terça-feira, fevereiro 16, 2016

O papel de um jornal

Foi anunciado que o diário britânico "The Independent", que tinha uma edição dominical autónoma, "The Independent on Sunday", vai deixar de publicar ambas as edições em papel, ficando reduzido ao "on-line".

O "The Independent" nasceu em 1986 e constituiu uma saudável revolução no meio dos chamados "quality papers" britânicos, desde logo no caráter mais "arejado" do seu grafismo. Um pouco mais à esquerda do que os clássicos "The Daily Telegraph" e "The Times", e de diferente natureza do "The Financial Times", competia, de certo modo, com o espaço político do "The Guardian", embora se distanciasse mais do Partido Trabalhista do que este último, afirmando uma atitude bastante "business-friendly". Nos fins de semana, o "The Independent on Sunday" era também um apreciável jornal, embora, na minha perspetiva pessoal, fosse inferior ao "The Observer", a edição dominical do "The Guardian". E dava-me menos gozo do que o "The Sunday Times", onde alguma irreverência conservadora assegurava grandes textos (não sei como hoje anda).

Quando fui trabalhar para a nossa embaixada em Londres, em 1990, comecei por pedir como jornal diário o "The Independent", que estava então "na moda". Ao final de algumas semanas, dei-me conta de que uma boa parte da "inside information" sobre o governo conservador da senhora Thatcher me escapava, pelo que passei também a ler diariamente o "The Times". Com a as questões europeias a tornarem-se cada vez mais decisivas em Londres (como agora volta a acontecer), passei a mandar vir também o "The Financial Times". Mas, pouco tempo depois, continuando por preconceito a fugir aos tablóides matinais ('The Sun", "Daily Mirror", "Daily Mail", "Today", "News of the World"), converti-me à leitura diária do "The Evening Standard", um (bom) vício do qual nunca me libertei até ao meu último dia em Londres (ainda ontem o li com proveito, agora gratuito). Eram assim quatro os meus jornais diários, para além do americano "The International Herald Tribune" (hoje transformado em "International New York Times", depois de perder as contribuições do "The Washington Post" e do "The Los Angeles Times") e do francês "Le Monde", a que se somavam ainda os semanários "The Economist", "The New Statesman" e o "The Private Eye". Aos domingos, o "vício" era ainda bem maior: comprava o "The Telegraph on Sunday", o "The Independent on Sunday", o "The Observer" e, claro, o "The Sunday Times". Cerca das duas da manhã, saía de casa e ia a uma "loja de conveniência", aberta 24-sobre-24 horas, adquirir todos aqueles quilos de papelada (esses jornais dominicais pesam aí dois quilos cada um), regressando a casa, regalado, para lê-los pela madrugada dentro. Outros tempos, que eram também uma implícita homenagem à melhor imprensa do mundo, a britânica! Qualquer dia, o "on-line" muda tudo e reduz-nos ao iPad.

Quando "morre" um jornal em papel sinto alguma pena, confesso, embora compreenda que não podemos contrariar o destino. E ele vai inexoravelmente no sentido da eliminação do papel, em favor da imagem por via informática. É bom? É mau? Acho que não devemos ter grandes estados de alma. É a vida!

Daqui a pouco, aqui por Londres, vou comprar o "The Independent", quanto mais não seja para verificar se, muito saudavelmente, anuncia o jantar anual da Crabtree Foundation, que aqui me traz.

domingo, fevereiro 14, 2016

A simpatia de um embaixador

O embaixador dinamarquês em Lisboa foi ao parlamento português, correspondendo a um pedido feito para dar explicações sobre medidas polémicas adotadas no seu país face aos refugiados, que haviam justificado um voto unânime de protesto na Assembleia da República. 

O diplomata havia-se já mostrado disponível para falar na comissão parlamentar respetiva sobre o assunto, o que desde logo revelava uma atitude de grande respeito para com a instituição parlamentar portuguesa.

Tudo estaria bem, se se tivesse passado assim. Porém, o parlamento português, num ato de bravata sem sentido, decidiu convidar (a imprensa disse “convocar”) o diplomata, “esquecendo” deliberadamente a anterior disponibilidade mostrada por este. Alguns deputados tiveram consciência da indelicadeza deste ato, a maioria não teve. O que é triste.

Convém deixar muito clara uma coisa: nenhum diplomata estrangeiro tem a obrigação de obedecer a uma “convocatória” do parlamento português, nem sequer de aceitar um “convite” por este formulado. A Assembleia da República não tem competências nesta área que lhe conferiram esse direito. 

As relações entre os diplomatas em posto em Lisboa e o Estado português processam-se exclusivamente por intermédio das duas únicas entidades constitucionais que intervêm na sua acreditação: governo, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Presidência da República.

Para sublinhar ainda mais o absurdo desta situação, convém notar que nem os próprios embaixadores portugueses, salvo em caso de convocatória por matéria em investigação em comissão parlamentar, são obrigados a estar presentes em audições no nosso parlamento. Podem fazê-lo, a convite mas sempre sob autorização do governo. Sei do que falo, porque fui o primeiro embaixador a estar presente numa comissão nessa condição.

Voltando ao caso em apreço, quero deixar uma palavra pela simpatia e respeito para com Portugal demonstrados pelo embaixador da Dinamarca.

(Artigo publicado no Diário de Notícias de 15.2.16)

sábado, fevereiro 13, 2016

Aeroporto Humberto Delgado


O governo decidiu dar ao aeroporto da Portela o nome de Humberto Delgado. Uma excelente decisão, consagrando alguém que foi o fundador da TAP e diretor-geral da Aeronáutica Civil, uma das pessoas que impulsionou, como ninguém, a aviação comercial em Portugal. Mas há mais razões para além disso.

Depois de ter sido um grande apoiante da Ditadura Nacional, no período imediatamente subsequente ao golpe militar de 28 de maio de 1926, o general Humberto Delgado viria, nos anos 50, em especial depois da sua passagem por Washington como adido militar, a manifestar um afastamento crescente face ao regime salazarista. Pouco antes das eleições presidenciais de 1958, chegou a setores da oposição democrática a informação de que um general, antes ligado ao regime, se mostrava crítico de Salazar. Foi António Sérgio quem canalizou essa informação para o seio das forças oposicionistas mais moderadas, que então buscavam um candidato presidencial, depois de terem pensado em Jaime Cortesão e Mário de Azevedo Gomes. Aproximado por esses democratas, Delgado decidiu arriscar a aventura.

Mais à esquerda, o PCP mostrou-se inicialmente cético. Curiosamente, os comunistas tinham chegado a encarar a possibilidade de apoiar uma figura clássica do anti-salazarismo, Cunha Leal, personalidade da Primeira República que tivera uma posição algo equívoca no 28 de maio, mas que cedo se confrontara com Salazar. Ao conhecerem a hipótese Delgado, e sabedores das ligações deste aos EUA, os comunistas logo o rotularam, no "Avante!", de "general Coca-Cola", avançando como seu candidato com o nome de um advogado que era seu "compagnon de route", Arlindo Vicente. Porém, percebendo o potencial de mobilização de Humberto Delgado, o PCP acabaria por aceitar apoiá-lo, num acordo que ficou conhecido como o "pacto de Cacilhas".

A campanha de Humberto Delgado assustou o regime, com nunca antes tinha acontecido. As cidades por onde o general passava enchiam-se de adeptos e houve, no Porto e em Lisboa, manifestações públicas de uma dimensão nunca vista. A repressão policial acabou por se exercer, o que não deixou mesmo de provocar tensões fortes no seio da "situação" - como era designado então o ambiente do regime. 

A imagem que ilustra este texto foi tirada na minha terra, em Vila Real, em 22 de maio de 1958, em frente ao antigo Hotel Tocaio, julgo que depois de um almoço oferecido ao candidato oposicionista. Antes disso, Delgado depositara um ramo de flores no monumento ao herói republicano Carvalho Araújo. A uma centena de metros de distância, com os meus 10 anos, recordo vivamente ter estado ao lado do meu pai, cujo "republicanismo" (à época um sinónimo de partilha de ideias democráticas), foi superior à prudência que sempre aconselharia um funcionário público a não ser visto nesse contexto.

Delgado viria a perder umas eleições marcadas por imensas fraudes, as quais, mesmo que não tivessem tido lugar, talvez não tivessem obviado à sua derrota, atento o forte condicionamento da opinião pública que então existia. Na sua campanha, ficou famosa a frase que pronunciou no Café Chave d'Ouro, no Rossio, quando perguntado o que faria com Oliveira Salazar, se acaso fosse eleito: "Demito-o, obviamente demito-o!". Muitos são de opinião de que o destino de Delgado, que veria vários dos seus momento públicos fortemente reprimidos, ficou selado naquele instante. Creio que se enganam: Salazar sabia bem que, em caso de vitória de Delgado - o seu opositor e vencedor do sufrágio foi o contra-almirante Américo Tomaz, uma figura risível do refugo do regime - seria, com toda a naturalidade, afastado. E há muito que decidira não arriscar.

O período posterior às eleições foi complexo para Delgado. Demitido das funções oficiais que desempenhava, procurou manter o movimento que estivera na base da sua campanha, o que motivou uma constante atenção da polícia política. Tendo sido advertido de que estaria iminente a sua prisão, pediu asilo político na embaixada brasileira em Lisboa, ironicamente instalada num edifício ao lado da polícia política, a PIDE. Depois de meses de negociações, o embaixador brasileiro, o intelectual e democrata Álvaro Lins, conseguiu negociar a saída de Delgado para o Brasil.

Atravessado o Atlântico, o general, em lugar de ser um fator de união dos democratas portugueses, acabou por criar imensos conflitos no seio dos exilados lusos, sobre os quais pretendia manter uma chefia, num modelo algo autoritário, que muitos não aceitavam. Humberto Delgado, muito simplesmente, entendia ser o "presidente" legítimo do país, cuja vitória fora usurpada.

Do Brasil, Delgado partiria tempos mais tarde para a Argélia, onde se tornaria a figura de topo de uma organização que federava a oposição ao regime de Lisboa: a Frente Patriótica de Libertação Nacional. Descontente com o funcionamento da organização, que acusava - não sem alguma razão - de estar dominada por alguns egos e tutelada politicamente pelo PCP, o general cedo entrou em dissídio com a maioria dos exilados portugueses na Argélia. Isolado e vulnerável, alguns serventuários da polícia política portuguesa viriam a montar-lhe uma armadilha numa aldeia espanhola próxima de Olivença. sendo morto a tiro. Faz hoje precisamente 51 anos.

Humberto Delgado foi uma figura politicamente controversa, e até frequentemente contraditória, dotado de um temperamento impulsivo, algo arrogante e muito conflitual. Porém, representou para os democratas portugueses dessa passagem dos anos 50 para os anos 60, um sopro de esperança de uma dimensão nunca antes atingida. Por tudo isso, que o consagrou na História contemporânea, e pelo que fez pela aeronáutica portuguesa, merece amplamente que o aeroporto de Lisboa passe, de futuro, a ter o seu nome.

Um belo gesto que honra o governo de António Costa.

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

Solidariedade


Devo dizer que fiquei com pena que Mário Centeno não tivesse aproveitado o encontro com os jornalistas, depois do Eurogrupo, em Bruxelas, para dizer algo parecido com isto:

"Aproveito para agradecer ao meu colega alemão a preocupação que demonstrou com a situação financeira portuguesa. É sempre confortável ouvir um alto responsável de um grande país amigo dar mostras de atenção e interesse específico sobre os nossos problemas, quando sabemos que outros Estados membros revelam fragilidades e dificuldades de cumprimento das metas orçamentais - como aliás aconteceu já com a própria Alemanha, no tocante ao Pacto de Estabilidade e Crescimento, o que mereceu então a compreensão de todos nós.

Esta é, contudo, a confirmação de que poderemos sempre contar com o governo alemão no caso do futuro poder vir a trazer algumas surpresas a um executivo português cuja legitimidade democrática tive o gosto de ver reafirmada quando vim pela primeira vez ao Eurogrupo, em palavras simpáticas do meu amigo Wolfgang Schauble.

Aliás, nada disso é novo. Em Portugal, nunca esqueceremos que Angela Merkel, em 2011, esteve, até ao fim, ao lado de Lisboa, apoiando o PEC IV, de cuja iniciativa foi a inspiradora, na tentativa de evitar o resgate. Sempre ficou muito claro que não foi por sua vontade que a "troika" foi chamada a intervir em Portugal. Mas não só! Os meus antecessores, Vitor Gaspar e Maria Luísa Albuquerque, puderam beneficiar sempre, e de forma constante, do apoio amigo de Berlim, para as políticas que, ao tempo, entenderam dever destinar aos portugueses. Aliás, os portugueses também não esqueceram isso, podem crer!

Mas não posso deixar de aproveitar este ensejo para expressar uma palavra de grande solidariedade portuguesa face aos gravíssimos problemas que a banca alemã atravessa. A crise que o principal banco alemão de investimento, o Deutsche Bank, sofre nos dias de hoje, a somar-se à preocupante situação que sabemos persistir na banca de alguns dos Länder alemães, obrigam a que estejamos atentos e, mais do que isso, profundamente solidários com os nossos amigos da Alemanha e as ameaças que possam impender sobre o seu sistema bancário. No que pessoalmente me toca, e em tudo quanto lhe puder ser útil no âmbito europeu, Wolfgang Shauble sabe que pode contar comigo!"

Direito à gargalhada

Foi suspensa, no Twitter, uma conta humorística que havia sido criada há dias, incluindo frases imaginárias atribuídas ao primeiro-ministro António Costa, em jeito de recomendações ridículas para hipotéticas poupanças. Tratava-se de uma evidente iniciativa de gente hostil ao executivo, no exercício pleno do seu inalienável "direito à gargalhada".

As frases eram, em geral muito divertidas e, em nenhum momento, criavam a menor dúvida sobre o seu caráter fictício. Conhecendo-o, estou seguro que o próprio António Costa deve ter achado graça à brincadeira, que saudavelmente se insere na histórica tradição nacional de "gozar" com o poder. Ai do dia em que a percamos...

Não quero crer, por um segundo, que por detrás da suspensão da conta possa ter estado a iniciativa sisuda de alguém ligado ao atual governo, cioso de "proteger" António Costa. Não acredito. Porém, se por absurdo isso aconteceu, voluntario-me para disponibilizar os meus espaços nas redes sociais para uma contra-ação com o vigor necessário para pôr a ridículo quem se atreveu a tal. 

Era o que mais faltava que o país deixasse de ter o direito de se rir do poder político! O José Vilhena daria voltas na tumba!

Liberdade e segurança


A decisão da França de introduzir no seu texto constitucional a possibilidade de retirada da nacionalidade a cidadãos binacionais culpados de “ofensa grave à vida da nação” – na realidade, pretendendo abranger pessoas ligadas a atos terroristas – tem sido contestada em vários setores. Percebe-se esta preocupação do executivo francês, por boas e menos boas razões.

As boas razões têm a ver com a importância para a França da ameaça terrorista. Os acontecimentos de 2015 (Charlie Hebdo e múltiplos atentados em Paris) suscitaram na sua opinião pública uma forte reação, porque questionaram, de uma forma extrema, a própria identidade e sentido nacional de quem é formalmente francês. Paralelamente, ficou instalada no seio da sociedade uma sensação de vulnerabilidade e de desconfiança quanto à capacidade do Estado em cumprir as funções de tutela da segurança dos seus cidadãos.

A França, um país generoso em matéria de nacionalidade – o seu atual primeiro-ministro, até aos 20 anos, teve apenas a nacionalidade espanhola -, interroga-se hoje sobre se essa sua extrema diversidade não estará a ser usada para colocar em causa a unidade nacional. 

Não sei como nós, portugueses, nos sentiríamos se acaso, como vi ocorrer em França, num estádio de futebol, ouvíssemos o nosso hino a ser apupado por uma grande parte dos espetadores e víssemos desfraldadas, por todas as bancadas, bandeiras de um país que nada tinha a ver com o jogo em causa.

As “menos boas” razões prendem-se, desde logo, com a objetiva ineficácia da medida: para um terrorista, a última questão que lhe importará será uma cidadania francesa que objetivamente despreza. 

Porém, como português, tendo em França centenas de milhar de compatriotas com dupla nacionalidade, preocupa-me a utilização que um eventual governo menos atento às liberdades e ao acolhimento da diferença, poderá vir a fazer com o conceito de “ofensa grave à vida da nação”.

Muito se interrogam assim sobre se esta decisão não poderá comportar um certo oportunismo político, isto é, se um governo de esquerda, uma área política tradicionalmente não vista como a mais sensível às questões da segurança, não estará, por esta via, a “apanhar o comboio” de um discurso securitário que, em regra, surge tutelado pela direita, ou mesmo pela extrema-direita. 

Mas qual é o problema, perguntar-se-á o leitor? É muito simples: restará saber se a esquerda, que tradicionalmente assume o papel de guardião das liberdades, não estará a abrandar esta sua histórica atenção ao deixar consagrar na lei fundamental algo cujo derradeiro aproveitamento poderá não conseguir controlar.

quinta-feira, fevereiro 11, 2016

Fronteiras


Foi um excelente e esclarecedor debate, com interventores de muita qualidade, aquele que hoje, ao final da tarde, teve lugar, moderado por António José Teixeira, na Sociedade de Geografia. 

A questão das Fronteiras, tema do n° 6 da revista "XXI - Ter opinião", encontrou naquele belíssimo espaço (desconhecido de muitos portugueses) o seu lugar ideal de tratamento. Como foi lembrado, naquela como em outras "sociedades de Geografia" dos países europeus com colónias, desenharam-se e redesenharam-se, às vezes a régua e esquadro, muitas fronteiras africanas, que ainda hoje partem ao meio etnias e causam tensões sem fim. Por um momento, senti por ali perpassar o espírito, nem sempre benfazejo, do "mapa cor-de-rosa" e das imposições da "pérfida Albion", que levou o empolgado letrista de "A Portuguesa" a escrever o épico "contra os bretões, marchar! marchar!", que o politicamente correto de um país às ordens de Londres acabou por transformar no masoquista "contra os canhões, marchar! marchar!".

Durante o debate, houve um desvio natural para a questão dos refugiados, causa maior que trouxe as fronteiras à ribalta na Europa. Neste tópico, muito se ficou a saber sobre o modo excecional como Portugal se disponibilizou para acolher refugiados chegados à Europa. Foram também dadas informações de grande interesse sobre o "estado da arte", no tocante a essa questão, em todo o espaço da União. Um dos oradores fez muito bem em lembrar que, em matéria de conflitos, quando se fala, por exemplo, na barbárie de uma guerra como a da Síria, onde morreram 500 mil pessoas, à Europa conviria adotar alguma modéstia. Só no século XX, nas suas duas Guerras, morreram cerca de 100 milhões de pessoas e a atual onda de refugiados é "peanuts", comparada com as vagas que assolaram o continente europeu, em condições bem mais trágicas. Lembrar isto não atenua minimamente a tragédia dos que hoje sofrem, mas deveria ajudar os europeus a não mostrarem soberba e indiferença em face dos problemas dos outros, como se isso nunca os tivesse atingido no passado e, quem sabe, pode vir a afetá-los no futuro.

Quem estiver interessado pode aqui consultar o texto com que contribuí para este número da "XXI - Ter Opinião", intitulado "Schengen e as ilusões europeias".

Laurent Fabius


Laurent Fabius deixou a chefia da diplomacia francesa, passando a assumir a presidência do Conselho Constitucional, um órgão que, no ordenamento constitucional francês, não tem a relevância de um tribunal, mas onde, por exemplo, têm assento os ex-presidentes da República. É um fim de linha política "honorable" para uma das figuras mais proeminentes da família socialista francesa, que, a meu ver, fez um excelente lugar como ministro dos Negócios estrangeiros, consagrado com um papel decisivo na cimeira do clima e, embora num grau menos determinante, no acordo nuclear com o Irão. Num tempo em que a imagem internacional da França é de algum declínio, Fabius contribuiu para o disfarçar.

Fabius é aquilo que a direita costuma qualificar de "esquerda caviar". Oriundo de uma abastada família judaica, ligada ao negócio de antiguidades, emergiu, ainda jovem, pela mão de François Mitterrand, que o levou até ao cargo de primeiro-ministro. Atingido pelo escândalo da aquisição do sangue contaminado, que faria outras vítimas políticas noutros países, incluindo Portugal, fez uma travessia do deserto, durante a qual ficou famosa a sua oposição ao defunto "tratado constitucional" europeu, em cuja rejeição pela França teve um papel decisivo, o que os europeístas nunca lhe perdoaram.

Fabius terá sido dos últimos a acreditar em François Hollande como possível presidente socialista. É famosa a sua frase quando, num colóquio, foi perguntado sobre as hipóteses do atual presidente: "Hollande? On rêve!". No entanto, com a vitória de Hollande nas "primárias" socialistas, este viria a chamá-lo para o seu círculo próximo. Conheci-o pessoalmente, nesse período pré-eleitoral. Falámos mais do que uma vez, nesse tempo em que os diplomatas em posto em Paris procuravam sondar sobre o que seriam as intenções e orientações de um possível executivo socialista. Na minha perspetiva, cedo se revelou como uma das figuras de grande qualidade no círculo político do futuro presidente. A sua passagem à chefia do Quai d'Orsay só foi uma surpresa para quem estava desatento.

Diz-se que razões de saúde poderão ter determinado esta sua saída de cena. Era um "peso pesado" importante no governo, embora nunca fosse um "bem amado" no seu seio, bem como junto dos diplomatas. Alguma arrogância e sobranceria marcaram sempre o estilo de Fabius. Mas, repito, olhando do exterior, acho que foi um nome que dignificou internacionalmente a voz da França e, pelo menos aparentemente, foi leal a Hollande até ao fim.

Revista XXI


É logo, esta quinta-feira, pelas 18.30 horas, na Sociedade de Geografia (uma bela escolha, atendendo ao tema), que terá lugar o lançamento de mais um número, o 6º, da revista XXI, Ter Opinião, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, desta vez dedicado ao tema das Fronteiras.

A coordenação deste número pertence a António José Teixeira, que me convidou a nela publicar um texto que intitulei "Schengen e as ilusões europeias".

Vou tentar passar por lá, embora a ubiquidade, não sendo teoricamente impossível, seja complicada de realizar. 

António Monteiro Cardoso


É logo à tarde, pelas 18.00 horas, nesta quinta-feira, na Livraria Férin, na rua Nova do Almada, 70, a homenagem a António Monteiro Cardoso, há pouco falecido.

Na ocasião, haverá uma apresentação do seu livro "Boas Fadas que te Fadem" e a apresentação de vários testemunhos.

Lá estarei.

Ulmeiro


Li ontem na imprensa, com tristeza mas sem surpresa, que a Livraria Ulmeiro atravessa uma fase de grande dificuldade. Tenho pena pelo livreiro e editor José Ribeiro, pelo seu notável esforço de décadas em sustentar um projeto que já foi de grande sucesso.

A vida de algumas livrarias, em especial das que permaneceram ligadas a um modelo algo tradicional, é muito difícil. Só em Lisboa, e sem grande esforço, consigo lembrar-me de imensos espaços que foram fechando nos últimos anos.

A Ulmeiro, criada em 1969, chegou a ser uma referência em Lisboa, um local de encontro nos fins-de-semana, onde havia espetáculos e até se fez muita política. Lembro-me bem de a ter visitado logo na primeira semana da sua existência, nessa Lisboa em que as coisas novas eram muito poucas. Foi também uma editora e recordo-me de ter feito para a Ulmeiro, no início dos anos 70, uma tradução de uma obra de Sékou Touré (as coisas que eu fiz!), nunca publicada. Por lá ouvi José Afonso e (creio) poemas lidos pelo Tóssan (quem se lembra dele?).

Embora as perspetivas sejam sombrias para a Ulmeiro de hoje, convidaria quem (ainda) se interessa por livros a passar por lá e ver as pechinchas que existem entre os seus quase 200 mil volumes. Tome nota: é na avenida do Uruguai, 13A (prolongamento da avenida Gomes Pereira), às portas de Benfica.

Ah! E se tiverem uma gata, levem-na. Ela fica a conhecer o Salvador!

quarta-feira, fevereiro 10, 2016

Falar claro

É muito curiosa - e desonesta - a tendência de certos comentadores que, com acinte e aparente gozo, procuram esconder que a recente subida das nossas (e de vários outros países) taxas de juro, para reciclagem dos empréstimos da dívida pública, tem como essencial justificação o ambiente agitado que as bolsas atravessam por toda a Europa (e não só). Esse viés faz-se também sentir em alguns títulos de jornais e rodapés televisivos.

A vontade mesquinha de colar a subida das taxas de juro ao caso do orçamento português, sem a menor comprovação mas apenas pelo seu "wishful thinking", qualifica a mediocridade pedante desses inconsoláveis viúvos da defunta coligação. Ninguém afirma isso lá fora, mas esses arautos da desgraça teimam em insinuá-lo cá dentro. E nota-se o prazer que lhes dá magnificar, para consumo da paróquia, qualquer observação crítica sobre Portugal que consigam descortinar num jornal estrangeiro.

Os eventuais efeitos de qualquer opinião negativa sobre o orçamento português, a existirem - e eu não excluo que possam ocorrer, em alguma medida - só poderiam ser avaliados numa situação "business as usual" dos mercados. E, de momento, isso não existe, pelo que tudo o que por ora se disser - a menos que haja entretanto um "downgrading" pelas agências de notação - não passa de simples e infundadas especulações, destinadas a criar um ambiente de desconfiança e mal-estar na opinião pública.

É preciso que isto seja dito de forma clara.

terça-feira, fevereiro 09, 2016

Reflexão de Carnaval

Hoje, almoçando despreocupadamente com dois colegas, também reformados, um deles saiu-se com esta:

- É uma injustiça não sermos abrangidos pela tolerância de ponto!

Caímos num assentimento coletivo. O outro colega foi mesmo mais longe:

- É um escândalo! A Ana Avoila não protege os nossos interesses. Olha se mexeu uma palha a nosso favor, para podermos beneficiar das 35 horas! É o mexes!

Por mim, fui bem mais radical:

- Sempre achei inconcebível que não esteja regulamentado o direito à greve dos reformados. E fizemos nós o 25 de abril para isto!

Revoltados q.b., acabámos o almoço e regressámos às nossas tarefas.

Em tempo: vários amigos deram, entretanto, achegas que nos tinham escapado (fruto da idade, com certeza) na composição do nosso potencial "caderno reivindicativo": desde logo, o direito a férias, com o respetivo subsídio, e claro!, o de Natal, o óbvio subsídio de refeição e, o que é mais importante, um regime que permita uma distinção clara entre o fim-de-semana e os restantes dias. Começa aqui a gizar-se uma agenda jeitosa. Costa e Centeno que se "ponham a pau"! Isto não é só Carnavais e nós não somos menos importantes que os maquinistas da CP e do Metro...

O Brasil

Conversa com Pedro Pinto sobre o Brasil, para o "Observare"

Pode ver aqui.

Gilberto Ferraz



O meu amigo Gilberto Ferraz faz hoje anos, lá por Londres. A maioria dos leitores não faz a mais leve ideia de quem estou a falar. E é pena.

Gilberto Ferraz é um jornalista que, desde há algumas décadas assentou arraiais "por terras de sua majestade" (deixo isto entre aspas, porque esse é o título do seu futuro livro de memórias e recordações, revelo agora). Hoje, aposentado, continua por lá atento ao mundo, atento a nós e interessado como sempre esteve pelas coisas da vida.

Posso estar equivocado, mas tenho a impressão que foi um dia bem distante, nas manhãs da TSF, no meio daqueles noticiários trepidantes, que escutei pela primeira vez o seu nome e a sua voz. Só no final dos anos 80, numa passagem por Londres, vim a colocar finalmente uma cara naquela voz. Quando, tempos mais tarde, me mudei para a capital britânica, para trabalhar na nossa embaixada, pude contar com Gilberto Ferraz como um interlocutor regular. Construímos então uma boa amizade, feita de respeito e estima pessoal e profissional, que se manteve a partir de então, e já lá vão mais de duas décadas e meia.

O Gilberto, que teve um pé na política (julgo que chegou a representante do PSD ou do PPD no Reino Unido), era também correspondente do "Jornal de Noticias", tendo colaborado com outros órgãos de comunicação social. Paralelamente a tudo isso, trabalhou durante décadas na famosa "secção portuguesa" da BBC, uma excecional escola de rádio e jornalismo. Há uns anos, fui de Paris a Londres e ambos almoçámos na Bush House, a sede da BBC, onde ele se sentia verdadeiramente em casa. Mas ele vai contar-nos um destes dias tudo isso e muito mais, no seu livro.

Por agora, caro Gilberto, aqui lhe deixo um forte abraço amigo de parabéns! 

Vitória mural

(Não, não é erro, é mesmo "mural"). Hoje à noite, atravessando Lisboa duas vezes, por caminhos diferentes pude constatar que a esquerda continua a gozar a sua vitória mural. Por toda a cidade, indiferente à caminhada institucional de Marcelo a caminho de Belém, toda a nossa esquerda continua impante pelas paredes onde a sua propaganda exibe os sorrisos joviais de Sampaio da Nóvoa, de Maria de Belém, de Marisa Matias e Edgar Silva - e só destes!

O descaso com a poluição visual é também um sinal do nosso subdesenvolvimento cívico: este costume bem português de deixar a propaganda eleitoral por semanas, bem depois do sufrágio, tal como as comissões fabriqueiras das freguesias deixam, até que apodreçam, os cartazes das festas e romarias. Verdade seja que ainda subsiste pelo menos um sinal da EXPO98!

segunda-feira, fevereiro 08, 2016

Amizades

Há dias, depois de um jantar em casa de amigos, um convidado a quem dávamos boleia comentou:

- Não sabia que conheciam tão bem os nossos anfitriões de hoje. É do tempo da faculdade?

Rimos e explicámos que o nosso convívio com esses amigos era relativamente recente, não tinha sequer três anos. O nosso parceiro de percurso ficou siderado! 

- Mas é fantástico! Pela vossa intimidade, parecia que se conheciam desde há várias décadas! 

Algumas amizades tardias na vida, desde que com as pessoas certas e com as quais algumas identidades essenciais se possam estabelecer, podem ser tão genuínas e ficar tão permanentes como amizades mais antigas. Aprendi isto com os anos, a minha mais eficaz escola.

Museu do Aljube


Fui ontem visitar o Museu do Aljube, um espaço que devia ser referência para todas as escolas, porque as novas gerações só virão a entender o que vai ser o seu futuro - e só perceberão as limitações do seu presente - se souberem o que significaram quase cinco décadas com polícia política, censura, repressão das liberdades, agressão colonial, condenando o país a um subdesenvolvimento que, infelizmente, não foi apenas no domínio económico-social.

Com um notável equilíbrio político, sem sectarismos partidários, o trabalho museológico do Museu do Aljube mostra o que foi a luta contra a ditadura e a ideologia que suportava o regime.

Porém, no melhor pano cai a nódoa. Não gostei de ver por lá duas ou três referências à "troika" e à situação que o país viveu nos últimos quatro anos. Havia necessidade? O 25 de abril deveria ser a data limite para um museu desta natureza, se o objetivo é unir as pessoas na rejeição, indignada mas serena, de um determinado tempo passado.

domingo, fevereiro 07, 2016

Erros, lapsos & "gaffes"

O que nos leva aos erros factuais crassos, quando intervimos na esfera pública? Descontado o desconhecimento das coisas, que às vezes também pode ocorrer e que temos de ter a humildade de assumir, há incorreções e até "gaffes" que vamos detetando (ou alguém por nós) na nossa expressão, escrita ou falada. Ontem, dei comigo a inventariar pequenos lapsos nas últimas 48 horas e a perguntar-me por que os cometi, sendo coisas tão óbvias.

Num artigo no último "Expresso", escrevi "Jeu de Pomme", em lugar do quase homófono "Jeu de Paume", quando me referi a um espaço museológico em Paris (felizmente, o "editing" do jornal estava atento). Na véspera, no programa televisivo "Olhar o Mundo", falei de mísseis balísticos "internacionais" quando queria dizer "intercontinentais". Além disso, nesse mesmo programa, e noutro ponto, troquei "democratas" por "republicanos". Num artigo publicado no sábado, no "Diário de Notícias", escrevi "There is alternative", tendo amigos comentado que deveria ter escrito "There is an alternative" - mas, neste caso específico, alimento algumas dúvidas de que não pudesse escrever como escrevi.

É irritante, mas isso é sempre a posteriori, termos de nos arrepender destes deslizes. Comentava isto com um amigo que, muito simpático, me dizia que tudo isto faz parte da vida, em particular da de quem frequenta com alguma assiduidade o espaço público, como tem sido o meu caso. Mas esse querido amigo, mais velho do que eu, não deixou de me abalar com algum realismo: "E há o fator idade, meu caro. Não te esqueças disso!". Infelizmente, esse é o único esquecimento que nunca me atingirá.

sábado, fevereiro 06, 2016

É isto, não é?

Ao ouvir, nas últimas horas, a maioria dos acabrunhados comentadores económicos e figuras dos partidos à direita - e não vale a pena procurar dissonâncias entre eles, porque as não encontraremos nunca - cheguei à seguinte conclusão: este governo de esquerda é acusado pela direita de, nas negociações em Bruxelas, não ter sido suficientemente "de esquerda", por ter aceitado alguma austeridade, a qual, contudo, acaba por ser bem menor do que aquela que um governo de direita teria aprovado - presume-se que de muito bom grado e em total sintonia com a Comissão europeia.

É isto, não é?

"Olhar o mundo"


Durante este fim de semana, no programa "Olhar o Mundo", transmitido em todos os canais da RTP, converso com António Mateus sobre as eleições americanas, a nova Estratégia Global da União Europeia, a candidatura de António Guterres a secretário-geral da ONU, as difíceis esperanças para a crise síria, o crescente cerco judicial a Lula no Brasil, as tensões entre a Rússia e a Turquia, a saga da formação do novo governo espanhol, o alarme internacional pelo virus Zika, o estado da arte nas negociações entre o Reino Unido e a União Europeia, o papel russo na endémica crise na Moldova e as atitudes belicistas da Coreia do Norte.

Pode ver o programa aqui.

Primavera portuguesa em Paris

Numa das primeiras vezes em que, como embaixador português em Paris, visitei a Delegação da Fundação Calouste Gulbenkian, para uma qualquer exposição ou concerto, cruzei à porta um cidadão francês que, em face do movimento que via na entrada, inquiriu: “Esta é a embaixada de Portugal?” Ele não fazia a menor ideia de quem eu era e deve ter ficado perplexo com a minha resposta sorridente: “Não é ... mas também é!” A minha reação espontânea traduzia o que, muito sinceramente, eu pensava do papel desempenhado pela Delegação em favor da língua e da cultura portuguesas na capital francesa.

Há precisamente 50 anos, como lembra Rui Ramos numa recente monografia, foi instalado, num edifício da avenue de Iéna, adquirido por Calouste Gulbenkian em 1922, e que seria a sua residência formal em Paris, um Centro Cultural (que evoluiu para aquilo que é hoje uma Delegação) cuja atividade faz parte integrante da própria história da Fundação. 

Dirigido ao longo desse meio século por diversas e qualificadas personalidades nacionais, esse “braço” parisiense da Gulbenkian desempenhou um papel do maior relevo como montra cultural portuguesa. Podem discutir-se algumas opções seguidas em todo esse percurso, o universo de abrangência da atividade desenvolvida, mas é indiscutível o benefício que, para a imagem de Portugal, essa estrutura representou, muito em particular como polo do atração dos “lusófilos” franceses e na ligação aos estudos universitários portugueses em França. Além do mais, ontem como hoje, aí se concentra a segunda maior biblioteca portuguesa no mundo, depois da do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

Novos tempos têm vindo a justificar um repensar evolutivo das atividades da Delegação. Um Conselho Consultivo a que tenho o gosto de presidir, constituído por figuras portuguesas e individualidades do meio intelectual francês, tem trabalhado sobre a necessidade de aliar o caráter universalista da reflexão a que a Delegação se dedica, onde as temáticas europeias têm um papel predominante, a uma abordagem cada vez maior das diversas culturas que se exprimem em língua portuguesa. A isso acresce uma atenção, também crescente, às novas realidades que emergem em setores da segunda ou terceira geração de portugueses no exterior, hoje com relevante inserção nas sociedades de acolhimento. E, finalmente, note-se a ligação muito frutuosa que tem vindo a ser conseguida com a histórica “Maison du Portugal”, na Cité Universitaire de Paris, criada pela Fundação nos anos 60, que hoje usufrui de um estatuto distinto, mas que, tal como no passado, continua a acolher estudantes e investigadores portugueses e estrangeiros.

Há já alguns anos, em Paris, fui testemunha da mudança da Delegação da Fundação para novas instalações onde, muito em especial, “respira” melhor a sua fantástica biblioteca. Hoje a funcionar no boulevard de La Tour Maubourg, esta estrutura desenhou, para este cinquentenário em 2016, um interessantíssimo programa cultural que tentará contribuir para uma maior visibilidade de Portugal nesse “mar” de oferta expositiva que é a capital francesa e que se estende muito para além das paredes da Delegação. 

Só como exemplos, aí está já uma mostra de Julião Sarmento. No museu “Jeu de Paume” vamos ter em breve Helena Almeida. Em abril, uma grande exposição no “Grand Palais” “revelará”, pela primeira vez, Amadeo de Sousa Cardoso à cidade que mais inspirou a sua obra. E a Cité de l’Architecture et du Patrimoine vai revelar a arquitetura portuguesa entre 1965 e 2015. Uma Primavera cultural portuguesa começou já em Paris, pela mão da Gulbenkian, a nossa “outra” embaixada na cidade.

(Artigo que hoje publico no jornal "Expresso")

A Tia de Costa

Por muito tempo, a Comissão era o nosso “amigo de Bruxelas”. Fábrica e distribuidora de fundos, era como que um instrumento de correção do poder diferenciado dos países. A retórica de solidariedade construía então a narrativa de uma Europa que almejava o nivelamento das condições de vida - a tal coesão. Esse mundo mirífico acabou.

De “bom da fita”, à Comissão europeia de hoje está cometida pelos Estados a tarefa de auxiliar o BCE na gestão do euro - esse heterónimo do marco, que os alemães um dia dispensaram, para obterem os derradeiros galões europeus da paz, a unificação, o alargamento e o mercado privilegiado onde assenta toda a sua riqueza. Essa gestão rege-se por uma ideologia, e ai de quem a contestar.

Margareth Thatcher disse um dia que “there is no alternative” ao modelo liberal, ao mercado puro e duro. A fórmula ficou conhecida por TINA e enforma a filosofia que hoje prevalece nas instituições europeias. Foi a TINA que moldou o “memorando de entendimento” e, por cá, a TINA foi a ideologia da coesa coligação Troika/PSD/CDS que governou Portugal e ainda hoje coloniza a mente da maioria dos nossos comentadores económicos.

Os gregos aprenderam na pele que é muito arriscado enfrentar o “touro” europeu de frente. António Costa fê-lo “de cernelha” e, com arte de lide, decidiu provar que a TINA podia começar a ser contrariada. Jogando as parcelas de forma diferente, fazendo essa coisa diversa (inesperada?) que é uma política fiscal de esquerda, conseguiu levar a água ao seu moinho. Percebeu-se o incómodo do ortodoxo báltico, que lia o papel da Comissão com um dos olhos em Berlim e outro em Madrid, ao ter entendido que, porque agora temos uma política europeia, temos outras armas, noutros tabuleiros, com que Bruxelas deve contar. Quem sabe se António Costa não encontrou uma “TIA" ("there is alternative”)?

(Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias")

sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Eduardo Lourenço no Conselho de Estado

Foi agora anunciado que Marcelo Rebelo de Sousa tenciona nomear Eduardo Lourenço para o Conselho de Estado. Isto hoje está complicado: lá vou eu ter de elogiar mais uma decisão do presidente "to be"! 

É que, para além da grande elegância do gesto, o nome do meu querido amigo Eduardo Lourenço é a garantia de poder vir a ouvir-se naquele órgão a palavra serena de alguém que há muito nos pensa, radiografa os nossos sentimentos coletivos e bussoliza o nosso futuro. Só tenho pena que a regra do segredo que faz parte da liturgia do cenáculo nos não venha a permitir usufruir das palavras sábias que Lourenço por lá irá deixar.

Acabo com algo que já contei por aqui. Uma tarde, em Paris, há cerca de sete anos, Eduardo Lourenço apresentava Marcelo, a abrir uma conferência que este iria fazer na delegação da Fundação Gulbenkian. E saiu-lhe esta tirada lapidar: "O Marcelo é uma figura que, desde há vários anos, está como que numa janela a fazer comentários sobre o país que passa na rua, lá em baixo, E, por vezes, nessa mesma rua passa também o próprio Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o qual, com naturalidade, ele também se pronuncia".  

Frutuoso de Melo


É uma boa notícia a indigitação de Fernando Frutuoso de Melo para a chefia da Casa Civil do futuro presidente da República. Trata-se de um qualificado funcionário europeu, com grande e diversificada experiência, que se espera possa vir a ajudar Marcelo Rebelo de Sousa nos anos que aí vêm.

É verdade que nem sempre a presença de uma figura de qualidade à frente da estrutura de Belém é garantia segura de eficácia da ação do presidente. Nos seus dois mandatos, Cavaco Silva teve como seu "braço direito" Nunes Liberato, um homem sério, capaz e com um indiscutível recorte de servidor público. E a Presidência foi o que se viu!

As presidências são os presidentes. Nenhuma presidência é eficaz se o presidente não "ajudar"...

Migrar


Quando por aí ouvir dizer que Portugal tem de resolver primeiro os seus problemas, antes de começar a acolher refugiados e imigrantes estrangeiros, convém lembrarmo-nos - nós, que continuamos a ser o país europeu que tem mais migrantes noutros países da Europa - do que os portugueses e a sua economia devem aos países estrangeiros, em especial europeus, que, desde há muitas décadas recebem os nossos emigrantes. Que diríamos se acaso as portas dessa Europa se fechassem a quem não tem emprego em Portugal?  

Os ventos de Espanha


De Espanha se dizia que “nem bons ventos, nem bom casamento”. A Espanha manteve-se uma obsessão histórica para muitos setores portugueses, até à nossa entrada comum nas instituições europeias, vai para 30 anos. Por essa altura, diluiu-se o essencial que restava de contencioso bilateral (sei que os nostálgicos de Olivença não ficarão contentes, paciência!) e as relações passaram a desenvolver-se de uma forma desdramatizada. 

Julgo que ambos os países se conhecem hoje muito melhor, que o fim das fronteiras e o incremento do comércio trouxe uma saudável normalidade à relação luso-espanhola, curiosamente nunca afetada pela pontual dissonância entre as orientações políticas de Madrid ou de Lisboa. 

Na Europa, Portugal e Espanha nunca estiveram no mesmo “campeonato”, muito embora, em alguns dossiês, tenhamos jogado do mesmo lado. Mas a dualidade económica do nosso único vizinho – com setores muito desenvolvidos ou fortemente beneficiários das políticas da Europa “rica” (como a política agrícola) ao lado de uma Espanha nossa companheira nas políticas “de coesão” - fez com que os nossos interesses por vezes divergissem. Isso foi muito claro nas questões institucionais onde se mede o poder relativo para influenciar decisões. Porém, e este é um aspeto importante, a diplomacia dos dois países sempre cuidou em sublinhar o muito que nos une, procurando que aquilo que nos separa se não torne um óbice a uma relação bilateral que ambos desejamos se mantenha exemplar.

Como profissional das relações externas, quero deixar claro que nem sempre é fácil negociar com a Espanha. A retórica da amizade peninsular – nós, no Ministério dos Negócios Estrangeiros nunca apreciámos excessivamente o termo “ibérico” – quase sempre é insuficiente para ultrapassar o endémico protecionismo dos nossos vizinhos, frequentemente apostados em bloquear o acesso das nossas empresas ao seu mercado e com uma rigidez clara no tocante a qualquer compromisso nas áreas económicas.

Um terreno específico onde isso foi sempre muito evidente foi o setor bancário. Com uma certa naturalidade, a Espanha foi aproveitando as fragilidades sucessivas das nossas instituições, por forma a colocar-se numa posição de relevo nesse nosso mercado. Fê-lo, diga-se, com toda a legitimidade que as regras da concorrência o permitem, mas o equilíbrio final que daí resulta tem consequências estratégicas iniludíveis. O que mais me preocupa, confesso, é começar a ser evidente que o Banco Central Europeu promove abertamente, como se viu no caso Banif, este “take over” da banca portuguesa pela banca espanhola. Um dia, voltaremos a falar disto por aqui.

Transições

Ontem à tarde, os membros do Conselho da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, de que faço parte, votaram um novo nome para diretor da Faculdade. O anterior diretor havia pedido a demissão. Crise? Nada disso! Esse anterior diretor, bem como a diretora da Instituto de História Contemporânea da mesma Faculdade, passaram a integrar o novo governo, como secretários de Estado. Estas são as contingência da vida de uma instituição de prestígio. Ou será que, se o não fosse, lhe recrutavam os membros para altos cargos? 

quinta-feira, fevereiro 04, 2016

Ópera


Esta sexta-feira, dia 5, às 20 horas, e no domingo, dia 7, às 16 horas são as únicas derradeiras oportunidades para poder ver, no S. Carlos, a ópera "Dialogues des Carmelites", de Francis Poulenc, com encenação de Luis Miguel Cintra e direção musical de João Paulo Santos.

Não costumo por aqui recomendar espetáculos ou exposições, mas saí ontem da estreia extremamente bem impressionado com este trabalho, que representa um bem sucedido esforço para complementar o programa clássico que o S. Carlos normalmente oferece.

Olívio

O meu mais antigo amigo chamava-se Olívio, Olívio de Carvalho. Acabo de saber que morreu, por um SMS emocionado do Elísio Neves, que o chama, e bem, "o melhor de todos nós".

Nascemos no mesmo ano, na mesma rua, lá em Vila Real e, claro, não me lembro de mim sem o conhecer. O pai do Olívio tinha uma casa de conserto de bicicletas, pelo que era conhecido como o "Olívio das bicicletas". Era na chamada "Travessa", a rua Avelino Patena, e, dessa forja, tivemos como companheiros o Quim "Rato", o Augusto, o Quim Claro, o Sampaio, o Domingos Lito, os Costa Lobo, o Vitor e o Carlos Almeida, vários Barretos. Com o Elísio Neves, o Zé Barreto terá permanecido, até hoje, como uma das pessoas mais próximas do Olívio.

Entrámos juntos para a escola primária, embora o Olívio tivesse sabiamente optado, desde muito cedo, por um ritmo de conclusão dos anos letivos que se revelou um tanto mais lento do que o meu. Deve ter ficado pelo antigo 5°ano, penso.

No final dos anos 60, ambos tínhamos ido para Lisboa, embora com vidas diferentes, em grupos muito diversos. Encontrávamo-nos às vezes no Montecarlo, cada um em sua tribo. Aí eu trocava livros e conversa, enquanto ele perdia as noites e ganhava a vida como grande especialista em dominó, atividade que já o tinha tornado famoso em Vila Real. Ah! O Olívio era um bilharista exímio e, pelo menos em Vila Real, poucos vi passarem-lhe a perna na arte.

Como era regra do tempo, a tropa apanhou-nos a ambos. Lembro-me dele me falar que foi parar a um departamento que tratava de "análise e depuração de águas", uma ironia para quem mais tarde iria ser dono de um bar. Depois, o Olívio foi para delegado de propaganda médica, estava eu no meio do curso e também já empregado num banco. Viamo-nos a espaços. Nem sempre sintonizávamos nas ideias e no modo de olhar a vida, mas ambos cuidávamos em que a velha solidariedade de infância prevalecesse sempre sobre essas dissonâncias. Anos mais tarde, chegou-me a notícia de que o Olívio, que vivia na Luz Soriano, havia sido preso. Um lamentável equívoco, que demorou a ser deslindado, provocado por uma amiga solidariedade, ia-lhe destruindo a vida. 100% inocente, foi solto, mas terá aprendido alguma coisa sobre os outros. 

Montou depois um bar, o "Cocote", atrás da Caixa Geral de Depósitos, ao Calhariz. Todo o "emigrado" de Vila Real em Lisboa por lá passava. Fechou um dia a loja e entrou nas velharias e antiguidades, bem como no comércio de pintura. Ainda há dois dias me vi a procurar uma parede para colocar um quadro do Romualdo, um pintor a cujo atelier, na Bica, fui levado pela mão do Olívio. Na Lisboa noturna que era a sua, conhecia como poucos o Bairro Alto e a Bica, sendo também a Ribadouro, noutra geografia, uma sua escala habitual, onde algumas vezes nos cruzámos. Mas o lugar de eleição do Olívio, por muitos anos, foi o "Pavilhão Chinês", o "escritório" para a sua venda de coisas antigas, onde também treinava a sua arte de bilharista.

O Olívio era aquilo a que, numa linguagem antiga mas bem apropriada a um cultor de velharias, se chamava "uma jóia de pessoa". Amigo do seu amigo, disponível e sempre disposto a ser útil aos outros, tinha um jeito sarcástico no falar, um sorriso marcado por uma permanente ironia e uma imensa graça. Falava às mulheres com uma delicadeza e atenção que não deixou de ter as devidas recompensas, embora fosse de uma discrição elegante na matéria.

A saúde pregou-lhe, entretanto, sérias partidas. O Olívio regressou a Vila Real. Guardarei para sempre a imagem dele, acabado de sair de um AVC, quando, sob um sol tórrido de agosto, insistiu em se deslocar, curvado e quase arrastado, para me ir dar um abraço solidário, num momento triste da minha vida. Vimo-nos, por uma última vez, numa casa de repouso onde passou os seus derradeiros dias, com a memória a falhar-se e o sorriso a esvanecer-se.

Grande Olívio! "O melhor de todos nós", é verdade!

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

Luiz Felipe Lampreia (1941-2016)


O nosso embaixador em Brasília, Francisco Ribeiro Telles, deu-me há pouco uma notícia bastante triste: morreu Luiz Felipe Lampreia. 

Não fomos íntimos, mas desde há mais de vinte anos que com ele mantinha uma relação de amizade, reforçada no tempo em que vivi no Brasil. Nem sempre coincidimos, nas nossas conversas, no modo como "líamos" as questões bilaterais Brasil-Portugal, mas sempre mantive um grande respeito pela sabedoria e lisura com que defendia os seus pontos de vista.

O Luiz era um diplomata de carreira. Depois de outros postos, foi embaixador do Brasil em Portugal. Seria também ministro das Relações Exteriores do seu país (1995-2001), no governo de Fernando Henrique Cardoso. Atualmente, trabalhava no setor privado, para além de atividade no âmbito de um "think tank" sobre relações internacionais. Mantinha também um blogue. 

Luiz Felipe Lampreia foi um excecional profissional, daquelas figuras de grande categoria que a diplomacia brasileira produz e que alicerçam uma política externa ambiciosa e ativa. Era um homem de grande elegância, palavra fácil e com um conhecimento profundo dos meandros internacionais. Ainda há semanas por aqui citei o seu livro de memórias, "O Brasil e os Ventos do Mundo", onde faz referências à relações com Portugal e à CPLP. Durante a última década, vi o Luiz bastante crítico da política externa do seu país.  

Há uns tempos, constatámos que, de certa maneira, tínhamos acabado as nossas carreiras de modo idêntico: na administração e consultadoria de empresas. E quando lhe fiz notar a curiosidade de termos entrado e saído do governo dos nossos dois países precisamente nos mesmos anos, tive o cuidado de acrescentar: "você como ministro, eu como modesto secretário de Estado, nada de confusões!" . A resposta dele foi curiosa: "Modesto? O vosso Cavaco é que chamava aos secretários de Estado de "ajudantes", não era? Olhe, Francisco, se você disser a sua função em inglês ficamos "iguais"..."(referindo-se ao facto do lugar de secretário de Estado, no Reino Unido, ser designado por "minister" e o de ministro por "secretary of State").

Quero deixar aqui uma palavra de respeito e condolências à família de Luiz Felipe Lampreia.

Paulo Pisco


Em política, a regra de não comprar "guerras" de vitória duvidosa costuma ser aquela que a prudência aconselha. Calar reações que, à partida, se sabe poderem ir contra o "vento" dominante é a atitude mais comum e vulgar. Por isso, quando as coisas se passam de forma diferente, quando a coragem na afirmação dos princípios sobreleva a tentação de preservar a comodidade, há que dar nota disso.

Muito se falou, na imprensa, nas redes sociais e até em estranhas (ou nem por isso) declarações partidárias, do episódio que envolveu o embaixador português em França, pela circunstância de ter considerado inadequado que uma distinção proposta para uma personalidade portuguesa pelo seu homólogo francês em Lisboa, e que o governo deste acolheu, tivesse lugar fora do território que as regras - e não uma invocada exceção, que teve um contexto muito específico - mandam que se respeite, como sede natural desse tipo de atos. Neste caso, seria a embaixada francesa em Lisboa, onde a entrega das condecorações cujas propostas aí tenham tido origem regularmente tem lugar, como também deveria ter tido neste caso. Porém, sobre isto, já disse, por aqui, o que se me oferecia dizer.

O que hoje aqui quero destacar é a circunstância do deputado Paulo Pisco, que na Assembleia da República representa os portugueses na Europa, ter tido a hombridade e a coragem de vir a público expressar a sua posição sobre o assunto, nela não sendo tentado a cavalgar demagogicamente a onda fácil de diabolização do representante diplomático português, colando-se a uma leitura simplista dos factos, que foi aproveitada por alguns de forma sensacionalista e populista. Paulo Pisco, com toda a clareza, disse o que pensava, eximindo-se ao silêncio embaraçado (e cómodo, claro) de outros a quem, em princípio, seria de exigir atitude de idêntica frontalidade. Paulo Pisco, que pede meças a quem quer que dispute o seu empenhamento na defesa dos portugueses que vivem e trabalham no estrangeiro, deu com isso uma prova de caráter, muito rara em política.

terça-feira, fevereiro 02, 2016

"Primavera marcelista"

                                     

À conversa, veio hoje à baila, num grupo, a expressão "primavera marcelista". Os mais novos acharam graça, devendo ter pensado que era uma espécie de antónimo para o "inverno cavaquista".

Alguém esclareceu que não, que essa era uma fórmula comummente usada, no final de 1968 e início de 1969, para designar a esperança criada no país de uma possível abertura política, protagonizada por Marcelo Caetano, que havia sucedido a Salazar. A esperança foi fátua: a PIDE mudou a placa para DGS, a Censura travestiu-se de Exame Prévio, o oficioso "Diário da Manhã" passou a "Época" e até a União Nacional se crismou de Acção Nacional Popular. Houve coisas, porém, que não mudaram: a repressão, os presos políticos, a guerra colonial e falsificação eleitoral. 

Dos mais velhos, alguns com um pé na imprensa, ninguém se lembrou, na conversa, de quem teria utilizado pela primeira vez a expressão "promavera marcelista". Também não sei, mas sei como "nasceu" e expliquei. Foi o ministro do Interior, Gonçalves Rapazote, na posse dos novos Governadores Civis, poucas semanas após a posse de Caetano, quem falou no seu discurso da nova "primavera política" que se inaugurava no país. O conceito evoluiu entretanto e ficou ligado nominalmente ao "presidente do Conselho".

Eu tinha então 20 anos, andava já metido em algumas "guerras associativas" e recordo que nunca tive a menor fé na "primavera marcelista". E tinha razão.

A partir de 9 de março, lá por Belém, haverá uma nova "primavera marcelista"? Convenhamos que não deve ser difícil...

Bruxelas, nós e a Grécia

Sinto por aí dois tropismos de sinal contrário que, de novo, nos tentam colar à Grécia.

Do lado de quantos são críticos da proposta orçamental do governo, tenta alarmar-se a opinião pública com a ideia de que o comportamento português, ao apresentar em Bruxelas um projeto de orçamento que não está 100% conforme com as normas europeias, iguala aquilo que Atenas fez há um ano, com os resultados trágicos que se viram.

Por parte das "viúvas" de Varoufakis, isto é, de quem há um ano achou heróica a atitude suicidária dos gregos, ao afrontar inconscientemente as regras europeias que o país havia subscrito, surge um apoio emocional a Costa & Centeno, tentando reeditar o David versus Golias que tanto "animou" a Europa.

Ambas as posições têm o efeito negativo de ajudar a colar a imagem de Portugal à da Grécia. E isso não poderia ser mais injusto. 

O que o governo de António Costa está a fazer não é nenhuma rutura com as determinantes europeias - que o PS sempre disse ir cumprir, até que fossem mudadas. O que o governo está a procurar levar a cabo, aliás como o PS sempre disse que faria, é discutir com as entidades europeias margens de flexibilidade, a exemplo do que vários outros países europeus obtiveram, argumentando na base de situações conjunturais específicas. Nem a situação grega tem parecenças com a portuguesa, nem Portugal está a "pedir a lua", como fez a Grécia.

Poderemos ter êxito ou não nessa negociação, mas, seguramente, o Terreiro do Paço não tem vocação para se tornar numa praça Syntagma.

Por muito que isso desagrade a quem olha para Bruxelas com uma visão radical, o governo não coloca em causa as "targets" macroeconómicas a que nos comprometemos, ainda que possa discordar da sua bondade e racionalidade. Se alguma coisa aprendemos com o caso grego foi o facto de que "dar o peito às balas" isoladamente é um ato de heroicidade instantânea... porque se morre a seguir. É que se há um lema que nunca convém seguir é aquele que o nosso hino nos aponta: "contra os canhões, marchar, marchar!"

Mas também ninguém espere de nós que nos mantenhamos passivos, atentos e veneradores face aos ditames da Comissão europeia, que sempre se mostra flexível e compreensiva quando poderes mais fortes têm problemas e logo engrossa a voz quando pressente alguma fragilidade e tibieza. Como vimos nos últimos quatro anos, a Europa adora o seguidismo, que é a atitude diplomática de quem não ousar negociar, transferindo para o sofrimento do dia-a-dia dos povos o preço dessa inércia algo cobarde.

Sete anos de pastor...


"Sete anos de pastor Jacob serviu..." Lembrei-me há pouco deste poema de Camões, que ouvi o meu pai declamar desde a minha infância.

Porquê? Porque faz hoje sete anos, dia por dia, que este blogue se iniciou. Foram 2554 dias em que aqui surgiu pelo menos um post, sendo que este é o nº 4910. Tem graça lembrar o início: aqui.

Se o blogue vai continuar? Para já, vamos andando... Depois logo se verá.

Mas não digo como Camões no fim do poema: "Começa de servir outros sete anos/dizendo: mais servira se não fora/para tão longo amor tão curta a vida". Cruzes!

Manuel Pedrosa


Eu sei que o tema da gastronomia é para alguns um pouco deslocado, e até pedante, num tempo em que tanta gente atravessa dificuldades, em que a ida a um restaurante representa para muitos um esforço financeiro excecional. Percebo que falar de restaurantes de luxo ou de vinhos a preços estratosféricos pode ser visto como quase "obsceno" por muita gente. Mas essas realidades, diversas e contrastantes, existem e fazem parte do mundo, configuram um espaço nas economias dos países, pelo que iludi-las na abordagem pública seria como estarmos a iludirmo-nos a nós mesmos. Por isso, por aqui e noutras sedes, continuarei a tratar o tema da Gastronomia. Quem não quiser saber disso para nada pode fazer "zapping".

Porque ontem foi dia da atribuição das "estrelas" do Michelin em França, mas também porque foi a data do desaparecimento de José António Salvador, um homem a quem a divulgação dos vinhos portugueses muito deve, e que merece não ser esquecido, deu-me para falar de restaurantes (que novidade!, por aqui, dirão alguns).

Mas por que diabo este post tem por título "Manuel Pedrosa"?

Porque dos restaurantes cheguei mentalmente à crítica gastronómica e, logo de imediato, apareceu-me este nome. "Manuel Pedrosa" era o nome misterioso que, no início dos anos 70, surgiu em "A Mosca", o suplemento dos sábados do "Diário de Lisboa", a assinar umas notas críticas sobre restaurantes, quase sempre em Lisboa e arredores.

Com o tempo, vim a saber que o "comilão" que opinava era nem mais nem menos do que o escritor e jornalista Luis de Sttau Monteiro. Por esse tempo, o autor do empolgante "Felizmente há Luar" ou desse belo retrato social lisboeta que é o "Angústia para o Jantar" dedicava-se, como modo de vida, ao jornalismo. Em "A Mosca", Sttau escrevia as célebres redações da Guidinha, ao mesmo tempo que nos dava tais notas gastronómicas. Recordo-me que, nesses sábados, alguns leitores das crónicas tinham por hábito ir jantar ao restaurante indicado nesse mesmo dia pelo "Manuel Pedrosa" e que, ao final de algumas semanas, sorríamos com cumplicidade uns para os outros e, em alguns casos, até já nos cumprimentávamos...

Por muitos anos, pensei que o "Manuel Pedrosa" de Sttau tinha inaugurado a crítica gastronómica na imprensa em Portugal. Estava enganado, como há meses o provou Fortunato da Câmara, que sucedeu a José Quitério na "cátedra" gastronómica do "Expresso", que descobriu notas sobre restaurantes assinadas já nos anos 40 do século passado.

(Em gastronomia, aliás como no resto, estou sempre a aprender. Alimentava há anos a teoria de que "A Toca da Raposa" havia sido, em Vila Real, o primeiro restaurante da cidade - não tasca ou casa de pasto ou pensão. Ora o ilustre "vilarrealógrafo" ou "bilógrafo" Elísio Neves logo veio provar da existência de casas do género, ainda no século XIX. Quem te manda, sapateiro...)

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

Compreensão

Percebo muito bem que a antiga maioria esteja escandalizada pelo facto do governo estar a tentar negociar com Bruxelas.

Para quem nunca o tentou...

O Brasil na "Janus"


O "Janus - Anuário de Relações Exteriores", editado pelo Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa, publicou em Novembro passado o seu nº 17,  relativo a 2015/2016, dedicado especialmente à "Integração Regional e Multilateralismo", mas cobrindo uma ampla gama de outras temáticas internacionais.

Recomendo vivamente esta publicação que, desde há quase duas décadas acolhe uma valiosíssima informação sobre questões internacionais e a política externa portuguesa. Os conteúdo podem ser consultados em janusonline.pt, um verdadeiro serviço público feito pela UAL.

A exemplo do que aconteceu em diversos números anteriores da "Janus", também nesta edição publico um artigo, desta vez dedicado ao Brasil. O texto (escrito em maio de 2015, pelo que não comporta desenvolvimentos mais recentes) pode ser consultado aqui.

domingo, janeiro 31, 2016

Nós e Bruxelas

Cada vez mais tenho a sensação de que parte da rigidez que Bruxelas está a indiciar, quando à trajetória proposta para o défice estrutural português, a projetar do OGE2016, se deve muito à indecisão sobre a situação política que se vive em Espanha. 

As instâncias comunitárias podem estar a temer que uma qualquer flexibilidade indiciada no caso português possa, na hipótese de um governo de esquerda se implantar em Madrid, vir a "adubar" um orçamento espanhol "ambicioso" para 2017. E com Renzi, na Itália, a começar a "levantar a garimpa", vislumbram uma onda do Sul, que sabemos que sempre desvaria a ortodoxia tradicional do Norte. Acresce que Espanha e Itália representariam sempre incumensuravelmente mais do que o caso português.

Vale a pena lembrar que o conceito de "défice estrutural" foi colocado como critério, no discurso condicionante europeu, pelo Tratado Orçamental, um acordo imposto à pressa à Europa num tempo de desregulação dos mercados, e cujas regras vieram a cumular-se às do Pacto de Estabilidade e Crescimento que fora, à partida, o referencial único para a presença dos Estados na zona euro. É verdade que o TO foi aceite por todos e por todos deve ser respeitado até que, eventualmente, venha a ser revisto. Esse respeito não exclui, como já não excluiu para imensos paìses a aplicação do Pacto de Estabilidade e Crescimento, a possibilidade de derrogações pontuais das regras, atendendo a situações específicas detetadas. Por isso é que há sempre lugar a um diálogo com a Comissão Europeia. Estranha-se, contudo, que se tenham atenuado na Europa as vozes no sentido de lançar o debate sobre a revisão do TO, tanto mais que estão hoje mais claros do que nunca alguns efeitos assimétricos nefastos da sua aplicação.

Não conhecendo, naturalmente, pormenores das negociações entre Lisboa e Bruxelas, devo dizer que me sinto muito confortável com a serenidade que o governo tem vindo a demonstrar no tratamento público da questão.

Só lamento - mas confesso que não fico surpreendido - que a oposição de direita esteja a procurar limitar internamente, sabendo que isso tem impactos externos inevitáveis (nomeadamente no alarme nas agências de notação), a margem negocial de manobra europeia do executivo, esquecendo que qualquer flexibilidade que agora fosse possível obter representaria um aliviar dos sacrifícios que o povo português suporta. Ou será que teme que venha a provar-se que era possível fazer melhor do que o "lindo serviço" que fizeram?

Uma noite na Sedes

Creio que terá sido nos primeiros meses de 1973. Nos arquivos da Sedes - esse clube de reflexão político-económica, de matriz liberal (no bom sentido), que o marcelismo (o outro) deixara criar e que ainda subsiste - deve ser possível descobrir o dia exato (como fui "para a tropa" em fins de março, deve ter sido até essa data). É lá que este episódio se passa.

Naquela noite, as instalações antigas da Sedes, na rua Viriato, estavam "à cunha". Estávamos lá para ouvir Francisco de Sá Carneiro, que, pouco antes, se havia demitido da sua condição de deputado à Assembleia Nacional, por insanáveis divergências com Marcelo Caetano. Eu nunca tinha ido à Sedes, aliás nunca fui dela associado e só por lá passei escassas vezes. Mas a perspetiva de uma palestra heterodoxa do líder da excluída "ala liberal" foi suficiente para se sobrepor à (pateta) sobranceria esquerdista com que então eu olhava as "contradições não antagónicas" que existiam no seio do regime. 

Por coincidência, cruzara-me à entrada com Sá Carneiro, que me lembro de trazer uma gabardine preta e que, pela autoridade e pela "gravitas" que projetava, dava ares de ser mais alto do que a sua pequena figura realmente era. Salvo uma tarde de 1970, em que o vislumbrei da tribuna dos visitantes, no plenário da Assembleia, creio ter sido esta a única vez que vi o fundador do PPD.

Já não recordo o tema da sessão, mas imagino que fosse do tipo "A situação política" ou outra daquelas fórmulas muito genéricas que eram sempre um pretexto para se falar de tudo. E se eu, que nem sócio era, pudera entrar (terei ido com alguém?), imagino que os ouvidos da polícia política estariam por ali também.

Não me lembro rigorosamente nada do que Sá Carneiro terá dito. Mas recordo que houve dois jovens que lhe colocaram perguntas, um pouco longas para o gosto da impaciente assistência, que se percebia que não estava ali para ouvi-los, mas apenas ansiosa pelas respostas do orador.

O primeiro foi-me identificado. Nunca o tinha visto, mas ouvira falar dele, pela primeira vez, já não sei a propósito de quê, anos antes, numa reunião da "Livrelco", a cooperativa livreira universitária, ali para os lados de Entrecampos, de cujos corpos gerentes fiz parte. Referiram-mo como "um tipo fino como um alho", um bocado "facho" (simplificação esquerdalha para tudo quanto não fosse, no mínimo, socialista. E mesmo assim...), uma das cabeças com futuro na direita.

O outro interveniente era-me completamente desconhecido. Foi quem falou mais. Exprimia-se muito bem, de forma articulada, num tom político que, sendo visivelmente distante dos terrenos em que eu me movia, indiciava fortes distâncias face ao regime. Recordo-me de ter inquirido o nome. Um conhecido que tinha por perto, esclareceu-me, em voz baixa: "É um católico do Técnico. Dizem que é muito esperto. Chama-se António Guterres". (Tenho sempre a dúvida sobre se, antes do "dizem" não houve um "mas"). Ah! O outro perguntador chamava-se, e chama-se, Marcelo Rebelo de Sousa.

Não deixa de ter graça que um seja hoje candidato a secretário-geral da ONU e o outro o futuro chefe do Estado.

Só para lembrar

Porque estas coisas têm de ser ditas, irritem quem irritarem, quero destacar a serenidade construtiva demonstrada por Pedro Nuno Santos e pe...