sábado, junho 10, 2017

O jornalismo e o resto

José Gomes Ferreira escreveu um texto em que responde a algumas críticas sobre o modo como entrevistou, há dias, o primeiro-ministro. Nesse texto, procurou revelar a sua "independência", alinhando um conjunto de críticas que dirigiu ao anterior governo. O seu exercício saiu frustrado, como não podia deixar de ser. 

O país tem boa memória e não esquece que, ao longo de muitos anos, JGF se tem deixado resvalar para uma postura analítica (aliás, bem expressa no género de convidados que privilegia) em que se cola a soluções que agradam, esmagadoramente, a um único setor do espetro político. E que desagradam ao outro. Devo dizer que, contrariamente a muitos dos meus amigos, não me custa aceitar que JGF vá por esse caminho. Não admito, contudo, é que JGF e a SIC apresentem isso como "jornalismo". O que ele faz, à sua maneira, é apenas "crítica económica", legítima mas enviezada, como é sempre qualquer crítica (como, por exemplo, é este texto que estão a ler).

Para o jornalismo económico, que praticamente desapareceu dos "media" em Portugal, é indiferente o que o profissional pensa sobre o tema que aborda. O que ele "acha" é, em absoluto, irrelevante para o seu trabalho. O uso do "eu" é a marca que diferencia o analista do jornalista. A função deste último é explicar-nos o que está em causa, é apresentar, de forma equilibrada e neutra, a racionalidade dos argumentos que estruturam cada uma das várias perspetivas com que os agentes políticos e económicos (patronais ou sindicais) olham para o problema. Nesse inventário de leituras até pode apresentar a visão dos analistas mais relevantes, mas não lhe compete opinar, não está ali para isso. A sua missão é ajudar-nos a entender o problema, dando-nos utensílios para depois formarmos a nossa própria opinião. Só isso.

Normalmente, irrito-me ao ver os comentários de JGF e, às vezes, faço um imenso esforço para assistir, até ao fim, aos seus programas. Porém, gosto muito do contraditório e tenho sempre interesse em conhecer as opiniões da direita. Um dia, num dos seus programas, JGF descaiu-se e disse mais ou menos isto: para resolver os problemas da economia só funcionam as políticas de direita. Ouvi, tomei nota e percebi que o jornalista José Gomes Ferreira tinha acabado ali. Ele, porém, ainda não tomou conhecimento desse óbito.

sexta-feira, junho 09, 2017

Os limites de Trump

Ontem, a democracia americana revelou a sua pujança: ver o antigo director do FBI testemunhar, em sessão pública, sobre as práticas de gestão de dossiês politicos altamente sensíveis por parte do presidente do país, ouvindo da sua boca que teve receio de que ele “mentisse”, não pode senão reforçar a confiança em que os famosos “checks and balances” ainda são, nos Estados Unidos, uma coisa séria.

Desde há uns meses, o mundo vive traumatizado com a figura que os americanos elegeram para chefiar o país, sendo poucas as dúvidas de que essa pessoa está muito longe de ter as qualificações exigíveis para o exercício das funções. O sistema americano deu mostras de ter “falhado” no escrutínio seletivo que as máquinas partidárias costumam empreender, a montante do voto popular. É claro que a América já tinha produzido figuras do jaez de um George W. Bush, ou, nas vice-presidências, Spiro Agnew ou Dan Quayle, mas Donald Trump parece oferecer a perspetiva de, por contraponto, os vir arvorar em “estadistas” na memória história futura.

O que ontem se passou não deverá ter consequências de maior, para além de acentuar o aumento do desgaste politico do presidente. Quem conhece a máquina política americana sabe que é imensa a legitimidade de quem consegue o acesso à Casa Branca, particularmente se tiver em relativa consonância um Congresso apressado em fazer passar uma agenda política de reversões. A menos que Trump venha a cruzar uma gravosa “red line”, as hipóteses de vir a ser afastado no meio do mandato continuam muito remotas.

Ficou ontem muito claro que o “dossiê Rússia” está em cima da mesa da política americana, embora por razões bem diferentes daquelas que existiam há escassos meses. Por essa altura, Trump havia dado estranhos sinais do seu interesse em trabalhar num apaziguamento com Moscovo, indiciando mesmo um conluio de contornos pouco claros com Putin. As versões mais benévolas inclinavam-se para isso fazer parte de uma estratégia de isolamento da China (vista como o inimigo comercial, face a uma Rússia economicamente sufocada). Moscovo poderia ser também um possível parceiro numa acomodação no Médio Oriente, de onde os Estados Unidos (desde George W. Bush e Obama, note-se) davam sinais de estar a recuar.

Ontem, olhando o tom dos congressistas sobre as interferências cibernéticas russas, fica clara a razão pela qual Donald Trump mudou já de agulha perante Moscovo: a acrimónia pré Guerra Fria continua bem enraizada nos EUA e desvalorizá-la foi um erro crasso (entre outros) do novo presidente. E o Congresso, por mais enviezado politicamente que esteja, como está, tem sempre uma dimensão de sentinela crítica que convém não desvalorizar. Ontem fui dormir mais descansado, confesso.

quinta-feira, junho 08, 2017

António Costa

Foi muito interessante ver a conversa de António Costa com José Gomes Ferreira, na SIC. O primeiro-ministro demonstrou uma imensa serenidade, transmitindo domínio dos dossiês e confiança, dando mostras de viver bem com as tensões nas áreas políticas que apoiam o governo, mesmo no tocante às greves. Ao seu interlocutor, coitado!, não tendo como contestar os resultados obtidos, restou a postura de tentar querer ser "mais papista do que o papa" nas reivindicações daqueles setores com que visivelmente não se identifica mas cuja agenda maximalista procura utilizar para tentar atrapalhar o governo. E tendo ele sido um arauto da bondade da austeridade, procura colar o atual governo a ela, como absolvição póstuma da governação passos-coelheira, da qual tem uma inapagável saudade. Vê-se que Costa está mais à vontade do que nunca e que se divertiu com a atrapalhação de um comentador que alimenta um tropismo de Cassandra, num tempo que há uma escassez de más notícias. Confesso que tenho alguma pena de José Gomes Ferreira, a quem cabe o destino dos cangalheiros: é no mal dos outros que reside o sucesso do seu negócio. Mesmo que "os outros" sejam o próprio país - com cujos sucessos Costa o obrigou, a espaços, a afivelar um esgar de esforçado "contentamento".

quarta-feira, junho 07, 2017

O adversário ideal

Há dias, num ambiente empresarial, discutia-se a questão de saber com quem seria mais fácil discutir um contrato: se com alguém fragilizado por um débil apoio entre aqueles que representa ou se com uma pessoa que tem, atrás de si, o conforto de uma posição sólida. 

A questão coloca-se à Europa, a propósito do Brexit. Seria melhor discutir as condições de separação com um governo de Theresa May com fraco poder, debilitado por uma eleição que não correu à altura do esperado ou com uma primeira-ministra forte, após uma grande vitória, com uma voz poderosa e tendo um país unido atrás de si?

O problema não parece pôr-se: o governo britânico não parece ter condições para poder vir a obter, nas eleições legislativas de amanhã, um resultado à altura das expectativas que tinha, quando decidiu convocar o sufrágio. Será assim uma Theresa May mais enfraquecida que os restantes líderes europeus, nos próximos anos, irão ter do outro lado da mesa. Ora a História prova que um interlocutor forte, não obstante poder ser um adversário muito exigente, é também aquele que tem autoridade para poder "vender" mais facilmente recuos ou concessões a que uma negociação sempre obriga. Por isso, e ironicamente, um expectável resultado menos bom para os conservadores pode acabar por não ser uma boa notícia para a Europa.

terça-feira, junho 06, 2017

Diplomacia - os próximos 100 anos


(Texto incluído na antologia "Olhar o Mundo", organizada por António Mateus, ed. Marcador, Lisboa, 2017)

Como Twain disse um dia a propósito de um anúncio prematuro sobre a sua morte, parecem muito exageradas as notícias sobre a iminente desaparição da diplomacia.

Deixando embora os créditos da mais velha profissão do mundo para outras artes, essa vetusta gestão dos “rituais de entendimento” à escala internacional, como lhe chamou Paulouro das Neves, tem-se constituído, ao longo dos séculos, como um eficaz instrumento na prevenção e resolução de conflitos, sendo que, quando em absoluto os não consegue evitar, é da sua natureza e missão conseguir manter abertos, por cima de todas as dificuldades, os canais possíveis de contacto e diálogo.

Nunca se saberá quantas guerras a diplomacia evitou, mas é uma evidência que ajudou a pôr termo a muitas e, de um modo ainda hoje bem visível, ajudou a que algumas fortes tensões internacionais se mantivessem a níveis de intensidade capazes de poupar muitas vidas.

O século XX testemunhou, não apenas a exponencial multiplicação da rede diplomática bilateral à escala global, pela quase dupla centena de países que, em especial, o processo descolonizador fez emergir, mas igualmente consagrou o surgimento de uma diplomacia multilateral permanente, terreno de afirmação e representação, política e negocial por excelência, onde os pequenos e médios Estados ganharam um estatuto de equidade relativa que não deixa de ter consequências no equilíbrio da ordem internacional.

Marcada por um “template” com clara origem europeia, a prática diplomática (e consular) internacional conseguiu aculturar, num modelo basicamente similar, todo o resto do mundo, graças, em especial, à adoção generalizada desse valioso referencial normativo que foram as Convenções de Viena – sobre relações diplomáticas e consulares.

Não vale a pena inventariar as mudanças cumulativas que a prática diplomática foi sofrendo ao longo dos tempos, a começar pela diluição da exclusividade de representação da vontade do “soberano”, que os agentes diplomáticos contemporâneos praticamente deixaram de ter. A crescente facilidade nas comunicações, das pessoas e das mensagens, o progressivo estabelecimento de uma “comunidade” mediática e de análise dos fenómenos políticos, com projeção quase instantânea à escala global, a prática generalizada das relações diretas entre os setores especializados, públicos ou privados, dos vários países, que muitas vezes deixaram de passar pela coordenação da rede diplomática, tudo isso, e muito mais, contribuiu para desenhar um novo perfil para a atividade diplomática contemporânea – e, por maioria de razão, para os tempos que aí virão.

O trabalho dos diplomatas profissionais é hoje escrutinado com muito maior rigor e exigência, porquanto estes estão, cada vez mais, sujeitos a modelos de “accountability”, na aplicação dos quais se joga a própria legitimidade da sua existência como classe professional autónoma. A diplomacia é hoje chamada a mostrar, de forma cada vez mais transparente, o valor acrescentado que a sua ação pode trazer à proteção dos interesses que lhe cabe proteger e promover.

Essa evolução da prática diplomática, como se tornou flagrante nas últimas décadas, acabou por simplificar muita da “coreografia” que, historicamente, envolvia a ação dos seus profissionais e marcava a imagem de “glamour” (mas também, por vezes, de alguma superficialidade generalista) que a diplomacia tinha aos olhos exteriores. Alguma dessa “liturgia” da profissão é ainda preservada, dado que isso constitui um relativo suporte para o mútuo respeito por procedimentos que, no fundo, padronizam e regulam o exercício da mesma atividade por cidadãos oriundos de culturas muito diversas. No entanto, a vida diplomática dos nossos dias tende a simplificar certos rituais protocolares, a dar mostras de alguma contenção na exibição dos faustos que fizeram a sua glória de outras eras, isto é, procura assumir-se, cada vez mais, como um terreno para a execução adequada e sóbria da dimensão externa das políticas públicas dos Estados.

É neste contexto que uma nova visibilidade da ação diplomática, através da chamada diplomacia pública, se procura hoje crescentemente estabelecer, através de uma utilização das novas tecnologias e ferramentas mediáticas (blogs, Twitter, Facebook, etc), procurando tornar mais eficaz a mensagem política que intervem nos vários segmentos (especializados, etários, esferas culturais, etc) do espaço público externo.

A nível pessoal, confrontado com uma observação mais atenta do seu trabalho e movimentação profissional, quer pela comunicação social quer pelos cidadãos e instituições, o diplomata contemporâneo tende, em especial nas sociedades com serviços públicos mais eficientes, a ser crescente avaliado em função de uma “performance” por objetivos, na sua tarefa de execução da política externa que lhe compete pôr em prática. Em particular, o seu papel de coadjuvação dos operadores económicos, bem como de um conjunto cada vez mais diversificado de interesses estatais e não-estatais com projeção na área externa (ONG, expressões diversas da sociedade civil, academia), obriga-o a uma constante atualização e a uma diversificada capacitação informativa que, muito frequentemente, parece poder conflituar com os ciclos da sua rotatividade entre postos e entre estes e a sua capital – modelo que a experiência consagrou até hoje como relevante, como forma de ser mantida a alguma “frescura” no olhar profissional sobre as realidades externas em que o diplomata opera.

O caso da integração continental, em que um país como o nosso está inserido, merece aqui uma palavra especial. O estabelecimento daquilo que é hoje a União Europeia veio criar uma realidade radicalmente nova, com que os seus Estados membros se vêm confrontados. Por um lado, as instituições comunitárias funcionam como uma estrutura multilateral de natureza regional, onde se processa a concertação de posições nacionais que define a linha coletiva, por consenso ou maioria. Porém, a própria União exerce hoje uma ação externa autónoma, em representação das suas instituições coletivas, em paralelo com as diplomacias nacionais dos Estados que a compõem, que naturalmente prosseguem os interesses próprios de cada um. A coerência entre todas estas dimensões é um desafio da maior importância.

O modelo funcional da União, por seu turno, acaba por ter efeitos na natureza do tecido das representações diplomáticas que esses Estados mantêm entre si, conduzindo a um crescente “downsizing” dessas estruturas. Isso é potenciado pela intensidade dos encontros e comunicações dos responsáveis políticos e técnicos de todos esses países, numa movimentação que passa frequentemente à margem das estruturas diplomáticas bilaterais, bem como pela circunstância do tecido legislativo e os procedimentos administrativos serem cada vez mais similares e transparentes em todos os Estados, dispensando a “leitura” especializada das embaixadas.

Duas outras dimensões da diplomacia tradicional podem ser referidas como afetadas pela existência da União Europeia. No plano da sua proteção, o facto de um cidadão da União poder hoje recorrer aos serviços consulares de outros Estados membros desestimula, de certo modo, a multiplicação das redes consulares nacionais (muitas vezes integradas nas unidades diplomáticas), em especial no caso de Estados de menor dimensão. Também a tendência para posições conjuntas dos Estados da União em algumas estruturas multilaterais, cuja adoção é decidida na coordenação comunitária em Bruxelas, tende a desvalorizar o trabalho das missões nacionais nessas instâncias, com eventuais impactos na sua densidade em matéria de pessoal e estruturas.

Em conclusão, a continuar a ser aprofundada, ou mesmo apenas que preservada no seu modelo atual, a União Europeia vai apresentar um desafio interessante à criatividade transformadora das máquinas diplomáticas dos seus Estados membros.

Se me é permitida uma reflexão prospetiva, diria que tudo parece indicar para que as representações externas bilaterais venham, em geral, a perder algum sentido naquilo que era parte da sua vocação tradicional.

Nas décadas passadas, já se tinha verificado a desaparição da sua função negociadora, avocado por missões ad hoc. Agora, e cada vez mais, parece evidente que as tarefas de observação e informação, em especial na área política, surgem grandemente afetadas na sua valia pela qualidade analítica da informação aberta disponível, ou mesmo pelos serviços de entidades privadas com canais de recolha de dados muito mais eficientes que muitas embaixadas (embora, a disponibilidade de serviços oficiais de “intelligence”, por parte de certos países, continue a ser muito valiosa).

Restam três dimensões onde a função dos diplomatas parece dificilmente substituível.

Por um lado, a proteção e promoção de interesses, humanos ou patrimoniais, do Estado, dos cidadãos ou de entidades privadas. O aumento exponencial das viagens internacionais coloca desafios sérios em matéria de segurança e proteção dos cidadãos e, cada vez mais, a promoção dos interesses económicos (investimentos, comércio, turismo) e da imagem e prestígio dos Estados (cultura, diplomacia pública) se torna importante e, muitas vezes, só pode ser assumida a nível nacional.

Por outro, a função de representação ou presença política do seu Estado perante aquele em que está acreditado. A grande maioria dos países não está integrada nos circuitos de contactos regulares (pessoais ou por comunicações) entre os respetivos dirigentes politicos, pelo que o papel de representante pessoal do chefe do Estado ou da vontade do governo é, muitas vezes, indispensável para o tratamento de certo tipo de questões. A dimensão humana da atividade diplomática permanece um valor acrescentado insubstituível.

Finalmente, alguma mudança se pressente na diplomacia multilateral, onde, ao que tudo parece indicar, residirá muita da decisão futura com impacto na vida corrente dos Estados – e, por maioria de razão, no plano da prevenção e resolução dos conflitos entre eles. Neste domínio, a tendência poderá não favorecer o modelo tradicional do diplomata generalista e, cada vez mais, a função poderá vir a ser exercida por quadros técnicos cada vez mais especializados, em novas “carreiras” diplomáticas a funcionarem em paralelo com a clássica “carreira”. Essa “nova” diplomacia já hoje tem grande expressão e caberá aos Estados saberem compatibilizar a sua existência com o modelo tradicional.

A diplomacia, nas suas variadas formas evolutivas, está aí para ficar. Durará 100 anos? Ninguém sabe, mas a História provou a resiliência dessa “espécie” vocacionada para a simpática tarefa de harmonizar a vida dos Estados e dos povos.

Desafios Estratégicos e de Segurança


Pelas 18.00 horas desta terça-feira, dia 6 de junho, na Universidade Autónoma de Lisboa, na rua de Santa Marta, 56, em Lisboa, terá lugar a 4ª Conferência sobre os Interesses de Portugal no Mundo.

Em anteriores sessões, tratámos dos Eixos da Política Externa Portuguesa, da Europa e da Lusofonia. Hoje, apresentarei Luís Amado, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, que vai falar-nos sobre os Desafios estratégicos e de Segurança com que Portugal se depara, perante uma Europa em crise de projeto, uma relação transatlântica a atravessar um tempo complexo, uma NATO sob tensão em matéria de confiança.

A entrada é livre e é muito bem vindo quem quiser ser nosso convidado, nesta iniciativa do jornal "Público" e da UAL.

Militares


Uma vez por ano, por vários dias e por várias horas, cabe-me dar "instrução" a quadros superiores das Forças Armadas portuguesas. Com a maior sinceridade, essa é uma tarefa que faço com imenso gosto, porquanto é sempre muito gratificante trabalhar com "alunos" que levam o seu curso muito a sério, que têm uma formação de base onde "encaixa" à perfeição aquilo que tenho para lhes transmitir, no tocante às questões da diplomacia e das relações externas. Inicio a minha colaboração nesse novo curso daqui a horas.

segunda-feira, junho 05, 2017

Consultoria


Achei graça ao exercício em que estive envolvido ao final da tarde ontem: falar aos quadros superiores portugueses de uma das maiores empresas do mundo de consultoria e auditoria. É uma experiência interessante ser, por umas horas, "consultor" de quem o é no dia a dia para as maiores empresas portuguesas ou para empresas estrangeiras que operam entre nós. Foi muito curioso procurar dissecar algumas realidades em moldes que pudessem ser úteis ao trabalho muito rigoroso desses profissionais, sobre cujos ombros - e das qualificadíssimas equipas que dirigem - pesa uma imensa responsabilidade na avaliação das "performances" de quantos operam, a nível elevado, nos escalões superiores do nosso tecido económico. Foram algumas horas bem interessantes de apresentação e debate sobre temáticas da vida económico-financeira internacional. (E, para mim, foi também uma novidade estar, desta vez "do lado de cá", a falar a entidades que, no dia a dia das várias empresas com as quais colaboro, encontro frequentemente em, nem sempre fáceis mas sempre inquisitivas, reuniões de exigente auditoria sobre as nossas contas...)

domingo, junho 04, 2017

Em Lisboa, pare, escute e olhe o ruído


Andava muito cansado e, enquanto esperava, na sala ao lado de uma oficina, que me arranjassem o carro, sentei-me numa cadeira e, por instantes, fechei os olhos. Foi então que o som, ao fundo, de uma chapa a ser batida, bem como impactos secos, provavelmente oriundos de um martelo de borrracha no realinhamento de uma direção, despertaram em mim uma súbita onda de prazer auditivo. Não tinha o ritmado do mimimalismo de Philip Glass que um dia me embalara no Barbican (levando-me a sair no intervalo, por queixas de ressonar), mas havia por ali algo que evocava no meu ouvido (talvez mesmo em melhor) uma sessão de música concreta polaca, no S. Luís, a que, só por vergonha, cerca de uma semana antes, resistira até ao fim. Terá sido nesse instante que, embora meio adormecido, acordei pela primeira vez para a fantástica identidade dos ruídos de Lisboa.

Os estímulos auditivos que não resultem de melopeias ou de sonoridades pré-cozinhadas são, de há muito, uma das mais inspiradoras fontes da minha reatividade. E Lisboa, com o alarido mediterrânico – que os nórdicos confundem, insensivelmente, com javardice e falta de respeito pelo sossego dos outros – é um raro oásis (longe ainda de Nápoles, claro) em matéria de impactos dessa natureza. O som “oficial” de Lisboa é, como todos sabemos, o fado, mas, mesmo num registo turístico clássico, o chiar dos elétricos na descida do Ferragial ou a buzina dos cacilheiros sob neblina, bem poderiam equivaler-se-lhe nessa dignidade identitária de cartaz. Antes, no tempo do SNI e do Ferro, era também o gritar esganiçado das varinas, tão incensado na fadunchada primária, que integrava esse património decibélico. Mas ele foi-se com o tempo e com o Pingo Doce.

Verdade seja que os ruídos humanos lisboetas são reportados desde as calendas. Fernão Lopes registou-os na sonoridade literária da sua Crónica, a Rattazzi tomava-os à conta de falhas na educação e nos costumes (preconceitos!), Eça ouviu-os pelos bilhares do Montanha. Até o canto de Fausto, no “Europa, Querida Europa”, fala dessa “algazarra nas ruas”, com um “suave cheiro a sardinhas”. O chavascal é parte da nossa matriz e Lisboa é o palco orgulhoso dessa peça de chinfrim.

Um amigo brasileiro, há dias, deixou-me sem palavras, num ambiente de infernal basqueiro e guinchos de máquinas, no longo concerto de barulheira operária concreta que o maestro Fernando Medina orquestrou, por meses, pela cidade, ao dizer-me: “Você sabe, Francisco, é adorável este vosso Chiado”. Como ele disse isso nas Avenidas Novas, em frente à Versailles, fiquei sem saber se havia de escrever Chiado com maiúscula ou não.

Mas tudo isto, meus amigos, será sempre apenas uma singela gota de água numa realidade hoje com uma riqueza quase inesgotável.

Todas as cidades, como sabemos, têm os seus sons. Questão diferente é selecionar aquelas raras urbes às quais uma forte presença auditiva confere um estatuto identitário próprio. À lembrança vem-me, de imediato, Nova Iorque, com aquela obsessiva e permanente confusão de sirenes de ambulâncias e carros de bombeiros, que alguém um dia chegou a pensar que eram pagos pelo serviço de Turismo da cidade, para lhe sustentarem, no imaginário dos viajantes e cinéfilos, essa típica marca sonora. Mas Lisboa, passe a imodéstia, não fica nada atrás de Manhattan.

O meu interesse por este tema, embora por muito tempo de forma pouco consciente, vem já de muito longe. O ruído lisboeta é, em mim, um eterno fator mobilizador, que me induz a certas atitudes, embora algumas, se acaso levadas até às últimas consequências, eu não garanta que evoluíssem sempre num registo de serena urbanidade.

Recordo-me de, quando vivia perto do Campo Pequeno, em noites de fim-de-semana, ter sido o roncar dos escapes dos motards que, por exemplo, suscitou em mim uma inesperada vocação cinegética. Só não comprei a caçadeira por falta de espaço lá em casa para a guardar.

Nos dias de hoje, na rua da Lapa onde vivo, a desportiva tendência dos carros para aí testarem os limites urbanos de velocidade, traz-me, por vezes, o impulso de complementar a minha reforma com uma atividade de bricolage, onde o uso de pregos e taxas é, como é sabido, imperativo.

E, não raramente, a saborosa diversidade dos claxons, saídos dos SUV a fingir que por aí abundam, guiados por graves metrossexuais de barba, travados no caminho para as start-ups, desperta em mim, nesse tráfico congestionado (e Lisboa tem evoluído para grandes confusões de trânsito, garantindo-se assim já ao nível das grandes cidades) saborosas memórias da sétima arte: mais precisamente uma nostalgia pelos gadgets que Q colocava no Aston Martin de James Bond, capazes de disparar rajadas em várias direções.

Mas aprendi que o ruído lisboeta, paradoxalmente, também convida à reflexão. Recordo-me de jantares em casa de um amigo que vivia no topo de um prédio sobre o qual passavam, na aproximação à aterragem, os aviões. Havia pausas de largos segundos nesses momentos de convívio, tipo “un ange qui passe”, que permitiam instantes valiosos de meditação ou, em alternativa, de concentração em mais umas garfadas.

É, contudo, o ruído humano lisboeta, em todo o esplendor da sua criatividade, que estimula em mim os mais inesperados sentimentos, mesmo que, por vezes, ele tenda a atenuar os efeitos dos hipertensores que tomo.

Quase sem igual no mundo, são os berros das adoráveis criancinhas nos restaurantes onde escolhemos ir ter uma conversa serena. Lisboa tem, nesse domínio, uma magnífica cultura liberal – e ainda há quem se queixe de sermos uma sociedade iliberal! – permitindo, desde a tenra idade, a vocalização do protesto ou da alegria. É uma espécie de aplicação do 25 de abril às creches, socializando a criança ao usufruto do seu inalienável direito à indignação ou à berraria em voz bem alta. Mas, entre nós, o que é mais notável é que os pais cuidam em não guardar essa expressão sonora dos rebentos para o recato egoísta da família, antes a partilham, com imensa generosidade, com a vizinhança, que assim pode apreciar a encantadora espontaneidade infantil. O facto de alguns circunstantes se sentirem tentados a (e cito o que, infelizmente, já ouvi) a “dar um par de bofardos no puto”, também deve ser levado à conta do inestimável efeito de impulso interventivo que é desejável poder suscitar na em nosso redor. A sociedade ou é interativa ou ficamos todos silenciosos de olhos nos iPads e iPhones. Não é disso de que todos se queixam?

A contemporaneidade, contudo, tem sabido trazer, neste domínio, uma generosa oferta sonora, mais high-tech. O telemóvel é hoje um imprescindível instrumento da nossa transparência urbana. O lisboeta típico, como os estrangeiros estasiados se fartam de constatar, dá-nos regularmente o gosto de partilhar connosco, em lugares públicos, diálogos da sua vida pessoal, como informações muito francas, por exemplo, sobre os seus padecimentos de saúde ou as crises existenciais dos conhecidos. Esperimente o leitor ir ler para um lugar público e, ao final de uns minutos, concluirá que lhe são oferecidas pausas divertidas que, tirando-lhe embora o fio à meada àquilo em que estava concentrado, o fará entrar num mundo novo de revelações alheias – excelentes para quem gosta de exercitar sociologia de pacotilha no Facebook.

Outros ainda capricham, nos cruzamentos ou nas filas, em nos fazer ouvir os ritmos “metal” que saem do altifalantes dos seus carros, num volume tão elevado que, às vezes, os incapacita de tomar nota de alguns alguns adjetivos qualificativos com que, muitas vezes sem uma explícita simpatia no nosso rosto, lhes retorquimos essa não solicitada partilha.

Mas os estrangeiros visitantes, ao que me chega, já também cuidam, cada vez mais, de participar no cuidado desse património de sonoridades atípicas. Ao que parece, pelas noites animadas dos hostels, ou em partilhas de Airbnb, surgem cada vez mais interações sonoras entre andares, as quais, com o tempo, acabarão pela certa nas páginas do Correio da Manhã ou nos apanhados noticiosos das urgências.

Esta Bica, que nasceu com uma explícita vocação de servir de guia a uma nova leitura de Lisboa, rompendo com estereótipos e tentando descortinar espaços inéditos de interesse para visitantes em busca de novos nichos de curiosidade, tem aqui um papel indispensável. Dar a conhecer a riqueza dos ruídos da cidade, chamar a atenção para essa Lisboa dos sons pretensamente não harmónicos, indicar mesmo oportunidades de criatividade ativa nessa área para quem nos visita, é levar à prática um imenso dever cívico.

Não deixemos silenciar esse inestimável património decibélico (por onde anda a Unesco, que não viu ainda isto?) que é o ruído urbano lisboeta, não façamos orelhas moucas à necessidade de cultivar essa riqueza e, acima de tudo, não calemos a nossa voz perante a óbvia conspiração que se está a fazer contra o chavascal popular, contra a (tão típica) conversa aos berros em voz alta pela rua, contra a espontaneidade das mães chamando crianças à distância, nos lugares públicos e outras amenidades correlativas. Cuidemos do que é nosso, povo de Lisboa!

Há alguma coisa melhor que isto? Pode haver, mas por cá ainda não se sabe.

(Artigo publicado no nº 1 da revista "Bica")

sábado, junho 03, 2017

Ronaldo

Há algum oportunismo no nosso gozo com os êxitos de Ronaldo. Estava num restaurante com vários ecrans durante os 4-1 dado pelo Real Madrid à Juventus. Todos exultámos com os golos de Ronaldo e com a vitória "merengue". "Nós" tínhamos ganho! E se fosse o contrário? Se o Real Madrid tivesse perdido? Ficaríamos tão tristes como ficámos agora contentes? Claro que não! Se o Real tivesse perdido, a derrota era deles, ser-nos-ia relativamte indiferente. Mas como ganharam, com Ronaldo, a vitória também é nossa.

sexta-feira, junho 02, 2017

Todos os anos, pela Primavera


Todos os anos, pela Primavera - como dizia a peça de teatro Sttau Monteiro - reúne o clube de Bilderberg. E, todos os anos, algum mundo mediático agita-se em torno desse misterioso grupo, a quem são atribuídos poderes à escala global. Sem Bilderberg, o laborioso setor das "teorias da conspiração" (que tem na imagem uma ilustração perfeita) perderia uma adubagem poderosa.

Para alguns, com a legitimidade que cada um tem de pensar o que muito bem entende, Bilderberg representa uma espécie de clube de interesses, à escala global, que procura garantir, por discreta cooptação, que aqueles que revelaram a adesão a um conjunto básico de princípios, podem ser ajudados a assumir funções e, eventualmente, a atuarem em consonância com os objetivos que o grupo se propõe defender. A triagem desses eleitos é feita, em cada país, por alguém em quem o grupo delega a responsabilidade da seleção, na certeza que tem de que os seus critérios essenciais são sempre preservados.

No nosso caso, Francisco Pinto Balsemão representou o papel de « pivot » português de Bilderberg e, nessa função, ao longo dos anos, foi convidando a estarem presentes nas reuniões anuais figuras que tinham já algum passado que parecia indiciar um futuro promissor.

Escrevi, há meses, um texto para a apresentação de um livro de Frederico Duarte de Carvalho sobre este assunto. Dado que o tema, como é da inescapável sua natureza sazonal, voltou "à baila", respigo algo que então escrevi e que, claro, reitero:

"Quase cinco décadas a observar o mundo e as suas instituições levaram-me a alimentar algum ceticismo sobre a capacidade de certos interesses conseguirem mobilizar, como se de uma religião se tratasse, prosélitos que, no nosso caso, vão da ala esquerda dos socialistas a conservadores radicais. Bilderberg, como a Trilateral e outras estruturas desta natureza (porque há algumas outras), o que é que são, na minha visão pessoal?

São foruns onde vigora uma espécie de «template» comum : defesa acérrima da economia de mercado, recusa de receitas económicas estatizantes, sob o cultivo de um pensamento semore muito liberal - na leitura europeia de liberal, não na americana, claro. Durante a Guerra Fria, a profunda rejeição do comunismo e de tudo quanto o pudesse favorecer levou, muitas vezes, à transigência cínica com alguns autoritarismos conservadores. Bilderberg para mim foi e é isso – e não muito mais.

Nas suas reuniões, são ouvidas opiniões informadas, gente intelectualmente quase sempre muito bem preparada, às vezes algumas vozes fora do «mainstream» do clube. Isso permite uma oportunidade única de ter uma imersão total, em escassas horas, num manancial de ideias que, nem por serem direcionadas, deixam de ter grande interesse.

E há um outro aspeto em que Bilderberg tem importância: no «networking», nas redes de contactos e conhecimentos que se estabelecem e promovem nesses encontros. Um bom contacto leva a uma outra conversa futura, às vezes a um negócio, seguramente a uma atualização da agenda telefónica ou de emails."

Nesse texto, expliquei também que divergia do autor referido, quanto à ideia de que Bilderberg promove pessoas para chegarem a certos postos. E acrescentava:

"Eu acho, bem ao contrário, que essas pessoas são escolhidas para irem a Bilderberg porque, na perspetiva de quem as selecionou, eram gente com futuro.

No caso português acho que Pinto Balsemão fez o óbvio : escolheu aqueles que via como «high flyers», enganou-se algumas vezes mas, no essencial, acertou. Porquê ? Porque o nosso «baralho» é pequeno e, por cá, quem tem um olho é rei..."

Escrevo este texto apenas com uma mágoa. É que, ao fazê-lo, sei que estou a alimentar a discussão sobre o assunto, a suscitar novos comentários na escola do "não é por acaso que..." e nada disso tem o menor sentido.

Uma nota final: Francisco Pinto Balsemão deixou de ser o "selecionador" português e escolheu Durão Barroso para lhe suceder.

Global challenges


Estão abertas as inscrições para a 3a. edição do "Global Challenges", o curso organizado pelo ISCTE, ministrado em inglês, a ter lugar de 25 a 29 de setembro de 2017.

Tal como nas edições anteriores, farei parte dos docentes deste curso, desta vez num painel com Marina Costa Lobo e Jaime Nogueira Pinto.

Pereira Gomes


Há dias escrevi isto por aqui:

"Para a coordenação dos serviços de informação acaba de ser nomeado o embaixador José Júlio Pereira Gomes, uma excelente escolha do governo, avalizada pela oposição. Trata-se de um qualificadíssimo diplomata, do melhor que existe nas Necessidades, sereno, culto, com imensa experiência em matérias de Estado."

Não retiro uma linha ao que escrevi, mesmo depois da polémica suscitada nas últimas horas em alguns setores para-políticos e de imprensa. É tudo - mas tudo, porque não alimento demagogias! - o que se me oferece dizer. Conheço o suficiente da questão para poder ter a consciente serenidade de manter esta posição.

Desafios estratégicos e de Segurança


Luís Amado foi ministro dos Negócios Estrangeiros e ministro da Defesa, durante vários anos. É uma personalidade com vasta e rica experiência no setor, que sempre demonstrou um raro poder de conceptualização sobre as grandes questões internacionais e a inserção de Portugal no mundo. É hoje consultor e docente em Sciences-Po, em Paris.

No âmbito das conferências que a Universidade Autónoma de Lisboa e o jornal "Público" estão a promover, e que me coube organizar, dedicadas aos Interesses de Portugal no Mundo, decidi convidar Luis Amado para nos falar sobre os Desafios estratégicos e de Segurança com que Portugal se defronta, no mundo complexo dos nossos dias. 

A conferência tem lugar no próximo dia 6, terça-feira, pelas 18.00 horas, na UAL, rua de Santa Marta, 56, em Lisboa.

Angelismo

Na língua portuguesa, a expressão é raramente utilizada. Angelismo é uma atitude de inocência ou credulidade, que descarta, ingenuamente, motivações mais interesseiras. Ao atentar na onda de loas com que foram recebidas as últimas declarações de Ângela Merkel sobre a Europa, claramente sugerindo a Alemanha como impulsionador de um processo de autonomização em matéria de defesa e segurança, perguntei-me se não estaríamos a embarcar num novo «angelismo», desta vez com etimologia derivada de Ângela e já não de anjos. Mas, no segundo seguinte, também me interroguei sobre que outras alternativas estão disponíveis no mercado de alianças.

Donald Trump, na brutalidade de muitas das suas posturas, tem a curiosa vantagem de tornar as coisas muito simples, por mais complexas que elas sejam. A nova América projeta uma agenda de afirmação nacional de interesses com imensa transparência, descurando deliberadamente a retórica acomodatícia de que, por muitos anos, se alimentou o «politicamente correto» das relações internacionais. Trump diz ao que vem: o relacionamento externo da «sua» América far-se-á exclusivamente nos termos que melhor corresponderem aos seus objetivos nacionais. E di-lo «alto e bom som», para óbvios efeitos internos, com isso reduzindo muitas das hipóteses de recuo ou compromisso.

Angela Merkel e os aliados europeus da América tiveram o privilégio de ouvir, sem ambiguidades, as novas regras do jogo, que vão do comércio internacional, passando pelas regras ambientais, chegando à segurança e defesa. E a Alemanha, que sempre me pareceu ser o país europeu que mais cedo percebeu o que Trump podia vir a representar, não tardou a tirar uma conclusão simples: agora, pela primeira vez desde há décadas, a Europa só pode contar consigo própria. 

Esta constatação acarreta, contudo, alguns problemas. 

Desde logo, de que Europa falamos, se dos bálticos e da Polónia que vivem ainda na situação pós-traumática de uma Guerra Fria que acham reiniciada, ou de quantos, ainda que sob uma aparente firmeza conjuntural face ao autoritarismo arrogante de Moscovo, estão mais do que desejosos de encontrar mecanismos de acomodação com a Rússia? A começar, sejamos claros, pela própria Alemanha e pela França, porque as fanfarronices de Macron face a Putin devem ser lidas à luz da necessidade de dar-se ares de «duro», num contraste fácil com Hollande, até às eleições legislativas.

Uma segunda questão prende-se com o facto de Trump não ter confirmado explicitamente a garantia última de defesa coletiva decorrente do artigo 5° do Tratado de Washington. Não o fez por acaso e isso não passou despercebido. Num mero contrato, pode-se funcionar numa base de boa fé. Numa aliança, que é feita de princípios, valores e objetivos comuns, é a confiança que prevalece. E, quando ela deixa de existir, é a desconfiança que emerge. E uma forte desconfiança projeta-se inevitavelmente sobre a eficácia, nos dias que correm, do compromisso transatlântico. Dir-se-á que Trump marcou, na palavras, a sua distância face a Moscovo e esse é o cimento essencial de aliança que sempre federou a NATO. Mas também há quem se não esqueça que o mesmo Trump, meses atrás, tecia loas a Putin e hoje parece recuar nessa estranha deriva apenas pelas trapalhadas a que esse caminho o conduziu.

Mas há um terceiro problema que, neste estado de orfandade europeia da afetividade do outro lado do Atlântico, está a emergir. Trata-se do lugar futuro da Alemanha no quadro dos poderes europeus. 

Por essa Europa fora, a perspetiva de um papel central da Alemanha numa Europa de segurança e defesa é uma ideia pouco consensual. Claro que, a seu lado, descontado o Reino Unido no pós-Brexit, estará a França – com umas forças armadas poderosas, com capacidade de projeção de forças, um poder nuclear, um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Mas a Alemanha, para muitos (sejamos claros, também para si própria) continua a ser um fantasma histórico. Ver a Alemanha a rearmar-se não é uma ideia sossegante para muitos, embora talvez se trate já de um preconceitos sem sentido. Mas um novo «angelismo» não parece fácil de adotar numa Europa onde o passado está sempre à espreita.

Relações internacionais


A foice, o martelo e eu


Há dias, a pretexto de uma crítica que fiz às ideias políticas de Miguel Urbano Rodrigues, numa nota respeitosa que escrevi por ocasião da sua morte, fui, nas redes sociais, zurzido de “anti-comunismo”. Só faltou acrescentarem “primário”...

A acusação de “anti-comunismo” está ligada, entre nós, a um certo período histórico. “Anti-comunistas” eram quantos, no pós-25 de abril, diabolizavam o PCP (apenas a este partido isto era aplicável), negando, implícita ou explicitamente, a sua legitimidade para integrar o espaço democrático. Para alguma esquerda, ser “anti-comunista” era, ao tempo, quase sinónimo de “fascista”, de defensor da ordem ditatorial anterior, que tinha no PCP como inimigo jurado.

Reconheço alguma razão nesse reflexo porque, já depois do 25 de abril, ainda houve gente que sonhou ilegalizar o PCP – e nunca poderemos agradecer suficientemente a coragem tida por um homem como Ernesto Melo Antunes, ao impor a recusa política dessa sinistra ideia, na sequência do 25 de novembro.

Porém, uma coisa é ser “anti-comunista”, nesse preciso registo, outra bem diferente é ter o direito a expressar, sem risco de insulto, uma discordância com a agenda política hoje titulada pelo PCP. No meu caso, combato muito daquilo que o PCP defende, acho obsoleto e retrógrado muito da sua agenda política, mas não admito que, por essa razão, alguém me qualifique de “anti-comunista”.

Faço parte de uma geração política que foi educada no respeito pelo “Partido”, na admiração pela bela história de luta dos comunistas portugueses, principais vítimas da repressão da ditadura, tempos em que com eles me senti bem solidário, a quem agradeço os sacrifícios que fizeram e que muito contribuíram para a nossa liberdade.

É claro que algum PCP teve tentações autoritárias no período do PREC, mas muitos de nós, por essa altura, também embarcámos em aventureirismos que, fazendo parte indissociável do nosso passado, fazem igualmente parte daquilo que foi a nossa aprendizagem política: a ideia de que não há nada mais parecido com uma ditadura de direita do que uma ditadura dita de esquerda. E não me obriguem a dar exemplos.

Lembrei-me de tudo isso, há dias, quando, com o presidente da República, mas também com o secretário-geral do PCP, participei numa justíssima homenagem a Mário Castrim, militante comunista. Durante essas horas, não me dei conta de que alguma distância, no plano das ideias políticas, me impedisse de apreciar o jornalista e o escritor que nos ajudou, com arte e ironia, a atravessar o "ar irrespirável” da ditadura. Alguém que, para retomar o belo poema de Manuel Gusmão (também ele comunista), citado na ocasião pelo ministro da Cultura, nos ajudou a encontrar,"contra todas as evidências em contrário, a alegria”.

quinta-feira, junho 01, 2017

À distância

Há minutos, fui convidado para fazer uma palestra: algures em novembro "próximo". É muito bom ver as coisas planeadas com tempo, embora também devamos pensar que, daqui até lá, pode sempre haver circunstâncias supervenientes que venham a arruinar estes cuidadosos agendamentos.

Há uns anos, numa rua de Paris, estava afixado um cartaz para um concerto de Tony Bennett, o clássico "crooner" americano. Fiquei surpreendido, desde logo porque pensava que ele já tinha morrido, mas também, mesmo que fosse vivo, que ainda fizesse espetáculos.

Fiz um comentário à frente, creio, do meu amigo João Durão, que estava por lá de passagem e que me disse: "Eu estou surpreendido é com o otimismo do homem". Julguei que fosse o eterno "sorriso pepsodent" de Bennet que justificasse a frase. Mas o João logo acrescentou: "É que estamos em maio e ele ainda se atreve, com aquela idade, a marcar um espetáculo lá para o fim de novembro..."

€ 7,50


Foi há dias. Uma folga. Coisa rara, nesta vida de aposentado. (Ao menos, quando era funcionário público, tinha um horário!) Por lapso, tinha anotado mal uma aula. Agora, tinha à minha frente duas horas para preencher.

Comecei a andar pela rua, havia um alfarrabista e, claro!, entrei.

O livro tinha sido editado em 2007. Dez anos, é muito tempo, como cantava o outro. Onde é que eu estava em 2007? No Brasil. Nunca vira aquele livro e considero-me um bem sucedido bisbilhoteiro de estantes e mesas de livrarias. A capa era dura. Já custara €30 (!), depois €20, agora estava €7,50. Comprei.

Vi uma esplanada minúscula, numa leitaria manhosa. Pedi um sumo de laranja, depois uma bica. E ainda um bolo de arroz. E um novo sumo. Fiquei por ali, quase as duas horas, a tal folga, a folhear o livro, a ler alguns textos soltos. Porque o livro era para ser digerido assim.

E deliciei-me. Que bom que é poder ler - em português culto, limpo e enxuto - histórias de mundos que passaram ao nosso lado, alguns que cruzámos em Lisboa e noutros lugares, onde se fala, de forma aberta, franca, de pessoas, de factos, de ideias, de tudo. E esse tudo sob um olhar inteligente, atento, interessado e interessante. Um olhar refletido em papel, em artigos, agora juntos, numa unidade com certeza nunca imaginada aquando da escrita.

Paguei provavelmente mais pelo que comi e bebi, cujo sabor já esqueci, do que os €7,50 que dei por um livro que, afinal, vale agora (para mim) bem mais dos que os €30 iniciais capa. E não só porque me encheu, com inesperado gosto, a folga. Também porque, desde então, o reabro quase todos os dias, "ao calhas", como dizíamos em miúdos. Sempre com novas surpresas, nas mais de 500 páginas.

Se querem saber, não havia lá no alfarrabista mais nenhum exemplar do "Século passado", de Jorge Silva Melo, editado pela Cotovia (que o tinha mandado saldar pela Promobooks a €7,50). Assim, a partir de amanhã, na Feira do Livro, passem pelo stand da editora e peçam o vosso exemplar a €7,50. Se eles resistirem, digam que vão da minha parte. Pode ser que eles se comovam.

(Em tempo: pessoa atenta a estas coisas disse-me que este último comentário sobre a editora terá sido excessivo. É que passado que seja um período razoável na comercialização de um livro, não há outra solução que não seja saldar os exemplares não vendidos. Foi o que fez a "Cotovia", é o que fazem, ao que parece, todas as editoras. O meu "mea culpa" perante a "Cotovia". Até porque, tal como escreveu Harper Lee, o meu desejo é que "Não matem a cotovia").

quarta-feira, maio 31, 2017

Pesca à linha

Diverte-me imenso o oportunismo de certa esquerda, alguma que tem tanto de crente como eu tenho de maçon, que passa agora o tempo a "pescar" frases do papa Francisco, que, de quando em quando, lhe "dão jeito", como se ele fosse uma espécie de guru esquerdalho. 

Verdade seja que fazem exatamente a mesma figura que alguma direita fazia quando cavalgava, com simétrico oportunismo, o hiper-conservadorismo (ia escrever reacionarismo, mas opto por deixar entre parêntesis) desse Ronald Reagan religioso que se chamou João Paulo II.

Esta adaptabilidade multi-usos dos chefes da igreja católica ajudará a explicar a sua sobrevivência? 

Posso imaginar que me venham dizer que isto é "areia demasiada" para quem é ateu.

terça-feira, maio 30, 2017

A vontade de Merkel

Não pode deixar de saudar-se a vontade manifestada por Ângela Merkel de dar corpo a uma maior expressão autónoma europeia em matéria de segurança e defesa.

A perspetiva do Brexit, somada às "lessons learned" dos seus traumáticos encontros com Trump, tê-la-ão convertido a uma doutrina em que, no passado, o empenhamento alemão foi sempre muito discutível e, em especial, demasiado limitado na prática para a importância do país.

Vamos agora esperar para ver se, àquelas palavras, vão corresponder atos concretos. 

Desde logo, o urgente reequipamento das forças armadas alemãs, das quais há sinais preocupantes em matéria de estado de prontidão.

Mas, essencialmente, interessará testar este voluntarismo retórico nas futuras ações de estabilização político-militar, tuteladas por mandatos internacionais, em que a Berlim for pedida uma contribuição à altura da importância dos outros interesses que a Europa projeta em seu nome.

Esperemos que Angela Merkel não venha a revelar-se como aquele capelão militar do RI 13, lá de Vila Real, que, um dia, à partida de tropas para a guerra colonial em África, teve esta "infamouse" tirada: "Rapazes! Preparemo-nos para a guerra! Ide!"

Nuno


O Nuno Brederode Santos partiu há um mês. Ontem, com a Céu, alguns daqueles que ele classificaria como "o ventre mole do núcleo duro" dos seus amigos lembrámo-lo, da forma e no local em que achámos que ele gostaria de ser lembrado. Deixo esta sua bela fotografia e as palavras de Lincoln: "It has been my experience that folks who have no vices have very few virtues".

segunda-feira, maio 29, 2017

Notícias raianas


António Costa e Mariano Rajoy encontram-se hoje, em Vila Real, numa cimeira entre governantes de Portugal e de Espanha. Não qualifico de "ibérico" este encontro peninsular por (boas) razões que quatro décadas de Necessidades me ajudaram a cultivar (e que não são para aqui chamadas).

(O encontro tem lugar na minha terra, em Vila Real, uma cidade pouco dada às luzes da ribalta mas que uma gestão camarária recente muito inteligente tem vindo a recolocar no mapa.)

Há uma semana, também em Vila Real, os presidentes dos parlamentos dos dois países, acompanhados de deputados de todos os principais partidos, debateram já alguns temas de interesse comum. Tive o gosto de ser convidado para fazer, na abertura desse encontro, uma intervenção em que elenquei os grandes desafios europeus que os dois países devem enfrentrar na Europa que aí vem.

Notei, nessa ocasião, que as "sintonias" político-partidárias entre Lisboa e Madrid raramente foram o terreno necessário para um entendimento frutuoso. Cavaco Silva e Felipe Gonzalez ou António Guterres e José Maria Aznar foram a prova provada disso, com o contraponto do "tandem" menos bem sucedido entre José Maria Zapatero e José Sócrates. Esperemos que Costa e Rajoy confirmem a "regra".

O grande tema da Cimeira de hoje é a cooperação transfronteiriça. Há mais de 40 anos (acho que já referi isto por aqui, pelo que peço perdão por eventual repetição), dois jornalistas espanhóis escreveram um livro (não sei se editado por cá) intitulado "La  Raya de Portugal, la frontera del subdesarollo", que evidenciava que a pobreza e o subdesenvolvimento rimavam com a proximidade a Portugal. Anos antes, um grande jornalista português, Manuel da Silva Costa, escrevia o "Portugal país macrocéfalo", um retrato trágico de como então (e não havia o Pordata) o país era Lisboa e "o resto" era "paisagem".

As coisas mudaram muito. Em Espanha, seguramente para melhor, com um excelente "aménagement du territoire" (expressão francesa para a qual "ordenamento" me não satisfaz), que não atenuou pr completo algumas debilidades. Por cá, embora com variantes de acordo com a região, o despovoamento, a desertificação e a pobreza "qualitativa" acabam por marcar a esmagadora realidade da nossa zona raiana.

Por essa razão, ter a cooperação transfronteiriça no topo da agenda da cimeira é um ato de inteligência e bom-senso. E tentar encontrar maneira de ancorar essas zonas a apoios europeus é excelente.

Queria apenas fazer um alerta, a propósito de uma realidade que, no entanto, e no essencial, não se alterou nas últimas décadas. As realidades institucionais que, de ambos os lados da fronteira, enquadram os modelos transfronteiriços são muito assimétricas: de um lado estão Autonomias, democraticamente fortes, com estruturas poderosas e testadas. Do lado de cá, à falta de regionalização (e pouco importa aqui se ela seria desejável ou não), temos apenas CCDR e municípios, associados ou não. 

Torna-se assim muito importante para Portugal garantir que essa assimetria se não converte num fator de fragilização da posição das entidades nacionais, quando chegar a hora da gestão da soluções comuns e do desenho e colocação no terreno dos mecanismos para dar expressão prática à cooperação transfronteiriça. É essencial que o peso específico de um dos lados não prevaleça sobre o outro em moldes que possam configurar uma qualquer hierarquia de interesses. E mais não digo, porque as entidades a quem esta mensagem se destina sabem bem do que estou a falar.

A Lusofonia e os interesses externos de Portugal


O embaixador António Monteiro, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, é seguramente uma das figuras diplomáticas portuguesas que melhor conhece África.
Nascido ele próprio em Angola, teve como um dos seus primeiros postos profissionais Kinshasa. Mais tarde, noutras funções, viajou amplamente pelo continente, vindo a ser figura central na negociação dos Acordos de Bicesse. Chefiou depois, em Luanda, a Comissão Conjunta Político-Militar para a implementação do acordo. Como Diretor-geral Político-Económico do MNE, deve-se-lhe o "desenho" da CPLP, que ajudou a construir. Embaixador na ONU e em Paris (curiosamente, vim a suceder-lhe em ambos os postos), continua hoje a seguir com atenção o mundo da lusofonia, a que está ligado em termos profissionais.
É uma reflexão aberta sobre os interesses que compete a Portugal defender nesse âmbito que António Monteiro irá fazer, a meu convite, em mais uma sessão das conferências sobre "Os interesses de Portugal no mundo", semanalmente organizadas pela Universidade Autónoma de Lisboa, numa parceria com o jornal "Público".
A conferência do embaixador António Monteiro terá lugar na 3ª feira, dia 30 de maio, pelas 18.00 horas, na Universidade Autónoma de Lisboa, Rua de Santa Marta, nº 56, em Lisboa.
A entrada é livre, até ao limite de disponibilidade da sala.

domingo, maio 28, 2017

Miguel Urbano Rodrigues


Ouvi falar dele, creio que pela primeira vez, ao meu primo, Carlos Eurico da Costa. Ambos tinham trabalhado nessa efémera experiência que foi o "Diário Ilustrado".

Miguel Urbano Rodrigues cedo se exilou no Brasil, deixando muito bom nome como jornalista no Estadão, onde chegou a editorialista. Escrevia muito bem, textos cultos, onde espelhava uma vida com muitas experiências e ricos encontros. Tudo isso, contudo, era limitado por uma cegueira (outros terão um vocábulo mais amável) política que lhe coartava a evidente genialidade da pena. 

Militante do PCP, viria, já bem depois do 25 de abril, a dirigir "O Diário", uma espécie de MDP-CDE impresso (só alguns entenderão o paralelo), uma publicação que (passe a blague) era a verdade a que os comunistas tinham direito. 

"O Diário" foi um jornal curioso: reunia um conjunto de excelentes profissionais (entre outros), mas produzia um jornalismo que, na sua globalidade, tinha uma qualidade que deixava muito a desejar. Contudo, à distância, creio ser justo dizer que foi melhor do que a imagem que dele guardou a história do nosso jornalismo.

Com Franco Nogueira, Miguel Urbano Rodrigues fez depois por vezes um dueto caricatural esquerda-direita, uma fórmula que um espertalhote qualquer inventou na RTP. A esmagadora maioria da esquerda não se revia naturalmente no sectarismo semanalmente afirmado por Miguel Urbano Rodrigues e a direita, então comodamente instalada no poder cavaquista, fingia quase "ser de centro", em face do tremendismo estado-novista tardio de Franco Nogueira. A perfídia, em "jornalismo", tem destas coisas. 

Miguel Urbano Rodrigues andou depois pelo mundo, creio que viveu em Cuba e no Brasil. Nunca o encontrei, nunca falei com ele. Mas li muito do que escreveu. Prejetava a imagem de alguém que havia perdido (e era inconsolavelmente saudoso de) um mundo político em que sinceramente acreditou - o que é muito respeitável, mas apenas quando isso é inócuo para a liberdade dos outros. No que me toca, nesta que é a hora da sua morte, e tendo em comum com ele uma rejeição de um certo passado, sinto-me suficientemente à vontade para afirmar que há muito que não tínhamos os mesmos amanhãs como objetivo - se é que alguma vez isso verdadeiramente aconteceu.

Dias ranhosos


A expressão pode ser lida num registo sem excessiva elegância, mas "dias ranhosos" era um dito que me recordo ouvir, na minha infância, para qualificar manhãs que "abriam mal", com o teto pesado, ameaça de chuva ("céu sachado, chão molhado", se visto na véspera), às vezes com um ventinho húmido e desagradável a acompanhar. 

Depois, por entre as nuvens, alguns dias "compõem-se", mas um início de dia "ranhoso" (que raio de nome, pensando bem!) é algo que me indispõe e torna logo irritadiço. Verdade seja que as manhãs nunca foram a parte favorita do meu dia, com ou sem sol. Mas houve quem tivesse artes, como ninguém, para me ajudar a atravessar essas horas em geral tormentosas.

Tive uma secretária com a notabilíssima qualidade de saber "ler" o meu estado de espírito, nesse tempo penoso até ao almoço. Logo de manhã, pelo modo como eu vocalizava o "bom dia", à chegada ao escritório, pelo grau de "simpatia" com que recebia o café matinal que ela me trazia, para logo mergulhar nos jornais e nas papeladas do tabuleiro das "entradas", ela fazia algo que só uma excecional profissional (também da psicologia?) conseguia fazer: uma inteligente triagem das chamadas telefónicas, em função do meu estado de espírito, bem como das pessoas, da minha "entourage", que eu me apeteceria receber.

Eu explico. 

Se acaso sentia que eu vinha demasiado "contra o vento", ela cuidava em não me passar telefonemas de pessoas que sabia que só me iam irritar, daqueles que só ligam para pedir coisas ou para trazer problemas, de alguns a quem, em ocasiões anteriores, eu tinha atendido chamadas com um prévio comentário ou interjeição (num desabafo para ela) que sentira como negativo. E o acesso a mim ou ao meu gabinete era também "filtrado", vedado meticulosamente a quantos ou quantas ela pressentisse que só me iam trazer chatices. "O doutor está ocupado" ou "pediu para não ser interrompido" ou coisa assim - eram algumas das fórmulas utilizadas. Na esmagadora maioria dos casos, eu não lhe tinha sequer chegado a dizer nada... E quase sempre acertava! 

Porém, se ela pressentisse que quem me ligava ou surgia por ali, mesmo sem hora marcada, era gente com quem eu iria ter prazer em falar, com quem, em geral, me divertia, que me ligava desinteressadamente ou queria dizer apenas um "olá" para saber como eu andava, o acesso era logo facilitado. Cheguei a ter eco de muitas "ciumeiras", e ela pagou algum preço por isso.

Que saudades eu tenho dessa amiga, agora a viver a vida na profundidade dos "States", que entendia como ninguém a maneira de contornar as minhas manhãs "de candeias às avessas", de "blues" (como por lá se diz), que, como ninguém, era capaz de ir gerindo o início de alguns "dias ranhosos", dando-me tempo para recuperar o bom humor de que, em geral, me alimento.


Olho agora lá para fora e vejo que o dia, afinal, está a ficar menos "ranhoso". Aproveitemo-lo.

sábado, maio 27, 2017

A Taça, o Nuno, o chá, o Browns, os "Gunners" e a vingança de Wenger


Acabo de ver na televisão a minha equipa londrina, o Arsenal, vencer a "Cup final", num jogo emocionante até ao fim. (Tenho estas defesas internacionais afetivas, talvez para compensar azares desportivos domésticos). Lá por Londres, no antigo Wembley, tive em tempos o supremo privilégio de assistir a algumas finais, espetáculos memoráveis nessa insubstituível "catedral" histórica do futebol.

Hoje, acompanhei a segunda parte do jogo com um belo "Earl Grey" da Twinings, com a água na temperatura certa, porque, como dizia a minha mãe, não se deve "cozer o chá".

Há minutos, ao dar pela falta dos "scones" a acompanhar, lembrei-me do Nuno Brederode Santos. Quando eu vivia por Londres, o Nuno passou por lá algumas vezes. Na primeira, encontrámo-nos para um copo no bar do Browns. "Eu, nesta terra, fico sempre no Browns", tinha decretado o Nuno. E ficava muito bem. O Browns era um hotel clássico, numa transversal a Picaddilly (não tenho pachorra para ir ao Google ver o nome da rua), à época bastante agradável. O Nuno explicou-me que o "afternoon tea" do Browns era tido por um "must". A verdade é que não me recordo de alguma vez ter tomadi chá com o Nuno.

Meses mais tarde, num sábado, com os meus pais, que estavam por ali em férias, fomos lanchar o Browns. À entrada, corretíssimo, um funcionário observou-me: "I'm afraid, sir, but you forgot your tie!" De facto, eu não levava gravata. Lembrava-me lá eu de andar de gravata num fim-de-semana! "May I ask you to select the one you like the most from our 'private' collection?", disse, gongórico, sorrindo. E lá lá fui a um "closet" descortinar uma tira de pano, de que escolhi a mais berrante (para escândalo de quem ia comigo, mas não do empregado), para pôr ao pescoço, autorizado assim a poder degustar a seleção magnífica de compotas com que por ali se acompanhavam as mini-sandwiches, os "brownies" e aqueles imbatíveis "scones", nos "trays" cónicos de regra.

Por uma única vez, bem mais tarde, dormi uma noite no Browns - e disso não guardo nenhuma memória impressiva, embora me digam que o hotel hoje está esplendoroso. Não sei se agora (com os russos e árabes a pagar) o hotel ainda exige o uso da gravata, nem se o chá da tarde por lá ainda se recomenda, Só sei que, com o Nuno, não poderei nunca mais comentar essa Londres de que ele tanto gostava (e houve outras Londres que partilhei com ele e o seu grande amigo Zé Laranjo, que também já se foi).

Por que é que me lembrei, nesta hora da final da Taça de Inglaterra, do chá? Pela "falta" dele por parte dos jogadores e dirigentes do (meu) Arsenal, pelo modo miserável como deixaram isolado no meio do campo, sem um abraço, sem um gesto de solidariedade, o (agora) mal-amado treinador Arsène Wenger, um "gentleman" (embora francês) que deu mais de vinte anos pelo clube e que parece destinado a ser escorraçado (embora lhes ofereça a "chapada" derradeira da vitória de hoje).

O "meu" Arsenal era outro, era o de Highbury Park, do "Fever Pitch" do Nick Hornby, do bairro operário das fábricas militares em que prosperou. Beber uma "pint" no "Wig and Gown", em sábados em que, anónimo e sozinho, ia de metro a Islington, foi uma espécie de batismo no mundo dos "gunners". É que, à época, muitos grunhos, arrotando cerveja e grunhindo interjeições num indecifrável "slang", talvez tivessem "mais chá" e sentido de gratidão do que esta tropa de hoje, que não respeita quem os serviu com lealdade e bastante sucesso por tanto tempo.

Obrigado, António

O dia em que é anunciado um novo governo é a data certa para dizer, alto e bom som, que entendo ter sido um privilégio ter como primeiro-min...