segunda-feira, julho 24, 2017

Os mortos de Pedrógão


As autoridades governamentais informaram, há semanas, que tinha havido 64 mortos no incêndio de Pedrógão. É evidente que, se, em lugar de 64 mortos, tivessem dito 74 ou 84, a dimensão da tragédia, sendo tão brutal como foi, não se alteraria substancialmente no imaginário público.

Agora, surge quem diga, com eco de escândalo em alguma imprensa, que, afinal, não são 64 mortos, que podem ser mais. O governo, ao que parece, não confirma um número diferente daquele que anunciou. Mas, eventualmente, em tese, até poderá haver mais mortos, não contabilizados. E é importante esclarecer se isso é verdade ou não.

A questão que eu coloco - mas só a quem quer ver este assunto com um mínimo de seriedade, aos outros dispenso a resposta - é a seguinte: que interesse poderiam ter as autoridades governamentais em esconder a existência de mais mortos no incêndio em Pedrógão? Isso alteraria a real importância da tragédia?

Uma nota final para a questão da lista dos mortos identificados estar "em segredo de justiça". Também é culpa do governo que as autoridades judiciais não divulguem essa lista?

Parece que há abutres políticos que voam sobre a tragédia de Pedrógão, alimentando-se de demagogia e má-fé.

"No-go areas"


Lisboa, como todas (repito, todas) as cidades do mundo, tem as suas áreas complicadas. São bairros onde, dependendo das horas do dia, é mais ou menos arriscado passar a pé ou deixar um carro. Praticamente, não há cidades que as não tenham.

Com os anos e com as viagens, julgo ter aprendido algumas regras comportamentais neste domínio, mas não excluo que, um dia destes, erre e possa ser vítima de um juízo menos prudente.

Hoje, fui almoçar a uma "no go area" (como dizem os anglo-saxínicos) da periferia de Lisboa. Um bairro "problemático", como dizem os políticos. Encontrei um lugar para estacionar e, hesitante, perguntei a alguém que passava o caminho mais curto para o restaurante, que sabia ser perto.

"Fez bem em estacionar ali. Em princípio, não vai ter problemas", disse o homem, dando depois as indicações. Instintivamente, olhei para as placas de trânsito, para ver se era alguma zona interdita, exceto a moradores. Nada, não havia placas. Foi então que "caí na real", como se diz no Brasil. O que o simpático "popular" (como na fala das estagiárias, nas entrevistas nos incêndios) queria dizer-me é que, na sua avaliação circunstancial, havia uma boa probabilidade do meu carro não ser assaltado ou desaparecer, enquanto eu almoçasse. E não foi.

Lisboa, o Tejo e tudo


domingo, julho 23, 2017

Regresso ao passado


Há uns dias, publiquei aqui um episódio pessoal, que intitulei de "O sprint", na qual falava da visita de uns amigos dos meus pais a nossa casa, acompanhados de uma filha, quando eu era adolescente. Nunca mais vi essas pessoas, desde então. Foi em 1962! Essa filha viria a casar, como então referi, com o vencedor da Volta a Portugal em bicicleta, cuja naturalidade indiquei, embora sem dizer o seu nome.

Ontem, escreveu-me o filho dessa senhora, cujo marido já morreu, dizendo ter mostrado o meu texto à sua mãe. Fiquei imensamente satisfeito! Este mundo da internet também proporciona inesperados mas felizes "encontros".

sábado, julho 22, 2017

Loures e os ciganos da Europa

Em 1999, o então governador civil de Braga, Pedro Bacelar de Vasconcelos, foi objeto de fortes ataques, por virtude de ter tomado a defesa de ciganos, que estavam a ser vítimas de discriminação numa localidade daquele distrito. O governador não pretendia que, àqueles ciganos, fossem reconhecidos nenhuns direitos especiais; apenas se insurgiu contra comportamentos, racistas e discriminatórios, que os estigmatizavam, sob o silêncio cúmplice de algumas autoridades e a cobardia da maioria das forças políticas. Bacelar de Vasconcelos, que era e é um homem de bem, ouviu então "das boas" por parte do PS de Braga, que era sensível aos ventos populistas que sopravam contra os ciganos.

No ano seguinte, foi criado o Observatório Europeu do Racismo, Xenofobia e Anti-Semitismo, em Viena. Coube-me a mim, como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, indicar o nome português para o conselho de administração desse Observatório. E, naturalmente, convidei Pedro Bacelar de Vasconcelos. A minha decisão não foi muito popular no seio do PS, tendo chegado a receber algumas chamadas telefónicas a tentar que "reconsiderasse" a minha escolha. Escolha que, naturalmente, mantive e se mostrou acertada, porquanto Bacelar de Vasconcelos fez um excelente trabalho, como mais tarde o faria como nosso representante na comissão que estabeleceu a Carta dos Direitos Fundamentais da UE!

Porque Portugal havia ganho "esporas" neste domínio, em 2000, durante a presidência portuguesa da União Europeia, tive a ideia de organizar em Lisboa, em conjugação com o comissário para o alargamento da UE, Gunther Verheugen, um seminário sobre a condição das populações ciganas, nos países que se preparavam para entrar para a Europa comunitário. Na antiga FIL de Lisboa, reunimos algumas centenas de pessoas, representando associações das populações "roma", com a presença de especialistas europeus credenciados, que desenharam um conjunto de propostas, parte das quais acabou por ficar plasmada nos documentos de adesão. Portugal foi vivamente saudado, em vários países europeus, por esta sua inédita iniciativa.

Espero que Loures não venha agora inaugurar um capítulo vergonhoso na imagem do nosso país neste domínio.

sexta-feira, julho 21, 2017

Marco Aurélio Garcia



Poucas semanas após a minha chegada ao Brasil como embaixador, fiz uma visita ao meu colega dos Estados Unidos. Em qualquer parte do mundo, os representantes de Washington são sempre das mais relevantes figuras no corpo diplomático local, atenta a importância do seu país.

O meu colega americano era um homem cordial e franco. Estava a pouco tempo de sair do posto, pelo que se sentia talvez mais à vontade para dizer o que lhe ia na alma. A propósito da vida política brasileira, deu-me uma definição curiosa sobre o modo como via a dicotomia entre o ambiente social e empresarial de S. Paulo e o microcosmos do poder em Brasília, à época (estávamos em 2005) dominado pelo PT de Lula, em aliança com o PMDB de Sarney. Para ele, com ironia, havia dois "mundos" no Brasil: o "Free State of S. Paulo" e a "People's Republic of Brasilia"...

Meses depois, os papéis inverteram-se. Um novo embaixador americano veio ver-me e, profissional à sua maneira, trazia consigo uma espécie de "check-list" de assuntos sobre os quais pretendia obter a opinião do seu colega português - os embaixadores portugueses na capital brasileira, podendo não ser os mais poderosos, são quase sempre dos melhor informados e a sua opinião conta imenso junto dos seus colegas. E até os americanos sabem isso...

Uma das curiosidades do meu novo colega era tentar perceber "quem era quem" na decisão, em matéria de política externa, no poder brasileiro. Em particular, confundia-o o papel relativo do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e o do Assessor Internacional do presidente, Marco Aurélio Garcia.

(Nada que devesse ser estranho a quem vinha da Washington: a história da política externa americana também é feita da regular tensão entre o ministro - "Secretary of State" - o assessor da Casa Branca - o "National Security Adviser".)

Disse-lhe o que entendi que lhe poderia dizer. Expliquei que se tratava de um processo dinâmico, que havia começado por alguma dualidade entre as duas personalidades, com algum potencial de conflito, até rapidamente se chegar a um ponto em que Amorim havia garantido, com alguma habilidade tática, o pleno controlo da máquina externa, com Garcia confinado a dossiês mais pontuais, em especial ligados à área sul-americana, onde o seu conhecimento e contactos eram bastante substanciais.

Se Marco Aurélio Garcia alguma vez teve intenções de ser um poder sombra junto do Itamaraty (as "Necessidades" brasileiras), e há sinais de que isso pode ter acontecido nos primeiros tempos do primeiro mandato de Lula, a eficácia funcional de Celso Amorim rapidamente se impôs, tendo isso ficado bastante evidente quando o seu papel interventivo se tornou imprescindível, na ocorrência de algumas crises com países vizinhos do Brasil, que Garcia foi incapaz de evitar. Uma delas, seria com a Bolívia de Evo Morales.

Um dia, num almoço a dois no jardim da nossa embaixada em Brasília, Marco Aurélio Garcia contou-me a conversa "surreal" que havia tido, em La Paz, com o recém-nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros daquele país. Descreveu-mo como uma figura estranha, com um mantra "filosófico", de quem "tinha os pés bem assentes no ar", num discurso bizarro, errático e metafórico, quase incompreensível. Marco Aurélio comentava, no meio de gargalhadas: "Você conhece-me, Francisco! Imagina que, quando quero, sou capaz de rivalizar em efabulações e imagens ligadas ao universo onírico, mas o homem batia-nos a todos! Saí de lá sem perceber nada e com medo de me ter enganado naquilo em que julguei tê-lo percebido..."

Marco Aurélio Garcia morreu ontem, aos 76 anos. Era professor universitário, uma figura intelectual muito interessante. Depois de sair do Brasil, só o voltei a encontrar num almoço em Paris, aquando de uma conferência. Mantinhamos uma excelente relação pessoal, muito embora Portugal (e a Europa) estivesse longe das suas preocupações - e, infelizmente, também da sua afetividade.

Com o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, e o então ministro Celso Amorim, Marco Aurélio Garcia constituiu a "troika" informal que desenhou a política externa de Lula. A qual, a meu ver, teve um apreciável êxito e prestigiou imenso o Brasil, opinião que sei que não é partilhada por muitos amigos, nomeadamente no serviço diplomático brasileiro, alguns dos quais têm essas três figuras no seu rol de "inimigos de estimação".

Dilemas


Há uns anos, quando era embaixador em Paris, fui convidado a estar presente num determinado evento que reunia portugueses emigrados em diversos países do mundo.

Fui falando com vários, inquirindo do modo como as nossas comunidades se integravam nessas sociedades, quais os seus principais problemas e, muito em especial, procurando recolher opiniões sobre o tipo de políticas públicas, por parte de Portugal, que entendiam por mais adequadas à promoção dos seus interesses. Tinha curiosidade em saber como avaliavam a qualidade da nossa rede consular, num tempo em que as mudanças na natureza da diáspora e a presença da União Europeia na área da proteção consular iriam necessariamente alterar alguns do parâmetros tradicionais da nossa ação externa.

Uma dessas conversas, recordo-o bem, tive-a com uma senhora que vivia na Venezuela. Era o tempo de Hugo Chávez e era evidente, não sendo isso minimamente uma surpresa, que o líder venezuelano estava longe de gozar da simpatia maioritária da nossa comunidade, "to say the least"...

Ao tempo, as coisas estavam ainda muito longe daquilo a que o sucessor de Chávez iria condenar o país. Porém, a desafetação da minha interlocutora face ao então presidente venezuelano era mais do que evidente - e isso era bem compreensível, dado que a comunidade portuguesa se sentia um elo fraco naquela sociedade, alvo de ataques aos seus interesses económicos, numa instabilidade que lhe causava angústias quanto ao futuro.

A certo ponto da conversa, a senhora disse-me: "Não compreendo como é que Portugal (era tempo do governo Sócrates) tem tão boas relações com aquele homem!" E falou-me, com alguma acrimónia, de Mário Soares e do aproveitamento político-mediático que o regime tinha retirado de declarações, simpáticas para Chávez, que o antigo presidente proferira na ocasião de uma visita que fizera à Venezuela.

Eu podia entender, com facilidade, aquela reação: a senhora detestava o mundo "bolivariano" que ia conduzindo a Venezuela ao desastre e mostrava-se chocada com os sorrisos regulares que Caracas trocava com Lisboa. Esse era também, recorde-se, um tempo em que algumas empresas portuguesas procuravam aproveitar o mercado venezuelano, visto como seguro pela garantias que o petróleo parecia conceder.

Não contrariei a senhora, mas perguntei-lhe, a título de teste: "O que é que acharia se o governo português denunciasse as violações dos direitos humanos e os atentados à democracia que são tão evidentes na Venezuela? Como sabe, há muitos países que estão a ir por esse caminho.”

"Pela sua rica saúde! Nem é bom falar nisso!" respondeu-me a senhora. "Não gosto nada de ver o Sócrates com o Chávez juntos, mas, enquanto eles se entenderem bem, pelo menos isso pode evitar que ele ataque a nossa comunidade..."

Lembrei-me agora disto, sei lá bem porquê.

quinta-feira, julho 20, 2017

Asta Rose



No passado fim de semana, ao folhear em casa de amigos uma deliciosa coleção da "Vida Mundial", descortinei esta fotografia, de 1942 (no fim do post, coloco outra, bem mais recente). Lá está Tomaz Alcaide, o grande cantor lírico português, e, a seu lado, uma senhora, com um "look" e uma elegância bem desses anos. Era Asta Rose.

Conheci Asta Rose em Brasília, em 2005. Era uma senhora idosa, muito popular nos meios culturais da sociedade brasiliense, sempre uma presença ativa a impulsionar iniciativas, em especial na área da música. Portugal estava-lhe no coração, cultivando por essa via a memória do marido com quem foi casada 25 anos, 20 dos quais vivendo em Portugal, país a que se sentia afetivamente ligada.

Nascida em Santa Catarina, Asta Rose havia sido bailarina e era uma melómana de primeira água. A Brasília cultural, em especial a ópera e a música erudita, deve-lhe imenso. A sua figura de extrema elegância, com uma inconfundível cabeleira e sempre de lenço à banda no pescoço, era um ícone da cidade, de que era cidadã honorária.

Lembro-me bem da última frase que nos disse, no dia da nossa despedida: "Voltem em breve, senão já não me encontram por cá". Não levámos a sério, não voltámos e, quando o fizermos, já não a encontraremos por lá. 

Soube agora que Asta Rose morreu em Brasília, há meses, com 94 anos. Não sei se por sua indicação, as suas cinzas foram juntas ao túmulo de Tomaz Alcaide. Asta Rose acabou em Portugal, ao lado de quem gostava.



quarta-feira, julho 19, 2017

Alberto Martins


Gosto da política feita por gente que acredita em ideias, que se bate por elas, que se mantém teimosamente coerente, em todas as suas opções. Como Alberto Martins.

Alberto Martins deixou hoje o parlamento, por vontade própria. Os portugueses começaram a conhecê-lo em 1969, quando ousou levantar a voz, como presidente da Associação Académica de Coimbra, numa célebre sessão pública na presença de Américo Tomás. Pagaria a ousadia, mas o ato valeu democraticamente a pena. Depois de abril, lutou pela liberdade, sempre com voz própria, nas tribunas políticas que entendeu assumir - do partido ao parlamento, passando pelo governo. Partilhámos algumas "guerras" políticas e estivemos quase sempre nas mesmas "trincheiras".

Sai de cena com grande dignidade e, estou certo, com sentido justo do dever cumprido. Um forte e solidário abraço para ti, Alberto!

O sprint



Ela tinha aí mais um ano ou dois do que eu, então adolescente, mas parecia bem mais velha. Tinha uns olhos lindos de morrer e era "muito bem desenhada". Não me ligou pêva durante toda a conversa, em que ambos fomos quase sempre testemunhas silenciosas, mantendo um ar distante, de quem tinha manifestamente a cabeça noutro lugar. 

Os pais, residentes em Santo Tirso, tinham ido visitar os meus, numa passagem por Vila Real. Eu e ela estávamos "por empréstimo" na sala, a decorar a ocasião social, fartos de histórias que não nos diziam respeito, chamando a elas pessoas de que só vagamente ouvíramos falar. Na inutilidade da nossa função decorativa, ela manteve-se sempre imune aos olhares concupiscentes que eu me recordo de lhe ter lançado. Foi uma hora perdida, para ambos. Com pena minha, claro.

À noite, ouvi os meus pais comentarem, entre si, alguma coisa sobre a jovem, por rápidas conversas entre portas que o casal tinha tido com eles. A família andava muito preocupada com ela, pelos seus atos de rebeldia, pela falta de disciplina, por já "olhar para a sombra", como então se qualificavam as raparigas que iam "saindo da casca". Isso rimava bem com os sinais de ousadia contida que eu lera no seu olhar, muito embora eu tivesse sido tudo menos o usufrutuário dos seus potenciais desvios. A verdade é que eu nunca mais a veria, pelo que deixei de pensar nela.

Passaram umas semanas. Nesse tempo, eu lia uma imensidão de jornais desportivos. Acompanhava tudo o que se publicava sobre ciclismo, futebol, atletismo e hóquei em patins - as modalidades que então me interessavam. Um dos temas que, à época, dominava essa imprensa era a inesperada transferência do vencedor da Volta a Portugal do ano anterior, da equipa de ciclismo do Futebol Clube do Porto para a do Sporting. 

Um dia, foi anunciado que a mudança se consumou. O desportista apresentou-se no estádio José de Alvalade para envergar a gloriosa camisola do meu Sporting. Era a transferência do ano. O "Record", à época tendencialmente verde-branco, trouxe uma grande reportagem sobre a chegada do novo integrante. A ilustrá-la, na primeira página, lá estava o ciclista, "com a noiva". Era ela! 

Os pormenores souberam-se mais tarde: tinha havido uma "fuga" dramática de casa dos pais, com forte comoção familiar. Estava-se já em "contra-relógio" para o casamento, por forma a concluir formalmente aquela difícil etapa da vida de ambos. No fim de contas, as coisas tinham algum sentido: ele, o vencedor da Volta, era um rapaz nascido em Santo Tirso, namorado da jovem, embora contra a vontade dos pais dela. A sua vitória, ao "sprint", era justa, a "camisola amarela" era merecida e era, aliás, da cor do sorriso com que fiquei ao ler o jornal...

terça-feira, julho 18, 2017

Não me convinha!



Quem não tem papas na língua, chama cobardia à tibieza humana. Em política, o conceito transmuta-se e pode acabar por ser sinónimo de oportunismo.

Contava-me o meu pai que, há muitos anos, em Viana do Castelo, havia um fulano que era designado, entre os seus conhecidos, como o "não me convinha".

A história conta-se rapidamente. Um dia, o dito fulano passeava-se pela cidade, ao lado da sua mulher, quando esta entrou numa altercação com um homem que ia a passar, por razões que não interessam para o caso. A conversa azedou e, a certo ponto, o passante deu uma forte lambada na senhora. Quando todos pensavam que o marido ia lavar a honra da mulher, este, pelo contrário, ficou impávido e, cobardemente, não reagiu.

As pessoas que souberam do episódio ficaram indignadas com a inação do marido e alguns amigos do casal foram mesmo ao ponto de lhe perguntar a razão pela qual não defendera a mulher. Sem adiantar grandes explicações, ele apenas lhes retorquiu: "Não me convinha!" Não se livrou, para a vida, do auto-infligido apodo.

Reconheço que a similitude é um pouco forçada, mas o "não me convinha!" podia perfeitamente ser a resposta dada pelo PSD para não "ir a jogo", lavando a face e a decência do partido, depois do episódio racista protagonizado do seu candidato a edil em Loures. 

Sejamos justos: neste caso não foi necessariamente cobardia, foi apenas oportunismo. Triste, para um partido com um historial que se pensava menos compatível com o cinismo cívico.

segunda-feira, julho 17, 2017

Ainda os ciganos

Parece que está a custar a entender a algumas pessoas que a defesa da não estigmatização dos ciganos nada tem a ver com uma atitude de permissividade face a comportamentos delituosos de cidadãos dessa origem étnica.

Condenem-se, com todo o rigor, todos os cidadãos de etnia cigana envolvidos em qualquer tipo de atos delituosos ou criminosos. Condenem-se os ciganos como se condenaria qualquer outro cidadão - branco, preto ou às riscas. 

Qualquer outra atitude que, neste contexto, singularize os ciganos tem o nome de racismo. E quem a assumir é racista. Ponto. 

É assim tão difícil de perceber?

Bolor autárquico

Andando um pouco pelo país, constatei vários casos de "paraquedismo" autárquico, isto é, rapaziada partidária que, depois de ter operado em determinado município, surge a tentar a sorte noutra câmara. Como se fosse natural a existência desta espécie de brigada política intermunicipal para todo o serviço.

Outra realidade, pelos outdoors, é o ressurgimento dos "dinossauros", que a lei procurou colocar em definitivo pousio, mas que, passada uma quarentena (às vezes como "backseat drivers", escondidos em vereações), aí vêm de novo. Às gravatas pomposas dos cartazes de há 16 ou 20 anos, sucedem-se agora as camisas abertas, de cores claras, a dar ar de operacionalidade compensatória do peso da idade. Um ridículo sem sanção.

Numa subclasse destes últimos, aí estão também os "ressocializados", os sobreviventes às condenações da Justiça, muitas vezes tidos como "injustiçados" por um eleitorado que, se os eleger, se coloca eticamente ao seu nível. A turma do "rouba mas faz" é um triste espelho do país. São essas inqualificáveis personagens que, à pala do estafado "já pagaram a dívida com a sociedade", regressam de novo, quais raposas sorridentes em capoeira, aos locais que lhe proporcionaram as condições e o ensejo para a prática dos delitos.

Desventuras

O candidato do PSD à CM de Loures fez singulares declarações sobre as comunidades ciganas existentes naquele concelho. Nada do que disse é novo, isto é, já no passado e em tristes tempos foram ouvidos juízos decorrentes de idêntica racionalidade. 

Atento o que parecia ser o consenso maioritário prevalecente no seio dos partidos representados na AR sobre questões ligadas à luta contra discriminação de minorias étnicas - facto de que Portugal sempre se orgulha no plano externo e que lhe tem valido alguns encómios em fóruns multilaterais - um silêncio da direção do PSD sobre estas declarações funcionaria como uma objetiva rutura desse consenso, deslocando o nome do partido para um terreno eticamente muito pouco cómodo. 

O PSD tem muito pouco tempo para "pôr os pontos nos is" neste assunto. É que a "cereja em cima do bolo" seria, naturalmente, um eventual elogio do PNR a tais declarações. 

domingo, julho 16, 2017

Do ódio

Há momentos em que o ódio é legítimo? Há situações em que o sentimento de estarmos a ser atingidos, de forma arbitrária, nos leva a ser possuídos por uma imparável vontade de vingança. Toda a tolerância que ao longo de uma vida ensaiamos, com racionalidade, é, num segundo, ultrapassada por um estado de revolta profunda contra aquilo que nos rompe a linearidade da vida, o nosso bem-estar, que nos subverte os sonhos, tornados pesadelos. Sei que não devia, talvez, estar a partilhar aqui a intimidade de um sobressalto exclusivamente pessoal, de uma animosidade como aquela que me tomou, que violentou decisivamente a minha calma. Ontem, fora de Lisboa, na escuridão silenciosa de uma noite de verão, tomei uma atitude que hoje posso reconhecer ter tido o seu quê de violenta. Estou arrependido? Não estou. Quem por aqui me acompanha, creio que compreenderá. Sou uma pessoa pacífica, julgo que equilibrada, não extremista. Mas o que é demais, a partir de certo ponto, não se pode aceitar, a legítima defesa perante a agressão é, a meu ver, uma resposta adequada. Teve algo de sangrento? Teve. Acesa a luz, lá estava ela, expectante, quase provocatória, a melga. Na fúria, no ódio com que a esparramei na parede branca descobri uma outra face de mim. Foi bonito? Não, não foi. Mas se tivessem sido objeto por quase uma hora de mordidelas, eu queria vê-los no meu lugar!

sábado, julho 15, 2017

Século XXI?

Ontem, por um mero acaso, surgiu-me no Twitter uma entrevista, a uma televisão canadiana, do lider checheno, em que este profere algumas opiniões "medievais" àcerca do tratamento dado aos homossexuais naquela República russa.

Ainda não estava refeito do primarismo que transparecia daquela entrevista quando vi alguns extratos de declarações do professor Gentil Martins, nas quais este distinto cirurgião profere opiniões que colocam a homossexualidade ao nível das doenças e perversões.

Há dias em que parece ser legítimo desconfiar que há setores do mundo que ainda não entraram no século XXI. 

sexta-feira, julho 14, 2017

Perpexidade

Não gostei de ouvir o primeiro-ministro dizer o que disse na quarta-feira na Assembleia da República sobre a Altice/PT/MEO.

Não gostei, desde logo, porque não acho correto que, daquela tribuna, se singularizem empresas, da forma como isso foi feito, com todo o efeito potencial que tal pode ter na atitude dos mercados. Achei isso bastante imprudente da parte de António Costa. (A quem estranhar que eu escreva isto, lembraria que nunca condiciono a liberdade da minha opinião às simpatias políticas).

O que se passou, contudo, só confirma algo que já se ia sabendo: que a Altice se está a comportar em Portugal de uma forma altamente agressiva, numa estratégia empresarial que está a colocar em causa muitos postos de trabalho. Esta atitude hostil da empresa só nos pode suscitar grande perplexidade. 

Essa perplexidade aumenta muito ao saber-se que a Altice está prestes a adquirir a Mediacapital, proprietária da TVI e da Rádio Comercial. Acho muito estranho, confesso, que a expansão de um grupo, em tão larga e significativa escala, seja feita sem um diálogo, prévio e sereno, com os poderes públicos. 

Portugal é uma economia de mercado, aberta, com regras cujo cumprimento compete à regulação fiscalizar. Depois disso, há os tribunais. Será assim? É, mas nós sabemos que o bom senso exigiria que entre a empresa e o Estado as coisas se estivessem a processar de outra forma. E essa é a razão da minha grande perplexidade.

Américo Amorim


No tempo que antecedeu o surgimento dos "capitães de abril", a imprensa costumava designar homens como Américo Amorim, que ontem morreu, como "capitães da indústria". Esses eram também os dias em que ao qualificativo de “capitalista” não eram dadas conotações ideológicas e em que o termo “empresário” era exclusivamente dedicado aos produtores do Parque Mayer e ofícios correlativos.

Amorim faz parte de uma nova geração de criadores de riqueza que o período pós-25 de abril trouxe à ribalta. Durante anos, os expoentes dessa geração tiveram de defrontar o preconceito social de representarem o "dinheiro novo", face ao "dinheiro velho" das famílias que, à sombra do condicionamento industrial, tinham prosperado durante a ditadura, ao lado ou em aliança com o capital financeiro que adubou o Estado Novo. Os factos, contudo, vieram a não dar lustro, por aí além, aos alegados brasões históricos.

O mundo começou por conhecer Américo Amorim a partir do seu notável império da cortiça. Mas essa foi apenas a base a partir da qual criou um conjunto heterogéneo de investimentos, numa multiplicidade de áreas que tiveram o sucesso como marca comum.

Falei poucas vezes com Américo Amorim. A primeira em Londres, há mais de um quarto de século, quando aceitou ser nosso convidado numa palestra. Recordo o seu entusiasmo sorridente, que se somava àquele sentido de "saber ver antes dos outros" que, com os anos, fui descobrindo ser a qualidade comum - e distintiva da vulgaridade dos empreendedores - a certas figuras do mundo empresarial privado. A última vez que conversámos foi há poucos anos, quando o vi envolvido, com empenho solidário, numa louvável e discreta iniciativa de generosidade social, a que fui convidado a dar uma modesta colaboração.

Dizer que, na economia portuguesa, fazem falta homens como Américo Amorim pode parecer um lugar comum. É para mim muito evidente que fazem falta, entre nós, muitos mais criadores de riqueza e de emprego, que Portugal necessita de um tecido empresarial com forte dimensão, para poder competir internacionalmente. As PME têm aí um papel insubstituível, nomeadamente na diversificação (produtiva e geográfica) da exportação, mas sem empresas grandes e sólidas, projetadas para o exterior, a economia portuguesa não passará nunca da cepa torta. Isto é, nunca sairemos do estatuto em que há muito permanecemos (e que sei não ser agradável recordar): ser o país mais pobre da Europa ocidental.

Nos dias de hoje, Américo Amorim era o homem mais rico desse país pobre - e imagino que deva ser esse o mote para alguns especuladores da palavra, que sabem ser essa a forma mais eficaz de alimentar a medíocre cultura de inveja dominante.

quinta-feira, julho 13, 2017

Assuntos europeus



Perdoar-se-me-á que mantenha uma atenção particular sobre a pasta dos Assuntos Europeus. Afinal, ocupei aquele gabinete por mais de cinco anos, dediquei boa parte da minha carreira diplomática àqueles temas, continuo a tê-los como o meu principal "fond de commerce" de interesses.

Por razões que desconheço, mas que respeito, sai dos Assuntos Europeus Margarida Marques. Tanto quanto me foi dado observar, foi uma excelente secretária de Estado: conhecedora dos dossiês, com visão estratégica, neste tempo muito mais exigente na área europeia do que alguns curiosos da "espuma dos dias" políticos podem julgar. Tenho a imodéstia de assumir que só digo isto de algumas escassas pessoas, entre todos os meus sucessores no cargo.

Em sua substituição, assume funções Ana Paula Zacarias, uma excelente diplomata. Tal como Margarida Marques, é uma pessoa conhecedora dos meandros bruxelenses, com uma carreira brilhante no Serviço Europeu de Ação Externa. O primeiro-ministro e o MNE ganham uma colaboradora de "primeira água", a quem desejo o maior sucesso.

Ontem, em outro post, referia por aqui que as mulheres dominam nos assuntos europeus, em Portugal. Nos casos que referi, acumulam: são mulheres e muito competentes. O país continua muito bem servido na pasta dos Assuntos Europeus. E bem precisa!


quarta-feira, julho 12, 2017

Lula


Tenho uma forte estima pessoal por Lula da Silva. Como embaixador de Portugal no Brasil, e depois disso, devo-lhe algumas atenções, que não esqueço. Como cidadão português, sinto-me grato pelas muitas atitudes que dele testemunhei, abertamente favoráveis ao reforço das relações com Portugal, muitas vezes à revelia de certos setores oficiais brasileiros. Além disso, e no plano político, conservo um imenso apreço pelas medidas que Lula tomou em favor das pessoas mais desprotegidas do Brasil, que mudaram, para bem melhor, a vida de muitos milhões de brasileiros.

Lula da Silva acaba de ser condenado, em primeira instância, por crimes de corrupção. Se a sentença vier a ser confirmada, e sem infirmar por um instante tudo quanto acima escrevi, espero que Lula da Silva seja punido pelos crimes que venha a ficar claramente provado que cometeu. Se vier a ser inocentado, lamentarei, como amigo, que a Justiça o tenha feito passar por essa provação. Em qualquer dos casos, que fique claro: a minha estima pessoal por ele permanecerá.

É assim que eu vejo a vida.

Maduro e a democracia

Ver aqui .