemi. Nas minhas férias de agosto eu passava regularmente junto à fábrica (existe agora, no mesmo espaço, o Café "A Boina") e, naturalmente, não me era indiferente o destino desportivo da equipa da terra do meu pai, cidade a que me sentia afetivamente muito ligado.

Creio que no primeiro desses vários anos em que a Cedemi marcou presença na Volta, a sorte foi madrasta para a equipa. A certo passo, ficou reduzida a um único corredor - cujo nome, por mais que puxe pela cabeça e pelo Google não consigo identificar. A sua classificação era já na casa das largas dezenas, pelo que a chegada ao fim da prova era, com toda a certeza, o ponto de honra almejado.

Uma das etapas da Volta desse ano acabava em Vila Real, vinda dos lados do Porto. A terrível subida do Marão, a partir de Amarante, tinha feito a seleção natural das hostes. A chegada ao Alto de Espinho, antes do início da descida em direção a Parada de Cunhos, já se fizera de um modo que retalhara o pelotão. Atingir Vila Real implicava, além disso, uma última subida, a partir da ponte do rio Cabril, antes da meta, situada nas imediações das traseiras da Mocidade Portuguesa. Algumas dezenas de espetadores distribuiam-se pela então "Avenida Marginal" (hoje "1° de maio"), saudando o esforço dos atletas.

De súbito, vi surgir, isolado no infortúnio classificativo, quer na etapa quer na "geral", o tal corredor da Cedemi. Com o entusiasmo filo-vianense que era o meu, à sua passagem soltei um "Força, 'fulano' ". O homem, não obstante o cansaço, surpreendido por ver gritado o seu nome numa artéria da capital transmontana, onde provavelmente não esperava ser conhecido nem era expectável que a sua equipa tivesse fãs, quase que abrandou a marcha, olhando-me com um esgar sorridente e, presumivelmente, também grato.

Ao final da tarde, como sempre acontecia, os corredores, alojados nas pensões nas cercanias da Avenida Carvalho Araújo, vinham passear-se por ali, de chinelos de dedo, mobilizando a atenção dos curiosos. Nesse dia, com naturalidade, o meu pai procurou os seus conterrâneos vianenses, as pessoas que tinham a equipa a seu cargo. Eu acompanhei-o e, por minutos, assisti à breve conversa. 

Num certo momento, juntou-se ao grupo o tal único ciclista da Cedemi ainda em prova. Foi apresentado ao meu pai e, olhando para mim, com um imenso sorriso, deixou no ar, cúmplice: "Nós já nos conhecemos!" Eu devo ter corado, com aquele momento de intimidade com o desportista residual da Cedemi a encher-me de orgulho. 

Infelizmente, isso não foi suficiente para eu decorar o nome do homem.

sexta-feira, agosto 04, 2017

O resto é paisagem


Tornei-me lisboeta pela vida. Meio século na capital, preservando as raízes nortenhas e mantendo-me como viajante obsessivo pelo país, acabou por me tornar um nativo diferente: olho os lisboetas com uma mirada algo exterior, julgo que lhes topo bem as reações, os não-ditos – para ser mais claro, os preconceitos.

Assumindo o risco de todas as generalizações, diria que o lisboeta médio, por muito que disfarce, dá razão íntima ao dito macrocéfalo de que «Portugal é Lisboa, o resto é paisagem». A sua curiosidade pelo resto de Portugal, salvo se tiver família numas berças a que, às vezes, vai por exercício folclórico-antropológico, é muito escassa. Arrumado abril, o Alentejo passou a ser, para o cidadão de Lisboa, o seu sinónimo de «campo», muitas vezes apenas visitado a caminho do Algarve, para um «fossado» gastronómico ou uma curta vilegiatura num monte «confortabilizado». 

O Norte, para muito ulissipo-dependente, é um mistério que não chega sequer a mobilizar a sua curiosidade. Tenho amigos para quem chegar a Leiria significa atravessar uma fronteira psicológica que os coloca já às portas do Porto, mesmo na vizinhança da Galiza - dessa Espanha onde conhecem “de gingeira” Barcelona ou Córdoba, Toledo ou Valência. Mas não Viseu, a Guarda ou Bragança – como há dias me confessava um amigo com décadas de mundo e cosmopolitismo.

No cume dessa geografia do desconhecimento está o Porto. O cinzento da pedra, o intrincado das rua, a reserva das famílias, as cumplicidades quase (e às vezes) maçónicas do círculos de amigos tornam o Porto praticamente ilegível para o lisboeta. Como resposta, usa a sobranceria, o olhar arrogante sobre uma “província” que o sotaque ajuda a caricaturar, ajudado pelo agravar das rivalidades do futebol. Para o cidadão da capital, a menor reivindicação do Porto surge como um ato de despeito, revela uma impotência feita reação. O lisboeta olha com risota o ar façanhudo com que alguns portuenses clamam contra a falta de atenção à sua especificidade, à dimensão nacional dos seus interesses.

Lembrei-me disto há dias, a propósito da Agência Europeia do Medicamento. Sabe-se que António Costa, que tem do país uma visão menos “lisboeteira”, expressou a ideia, desde o primeiro momento, de que esse era um tema em que importava envolver o Porto. Não foi esse o parecer de alguma vontade central, que sempre tem Lisboa como sinónimo óbvio do país. E as coisas deram no que deram. Se e quando o Porto vier a perder a candidatura, um certo centralismo lisboeta, agora derrotado, sentir-se-á vingado. Lisboa não admite que possa haver um oásis na paisagem.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 03, 2017

Venezuela

Um dos argumentos de quantos, por esse mundo fora, defendem o sistema "bolivariano" de Chávez e do seu "genérico" Maduro é a muito duvidosa qualidade política da oposição mais visível, a começar por Caprilles e outras figuras muito pouco recomendáveis. De facto, é sobejamente sabido que, na barricada anti-governo, se escondem linhas políticas sinistras, saudosas das ditaduras latino-americanas de direita.

A questão, porém, está mal colocada: a alternativa a Maduro, por muito que a atual oposição seja o que é, é a democracia, são eleições livres, vigiadas internacionalmente, com ampla liberdade nos "media". Essa é a única agenda que a comunidade internacional tem legitimidade para recomendar. Depois, logo se verá quem o povo venezuelano quer à frente do país. E, no passado, já ficou provado que há mais Venezuela para além do autoritarismo nos dois lados. Resta saber se o bom-senso ainda pode ter por lá uma oportunidade.

O dinheiro dos outros

Nas últimas horas é o "escândalo" com o custo da transferência de Neymar para o PSG, com financiamento do Qatar. Nas revistas portuguesas, está-se agora na fase da "fortuna" de Américo Amorim e nas reportagens sobre as férias milionárias "dos famosos". Abre-se qualquer publicação e só se fala dos "ricos", do seu estilo de vida, dos milhões que movimentam.

O que é que levará as pessoas a estarem constantemente preocupadas com o dinheiro dos outros? A curiosidade será o outro nome da inveja?

Fácil, não é?


Era assim, naquele tempo. A embaixada portuguesa em Oslo publicava, antes do Dia de Portugal, um anúncio na principal imprensa norueguesa, convidando todos os emigrantes portugueses naquele país a escreverem um postal à embaixada e, dentre as respostas recebidas, far-se-ia um sorteio que dava direito a uma viagem paga a Portugal. Creio que era a TAP que patrocinava a iniciativa

Nesse início dos anos 80, os portugueses residentes na Noruega não chegavam às três centenas. Eu era responsável pela secção consular da nossa embaixada em Oslo, cidade onde funcionava a única associação de portugueses no país, o "Clube Português Amizade". Cabia-me a mim montar a "operação".

Nesse ano - 1980 ou 1981 -, feito o sorteio, verificou-se que o nosso compatriota vencedor residia em Vadsø, uma pequena e distante localidade bem acima do Círculo Polar Ártico, não longe da fronteira com a então União Soviética. Telefonei a informá-lo e a combinar a logística e, por curiosidade pessoal, perguntei-lhe como diabo fora parar àquele remotíssimo lugar, onde, até ao momento, não se sabia residirem portugueses.

"Não, não há cá mais nenhum português. Quer saber como vim? Olhe, eu estava a trabalhar numa fábrica no norte do Irão. Havia por lá um norueguês que me disse que aqui havia um trabalho bem pago, também numa fábrica. Ele fez o contacto e eu vim. Fácil, não é?"

É "fácil" esta fantástica aventura da nossa diáspora...

quarta-feira, agosto 02, 2017

O camarada tradutor


A Eslováquia era, nesse tempo, o "mau aluno" dos candidatos à adesão à União Europeia. O primeiro ministro de então, Vladimír Mečiar- umas das duas figuras-chave, com o checo Václav Klaus, na divisão da antiga Checoeslováquia -, conduzia um governo acusado de limitar as liberdades da oposição e dos meios de comunicação social. O próprio presidente da República eslovaca vivia sob forte pressão de Mečiar.

Eu havia desenhado com cuidado a minha visita a Bratislava, como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, nesse ano de 1998. O nosso objetivo era dar um sinal de apoio à integração da Eslováquia nas instituições europeias, não obstante o governo do país se revelar então o maior obstáculo à consagração desse mesmo estatuto. Os contactos oficiais seriam feitos nos moldes tradicionais mas eu insisti em ter encontros com as principais forças da oposição, fazendo igualmente uma conferência-debate num instituto que promovia a ideia europeia, uma entidade que sabia não ser do agrado do governo, que não se fez representar no evento.

Um dos encontros tidos com um dos partidos da oposição foi no hotel onde fiquei instalado. Recordo o aviso discreto que o chefe da delegação desse partido me fez, logo à chegada: eu devia ter consciência de que a nossa conversa iria ser escutada, porque isso era uma prática que estava nos "genes" do governo de Mečiar. Assim, "adaptei" tudo quanto disse, em inglês, a essa (previsível) realidade, aproveitando, dessa forma, para passar algumas "mensagens" às autoridades, com maior à-vontade do que aquele que eu usararia nas diversas visitas feitas a interlocutores oficiais.

No dia seguinte, seria eu a fazer uma visita ao partido que, na Eslováquia, era o homólogo do PS português. Recordo-me que a sede era num modesto primeiro andar, numa rua central de Bratislava. Impressionou-me o "décor" das dependências por que passámos: um ambiente que lembrava as sedes partidárias de alguns partidos e formações políticas portuguesas no pós-25 de abril, com posters nas paredes, lembretes com "post-it", enfim, uma alegre anarquia, que rimava menos bem com a serenidade ideológica daquela formação, que, aliás, anos depois, entraria para o governo.

O meu interlocutor era o líder do partido. Não falava inglês, pelo que seria necessário utilizar um intérprete eslovaco, também membro próprio partido. Este não falava português, pelo que anunciou que traduziria para espanhol, explicando-nos que estudara em Cuba. A conversa anunciava-se assim algo confusa. Porém, como essencialmente me interessava ouvir falar o meu interlocutor sobre a situação local, acheio que o modelo poderia funcionar. 

Nestas ocasiões, a tendência é esquecermos o tradutor e tê-lo apenas como um transmissor da mensagem. Foi o que tentei fazer. Sem sucesso. É que o tradutor era um "cromo" que se impunha na sala. Efeminado à quinta potência, tinha um capachinho castanho escuro que se movimentava, por má fixação, à medida que se expressava. E a sua "coreografia" era exuberante. Fazia gestos e agitava-se de uma forma que começou por suscitar o surgimento de leves sorrisos irónicos na nossa delegação. A certa altura, conceitos políticos graves vindos da boca do líder socialista eslovaco chegavam-nos num espanhol de Cantinflas, acompanhados por sublinhados fonéticos em forma de onomatopeias, quase cantadas. 

Como chefe da delegação, eu procurava guardar a compostura, mas as pessoas que me acompanhavam - em especial o então subdiretor-geral, João Pedro Zanatti, e o meu chefe de gabinete, Miguel Almeida e Sousa - já quase não se continham no riso, baixando a cabeça e fingindo tomar apontamentos da conversa. A pouco a pouco, eu ia-me também "tirando do sério". A certo ponto, já quase nos não contínhamos, evitando cruzar os nossos olhares, para não rebentar a cena. Recordo ter apressado o fim da conversa, despedindo-me do meu amável e sensato interlocutor, que conduzia então uma luta complexa e corajosa contra Mečiar. 

À saída, saudei o efusivo tradutor e - recordo bem! - descemos todos de roldão as íngremes escadas para a rua, abafando gargalhadas, que se libertaram finalmente, naquele fim de tarde de Bratislava. 

Tempos mais tarde, quando visitei a capital eslovaca, nomeadamente ao tempo em que vivi em Viena, passei várias vezes por aquela rua central, olhei a sede dos "camaradas" eslovacos e lembrei-me daquela hilariante cena.

terça-feira, agosto 01, 2017

"Ainda bem que o encontro..."

A cara com que a figura pública ouviu esta expressão "mortal" era, verdadeiramente, um cara de poucos amigos. Proferiu-a um "espontâneo" (nome que se dá aos que saltam inopinadamente para as praças de touros, mas adequa-se), puxando a personalidade por um braço. Era - via-se à légua - uma "cunha" ou a lembrança de um pedido sem resposta. O visado balbuciava fórmulas dilatórias e levantava, distraído, o olhar, tentando descortinar, dentre a multidão, uma qualquer cara conhecida a quem pudesse agarrar-se socialmente, fugindo à "melga" que lhe atazanava a manhã. A coisa durou uns bons minutos. Não sei que fórmula mágica usou mas, por fim, lá vi os dois separarem-se, com a personalidade, com manifesto ar de alívio, rumando a um horizonte de sossego.

Que chatos são os chatos!

segunda-feira, julho 31, 2017

Jeanne Moreau


Morreu Jeanne Moreau. Hoje posso, finalmente, revelar a Truffaut que eu era o terceiro homem, para além do Jules e do Jim. E mais não digo porque, tal como a noiva, também estou de preto.

Baez e o Chile


Há pouco, na madrugada televisiva, a repetição do espetáculo dos 75 anos de Joan Baez levou-me subitamente de volta a Oslo, há quase 40 anos, onde a ouvi uma noite cantar ao vivo. 

Nunca fui um fã incondicional da música de Baez, mas, naquele tempo, na cidade bastante provinciana que era a capital norueguesa, a visita de alguns nomes internacionais era um escape cosmopolita que procurava não perder, não obstante o meu parco salário, para os elevados preços locais. 

No caso da cantora americana, eu também juntava por ali muita da memória afetiva da agitação da juventude americana anti-Vietnam com a pertença a uma geração que por cá fizera abril e que então atravessava as interrogações de quem saía de uma experiência de tempos esquerdistas para uma democracia "burguesa". 

E, assim, ao ouvir a Baez cantar o "Gracias a la vida", de Violeta Parra, surgiu-me inevitavelmente o Chile no encadeado da memória.

Um dia, nessa Noruega, numa apresentação da argentina Mercedes Sosa, conhecemos um casal de refugiados chilenos que o país acolhera, depois da tragédia de 1973. Tempos mais tarde, num grupo em que eles estavam, fui ouvir Joan Baez e, depois, Donovan. Acabávamos essas noites, invariavelmente, a comer umas coisas vagamente sul-americanas numa cave esconsa, onde um cantor espanhol se passeava entre as mesas e, quando nos reconhecia, cantava uma música com o estribilho "Ay Portugal! Por qué te quiero tanto?"


Que será feito desses e de outros amigos chilenos? Terão ficado na fria Noruega, que os acolheu na tragédia? Terão regressado ao Chile democrático? Que aconteceu ao Fermin, irmão da mítica "Payita", secretária de Salvador Allende, um homem agitado e cordial, que habitava um modesto apartamento de Oslo e que, generosamente, nos convidava, em alguns domingos, para partilhar garrafas de "Casillero del Diablo" (a que juntávamos "Dão - Porta de Cavaleiros", o vinho português que o "Vinmonopolet" vendia), que lhe atenuava as saudades do Chile, entre resmas de propaganda do MIR? Trabalhava numa fábrica de discos e, graças a ele, tenho uma invejável colecção dos "Rolling Stones", em vinil de 33 rotações. E chorava, ao ouvir Violeta Parra, Victor Jara e até Zeca Afonso...

domingo, julho 30, 2017

Marcelo, hoje

Marcelo Rebelo de Sousa é hoje entrevistado pelo DN.

Fazer uma exegese do texto é uma tentação natural: é sempre curioso interpretar Marcelo à luz do que vai dizendo, porque isso faz obviamente parte do "auto-retrato" que ele quer fixar de si próprio.

Com a sua experiência de constitucionalista, Marcelo está a desenhar, muito em função da conjuntura que lhe aconteceu, o esquiço daquilo que pretende vir a protagonizar, como modelo para o exercício do cargo presidencial. Porque também é professor, tende a teorizar bastante essa sua interpretação, procurando que ela componha um todo coerente que seja facilmente percetível pelo país. Ou, pelo menos, por quem faz a opinião no país.

Nota-se nesta entrevista uma específica preocupação (um tanto excessiva?) em fazer perceber o seu comportamento à família política de onde é originário, por forma a não deixar que a sua imagem no seu seio fique conquistada pelo rótulo de "traidor" que, de forma mais ou menos explícita, exsuda de algumas "opiniões" do "Observador" ou da bílis nas redes sociais. Isso é muito evidente no modo como aborda questões como os incêndios ou o roubo do material militar.

Em alguns temas, o presidente é mais "redondo", prudente, como é bem evidente na política externa. Noutras áreas, refugia-se no futuro, no resultado de apuramentos ou avaliações que vierem a ser feitos. Faz bem, porque isso o reforça institucionalmente e o liberta da pulsão interior que deverá ter para agir como o "professor Marcelo" dominical nas televisões.

Com tudo isto, Marcelo está a transformar-se. De certo modo, começa a atar as mãos a si próprio. A personagem institucional que está a construir, e que notoriamente quer fixar na História, é cada vez menos compatível com a figura irrequieta, com laivos de volúvel, que marcou muita da sua imagem ao longo de décadas. A confirmar-se esta evolução, isso é uma excelente notícia: perdemos um comentador genial mas o país pode vir a ganhar um estadista.

sábado, julho 29, 2017

Oportunidade perdida

O "Expresso" perdeu hoje uma excelente oportunidade para dar testemunho de que o jornalismo de verdade continua a morar naquela casa: ter-lhe-ia ficado bem retratar-se e pedir desculpa, perante os seus leitores, pela manchete com que desvirtuou, na passada semana, a sua notícia sobre os mortos de Pedrógão. Ao não fazê-lo, ficou atestada a arrogância e o desrespeito perante quem o lê por parte de um jornal que, em tempos idos, aos sábados, nos trazia notícias em que acreditávamos - apenas porque vinham no "Expresso".

sexta-feira, julho 28, 2017

Brincar com o fogo


A polémica em torno dos ciganos de Loures e o debate a propósito dos incêndios fez emergir um país político estranho. Pode parecer menos evidente a associação dos dois temas, mas têm algo de comum. 

Todos sabemos existir um problema antigo com a integração da comunidade cigana em Portugal. O assunto sempre foi tratado com “pinças”, ao longo dos anos, pela consciência de que envolvia um número de pessoas bastante limitado, de que se tratava de uma cultura maioritariamente ligada a setores sociais desfavorecidos e de que os mecanismos do Estado, embora com uma eficácia aquém do desejável, pareciam ir lidando com o problema de forma paulatina. Era consensual que conferir uma excessiva relevância ao tema, em especial trazendo-o para a arena política, poderia desencadear fáceis pulsões populistas, com impactos que extravasariam a sua própria circunstância. Tal como aconteceu. 

O modo como um candidato autárquico, sedento de protagonismo e sem visíveis escrúpulos, explorou o caso, na certeza de poder recolher prosélitos votantes por seu intermédio, não espantou, porquanto a irresponsabilidade é apanágio dos oportunistas e dos demagogos. O que surpreendeu neste processo foi o facto do partido que recrutou o candidato não o ter “enquadrado” de imediato após o incidente, retirando-lhe a indigitação ou obrigando-o a uma retratação completa.

O PSD não é um partido qualquer na sociedade portuguesa. É um dos eixos centrais do regime e, com o PS, integra um compromisso implícito de gerar condições de governabilidade para o país, muito para além dos ciclos em que ocupa o poder central. Porquê? Porque é também um grande partido autárquico, que ocupa em permanência uma fatia de poder local da maior importância. O PSD tem fortes responsabilidades políticas e uma história de luta pelo sistema democrático, no âmbito do pacto em que se baseia o modelo constitucional, para defesa da ética cívica em que assenta o próprio regime. Quando, há uns anos, vimos um seu líder sacrificar um candidato autárquico, antecipadamente vitorioso, por suspeitas de envolvimento em desqualificantes delitos, o país decente não deixou de ter um sentimento de admiração pelo caráter nobre do gesto então praticado.

A luta contra a discriminação e a exclusão social é uma das matrizes do nosso regime. A criação de um “firewall” ao discurso social estigmatizante e às pulsões populistas, racistas ou xenófobas, integra um compromisso implícito que tem federado as forças com representação parlamentar. Foram mais de quatro décadas de entendimento, com vista a gerar um clima de decência cívica. Por isso, devo dizer que, como cidadão, me choca assistir a esta deriva estranha que, nos dias de hoje, atravessa o PSD, que sei também preocupar muitos dos seus simpatizantes, que se não sentem confortáveis com este tipo de opções.

E, de Loures, chegámos aos fogos. Começo pelo mais simples. Estou longe de considerar exemplar a atuação do governo neste contexto. Há coisas que falharam e continuam a falhar e muito mais tem de ser feito. O Estado tem de projetar confiança, os cidadãos têm de ter a certeza de que estão em boas mãos. 

Mas um tema desta gravidade justifica alguma “gravitas” no seu tratamento. Na sequência do incêndio de Pedrógão, o líder do PSD começou por ter uma atitude de Estado, dando prioridade ao combate à catástrofe e propondo, com racionalidade, uma comissão independente para avaliar serenamente o assunto. Mas essa serenidade durou muito pouco: logo surgiram uns “suicidas” que afinal não existiram e, nos últimos dias, o partido desembestou numa campanha sobre o “mistério” do número de mortos, colando-se às mais fantasiosas hipóteses, como se acaso acreditasse que havia algum misterioso interesse da parte do governo em esconder a existência mais uma ou duas vítimas, como se isso alterasse significativamente a esmagadora dimensão da tragédia. Por isso, como português, lamento sinceramente ver um partido central da nossa democracia a brincar com o fogo.

Já faltou mais...


A América e nós


Um dia, em perspetiva, vai ser possível olharmos com alguma calma para o furacão que nos dias de hoje atravessa a América política, por virtude das consequências da eleição de Donald Trump. Espero que, evitada que tenha sido alguma tragédia, possamos divertir-nos com as histórias, então já conhecidas, dos bastidores dessa peça política que esteve em cena em Washington. Por ora, limitamo-nos a abrir as televisões ou os jornais com a garantia de um permanente “happening”, uma sucessão endémica de eventos que, por virtude do comportamento errático do homem mais poderoso do mundo, abalam as instituições do seu país, com efeitos colaterais nos restantes. E não sabemos onde e como parará.

É uma evidência que uma imensa perturbação afeta a América, pela existência deste inusitado presidente. A queda abissal da sua popularidade não é casual. Mas há algo importante que convém não esquecer. Os EUA podem estar internamente aturdidos com Trump, mas não vivem minimamente preocupados com a imagem que o seu presidente projeta no exterior, nos aliados ou no próprio imaginário popular à escala internacional. A América vive, essencialmente, para si própria e, podendo Trump ser um problema para o mundo, é apenas no quadro de um eventual embaraço que ele possa constituir para os americanos que o fenómeno pode ter alguma evolução. O “America first” não é um mote exclusivo de Trump, é uma expressão sentida como uma uma obviedade por todos os seus compatriotas.

Por isso, o modo como a Europa olha Trump, tal como os humores sobre ele dos líderes mundiais, é coisa completamente indiferente ao cidadão do Ohio ou da Califórnia, que apenas quer saber se a sua vida vai piorar ou melhorar por virtude das políticas do governo federal. Por isso, desiluda-se quem pense que o mundo tem alguma palavra a dizer no futuro da novela presidencial em curso.

Mas, pelo contrário, Trump tornou-se relevante para nós. Durante meses, entretivemo-nos a especular por que é que ele conseguiu ser eleito. Aprendemos alguma coisa com isso e olhámos com uma atenção mais especiosa para o Brexit, para o extremismo holandês ou francês, nas eleições seguintes, já à luz desse fenómeno. Trump ensinou-nos igualmente que o populismo pode manipular a verdade e sobreviver à sua margem, sem consequências de escândalo. Soubemos com ele que já ganhou foros de alguma legitimidade aquilo que põe em causa alguns referenciais de decência pública e da ética de relacionamento social. Também acordámos para o fim dos “adquiridos” do progresso global, como as questões ambientais ou o respeito pelas minorias ou culturas fora do “mainstream”. O racismo do proto-autarca de Loures é, no fundo, apenas uma forma saloia de trumpismo. Desprezível mas não desprezável para o ambiente político do nosso país.

quinta-feira, julho 27, 2017

A Gôndola

No dia 6 de agosto, Lisboa perde a Gôndola, levada pela gadanha inexorável do imobiliário. Tenho pena? Tenho, claro, embora abram hoje em Lisboa, a cada dia, espaços magníficos que, salvo a inevitável nostalgia, compensam bem a perda deste restaurante.

A Gôndola era um espaço sazonal, a que só se aportava no bom tempo. Não passava pela cabeça de nenhum fabiano ir por lá no inverno. (Por ali perto, mais depressa se ia ao Polícia, ao Oh! Lacerda ou mesmo à Tia Matilde, noutros tempos à Sereia, mais recentemente ao Castro Elias).

Mas um almoço, no jardim da Gôndola, num dia glorioso de sol de primavera ou outono, podia ser uma experiência extraordinariamente agradável (similar ao belíssimo terraço, meu vizinho, da York House). Já em pleno verão, a caloraça, às vezes, podia ser imensa.

A minha memória não é o que foi, mas, pelas minhas contas, sei lá bem porquê, só me recordo de ter convidado amigas mulheres para ali almoçar comigo. Mas com muita mais gente por lá partilhei bastantes refeições, às vezes de trabalho, porque tinha uma boa distância entre as mesas para se poder conversar à vontade.

Agora que o restaurante está prestes a fechar, vou confessar um segredo: não me recordo de nenhuma refeição gastronomicamente memorável na Gôndola. Era uma comida simpática, recentemente com umas entradas mais ambiciosas, mas pouco mais do que isso. Mas agradava-me muito tomar um gin tónico na salinha de entrada e mantive sempre um particular carinho por aquele hábito antigo das criadas usarem avental branco, numa coreografia de sala idêntica à da Quinta, que existiu junto ao alto do elevador de Santa Justa.

Observemos, pois

Pode presumir-se como o projeto nasceu. A ideia terá sido criar um veículo comunicacional que, chegando às novas gerações através das plataformas que estas já privilegiavam, pudesse garantir a crescente passagem de uma mensagem conservadora, de aberto combate político à esquerda, num perfil economicamente liberal, que desse corpo, de uma forma bem profissional, àquilo que tinha sido um movimento de elite económico-"beata", complementado por nichos universitários dessa orientação, alguns blogues e até uma efémera revista intelectual atlantista ao estilo Reagan, do género marginal-chic, com toques nacionalistas, ideologicamente algo "retro". Tratava-se de federar uma nova direita "business-oriented", jovens saídos das universidades já formatados pelo "template" liberal, numa espécie de um novo 'Independente" no ecran, um pouco mais rigoroso e apresentável, mas que se pretendia não menos vigoroso. A área PSD/CDS era, "by default", o terreno político natural de assentamento do projeto e esse "casal" regenerador, eufórico aliado da "troika" que garantia a salvífica "suspensão" da democracia, era o seu aliado óbvio. Tornava-se importante que o veículo pudesse ter uma imagem bem apelativa e um discurso contemporâneo e ágil, o que implicava a constituição de uma redação jovem (e isso teve um preço, em erros frequentes, pela falta de experiência ou controlo, sempre difícil num modelo "24-sur-24"). Mas produto global, sejamos justos, não desiludiu. Na secção da Opinião, salvo alguns convidados "alien" que funcionaram como alibi de alguma diversidade nas espécies, o jornal rompia deliberadamente com a regra do pluralismo, pelo que "team" residente era da direita pura e dura, misto de figuras cáusticas e tremendistas, esforçados "genéricos" do Eça, e de alguns especialistas temáticos credibilizadores. O modelo do "El Confidencial" espanhol, mas menos concentrado na economia e sem a neutralidade informativa deste, terá estado sempre presente. O produto foi assim inovador, apelativo e, à época, uma coisa bem diferente surgiu entre nós. (Eu nunca o dispensei, desde o primeiro dia). Sempre houve por lá excelentes profissionais, alguns que, talvez sem o saberem, deixaram já há muito de ser jornalistas e que optaram por tomar aberto partido, outros que foram convertidos à comodidade do comentário grave e vedetizante. Olhando de fora, os entusiasmados promotores iniciais - de uma geração que hoje já começa a aproximar-se dos 60 - revelaram-se dispostos a investir na ideia algum dinheiro próprio, angariando publicidade junto do seu valioso "network" e de algumas empresas a que estavam ligados. Mas nem tudo correu bem neste domínio e nem o truque dos "clickbaits" serviu de engodo. Não sei para quando se estava a prever o "breakeven" (equilibrio financeiro), mas a aposta, em grande parte, sabe-se agora que falhou. As perdas não são imensas, mas tudo indica que, a prazo não muito longo, "vem aí comprador!". É que alguns desses investidores dão sinais de preocupação, parece haver cada vez mais recados para dentro do jornal, há opções editoriais e de modelo que se sabe serem abertamente contestadas. É mesmo capaz de gerar-se uma tensão entre quem pensa que o título se deve manter como principal barreira mediática de fogo contra a Geringonça, apostando no seu fim, por motivo exterior ou por implosão, continuando a fazer de ventríloquo de uma oposição que objetivamente está pelas portas da amargura, e outra correntr, mais pragmática, quiçá avessa a quixotescos "moinhos de vento" da luta partidária, que se mostra preparada para neutralizar um pouco o projeto, como saída possível para o problema existente. Em breve (aposto!) iremos ver como tudo isto acaba. (Estará este retrato certo? Até pode não estar! Mas isto que por aqui faço não pretende ser jornalismo, é só uma mera opinião pessoal, assumidamente "biased". Essa deveria, aliás, ser a nossa diferença.)

quarta-feira, julho 26, 2017

Política progressista

Ascenso Simões está longe de ser uma figura consensual. E acho que ele cuida, com divertido zelo, em não sê-lo, inserindo-se frequentemente em algumas polémicas, com palavras sonantes e uma vontade própria afirmada. 

Bastante mais novo do que eu, partilhámos uma aventura autárquica, em Vila Real, nos anos 90, que, no meu caso, só não foi mais divertida porque eu tinha então uma vida internacional infernal, que não me permitiu dedicar ao desafio local o tempo que seria desejável.

Em "Opções inadiáveis para uma política progressista", um livro que acaba de publicar, Ascenso Simões apresenta reflexões em várias temáticas e políticas públicas. É uma ousadia de quem tem uma vida dedicada à política - oferecer opiniões sobre diversas áreas da governação. (Gabo-lhe o esforço: nunca tive a mais leve inclinação para mundividências).

A esquerda, por essa Europa fora, está hoje mergulhada num dilema. Perante uma direita que conseguiu infetar ideologicamente as instituições europeias, ela vive entre uma mimetização "modernaça" e oportunista da matriz conservadora e a tentação da rutura radical com o modelo dominante, a qual, no entanto, para ter sucesso, implicaria colocar em causa certos pressupostos político-institucionais que fazem parte do pacto de regime vigente - entre outros problemas que não vêm agora ao caso.

No prefácio ao livro, Pedro Adão e Silva considera Ascenso Simões um "socialista singular, de inclinação aparentemente conservadora nos costumes e sócio-liberal da economia, mas com um compromisso inabalável com a ética republicana". Revejo-me exclusivamente neste último item, mas as minhas discordâncias com Ascenso Simões não me impedem de apreciar este seu meritório esforço de pensar o país como um todo, num tempo em que a "espuma dos dias" parece raptar, de forma inexorável, o debate político.

terça-feira, julho 25, 2017

Glória ou punição

Uma empresária portuguesa decidiu, por sua conta e risco, consultando fontes várias, e por desconfiar das versões oficiais, fazer uma contabilidade própria dos mortos do incêndio de Pedrógão. 

Até aqui, tudo bem. Nesse seu esforço, a senhora chegou à conclusão de que há bastantes mais mortos do que aqueles que as autoridades apresentaram. E um jornal divulgou as suas conclusões. Devastadoras, para os números divulgados pelas entidades forenses. 

Restam assim duas hipóteses.

Conclui-se que a senhora tem razão, que as autoridades nos iludiram e devem ser crucificadas publicamente por esse seu ludíbrio, com consequências, políticas e outras. Atento o papel notável representado pela senhora, deixo desde já aqui um apelo para que o chefe do Estado lhe imponha uma condecoração, como agradecimento do país por esta meritória contribuição cívica. Devemos concluir que se trata de uma heroína da transparência democrática.

A segunda hipótese é a senhora não ter razão. Se se verificar que os dados que apresentou são objetivamente falsos, que as acusações que fez ao Estado foram infundadas, que o dolo que imputou às autoridades, afetando o seu prestígio e credibilidade, era uma falsa imputação e que a transmissão do assunto à imprensa foi um ato de irresponsabilidade, então, nesse caso, a senhora deve ser levada à Justiça, para ser devidamente punida.

Não há uma terceira via. As coisas, neste domínio, nunca foram tão simples: glória ou punição.

segunda-feira, julho 24, 2017

Os mortos de Pedrógão


As autoridades governamentais informaram, há semanas, que tinha havido 64 mortos no incêndio de Pedrógão. É evidente que, se, em lugar de 64 mortos, tivessem dito 74 ou 84, a dimensão da tragédia, sendo tão brutal como foi, não se alteraria substancialmente no imaginário público.

Agora, surge quem diga, com eco de escândalo em alguma imprensa, que, afinal, não são 64 mortos, que podem ser mais. O governo, ao que parece, não confirma um número diferente daquele que anunciou. Mas, eventualmente, em tese, até poderá haver mais mortos, não contabilizados. E é importante esclarecer se isso é verdade ou não.

A questão que eu coloco - mas só a quem quer ver este assunto com um mínimo de seriedade, aos outros dispenso a resposta - é a seguinte: que interesse poderiam ter as autoridades governamentais em esconder a existência de mais mortos no incêndio em Pedrógão? Isso alteraria a real importância da tragédia?

Uma nota final para a questão da lista dos mortos identificados estar "em segredo de justiça". Também é culpa do governo que as autoridades judiciais não divulguem essa lista?

Parece que há abutres políticos que voam sobre a tragédia de Pedrógão, alimentando-se de demagogia e má-fé.

"No-go areas"


Lisboa, como todas (repito, todas) as cidades do mundo, tem as suas áreas complicadas. São bairros onde, dependendo das horas do dia, é mais ou menos arriscado passar a pé ou deixar um carro. Praticamente, não há cidades que as não tenham.

Com os anos e com as viagens, julgo ter aprendido algumas regras comportamentais neste domínio, mas não excluo que, um dia destes, erre e possa ser vítima de um juízo menos prudente.

Hoje, fui almoçar a uma "no go area" (como dizem os anglo-saxínicos) da periferia de Lisboa. Um bairro "problemático", como dizem os políticos. Encontrei um lugar para estacionar e, hesitante, perguntei a alguém que passava o caminho mais curto para o restaurante, que sabia ser perto.

"Fez bem em estacionar ali. Em princípio, não vai ter problemas", disse o homem, dando depois as indicações. Instintivamente, olhei para as placas de trânsito, para ver se era alguma zona interdita, exceto a moradores. Nada, não havia placas. Foi então que "caí na real", como se diz no Brasil. O que o simpático "popular" (como na fala das estagiárias, nas entrevistas nos incêndios) queria dizer-me é que, na sua avaliação circunstancial, havia uma boa probabilidade do meu carro não ser assaltado ou desaparecer, enquanto eu almoçasse. E não foi.

Lisboa, o Tejo e tudo


domingo, julho 23, 2017

Regresso ao passado


Há uns dias, publiquei aqui um episódio pessoal, que intitulei de "O sprint", na qual falava da visita de uns amigos dos meus pais a nossa casa, acompanhados de uma filha, quando eu era adolescente. Nunca mais vi essas pessoas, desde então. Foi em 1962! Essa filha viria a casar, como então referi, com o vencedor da Volta a Portugal em bicicleta, cuja naturalidade indiquei, embora sem dizer o seu nome.

Ontem, escreveu-me o filho dessa senhora, cujo marido já morreu, dizendo ter mostrado o meu texto à sua mãe. Fiquei imensamente satisfeito! Este mundo da internet também proporciona inesperados mas felizes "encontros".

sábado, julho 22, 2017

Loures e os ciganos da Europa

Em 1999, o então governador civil de Braga, Pedro Bacelar de Vasconcelos, foi objeto de fortes ataques, por virtude de ter tomado a defesa de ciganos, que estavam a ser vítimas de discriminação numa localidade daquele distrito. O governador não pretendia que, àqueles ciganos, fossem reconhecidos nenhuns direitos especiais; apenas se insurgiu contra comportamentos, racistas e discriminatórios, que os estigmatizavam, sob o silêncio cúmplice de algumas autoridades e a cobardia da maioria das forças políticas. Bacelar de Vasconcelos, que era e é um homem de bem, ouviu então "das boas" por parte do PS de Braga, que era sensível aos ventos populistas que sopravam contra os ciganos.

No ano seguinte, foi criado o Observatório Europeu do Racismo, Xenofobia e Anti-Semitismo, em Viena. Coube-me a mim, como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, indicar o nome português para o conselho de administração desse Observatório. E, naturalmente, convidei Pedro Bacelar de Vasconcelos. A minha decisão não foi muito popular no seio do PS, tendo chegado a receber algumas chamadas telefónicas a tentar que "reconsiderasse" a minha escolha. Escolha que, naturalmente, mantive e se mostrou acertada, porquanto Bacelar de Vasconcelos fez um excelente trabalho, como mais tarde o faria como nosso representante na comissão que estabeleceu a Carta dos Direitos Fundamentais da UE!

Porque Portugal havia ganho "esporas" neste domínio, em 2000, durante a presidência portuguesa da União Europeia, tive a ideia de organizar em Lisboa, em conjugação com o comissário para o alargamento da UE, Gunther Verheugen, um seminário sobre a condição das populações ciganas, nos países que se preparavam para entrar para a Europa comunitário. Na antiga FIL de Lisboa, reunimos algumas centenas de pessoas, representando associações das populações "roma", com a presença de especialistas europeus credenciados, que desenharam um conjunto de propostas, parte das quais acabou por ficar plasmada nos documentos de adesão. Portugal foi vivamente saudado, em vários países europeus, por esta sua inédita iniciativa.

Espero que Loures não venha agora inaugurar um capítulo vergonhoso na imagem do nosso país neste domínio.

sexta-feira, julho 21, 2017

Marco Aurélio Garcia



Poucas semanas após a minha chegada ao Brasil como embaixador, fiz uma visita ao meu colega dos Estados Unidos. Em qualquer parte do mundo, os representantes de Washington são sempre das mais relevantes figuras no corpo diplomático local, atenta a importância do seu país.

O meu colega americano era um homem cordial e franco. Estava a pouco tempo de sair do posto, pelo que se sentia talvez mais à vontade para dizer o que lhe ia na alma. A propósito da vida política brasileira, deu-me uma definição curiosa sobre o modo como via a dicotomia entre o ambiente social e empresarial de S. Paulo e o microcosmos do poder em Brasília, à época (estávamos em 2005) dominado pelo PT de Lula, em aliança com o PMDB de Sarney. Para ele, com ironia, havia dois "mundos" no Brasil: o "Free State of S. Paulo" e a "People's Republic of Brasilia"...

Meses depois, os papéis inverteram-se. Um novo embaixador americano veio ver-me e, profissional à sua maneira, trazia consigo uma espécie de "check-list" de assuntos sobre os quais pretendia obter a opinião do seu colega português - os embaixadores portugueses na capital brasileira, podendo não ser os mais poderosos, são quase sempre dos melhor informados e a sua opinião conta imenso junto dos seus colegas. E até os americanos sabem isso...

Uma das curiosidades do meu novo colega era tentar perceber "quem era quem" na decisão, em matéria de política externa, no poder brasileiro. Em particular, confundia-o o papel relativo do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e o do Assessor Internacional do presidente, Marco Aurélio Garcia.

(Nada que devesse ser estranho a quem vinha da Washington: a história da política externa americana também é feita da regular tensão entre o ministro - "Secretary of State" - o assessor da Casa Branca - o "National Security Adviser".)

Disse-lhe o que entendi que lhe poderia dizer. Expliquei que se tratava de um processo dinâmico, que havia começado por alguma dualidade entre as duas personalidades, com algum potencial de conflito, até rapidamente se chegar a um ponto em que Amorim havia garantido, com alguma habilidade tática, o pleno controlo da máquina externa, com Garcia confinado a dossiês mais pontuais, em especial ligados à área sul-americana, onde o seu conhecimento e contactos eram bastante substanciais.

Se Marco Aurélio Garcia alguma vez teve intenções de ser um poder sombra junto do Itamaraty (as "Necessidades" brasileiras), e há sinais de que isso pode ter acontecido nos primeiros tempos do primeiro mandato de Lula, a eficácia funcional de Celso Amorim rapidamente se impôs, tendo isso ficado bastante evidente quando o seu papel interventivo se tornou imprescindível, na ocorrência de algumas crises com países vizinhos do Brasil, que Garcia foi incapaz de evitar. Uma delas, seria com a Bolívia de Evo Morales.

Um dia, num almoço a dois no jardim da nossa embaixada em Brasília, Marco Aurélio Garcia contou-me a conversa "surreal" que havia tido, em La Paz, com o recém-nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros daquele país. Descreveu-mo como uma figura estranha, com um mantra "filosófico", de quem "tinha os pés bem assentes no ar", num discurso bizarro, errático e metafórico, quase incompreensível. Marco Aurélio comentava, no meio de gargalhadas: "Você conhece-me, Francisco! Imagina que, quando quero, sou capaz de rivalizar em efabulações e imagens ligadas ao universo onírico, mas o homem batia-nos a todos! Saí de lá sem perceber nada e com medo de me ter enganado naquilo em que julguei tê-lo percebido..."

Marco Aurélio Garcia morreu ontem, aos 76 anos. Era professor universitário, uma figura intelectual muito interessante. Depois de sair do Brasil, só o voltei a encontrar num almoço em Paris, aquando de uma conferência. Mantinhamos uma excelente relação pessoal, muito embora Portugal (e a Europa) estivesse longe das suas preocupações - e, infelizmente, também da sua afetividade.

Com o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, e o então ministro Celso Amorim, Marco Aurélio Garcia constituiu a "troika" informal que desenhou a política externa de Lula. A qual, a meu ver, teve um apreciável êxito e prestigiou imenso o Brasil, opinião que sei que não é partilhada por muitos amigos, nomeadamente no serviço diplomático brasileiro, alguns dos quais têm essas três figuras no seu rol de "inimigos de estimação".

Dilemas


Há uns anos, quando era embaixador em Paris, fui convidado a estar presente num determinado evento que reunia portugueses emigrados em diversos países do mundo.

Fui falando com vários, inquirindo do modo como as nossas comunidades se integravam nessas sociedades, quais os seus principais problemas e, muito em especial, procurando recolher opiniões sobre o tipo de políticas públicas, por parte de Portugal, que entendiam por mais adequadas à promoção dos seus interesses. Tinha curiosidade em saber como avaliavam a qualidade da nossa rede consular, num tempo em que as mudanças na natureza da diáspora e a presença da União Europeia na área da proteção consular iriam necessariamente alterar alguns do parâmetros tradicionais da nossa ação externa.

Uma dessas conversas, recordo-o bem, tive-a com uma senhora que vivia na Venezuela. Era o tempo de Hugo Chávez e era evidente, não sendo isso minimamente uma surpresa, que o líder venezuelano estava longe de gozar da simpatia maioritária da nossa comunidade, "to say the least"...

Ao tempo, as coisas estavam ainda muito longe daquilo a que o sucessor de Chávez iria condenar o país. Porém, a desafetação da minha interlocutora face ao então presidente venezuelano era mais do que evidente - e isso era bem compreensível, dado que a comunidade portuguesa se sentia um elo fraco naquela sociedade, alvo de ataques aos seus interesses económicos, numa instabilidade que lhe causava angústias quanto ao futuro.

A certo ponto da conversa, a senhora disse-me: "Não compreendo como é que Portugal (era tempo do governo Sócrates) tem tão boas relações com aquele homem!" E falou-me, com alguma acrimónia, de Mário Soares e do aproveitamento político-mediático que o regime tinha retirado de declarações, simpáticas para Chávez, que o antigo presidente proferira na ocasião de uma visita que fizera à Venezuela.

Eu podia entender, com facilidade, aquela reação: a senhora detestava o mundo "bolivariano" que ia conduzindo a Venezuela ao desastre e mostrava-se chocada com os sorrisos regulares que Caracas trocava com Lisboa. Esse era também, recorde-se, um tempo em que algumas empresas portuguesas procuravam aproveitar o mercado venezuelano, visto como seguro pela garantias que o petróleo parecia conceder.

Não contrariei a senhora, mas perguntei-lhe, a título de teste: "O que é que acharia se o governo português denunciasse as violações dos direitos humanos e os atentados à democracia que são tão evidentes na Venezuela? Como sabe, há muitos países que estão a ir por esse caminho.”

"Pela sua rica saúde! Nem é bom falar nisso!" respondeu-me a senhora. "Não gosto nada de ver o Sócrates com o Chávez juntos, mas, enquanto eles se entenderem bem, pelo menos isso pode evitar que ele ataque a nossa comunidade..."

Lembrei-me agora disto, sei lá bem porquê.

quinta-feira, julho 20, 2017

Asta Rose



No passado fim de semana, ao folhear em casa de amigos uma deliciosa coleção da "Vida Mundial", descortinei esta fotografia, de 1942 (no fim do post, coloco outra, bem mais recente). Lá está Tomaz Alcaide, o grande cantor lírico português, e, a seu lado, uma senhora, com um "look" e uma elegância bem desses anos. Era Asta Rose.

Conheci Asta Rose em Brasília, em 2005. Era uma senhora idosa, muito popular nos meios culturais da sociedade brasiliense, sempre uma presença ativa a impulsionar iniciativas, em especial na área da música. Portugal estava-lhe no coração, cultivando por essa via a memória do marido com quem foi casada 25 anos, 20 dos quais vivendo em Portugal, país a que se sentia afetivamente ligada.

Nascida em Santa Catarina, Asta Rose havia sido bailarina e era uma melómana de primeira água. A Brasília cultural, em especial a ópera e a música erudita, deve-lhe imenso. A sua figura de extrema elegância, com uma inconfundível cabeleira e sempre de lenço à banda no pescoço, era um ícone da cidade, de que era cidadã honorária.

Lembro-me bem da última frase que nos disse, no dia da nossa despedida: "Voltem em breve, senão já não me encontram por cá". Não levámos a sério, não voltámos e, quando o fizermos, já não a encontraremos por lá. 

Soube agora que Asta Rose morreu em Brasília, há meses, com 94 anos. Não sei se por sua indicação, as suas cinzas foram juntas ao túmulo de Tomaz Alcaide. Asta Rose acabou em Portugal, ao lado de quem gostava.



quarta-feira, julho 19, 2017

Alberto Martins


Gosto da política feita por gente que acredita em ideias, que se bate por elas, que se mantém teimosamente coerente, em todas as suas opções. Como Alberto Martins.

Alberto Martins deixou hoje o parlamento, por vontade própria. Os portugueses começaram a conhecê-lo em 1969, quando ousou levantar a voz, como presidente da Associação Académica de Coimbra, numa célebre sessão pública na presença de Américo Tomás. Pagaria a ousadia, mas o ato valeu democraticamente a pena. Depois de abril, lutou pela liberdade, sempre com voz própria, nas tribunas políticas que entendeu assumir - do partido ao parlamento, passando pelo governo. Partilhámos algumas "guerras" políticas e estivemos quase sempre nas mesmas "trincheiras".

Sai de cena com grande dignidade e, estou certo, com sentido justo do dever cumprido. Um forte e solidário abraço para ti, Alberto!

O sprint



Ela tinha aí mais um ano ou dois do que eu, então adolescente, mas parecia bem mais velha. Tinha uns olhos lindos de morrer e era "muito bem desenhada". Não me ligou pêva durante toda a conversa, em que ambos fomos quase sempre testemunhas silenciosas, mantendo um ar distante, de quem tinha manifestamente a cabeça noutro lugar. 

Os pais, residentes em Santo Tirso, tinham ido visitar os meus, numa passagem por Vila Real. Eu e ela estávamos "por empréstimo" na sala, a decorar a ocasião social, fartos de histórias que não nos diziam respeito, chamando a elas pessoas de que só vagamente ouvíramos falar. Na inutilidade da nossa função decorativa, ela manteve-se sempre imune aos olhares concupiscentes que eu me recordo de lhe ter lançado. Foi uma hora perdida, para ambos. Com pena minha, claro.

À noite, ouvi os meus pais comentarem, entre si, alguma coisa sobre a jovem, por rápidas conversas entre portas que o casal tinha tido com eles. A família andava muito preocupada com ela, pelos seus atos de rebeldia, pela falta de disciplina, por já "olhar para a sombra", como então se qualificavam as raparigas que iam "saindo da casca". Isso rimava bem com os sinais de ousadia contida que eu lera no seu olhar, muito embora eu tivesse sido tudo menos o usufrutuário dos seus potenciais desvios. A verdade é que eu nunca mais a veria, pelo que deixei de pensar nela.

Passaram umas semanas. Nesse tempo, eu lia uma imensidão de jornais desportivos. Acompanhava tudo o que se publicava sobre ciclismo, futebol, atletismo e hóquei em patins - as modalidades que então me interessavam. Um dos temas que, à época, dominava essa imprensa era a inesperada transferência do vencedor da Volta a Portugal do ano anterior, da equipa de ciclismo do Futebol Clube do Porto para a do Sporting. 

Um dia, foi anunciado que a mudança se consumou. O desportista apresentou-se no estádio José de Alvalade para envergar a gloriosa camisola do meu Sporting. Era a transferência do ano. O "Record", à época tendencialmente verde-branco, trouxe uma grande reportagem sobre a chegada do novo integrante. A ilustrá-la, na primeira página, lá estava o ciclista, "com a noiva". Era ela! 

Os pormenores souberam-se mais tarde: tinha havido uma "fuga" dramática de casa dos pais, com forte comoção familiar. Estava-se já em "contra-relógio" para o casamento, por forma a concluir formalmente aquela difícil etapa da vida de ambos. No fim de contas, as coisas tinham algum sentido: ele, o vencedor da Volta, era um rapaz nascido em Santo Tirso, namorado da jovem, embora contra a vontade dos pais dela. A sua vitória, ao "sprint", era justa, a "camisola amarela" era merecida e era, aliás, da cor do sorriso com que fiquei ao ler o jornal...

terça-feira, julho 18, 2017

Não me convinha!



Quem não tem papas na língua, chama cobardia à tibieza humana. Em política, o conceito transmuta-se e pode acabar por ser sinónimo de oportunismo.

Contava-me o meu pai que, há muitos anos, em Viana do Castelo, havia um fulano que era designado, entre os seus conhecidos, como o "não me convinha".

A história conta-se rapidamente. Um dia, o dito fulano passeava-se pela cidade, ao lado da sua mulher, quando esta entrou numa altercação com um homem que ia a passar, por razões que não interessam para o caso. A conversa azedou e, a certo ponto, o passante deu uma forte lambada na senhora. Quando todos pensavam que o marido ia lavar a honra da mulher, este, pelo contrário, ficou impávido e, cobardemente, não reagiu.

As pessoas que souberam do episódio ficaram indignadas com a inação do marido e alguns amigos do casal foram mesmo ao ponto de lhe perguntar a razão pela qual não defendera a mulher. Sem adiantar grandes explicações, ele apenas lhes retorquiu: "Não me convinha!" Não se livrou, para a vida, do auto-infligido apodo.

Reconheço que a similitude é um pouco forçada, mas o "não me convinha!" podia perfeitamente ser a resposta dada pelo PSD para não "ir a jogo", lavando a face e a decência do partido, depois do episódio racista protagonizado do seu candidato a edil em Loures. 

Sejamos justos: neste caso não foi necessariamente cobardia, foi apenas oportunismo. Triste, para um partido com um historial que se pensava menos compatível com o cinismo cívico.

segunda-feira, julho 17, 2017

Ainda os ciganos

Parece que está a custar a entender a algumas pessoas que a defesa da não estigmatização dos ciganos nada tem a ver com uma atitude de permissividade face a comportamentos delituosos de cidadãos dessa origem étnica.

Condenem-se, com todo o rigor, todos os cidadãos de etnia cigana envolvidos em qualquer tipo de atos delituosos ou criminosos. Condenem-se os ciganos como se condenaria qualquer outro cidadão - branco, preto ou às riscas. 

Qualquer outra atitude que, neste contexto, singularize os ciganos tem o nome de racismo. E quem a assumir é racista. Ponto. 

É assim tão difícil de perceber?

Bolor autárquico

Andando um pouco pelo país, constatei vários casos de "paraquedismo" autárquico, isto é, rapaziada partidária que, depois de ter operado em determinado município, surge a tentar a sorte noutra câmara. Como se fosse natural a existência desta espécie de brigada política intermunicipal para todo o serviço.

Outra realidade, pelos outdoors, é o ressurgimento dos "dinossauros", que a lei procurou colocar em definitivo pousio, mas que, passada uma quarentena (às vezes como "backseat drivers", escondidos em vereações), aí vêm de novo. Às gravatas pomposas dos cartazes de há 16 ou 20 anos, sucedem-se agora as camisas abertas, de cores claras, a dar ar de operacionalidade compensatória do peso da idade. Um ridículo sem sanção.

Numa subclasse destes últimos, aí estão também os "ressocializados", os sobreviventes às condenações da Justiça, muitas vezes tidos como "injustiçados" por um eleitorado que, se os eleger, se coloca eticamente ao seu nível. A turma do "rouba mas faz" é um triste espelho do país. São essas inqualificáveis personagens que, à pala do estafado "já pagaram a dívida com a sociedade", regressam de novo, quais raposas sorridentes em capoeira, aos locais que lhe proporcionaram as condições e o ensejo para a prática dos delitos.

Desventuras

O candidato do PSD à CM de Loures fez singulares declarações sobre as comunidades ciganas existentes naquele concelho. Nada do que disse é novo, isto é, já no passado e em tristes tempos foram ouvidos juízos decorrentes de idêntica racionalidade. 

Atento o que parecia ser o consenso maioritário prevalecente no seio dos partidos representados na AR sobre questões ligadas à luta contra discriminação de minorias étnicas - facto de que Portugal sempre se orgulha no plano externo e que lhe tem valido alguns encómios em fóruns multilaterais - um silêncio da direção do PSD sobre estas declarações funcionaria como uma objetiva rutura desse consenso, deslocando o nome do partido para um terreno eticamente muito pouco cómodo. 

O PSD tem muito pouco tempo para "pôr os pontos nos is" neste assunto. É que a "cereja em cima do bolo" seria, naturalmente, um eventual elogio do PNR a tais declarações. 

domingo, julho 16, 2017

Do ódio

Há momentos em que o ódio é legítimo? Há situações em que o sentimento de estarmos a ser atingidos, de forma arbitrária, nos leva a ser possuídos por uma imparável vontade de vingança. Toda a tolerância que ao longo de uma vida ensaiamos, com racionalidade, é, num segundo, ultrapassada por um estado de revolta profunda contra aquilo que nos rompe a linearidade da vida, o nosso bem-estar, que nos subverte os sonhos, tornados pesadelos. Sei que não devia, talvez, estar a partilhar aqui a intimidade de um sobressalto exclusivamente pessoal, de uma animosidade como aquela que me tomou, que violentou decisivamente a minha calma. Ontem, fora de Lisboa, na escuridão silenciosa de uma noite de verão, tomei uma atitude que hoje posso reconhecer ter tido o seu quê de violenta. Estou arrependido? Não estou. Quem por aqui me acompanha, creio que compreenderá. Sou uma pessoa pacífica, julgo que equilibrada, não extremista. Mas o que é demais, a partir de certo ponto, não se pode aceitar, a legítima defesa perante a agressão é, a meu ver, uma resposta adequada. Teve algo de sangrento? Teve. Acesa a luz, lá estava ela, expectante, quase provocatória, a melga. Na fúria, no ódio com que a esparramei na parede branca descobri uma outra face de mim. Foi bonito? Não, não foi. Mas se tivessem sido objeto por quase uma hora de mordidelas, eu queria vê-los no meu lugar!

Notícias da aldeia

Nas aldeias, os cartazes das festas de verão, em honra do santo padroeiro, costumam apodrecer de velhos, chegando até à primavera. O país pa...