terça-feira, julho 21, 2015

Diplomacia ardente

O dia de ontem foi cheio de especulações sobre contactos de negócios luso-brasileiros, tendo o presidente Lula da Silva no centro da polémica. Como dizia, há pouco, na televisão, um colega e grande amigo, o embaixador brasileiro em Lisboa, Mário Vilalva, um destes dias vamos ter de nos entender, de uma vez por todas, sobre o que é tráfico de influências e sobre o que é diplomacia económica. É que a confusão está um pouco instalada e já me interrogo sobre se diligências que, ao longo de décadas, fiz - e sugeri a políticos, de todas as cores, que fizessem, em nome do país - em favor de dezenas de empresas portuguesas, podem agora vir a ser tipificadas negativamente. Tratou-se de apresentar empresários, de relevar a qualidade do trabalho das nossas empresas, que queriam exportar ou concorriam a concursos. Não há diplomata que o não tenha feito, por iniciativa própria ou obedecendo a instruções. E, que eu saiba, nunca nenhum de nós recebeu um tostão por isso. Nem tinha de o receber, porque essa era (e é) a nossa função.

A propósito de Lula e das suas relações com José Sócrates, recordei-me de uma historieta num dia de 2006, em que convidei o presidente brasileiro, com vários ministros, para jantar na embaixada portuguesa em Brasília, com o primeiro-ministro José Sócrates e alguns membros do governo português que o acompanhavam na sua primeira deslocação oficial ao Brasil.
 
Lula da Silva chegou um pouco tenso o jantar. Por esses dias, as relações entre o Brasil e a Bolívia estavam a atravessar um mau momento e o Itamaraty fazia os possíveis e os impossíveis para acalmar as iras públicas do presidente Evo Morales. Pelos curtos comentários que me fez sobre as relações com La Paz, enquanto nos encaminhávamos ao encontro de Sócrates, as coisas estavam ainda muito complicadas.

O jantar, contudo, correu muito bem, com excelente ambiente. Lula quase parecia ter esquecido o dia complicado que tivera. A deslocação de José Sócrates ao Brasil tinha permitido resolver vários dossiês no âmbito bilateral, em especial na área do comércio. Muitas vezes, a simples realização de uma visita oficial, para além do cerimonial dos acordos, cria um "momentum" em que coisas que se arrastavam por meses ou anos acabam por se decidir em poucas horas. Resolvi desta forma, ao longo da minha vida profissional, grandes e pequenos berbicachos.

Lula estava muito bem disposto, no final da refeição. Contrariamente à caricatura que dele se faz, nessa noite bebeu muito pouco, embora se tivesse pronunciado de forma elogiosa sobre os vinhos branco e tinto, ambos do Douro, que lhe fiz servir. Quando chegou a altura dos brindes e lhe propus, como ao resto dos convidados, um cálice de Porto, olhou para a mulher, que estava do outro lado da mesa, entre o primeiro-ministro português e eu próprio, e inquiriu, em tom de graça:

- Dona Marisa autoriza que eu beba uma Adega Velha, da garrafeira aqui do nosso embaixador?

Ainda antes que a senhora anuísse, interroguei com os olhos um dos fantásticos empregados da embaixada que serviam à mesa. O Romário, um mineiro da Pedra Azul que conhecia a minha reserva de álcoois como ninguém, fez-me um sinal negativo com a cabeça. Foi nesse instante que vi desaparecer, quase em passo de corrida por uma das escadarias por onde se acede à sala de jantar, o outro empregado da residência, o José. Hesitei em dizer ao presidente que, tanto quanto me lembrava, não tinha Adega Velha, mas que me responsabilizava pela qualidade de uma outra aguardente de grande qualidade, creio que umas reservas da Ferreirinha e da CR&F, que guardava para os convidados especiais. (Depois de uma vida a "dar o fígado pela pátria", há muito que não ouso tocar nesse tipo de bebidas).

Fiz bem. Não passaram cinco minutos e vi o José descer, com um tabuleiro de prata, acompanhada de um cálice de cristal, a longilínea garrafa da Adega Velha. Afinal, existia! Lula serviu-se, fez algumas loas ao álcool e, pouco depois, o jantar terminou. 

Despedidos os convidados, instalado José Sócrates e comitiva no hotel, regressei à residência. Impecáveis nos seus casacos brancos com botões dourados com o escudo português, já perto da meia-noite, o José e o Romário aguardavam-me. Agradeci-lhes o magnífico trabalho e comentei com ambos:

- Então sempre havia Adega Velha! Não me lembrava de que tínhamos cá daquela aguardente. O Romário tinha-me feito sinal de que não havia.

No brilho jovial daquela cara boa de negro do Piauí, o branco dos dentes sorridentes do José rimava já com alguns cabelos brancos daquele que foi, ao longo de toda a minha carreira, o mais dedicado exemplo de servidor estrangeiro do Estado português que alguma vez encontrei. E ouvi-o dizer:

- Senhor embaixador. Na residência não havia, mas eu dei um pulo a minha casa e tinha ainda lá uma garrafa de Adega Velha que me tinha sido dada pelo embaixador António Franco.

A casa onde vivia o José era colada ao muro da nossa residência. Apercebendo-se do desejo do presidente e do meu problema, colocou à disposição uma garrafa da aguardente oferecida pelo meu antecessor.

Que saudades que eu tenho desse "dream team" de funcionários de que Portugal tinha o privilégio de dispor em Brasília!

O Portugal de Leste


Há dias, numa conversa com alguém com responsabilidades políticas, fui surpreendido pelo raciocínio de que "o interior é hoje um mito", de que "com as acessibilidades agora existentes, em menos de duas horas qualquer pessoa se desloca das zonas de fronteira até ao litoral e vice-versa", pelo que é "um imenso erro estar a despejar dinheiro em áreas onde ninguém quer viver".

A regionalização é um tema divisivo na sociedade portuguesa e eu próprio nunca me senti muito seguro sobre a bondade da criação de um modelo organizativo que implica novas e dispendiosas estruturas, cuja relação custo-eficácia está ainda por estabelecer. Mas tenho de reconhecer que o preço da "não regionalização"é hoje também muito elevado, no que isso significa em termos de expressão da vontade e interesses de certas regiões do país.

Foi A.H. de Oliveira Marques quem fez notar que, já desde antes da criação da nacionalidade, se estabeleceram no território do que é hoje Portugal redes viárias que vieram a favorecer a divisão vertical do país. Com os séculos, foi-se criando cada vez mais no país um "muro", em termos de desenvolvimento, que hoje separa o "Portugal de Leste" do litoral desenvolvido. Um tanto surpreendentemente, a democracia e a integração europeia não contribuíram para contrariar esta realidade, que também não foi alterada, como se esperava, pela cooperação transfronteiriça.

Quando passei pelo governo assisti, com algum espanto, à explanação de propostas estratégicas que tinham no seu centro modelos de desenvolvimento exclusivamente assentes no litoral, na criação de uma espécie de "metrópole" ao longo da costa, concentradora das atenções, dos recursos e, naturalmente, de pessoas. O interior, se não era "só paisagem", não ficava muito longe disso.

O modelo das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional hoje existentes é uma aberração que favorece o prolongamento desta discriminação, que traz consequências trágicas em termos de ordenamento do território.

Que tem a zona industrial do Porto a ver com a desertificação do nordeste transmontano, qual é a similitude de abordagem das questões que afetam Aveiro e Coimbra com as zonas fronteiriças das Beiras? Não estará a região transmontana muito mais próxima, em matéria de interesses, da Beira interior (ou mesmo, no limite, do Alentejo oriental)? Precisamente porque hoje existe uma multiplicidade de evidentes interesses comuns, não seria de estabelecer uma Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Interior Norte e Centro, amputando para tal as duas CCDR dessas áreas?

Mais difícil do que lutar contra interesses instalados é combater mentalidades enquistadas em modelos mentais que alguns se obstinam em não abandonar. É preciso lutar para derrubar o “muro” que separa internamente o nosso território, é necessário lutar pelo "Portugal de Leste" e, de uma vez por todas, caminhar para a unificação do país.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, julho 20, 2015

Os gostos da Sara


Sara Carbonero diz que gosta do Porto. Uhf! Ainda bem! Como espanhola, já troca o "vê" pelo "bê" desde nascença, o que é meio caminho andado. Ficamos agora à espera que anuncie a "O Jogo" que gosta de tripas. Esse será um teste importante. É que Pinto da Costa faz das tripas obrigação. Depois, com o tempo, talvez se vá cansando do "Pedro Lemos" e da "Casa de Chá" e, um dia, ouse um copo-de-três de verde tinto na "Adega do Olho" ou uma sandocha pingona de unto na "Badalhoca", lá para Ramalde. Restam as "francesinhas"! Aquelas bombas de colesterol, na "Cufra" ou no "Galiza", são o ponto de apuramento final para quem quer ser visto como "portista" de conta bancária. Ah! e o "carago", claro! Aí sim, estará "em casa" e já pode ir para o Porto Canal ou até para o Monte da Virgem, se não houver uma qualquer incompatibilidade à vista. E, então, até o Casillas poderá dar-se ao luxo de alguns dos seus conhecidos frangos, tal como o Baía andou anos a virá-los pelas Antas, até que o Felipão o mandou descansar para a Cantareira, onde o Chico Fininho também acabava os dias.

Pousada


Há uns meses, fui convidado por um amigo estrangeiro a jantar na sua casa na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Sabia que era um apartamento novo e, durante alguns dias, andei um pouco angustiado, não fosse dar-se o caso de ser no edifício onde estivera instalada a PIDE. Não era, era em frente.

Não faço parte dos muitos cidadãos que foram perseguidos pela polícia política da ditadura, pelo que a minha relação com aquele sinistro edifício é apenas emocional. Só por uma vez lá entrei, como já aqui contei. Nem por isso, porém, um jantar por ali deixaria de ser incómodo para mim.

Hoje, estive na nova Pousada que o grupo Pestana instalou no edifício que, até há anos, foi o Ministério da Administração Interna, na rua do Arsenal, esquina com a rua do Ouro. Mesmo em frente, em 1908, o rei dom Carlos e o príncipe Luís Filipe morreram sob as balas de Alfredo Costa e Manuel Buíça, que também dali saíriam cadáveres. 

O edifício, antes de ser do MAI, foi do Ministério do Interior da ditadura, por onde passou, durante décadas, a tutela da repressão e do arbítrio. Ao passear no seu interior, não tive a mesma sensação que as salas do que foi da PIDE me provocariam. Mas nem por isso deixei de pensar que por ali circularam, em busca de instruções para as suas patifarias, Silva Pais ou Barbieri Cardoso, recebidos por Santos Júnior ou Gonçalves Rapazote. 

Ter muita memória, o que é diferente de ter boa memória, não deixa de ser um peso.

Um bocadinho ao lado

Portugal ganhou ontem um campeonato qualquer de "futebol de praia". De há uns anos para cá, especializámo-nos em coisas "um bocadinho ao lado" daquilo que realmente importa. Somos um êxito em matéria de sucedâneos. Lembro-me que o país rejubilou, em tempos, com uma dupla, cujo nome esqueci, que ganhava numa coisa chamada "voleibol de praia". Até então, nunca ninguém tinha ouvido falar dessa modalidade arenosa, mas, com a ajuda da dupla, a pátria pareceu nunca se ter importado com outra coisa que não fosse o "voleibol de praia". Depois, num instante, a tal dupla desapareceu do mapa, e logo o voleibol de praia se esfumou no nevoeiro da nossa atualidade. Voltaram a ouvir falar do "voleibol de praia"? Há dois ou três anos, lembro-me de uns maganos quaisquer que andavam numa espécie de barco e ganharam umas medalhitas. O país embandeirou em arco, a gesta marítima do burgo parecia ter renascido. Depois, uma tarde, os dois rapazolas parece que se zangaram. Nunca mais se falou da modalidade, que naufragou em definitivo na nossa memória afetiva. Entretanto, surgiu o "futsal". No meu tempo, chamava-se "futebol de salão" (joguei nos "campeonatos corporativos", defendendo mediocremente as cores e a baliza da Caixa Geral de Depósitos). Distraí-me uns anitos e logo passei a ouvir falar do modernaço "futsal". E o "futsal", que quando era "futebol de salão" não interessava a uma mosca, passou então a desporto de primeira. Só me recordo que havia por lá um Madjer, que eu pensava ter sido uma reconversão, para versão de jogo de bolso, do argelino do calcanhar (que deu a taça Toyota ao Porto, que, a partir daí se acha campeão planetário), mas afinal não era o mesmo. Há semanas, numas imagens num pavilhão qualquer, vi um cavalheiro que dizem que é presidente do meu clube, protestar, com voz grossa, para ser levado a sério, contra uma arbitragem num jogo de "futsal", contra uma equipa de bairro ou de província - já me esqueci! Então agora perdemos tempo a lamentar ou a comemorar vitórias em "futsal"? Mas onde é que chegámos?! Um destes dias, estamos a mobilizar foguetes e matracas para um Sporting-Benfica em berlinde ou matraquilhos! 

Esta vitória em "futebol de praia" preocupa-me! Se a Merkel ouve dizer que ganhámos alguma coisa na praia, deve desconfiar que não fazemos outra coisa nas horas de trabalho senão trabalhar para o bronze (já que, para o ouro, a coisa fia mais fino). E daí, talvez não se preocupe muito: é que nos jogos a sério, no futebol que realmente importa, confirma-se a frase célebre de Gary Lineker, segundo a qual "o futebol são onze contra onze e, no final, ganha a Alemanha". E nós, na praia...

domingo, julho 19, 2015

Piresinos

Alguma Europa só agora acorda para as práticas xenófobas do governo húngaro, dirigido por Viktor Orban, que se somam a iniciativas legislativas que colocam em causa a separação de poderes no país e dão aso à perspetiva de eternização no poder do partido aí dominante. Orban está agora envolvido na polémica construção de um muro entre o seu país e a Sérvia, para travar os fluxos de imigrantes. A evolução da Hungria para uma espécie de "democratura", uma coisa a meio caminho entre a democracia e a ditadura - como hoje existe na Rússia e alguns temem que a Turquia se possa tornar -, é uma realidade muito evidente. A Europa, que tão zelosa se mostra a julgar a democraticidade do resto do mundo, no seu processo de relações externas, faria bem se olhasse com maior atenção para estas derivas que ocorrem no seu seio e cuidasse em lhes pôr cobro. Mas, neste caso, como no fechar de olhos às graves situações que envolvem as minorias russas nos países bálticos, Bruxelas prova que tem dois pesos e duas medidas e, em particular, um grande incómodo quando se trata de aferir se os seus Estados membros cumprem aquilo a que se comprometem pelos tratados.

Há uns tempos, numa sondagem feita na Hungria, país onde o populismo xenófobo está em crescendo, estimulado pelo próprio governo, foi colocada uma questão sobre o modo como os interrogados apreciavam a possibilidade de facilitar a imigração de pessoas vindas de Pirese. Dois terços dos inquiridos reconheceram os piresinos como uma etnia criadora de dificuldades e cuja imigração no país seria indesejável. O curioso é que "Pirese" foi um nome inventado e os "piresinos" não existem... Mas estes detalhes são irrelevantes para mentalidades já marcadas pela discriminação étnica.

sábado, julho 18, 2015

Fukuyama

Com grande segurança, o economista Francis Kukuyama defende hoje no "Expresso" que "a Europa consegue sobreviver a uma saída grega".

Fukuyama é conhecido pela célebre teoria do "fim da História" que, nos anos 90, prenunciava um mundo tendencialmente democrático e sem tensões extremas.

Eu também gostava de acreditar em gambozinos

sexta-feira, julho 17, 2015

Diplomacia


Quando ocorre uma guerra, costuma dizer-se que a diplomacia falhou. Quando "não ocorre" uma guerra, graças à ação da diplomacia, ninguém põe a crédito desta os mortos, os sofrimentos e os prejuízos que se pouparam. A diplomacia é a arte discreta de tentar fazer pontes, compromissos, de fazer "não acontecerem" as guerras ou outros conflitos de monta. Assim, é difícil ser elogiada pelo que (de mal) não aconteceu...

Porque uma ação diplomática foi titulada a um nível elevado, o caso do entendimento conseguido com o Irão, que envolveu a generalidade da comunidade internacional - mas, essencialmente, os EUA, a França, o Reino Unido, a Alemanha e a UE -, ela acabou por dar um inusitado relevo ao papel da negociação e da diplomacia. E, pelo menos nos tempos mais próximos, terá evitado ações militares que, em certos momentos, pareceram iminentes.

Recordando: o Irão tinha enveredado por um programa de enriquecimento de urânio que foi considerado prelúdio para a construção de uma bomba atómica. Teerão argumentava que o objetivo era civil; o mundo suspeitava que a finalidade era militar. A relutância iraniana em permitir uma fiscalização por parte da Agência Internacional de Energia Atómica adensou as suspeitas e acabou por levar à imposição de duras sanções económicas. O braço-de-ferro prosseguiu por muitos anos e, finalmente, o Irão cedeu e as sanções vão agora ser levantadas, persistindo ainda algumas limitações à importação de armas convencionais pelo país. Esta é uma vitória da persistência, do diálogo, da não-cedência ao tropismo jingoísta de alguns. É uma vitória do bom-senso.

Os Estados Unidos são um poder estranho. Na sua ciclotimia externa, hesitam entre um unilateralismo arrogante, frequentemente agressivo, e a busca de compromissos  abrangentes. Na matriz de todas as suas intervenções está a preeminência absoluta do seu interesse nacional (o que é natural), sempre identificado como sendo o indiscutível interesse da comunidade “do bem” (o que, frequentemente, é bastante duvidoso). Com o seu antigo poder colonial, Washington terá aprendido que “não tem amigos, tem interesses”. Com o tempo, tem vindo a entender que, às vezes, é do seu interesse ter amigos...

Esta operação diplomática de sucesso dos EUA no Médio Oriente não vai nunca redimir o imenso erro do Iraque, que todos estamos ainda hoje a pagar, a começar pelo próprio Iraque. Mas é, com toda a certeza, o produto das “lessons learned” nesse cenário, confirmando a velha máxima de que os Estados Unidos acabam sempre por encontrar a melhor solução, mas só depois de terem experimentado todas as outras...

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, julho 16, 2015

Em 2015, como será?


Epicur


É um novo tempo de uma revista criada, há já muito anos, por Alfredo Saramago. Foi hoje lançada a nova "Epicur", dirigida por Mário Rui de Castro e Filipa Melo, que passa a sair cada quadrimestre, com uma edição especial no Natal.

O autor deste blogue contribui, em cada edição da nova Epicur, com uma crónica de apreciação de um restaurante. Nesta edição de Verão, o artigo dá conta das impressões de uma visita ao "Casas do Bragal", em Coimbra. Pode ler o texto aqui.

Com o óbvio "disclaimer" de quem faz parte do grupo de colaboradores, devo dizer que considero que a nova revista está excelente, com uma apresentação gráfica de imensa qualidade. E só posso desejar um grande sucesso a esta renovada fase de uma publicação que, de há muito, criou já um lugar de prestígio na imprensa portuguesa.

quarta-feira, julho 15, 2015

... para além da Grécia

Há mais mundo para além da Grécia, felizmente. E há boas notícias no cenário internacional sobre a difícil questão nuclear iraniana. 

Depois de uma longa negociação liderada pelos EUA, com apoio da França, Reino Unido e Alemanha (e a União Europeia), terá sido possível chegar a um acordo com o governo de Teerão, que vai permitir o levantamento das sanções que esmagam, desde há vários anos, a economia do país. Em troca, o Irão aceita uma monotorização muito rigorosa do seu processo de enriquecimento de urânio, mantendo-se ainda alguns condicionamentos importante em matéria do seu equipamento militar.

Quem sabe mesmo se, com este passo, Washington não poderá ter aberto caminho a uma relação de novo tipo com o Irão, em moldes que lhe permitam ter nele um parceiro para a luta contra o Estado Islâmico, que o EUA já devem ter entendido ser hoje a grande ameaça à estabilidade na região (e não só). À coragem e determinação de Obama correspondeu também uma evolução sensível da parte iraniana, que procura convencer o mundo de que os seus propósitos sempre foram e são pacíficos - o que nunca foi a convicção generalizada da comunidade internacional, como é bem sabido sabe. O enriquecimento de urânio para fins não militares é permitido, sob regras conhecidas e internacionalmente aceites.

Quem se opõe a este acordo, que consagra uma forte vitória da diplomacia sobre a linguagem bélica? Naturalmente, a Arábia Saudita, que vê no Irão shiita uma ameaça muito forte ao proselitismo sunita que lidera na região. Depois, com o apoio de setores americanos hostis ao presidente, Israel surge como um dos mais ferozes detratores deste entendimento, porque não acredita que o mecanismo de fiscalização posto no terreno venha a ser suficientemente eficaz para impedir o Irão de ter a arma nuclear. Naturalmente, Israel tem, nesta matéria, particular "autoridade": toda a gente sabe que possui a arma nuclear, não sendo talvez por acaso que se opõe a qualquer operação de fiscalização da Agência Internacional de Energia Atómica no seu território...

A questão nuclear iraniana foi, ao longo da última década, um tema central nas preocupações das instâncias internacionais. Recordo-me que, quando era embaixador em Paris, o tema estava constantemente sobre a mesa das conversas com os meus colegas da UE e do Quai d'Orsay. Nesses tempos, pelo cruzamento das informações recebidas dos diversos serviços de "intelligence", íamos estabelecendo um calendário de aproximação do Irão ao fabrico efetivo da bomba, tentando perceber então se Washington ia ou não dar "luz verde" a Tel-Aviv para um "preemptive strike". Esperemos que esse cenário esteja agora definitivamente afastado, porque, no estado em que está o Médio Oriente, seria álcool sobre o fogo!

Uma última nota sobre as sanções aplicadas ao Irão, com o apoio muito alargado da comunidade internacional - Russia e China incluídas, ou não fossem estes dois países detentores da arma nuclear e, por isso, muito pouco interessados em alargar a "concorrência" na matéria. Para notar que estas sanções funcionaram e foram realmente efetivas.

Há cerca de dois anos, numa deslocação a Istambul, tive uma conversa casual com um médico iraniano que viajava com a família. Fiz-lhe algumas perguntas sobre os equilíbrios internos do regime e, em particular, sobre o efeito das sanções. Recordo a tristeza com que me disse, mais ou menos isto: "No passado, nós vínhamos à Turquia e sentíamos que estávamos a visitar um país bem mais pobre do que o nosso. Desde há alguns anos, as coisas inverteram-se: os turcos vivem muito melhor do que os iranianos e é muito claro que, para além disso ser o resultado de algumas opções internas erradas, as sanções contribuíram muito para o empobrecimento brutal por que o meu país hoje passa. Mas há exceções: a classe política não é excessivamente afetada pelas sanções, continua a ter os seus privilégios e mordomias. Mas o povo, infelizmente, sofre muito com o condicionamento internacional em torno do Irão".

O modo como os iranianos saudaram ontem o acordo obtido em Viena leva-me a crer que o meu interlocutor iraniano deve também estar feliz. Até eu estou, porque não é todos os dias que a diplomacia tem um êxito claro. Além de que é excelente que haja boas notícias na vida internacional.

"Opinion drivers"


Fico sempre muito curioso com a seleção dos entrevistados que os jornalistas portugueses fazem quando se deslocam a certos países estrangeiros. A ninguém passa pela cabeça que, em Paris, Washington ou Londres, um episódico correspondente português pare no meio de uma rua para ouvir um cidadão sobre uma questão de política interna. Porém, em territórios mais "exóticos", como agora é a Grécia, já é vulgar assistir a essa estranha amostragem, através da qual o sentimento do país é medido por dois ou três cidadãos que se disponibilizam para dar a sua opinião. Penso sempre se, como português, me sentiria representado por uns fulanos entrevistados ao acaso no Rossio ou no Cais do Sodré... 

Há, contudo, um "grau zero" na recolha deste tipo de opiniões de "populares": são os taxistas. Quando vejo um jornalista citar a opinião de um taxista, mudo logo de canal ou mudo de página num jornal. Porquê? Porque me lembro logo dos nossos... 

terça-feira, julho 14, 2015

Vive la France!

Depois das bravatas iniciais, para alemão ver, as vozes governamentais portuguesas foram moderarando a sua hostilidade pública contra a Grécia, confiando em que os gregos se encarregariam, eles mesmos, de cavar a sua própria cova. No que quase acertaram... É hoje claro que o Portugal oficial era, de há muito, bastante favorável à saída da Grécia do euro. 

O governo português foi dizendo o contrário, claro, aliás como todos os que, pela Europa, partilhavam a mesma ideia. Até que aconteceu o referendo grego. Aí, com a cambalhota de Tsipras, a quem não se viam artes de fazer o contrário daquilo para que fora votado, alguns Estados acharam ter encontrado o pretexto ideal para pôr a Grécia "com dono". O argumento da "perda de confiança" caiu como sopa no mel no Eurogrupo e, daí, foi transportado politicamente para os "adultos" (como diz Christine Largarde). Parecia descoberto um motivo natural para a "eurolândia" se livrar da Grécia, para "purificar" o euro e regressar à "pax germânica". Berlim aí se encarregaria de proteger os seus "länder" ibéricos, tremidos nas eleições que se avizinham. 

Porém, enganaram-se numa coisa: a Grécia tudo faria para continuar no euro. Mesmo um "hara-kiri". Mesmo que isso implicasse cair no ridículo negocial e ter de aceitar condições muito mais duras do que as que, sob a indignação maioritária do país, tinha acabado de recusar com estrondo. Imagino que, para cabeças nórdicas, nada disso fizesse sentido. Até para nós, confessemos, não fazia muito... 

Mas a Grécia vive noutro mundo! E, para além das suas erráticas táticas, terá tido um sobressalto estratégico e percebeu que (1) uma certa Europa estava, de facto, fortemente predisposta a afastá-la do euro e (2) que isso corresponderia à sua irrecuperável periferização e agravamento de empobrecimento, para além de que (3) era dessa mesma Europa que, a bem ou a mal, poderia surgir o financiamento para a sua sustentação, depois da trágica experiência partilhada com as receitas do FMI. Porém, esta obstinação grega, aliás num registo algo masoquista, não teria servido de muito se não encontrasse eco em quem tem ainda, sabe-se lá por quanto tempo, a possibilidade de levantar a voz à Alemanha.

Assim, seria graças à teimosia da França, aliás por razões que foram muito para além da mera "salvação" da Grécia, que Berlim foi impedida de levar a sua avante e criar condições para uma saída imediata do país da zona euro. Digo "imediata", porque é evidente que nada está ainda "perdido" para quantos acreditam que uma purga do euro é a solução ideal para o futuro. Isso aliás pode observar-se lendo a esperança raivosa que é alimentada por algumas "viúvas do Grexit" na nossa imprensa, no dia de hoje. 

Dia de hoje que é o "14 juillet", a data nacional francesa. Dia em que, também por isto, apetece dizer: "Vive la France!"

Retsina


Ontem, falei aqui de "retsina", um vinho branco grego.

Há quase quatro décadas, fui pela primeira vez a Atenas. Ia de Benghazi, na Líbia, onde tinha estado em trabalho. Recordo-me que era novembro, o tempo não esteve muito pelos ajustes e, no termo da minha breve escapada turística no fim de semana, a capital grega foi atingida por uma forte tempestade, com algumas vítimas na cidade. Mas a primeira noite ainda havia dado para um jantar na "Plaka", o "Bairro Alto" ateniense.

Para acompanhar a refeição, o empregado do restaurante, a quem eu solicitara meia garrafa de vinho branco, perguntou-me se eu queria experimentar "retsina". Quando a garrafa veio, depois de provar, queixei-me que o vinho não estava em condições. Ele levou a garrafa e trouxe outra. Voltei a provar e voltei a queixar-me. Nessa altura, o rapaz inquiriu se eu já antes tinha provado "retsina". Disse que não. Ao que ele me explicou que "aquele" era o sabor de "retsina"... Para quem não conhece, trata-se de um cheiro e paladar intenso, com similitude com resina. Há quem goste, claro!

Voltei à Grécia várias vezes. Cuidei sempre em evitar a "retsina". Numa dessas vezes, numa taberna de Corfu, Georgios Papandreou (um bom amigo e também um dos mais impopulares políticos gregos, nos tempos que hoje correm), a quem confessei a minha fobia, insistiu que eu experimentasse de novo a bebida. Creio que foi a acompanhar uma salada de queijo "feta". E, há que convir, não me soube tão mal como da primeira vez. Mas não o suficiente para tentar uma terceira... Há bons vinhos brancos na Grécia!

segunda-feira, julho 13, 2015

Na História!

Com modéstia, o nosso primeiro-ministro revelou há poucas horas ter sido ele quem gizou a fórmula que permitiu "fechar" o acordo com a Grécia! Há momentos em que um país se arreda da vulgaridade e deixa a sua marca nas tábuas da História universal! São instantes raros, daqueles que apontam caminhos ao mundo, que definem lideranças excecionais. Como disse Herman José no clássico "Bamos lá cambada!", "os portugueses já provaram muitas vezes saberem ser bons fregueses das grandes ocasiões". São instantes de génio, Bojadores, Tordesilhas, Aljubarrotas. Há horas, foi Bruxelas. A Europa estava num impasse, Merkel coçava os punhos do saia-e-casaco, Hollande já só sonhava em ter um capacete para a moto igual ao de Varoufakis, Tsipras fazia as contas a quantas colunas do Partenon teria de passar a patacos. Foi então que deste canto ibérico surgiu, serena, forte, decisiva, a sugestão redentora. Afinal, Portugal, tido por crítico reticente da atitude helénica, dava uma mediterrânica mão a Atenas. E, desta vez, não era Fernando Santos! Terá havido um silêncio respeitoso, contam-nos. Seguido de um aplauso entusiástico! Tusk, por uma vez, nem olhou para Berlim, à espera de instruções, Juncker, rápido, pressentiu o golpe de génio e pediu uma rodada comemorativa. Os copos tilintaram. A glória lusitana, a "trouvaille", o desenrascanço foi brindado. Seria um Porto, um vintage, uma reserva à altura? Quando o líquido chegou à boca sedenta dos líderes houve, contudo, esgares menos agradados. Afinal, era "retsina"!

O preço

Alguns haverá que, mesmo contra toda a evidência, irão nas próximas horas afirmar, com um ar aparentemente convicto, que o primeiro-ministro grego teve em Bruxelas uma "importante vitória". Esses mesmos recusar-se-ão, com toda a certeza, a reconhecer que a Grécia cedeu em toda a linha e acabou por aceitar um cenário de capitulação e verdadeira humilhação. Mas também tenho a certeza de que irão procurar descortinar, em dois ou três pontos deste compromisso, vestígios dessa "vitória" de Tsipras. Quem não quer ver, nunca verá.

Não quero ser sádico, mas acho impossível não lembrar os termos de referência na base dos quais o Syriza ganhou as eleições em janeiro: recusa, em absoluto, de um novo resgate e fim das medidas de austeridade. E quero também recordar, porque isso é importante perante observadores teimosos, que a diplomacia europeia do primeiro-ministro grego teve perante si, à mesa negocial, cenários de compromisso bem melhores, rejeitados com base numa estratégia que se revelou inconsequente e - digamos isto com todas as letras - altamente lesiva dos interesses da Grécia. A simpatia que a tragédia  do governo grego nos possa merecer não deve iludir-nos ao ponto de nos tornar cegos perante a realidade dos factos.

Dito isto, que fique bem claro que acho absolutamente inaceitável, contrária ao espírito europeu, a chantagem a que o governo de Atenas foi submetida, num ultimato que revela deprezo pela dignidade de um povo e pela consideração mínima que um governo eleito deve merecer por parte dos seus "parceiros" - e tenho cada vez mais dúvidas que o conceito de "parceiros" possa continuar a ser usado nas presentes circunstâncias. Uma certa Europa morreu hoje rm Bruxelas e tenho muitas dúvidas que ainda possa vir a ser recuperada.

Três notas finais.

Desde logo, para a Alemanha, que se prestou a um papel que vai marcar muito, e de forma negativa, a sua imagem na Europa. Angela Merkel revelou incapacidade de liderança e um seguidismo pouco prestigiante perante as pulsões anti-gregas da sua própria opinião pública. Por detrás de Berlim, surgiram ainda alguns comparsas em registo semelhante, incapazes de fazer perceber aos seus países que há mais Europa para além deste caso grego.

Depois, a França e François Hollande. Tendo embora um caso nacional próprio a cuidar, o que nunca terá deixado de estar presente na sua atitude, mostraram que sabem ver a política para além da espuma dos cifrões. Um belo momento para o presidente francês e, também, para o seu experiente ministro das Finanças, Michel Sapin.

Finalmente, Passos Coelho. Saudemos, com sinceridade, o seu silêncio e contenção nos últimos dias. Este acabou por ser, "malgré lui", ser o mais glorioso tempo da sua "política europeia", nos últimos quatro anos.

domingo, julho 12, 2015

Raul

Ontem, alguém pediu que eu recordasse esta historieta. Ela aí vai.

Foi há bastante tempo, diria mesmo que há bem mais de duas décadas. Eu estava sentado na "mesa dois" do bar Procópio, creio que numa noite de fim de semana. A certa altura, entrou na porta o Raul Solnado. 

O Raul era um dos "titulares" históricos da vetusta tertúlia da mesa, pelo que tinha sempre nela o seu lugar cativo. A "mesa dois", ou a "Dois", para os iniciados, que tem cinco lugares "regulamentares", chega a conseguir acomodar, por um milagre multiplicador, com a ajuda de uns bancos suplementares, quase uma dúzia de convivas.

Da "Dois", saudei com um gesto o Raul, chamando-o para a mesa. O Raul permanecia ainda junto à porta, retido por alguém. De repente, ouvi-o atravessar a sala com uma pergunta que me era dirigida:

- Ó Francisco, chegou a falar com ela?

Olhei-o nos olhos e percebi onde ele queria chegar. Respondi que sim, mas acrescentei: "Mas ela disse que não dava o material antes de falar consigo. E que você tinha ficado de lhe telefonar!"

O Raul reagiu, indignado: "Eu?! Ela devia era ter falado com o tipo do Porto! Mas, não senhor! Sabe com quem ela falou? Com o homem dos laminados, imagine!"

"O dos laminados?!", reagi eu com surpresa. "O que esteve preso?" O Raul confirmou que era essa mesma pessoa. E acrescentou que a mulher do tipo do Porto - "aquele careca de Custóias, você lembra-se!" - tinha sido vista num hotel da Figueira "imagine lá você com quem!: com o tipo das tintas, o homem de Sintra". "Não me diga!", reagi eu, caído das nuvens com a surpreendente revelação. "Digo! Mas não conte nada a ninguém! Prometa-me!"

Com a história a começar a tomar contornos já um tanto pícaros, o bar tinha silenciado um pouco, embora ninguém estivesse a perceber patavina da conversa, a começar pelos meus colegas de mesa.

Quando finalmente se sentou, já servido pelo Juvenal, o Raul e eu fomos intimados a revelar que história era aquela, quem eram as figuras daquela trama complicada, que só nós os dois conseguíamos seguir. 

Foi então que caímos ambos em fortes gargalhadas. Era tudo inventado! Aquele diálogo de "malucos" fora sendo "enchido" por nós os dois, cada um criando uma nova "deixa" para o outro, a partir da primeira pergunta do Raul. 

Umas semanas depois, tentámos reeditar o episódio, com uma "sequela", mas a graça original já tinha desaparecido.

Prometi ontem, a uma testemunha presencial da cena, reproduzi-la aqui. 

sábado, julho 11, 2015

Tulipas, moinhos & cheques

O primeiro-ministro holandês deu mostras, há dois dias, de grande relutância em aceitar um acordo sobre a questão grega. Os Países Baixos, em matéria de dinheiros, não brincam em serviço e, manifestamente, corre-lhes nas veias um sangue de cifrões. Sei o que é discutir questões financeiras com os colegas holandeses, aliás gente sempre muito bem preparada, altamente qualificada e que sabe como levar a água ao seu moinho - água e moinhos, como é sabido, não faltam na Holanda...

Algures no primeiro semestre de 1996, durante a presidência italiana da União Europeia, os quatro responsáveis governamentais pelos Assuntos Europeus que, simultaneamente, eram os negociadores-chefes dos seus países no trabalho de negociação do Tratado de Amesterdão, foram convidados pelo ministro francês Michel Barnier para um jantar no esplendoroso Palazzo Farnese, onde está instalada a embaixada francesa em Roma. Era na véspera de uma reunião da Conferência intergovernamental para a discussão do novo tratado.

(Uma curiosidade: a França paga à Itália o equivalente a um franco antigo pelo aluguer do palácio romano Farnese e, em compensação, o Estado italiano "despende" o equivalente a uma lira, pela utilização, como embaixada em Paris, do deslumbrante Hôtel de la Rochefoucauld-Doudeauville, com a mais bela escadaria de mármore que alguma vez vi. Já ouvi franceses a dizerem que foi um "mau negócio", porque a lira se desvalorizou muito face ao franco...)

Além do anfitrião, o ministro francês para os Assuntos europeus, estiveram no jantar os secretários de Estado dos Assuntos europeus da Suécia e dos Países Baixos, respetivamente Gunnar Lund e Michiel Patijn, e eu próprio. Todos havíamos estado presentes nas reuniões do "grupo de reflexão" que, durante 1995, fez sugestões para a revisão do Tratado de Maastricht, o que havia criado entre nós uma certa cumplicidade pessoal.

O jantar, além de algum "small talk", era de trabalho, pelo que cada um suscitou as prioridades do seu país para a discussão que então se iniciava. Para o que aqui nos interessa, gostava de dizer que, entre vários outros pontos, insisti bastante na necessidade de uma Carta da Cidadania Europeia, a ser apensa ao tratado, a fim de destacar o valor acrescentado que, para cada cidadão, a pertença à União representava, a somar à sua própria cidadania nacional. O meu colega holandês foi aquele que me pareceu o menos entusiasmado com a ideia.

Acabado o jantar, eu e ele regressámos ao hotel onde, casualmente, ambos nos alojávamos, perto da Piazza Navone - o Raphael, coberto de exótica vegetação. Tomámos uma cerveja e eu, insistente, tentei convencê-lo da bondade da minha ideia sobre a Carta de Cidadania. Michiel Patijn, numa frase curta, sintetizou então as "prioridades" do seu país para o novo tratado: "Francisco, para nós, a Europa significa dinheiro!" Não podia ser mais esclarecedor.

Agora, ao ouvir o chefe do governo holandês, veio-me à memória a frase.

sexta-feira, julho 10, 2015

As questões do Brasil

Para um observador exterior, a crise política profunda que atravessa o Brasil tem alguns aspetos incompreensíveis.

Por muitos meses, vimos o povo na rua clamando por melhores serviços públicos, contra certas mordomias, contra a corrupção e o desvio de verbas de empresas públicas, pelo fim das comissões cobradas em determinados contratos, etc. Essa luta deu passos em frente, com uma atuação firme do poder judiciário, que está a "limpar a casa" e a provocar um terramoto em alguns conluios históricos entre a política e os meios económicos.

Porém, numa análise mais fina, os últimos dias mostram que uma tensão entre a presidente e o congresso de deputados tem agora como origem próxima duas questões essenciais: a não facilitação, por parte de alguns ministérios, em matéria de abertura de cargos para as clientelas partidárias e as dificuldades encontradas por alguns deputados para financiarem as suas "emendas" legislativas, isto é, o seu quinhão de utilização do orçamento para favorecerem as suas clientelas políticas próprias.

Nem por um segundo o sentimento público brasileiro surge a interrogar-se sobre a legitimidade destas duas práticas, as quais, em si, constituem fontes de discricionariedade e arbítrio: no primeiro caso, de escandaloso aparelhamento partidário da máquina pública e, no segundo, de alimentação da rede do verdadeiro "polvo" que é o financiamento do "envelope" de iniciativas dos deputados, para garantirem os seus votos futuros.

Ninguém - mas ninguém! - surge na imprensa brasileira ou no discurso político a denunciar estas duas práticas. Porquê? Porque elas fazem parte da matriz "patrimonialista" do regime, beneficiam o conjunto de partidos da "base governista" (embora com desequilíbrios entre si, que estão na origem dos atuais confrontos políticos interinstitucionais) e são, até ver, um "fact of life".

Quando acordará o Brasil para o absurdo democrático destas práticas? Tenho pena não ter podido estar ontem na conferência que o antigo presidente Fernando Henrique Cardoso proferiu na Gulbenkian. Gostava de ter podido fazer-lhe esta pergunta.

"Tenho de falar à Leah!"


“Tenho de falar à Leah!”. A frase de Maria Barroso ecoou de forma estranha, naquela sala da “guest house” que a Autoridade Palestiniana colocara à disposição do casal presidencial português, na noite de 4 de outubro de 1995. Quer Mário Soares quer eu próprio fomos surpreendidos pelo insólito daquele propósito. A quarta pessoa presente estava, desde há minutos, sem expressão, como que em estado de choque. Era Yasser Arafat.
“Ó Maria de Jesus! Como é quer tu vais ligar agora à Leah?!”. Leah Rabin era a mulher de Yitzhak Rabin. Mais precisamente, a viúva. O primeiro-ministro israelita, em cuja residência, em Jerusalém, não muitas horas antes, tínhamos almoçado, acabara de ser assassinado a tiro num comício em Tel-Aviv.
Mário Soares estava na sua última visita oficial ao estrangeiro, como presidente da República, no termo do seu segundo mandato. Eu era, desde há cerca de uma semana, secretário de Estado do novo governo português e substituía, na viagem, o ministro dos Negócios estrangeiros, Jaime Gama. Depois de três dias em Israel, visitávamos oficialmente Gaza. A amizade antiga de Soares com Rabin e Arafat, que ungia a esperança de um acordo de paz que, à época, pareceu possível, era o cenário de fundo daquela dupla visita, muito prestigiante para um país “honest broker” no processo, como Portugal era então visto.
“O que é que o governo aconselha que se faça? Suspendemos a visita?”. A pergunta de Mário Soares era-me dirigida. Eu era “o governo”! Não havia telemóveis com rede, estávamos desesperadamente a tentar contactar, via satélite, António Guterres, o primeiro-ministro, através de um telefone militar. Gaza não tinha aeroporto. O Falcon oficial ficara em Jerusalém, em Israel, país fechado e em estado de sítio, depois do assassinato do seu primeiro-ministro. Aqui entre nós, eu sabia lá o que se deveria fazer! O bom-senso aconselhava, naturalmente, a que a visita fosse cancelada. Mas era muito difícil sair dali.
“Como é que eu poderei falar com a Leah?”. Era outra vez a voz de Maria Barroso, que, nos últimos dias, tinha reforçado a sua relação pessoal com a mulher do primeiro-ministro israelita, que se fazia ouvir. “Ó Maria de Jesus! Isso vê-se depois!”, respondeu, já sem paciência, Soares.
Maria de Jesus Barroso Soares não conseguiria, nessa noite, o seu propósito de falar com Leah Rabin, como o seu coração recomendava. Fá-lo-ia, num abraço emocionado, dois dias depois, no funeral. Nunca esqueci a sua atitude, em que a sinceridade da emoção se tentou, sem êxito, sobrepor à nossa preocupada razão.

quinta-feira, julho 09, 2015

Jornalismo adversativo

Uma sondagem hoje divulgada, (re)coloca o PS à frente da coligação.

No "meu tempo" as sondagens mediam as distâncias entre os partidos e, confesso, acho que seria útil os portugueses conhecerem a distância atual entre os dois grandes protagonistas partidários - o PS e o PSD. É que ou muito me engano ou estaríamos perante números verdadeiramente históricos. Mas disto parece que ninguém quer saber...

É também muito curioso observar o modo diferente como foram tratadas a sondagem da passada semana e a atual.

No dia de hoje, não há nenhuma notícia - repito, nenhuma! - que não "amorteça" o resultado favorável do PS com uma relativização enfraquecedora - "mas" sem maioria absoluta...

Curiosamente, na passada semana, quando a coligação liderou a sondagem da Católica, ninguém se lembrou do mesmo argumento limitativo. E, neste caso, ele seria ainda mais decisivo. É que não há nenhum cenário político em que a coligação possa governar sem ter maioria absoluta.

(Bom, haver há! Se o PCP e o Bloco lhes derem a mão, como sucedeu em 2011...)

Memorabilia diplomatica (XXXIX) - Asilo político

Nas aulas que dou de "Diplomacia e Negociação internacional", a questão do Asilo Político merece um tratamento especial, destacando o diferenciado tratamento da questão um pouco por tido o mundo. Evoquei então uma pequena história.

Há alguns uns anos, num final de manhã, o ministro-conselheiro entrou no meu gabinete, em Brasília, com um ar esbaforido: "Temos aqui na Embaixada um homem a pedir asilo político!". Era 6ª feira, dia em que a Embaixada fechava um pouco mais cedo. Muitos funcionários já tinham mesmo saído.

Uma asilado político é uma "dor-de-cabeça" tradicional na diplomacia. Cada caso é um caso e a doutrina que se desenvolve sobre o assunto situa-se sempre numa margem de grande ambiguidade.

De que se tratava? Um cidadão brasileiro, oriundo de uma localidade a algumas centenas de quilómetros de Brasília, surgira na secção consular da Embaixada, transportando uma grande mala que alguma incúria deixara entrar sem questionar, e afirmara que estava a ser perseguido politicamente pelas autoridades brasileiras, que estava na iminência de ser detido e que, por essa razão, vinha pedir asilo político. Um problema adicional era a mala: segundo disse, ela tinha uma bomba que faria explodir, no caso da sua reivindicação não ser aceite.

Nestas ocasiões, nunca sabemos, à partida, se estamos perante um simples "bluff" ou uma coisa mais séria, obrigando o sentido de responsabilidade a começarmos por considerar a segunda opção. Pedi a um funcionário experiente para ser o único interlocutor do homem e mandei reduzir ao mínimo o pessoal, mantendo-se um total "black-out" para fora da Embaixada sobre o incidente. O homem, desde o primeiro momento, deu sinais de algum desequilíbrio psicológico - factor com que era importante contar mas que não ajudava a nos sossegar. Ao que disse, embora sempre de forma muito confusa, seria amigo de uma personagem política de segunda linha, envolvida num recente escândalo, sentindo-se perseguido e sob ameaça iminente.

Foi-lhe explicado, com muita calma, que o Brasil era um país livre, uma sólida democracia, onde "quem não deve não teme" e onde cada cidadão tem hoje todos os meios possíveis - da comunicação social à Justiça - para assegurar a preservação e defesa dos seus direitos, em especial políticos. No Brasil, há muito que não há presos políticos, pelo que um ambiente de perseguição sem fundamento não era plausível. E que, por essa e por outras razões ligadas à inexistência de um enquadramento jurídico bilateral na matéria, não era possível conceder-lhe asilo.

O homem manteve-se renitente e obstinado, por algumas horas. A certo ponto das conversas que mantinha com o seu interlocutor, mencionou o nome de um deputado brasileiro local, de quem seria conhecido. Telefonei de imediato ao político que me esclareceu que estávamos perante uma pessoa muito desequilibrada, embora pacífica e totalmente inofensiva, de uma profunda religiosidade. Pedi-lhe para falar com o nosso homem, para o acalmar, o que simpaticamente fez.

Entretanto, a questão da religiosidade do homem fez-nos alguma luz! O interlocutor do putativo "asilado", percebendo já o respectivo cansaço, perguntou-lhe, a certo passo, se, em face da sua fé, não quereria aconselhar-se com um sacerdote. O nosso homem hesitou um pouco, mas, ao fim de algumas persuasivas insistências, acabou por dizer que aceitava essa hipótese.

E é aí que as "artes" diplomáticas vêm ao de cima. Num edifício situado a pouco mais de cem metros da Embaixada fica a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Foi-lhe explicado que, mais do que um simples sacerdote, poderia até falar com um bispo! Este "upgrading" religioso pareceu agradar-lhe. Sugerimos ao homem que fosse até lá, que reflectisse com a ajuda dos "bispos" (não fazíamos a mínima ideia se estava por lá algum bispo...) e que, depois, "voltasse para nos dizer alguma coisa". Surpreendentemente, aceitou. Enviei um carro da Embaixada, com o seu interlocutor a acompanhar, levá-lo à porta da CNBB. Pelo caminho, confessou que a mala não tinha nenhuma bomba, que continha apenas roupa...

Não sei pormenores do que aconteceu na conversa do nosso "refugiado" na CNBB, entidade que avisámos telefonicamente do que ia acontecer e que, pelo sim pelo não, não deveriam deixar entrar a mala que o homem transportava. Vim a saber que acabou por regressar nessa tarde a casa, sem mais problemas.

Foi um susto, embora pequeno, um tipo de incidentes que faz parte da vida diplomática.

(Reedição)

quarta-feira, julho 08, 2015

Prazeres

Há dias, num jantar de amigos, veio à baila a eterna questão: por que diabo o cemitério de Campo de Ourique se chama "dos Prazeres"? Ninguém fazia a mais pequena ideia e, para "desempatar", lembrei-me de ligar a alguém que, no que toca à cidade de Lisboa, sabe sempre tudo: o José Sarmento de Matos. O Zé, num segundo, explicou-nos que o cemitério sobranceiro ao vale de Alcântara tem esse nome porque aí havia uma quinta no meio da qual se erguia uma ermida a Nossa Senhora dos Prazeres. 

O cemitério dos Prazeres está ligado à minha memória de infância. Na minha família lisboeta, após a morte de um primo muito jovem, os pais, que lhe haviam erguido um jazigo nos Prazeres, tinham-se mudado propositadamente para uma casa quase em frente ao cemitério, de onde diariamente - e não estou a exagerar - iam visitar o lugar onde estava o depositado o filho. Estão hoje por lá todos.

Poucos meses depois de ter vindo viver para Lisboa, voltei ao Prazeres. Era uma romagem por ocasião do funeral de António Sérgio. Estavamos no início de 1969, um ano que ia ser muito importante na vida política em Portugal, em que a "abertura" que a chegada ao poder de Marcelo Caetano tinha prenunciado revelaria toda a sua falsidade. 

O funeral de António Sérgio, um intelectual e pedagogo humanista, cuja presença no eixo da oposição não comunista fora marcante por muitas décadas (Sérgio foi ministro na I República e tinha sido uma figura central da "Seara Nova"), redundou num ato público de expressão política democrática. Para mim, seria uma espécie de "batismo de fogo" da agitação política lisboeta. Recordo algumas correrias pela rua Saraiva de Carvalho, com a polícia à perna, e de uma imensa bandeira nacional nas mãos de uma figura esguia de homem, que voltaria a encontrar em outras cerimónias republicanas subsequentes.

Eu não conhecia então a cara de muita gente nas hostes da oposição, figuras a que a imprensa dava escasso destaque, "estimulada" pela censura. Nesse dia 25 de janeiro de 1969, notava-se que no centro da manifestação - que, de momentos de silêncio tenso, passou subitamente a palavras de ordem anti-regime, com o hino nacional à mistura, a anteceder o brutal ataque da polícia - havia um núcleo de pessoas que me parecia dominar a cena. Os amigos que comigo iam ajudaram-me a nele identificar algumas figuras. Creio que foi aí que vi, pela primeira vez, Mário Soares, regressado escassos meses antes da sua deportação em S. Tomé. Ao seu lado, ficou-me a imagem de uma mulher ainda jovem, de cabeça bem erguida, com ar determinado, num corpo pequeno: era Maria Barroso. 

46 anos depois, vamos acompanhar Maria Barroso aos Prazeres. Graças a ela, a Mário Soares e a muitos outros que lutaram pela democracia de que usufruímos, fá-lo-emos hoje em plena liberdade. Já não haverá por lá polícia que nos impeça de saudar a memória dos mortos que queremos honrar. Também por isso, os portugueses não a esquecerão.    

terça-feira, julho 07, 2015

Maria Barroso


Há mais de um ano, escrevi por aqui isto:

"Uma senhora por quem tenho, de há muito, um grande respeito: Maria de Jesus Barroso. É uma das figuras públicas portuguesas que, ao longo de todos estes anos, nunca me desiludiu. Combatente contra a ditadura, mulher coragem em tempos pessoais e políticos muito difíceis, mostrou-se sempre, ao lado de Mário Soares, com uma dignidade de que o país se deve orgulhar, consagrando-se como uma personalidade com uma dimensão cultural e cívica que é muito rara entre nós. Escrevo isto com o à-vontade de quem está longe de ser um seu íntimo ou mesmo próximo. Mas não posso esconder a admiração que sinto pela sua coerência e a sua verticalidade."

A dra. Maria de Jesus Barroso morreu hoje. Não acrescento nada ao que escrevi, para além da expressão do meu profundo pesar a toda a sua família.

Acabou a conversa

Olhando em perspetiva, há que convir que o resultado do referendo grego constitui o mais importante desafio com que a União Europeia se confronta, nas suas décadas de existência. O alargamento a Leste, outro desses grandes desafios, resolveu-se formalmente, não obstante o choque de diversidade que induziu. Este desafio tem, porém, uma natureza muito diferente.
 
Foi importante que a votação grega fosse inequívoca. Um resultado equilibrado daria a sensação de que a vontade nacional estava dividida. As coisas ficaram muito claras: a Grécia recusa receitas de austeridade e quer soluções que rompam com os modelos tradicionais. À mesa de Bruxelas estará um parceiro que, mais do que no passado, irá dizer, alto-e-bom-som, que não aceita, não apenas aquilo que pelos outros lhe é proposto que faça, se quiser continuar a ser financiado, mas, essencialmente, que não se revê na filosofia subjacente ao funcionamento do “eurogrupo”. E, legitimada agora por um expressivo voto popular, a Grécia quer mudar as regras do jogo, propondo abrir outros tabuleiros paralelos, como o da reestruturação da dívida.
 
A Grécia tem um novo problema. Como ontem aqui escrevi, o governo grego tem o dever de defender, sem desiludir quem agora o reforçou, um novo e mais imperativo mandato de recusa da austeridade. Nos últimos cinco meses, andou num vai-e-vem de propostas. O referendo deu-lhe agora a possibilidade de transferir para os parceiros europeus o ónus da resolução do problema. Como? Aceitando estes as soluções que a Grécia apresenta, as quais, tendo até uma relativa sensatez, se confrontam com a dificuldade de fugirem por completo à lógica dos restantes parceiros. Podem dizer que estou a simplificar o problema. Não estou, é só isto.
Mas os parceiros europeus da Grécia também têm um novo problema. No passado, tiveram consigo o fator tempo: embora crescentemente irritados, foram deixando prolongar a tramitação negocial, na errónea esperança de que a chegada das “deadlines” temporais para a liquidação dos empréstimos pudesse vergar a vontade grega. Enganaram-se.
Ao impor a votação de domingo, o governo da Grécia conseguiu a dramatização que pretendia. Se as torneiras do financiamento se fecharem, se a miséria se tornar evidente no dia-a-dia, Atenas dirá, agora mais do que nunca, que tal se deve à obstinada intransigência dos credores. E isso não demorará semanas a acontecer, será dentro de dias.
Vamos agora ser testemunhas de um inédito braço-de-ferro, num cenário mais emocional do que nunca. Se, com esta sua atitude, por um golpe de mágica, a Grécia conseguir vir a alterar as políticas financeiras da Europa, “chapeau”! E todos ganharemos, claro, desde logo, Portugal. Se assim não acontecer, se um compromisso de qualquer natureza não vier a estabelecer-se, se a catástrofe financeira for o destino trágico desta aventura, poderemos estar a assistir ao princípio do fim do projeto europeu.
(Artigo que hoje publico no "Diário Económico") 

segunda-feira, julho 06, 2015

A propósito da Grécia

A única guerra justa é a guerra à intolerância. Temos o direito e o dever de lutar, em todos os momentos, contra a intolerância. Mesmo a dos nossos amigos.

Pobre Europa!

Pirro, um general grego, disse a frase célebre: “mais uma vitória como esta e estou perdido”. Tsipras, o vencedor da noite de ontem, ficará na história grega como o homem que recuperou a dignidade da Grécia e vergou os parceiros ou como o condutor do país contra um muro que, nem por ser eventualmente imoral e cínico, deixará de ser destruidor. Logo veremos.

O governo grego decidiu este referendo pela manifesta impossibilidade de fazer aceitar internamente um novo pacote de ajustamento estrutural, num país em que nem um cego deixou de ver que a anterior receita similar falhou rotundamente. É de uma hipocrisia de contabilistas de segunda ordem mostrar o superávite pontual das contas gregas, no trimestre anterior, como um “feito” tributário da bondade da terapia liberal que parece ser hoje o DNA indiscutido no eurogrupo. Com a brutal quebra do produto e a tragédia social que se vive na Grécia, torna-se quase insultuoso ouvir esse argumentário por alguns economistas de trazer por casa (e pelas nossas televisões). 

Com este resultado, Tsipras legitimou amplamente a intransigência que teve nos últimos meses. Porém, por muito que isso desagrade a alguns, o primeiro-ministro grego perdeu ontem qualquer margem de manobra, atou as mãos a si próprio, tornou muito mais imperativo o mandato com que irá agora deslocar-se a Bruxelas. Pressente-se bem a sua linha: mostrar aos parceiros que, pelo teste democrático, aquela era e é a verdadeira vontade da Grécia. E que não haverá outra.

Veremos agora como esses parceiros e as instituições que os representam, quiçá a digerirem ainda a ineficácia da inaceitável chantagem que procuraram fazer sobre o eleitorado grego, se irão comportar. Como acolherão o sorriso vingado de Varoufakis? Estarão dispostos a abrir a caixa de Pandora da reestruturação da dívida? Pandora era grega, mas a história só existiu na mitologia.

Pobre Europa!

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

domingo, julho 05, 2015

Cenários retóricos para a tarde de hoje

O "eurogrupo" e a vitória do "Sim"

Com esta decisão, o povo grego mostrou o seu realismo e a sua vontade de continuar a participar no projeto europeu, sem ceder a pulsões radicais. Com base no memorando que esteve prestes a ser assinado em Bruxelas, estão agora criadas as condições para rapidamente retomar a definição com Atenas dos passos seguintes para a saída da crise. O "eurogrupo" está aberto a dialogar de imediato com as autoridades gregas, as atuais ou outras que eventualmente venham a emergir de uma novo sufrágio, e está disponível para discutir a rápida entrada em vigor de uma ajuda financeira de transição, em moldes a acordar. Congratulamo-nos com esta decisão sábia do povo grego.


O governo grego e a vitória do "sim"

A Europa conseguiu chantagear e intimidar os eleitores gregos. Foi verdadeiramente vergonhosa e anti-democrática a campanha desencadeada contra o governo grego, que condicionou em absoluto esta votação. Esta decisão é a pior possível para o futuro da Grécia, porque implica que Atenas terá de subordinar-se aos ditames dos credores e uma nova onda de austeridade vai cair sobre a população, com previsível instabilidade social. Mas, naturalmente, respeitaremos o sentido desta decisão, que obriga a uma clarificação política sendo que, até lá, será muito difícil perspetivar um modelo de financiamento do dia-a-dia grego. A Europa quis e estimulou esta solução, a Europa fica agora responsabilizada pela gestão das respetivas consequências.


O "eurogrupo" e a vitória do "não"

A decisão soberana do povo grego de dizer não às propostas que as instituições tinham apresentado nos últimos tempos, e que muito se aproximavam daquilo que Atenas anunciou estar disposto a aceitar, não deixa de introduzir um ambiente de quebra de confiança sobre o interesse último da Grécia de permanecer na zona euro. Toda a Europa se ressentirá desta decisão, que, sem ambiguidades, muito lamentamos. Mas o "eurogrupo" está aberto, como sempre esteve, a discutir com as autoridades gregas um novo programa, devendo contudo deixar claro que, do seu mandato está, em absoluto, excluída a possibilidade de fazer depender um futuro acordo de uma nova reestruturação da dívida grega. Não é este o tempo de uma eventual apreciação deste tema. 


O governo grego e a vitória do "não"

O povo grego deu hoje a toda a Europa uma grande lição de maturidade democrática. Com este resultado, que reforça a legitimidade do governo grego e dá completa razão à postura que tem vindo a afirmar perante os credores, vai ser possível à Grécia surgir agora, perante a Europa, com uma voz firme e determinada, com sentido de compromisso mas recusando a austeridade cega e reabrindo a incontornável questão da reestruturação da impagável dívida grega. O governo grego partirá para Bruxelas com toda a sua boa vontade e com o objetivo de encontrar, com os seus parceiros, um novo entendimento, assente em novas bases. Espera-se que alguma Europa, que procurou dividir os gregos e imiscuir-se no seu processo decisório democrático, tenha aprendido a lição. Esta é a vitória da dignidade sobre a tentativa de sujeição.

Memorabilia diplomatica (XXXVIII) - O procurador


Hoje vou falar de uma das mais antigas instituições do Ministério dos Negócios Estrangeiros - o "procurador".

Confrontei-me com ela nos corredores do palácio das Necessidades, durante o período em que fazia as provas para a entrada na carreira diplomática. Um dia, fui aproximado por um contínuo que me perguntou: "O senhor doutor já tem procurador?". Devo ter olhado para ele com cara espantada: "Procurador?! Para quê?". O homem explicou, em breves palavras, que todos os diplomatas, sem excepção, tinham "o seu procurador", alguém que lhes tratava de receber o vencimento (!?) e que era muito útil para várias coisas, em especial quando no estrangeiro. E propunha-se para ser meu procurador, claro.

Ora eu ainda não tinha sequer passado as provas orais, estava a anos de partir para o estrangeiro, por que raio precisava de um procurador? Mas lá fiquei com o cartão do homem. À medida que os exames iam decorrendo, pelas esquinas dos claustros, foram aparecendo outros contínuos ou motoristas a deixarem-me cartões. E eu ia-os guardando, mais por curiosidade do que por convicção.

Entrado no Ministério, colegas mais velhos perguntavam-me: "Já escolheste procurador?". Eu dizia que não, eles estranhavam e, por regra, gabavam logo as vantagens que haveria em escolher o seu. Mas eu continuava relutante e não contratava ninguém. Fazia até uma certa gala nessa atitude singular.

Até que chegou o primeiro fim-do-mês. Perguntei a alguém onde se recebia o vencimento. Nesse tempo não havia ainda o sistema de crédito em conta bancária. O salário mensal vinha em envelopes, com as notas e as moedas dentro. "O teu procurador é que trata disso" - foi a resposta. Sim, mas eu, que não tinha procurador, como é que fazia?: "Não tens procurador? Isso é muito complicado, sem procurador nem sei como é possível receber o salário. Ele é que leva 'as folhas' ao banco".

Sabia lá eu o que eram "as folhas"! Entrei em fúria. Já tinha sido funcionário público noutro departamento do Estado e nunca tinha tido dificuldade em receber o salário. Era agora, no MNE, que isso ia ser impossível? "Vai ao 4º andar, pode ser que te informem de outra maneira de receberes o dinheiro, mas, desde já te digo, não vai ser nada fácil" - disse-me uma voz amiga, embora muito céptica.

Faço aqui um parêntesis para explicar que o "4º andar" é o andar do poder administrativo do MNE, da mesma maneira que o "3º andar" é o andar do poder político, onde está o gabinete do Ministro e, antes, também estava o do Secretário-Geral, até que um "golpe de mão" do ministro Deus Pinheiro praticamente "correu" com o chefe da carreira do gabinete que ocupava há décadas. Mas, na realidade, se se entrar no MNE pelo Largo do Rilvas, o 4º andar é, verdadeiramente ... o 2º andar! Na "casa", as contas fazem-se sempre desde "lá de baixo", de outros andares que só se vêem da Tapada das Necessidades. E estas coisas, no MNE, já não se discutem. Aliás, na conversa normal da carreira, é vulgar ouvir-se: "Falei hoje com o 4º andar sobre as promoções, mas disseram-me que o assunto ainda não tinha saído do 3º andar". Frase que, às vezes, é complementada por outra ainda mais críptica: "Dizem que é a 7ª que está a criar dificuldades". A "7ª" significava a 7ª repartição da Contabilidade Pública, então o braço armado do Ministério das Finanças dentro do MNE.

E lá fui eu ao 4º andar. Eram dois corredores em cruz ("et pour cause"...), sem nada que identificasse o que fazia quem estava por detrás daquela imensidão de portas fechadas. Andei de seca para meca, a entrar e a sair de salas atulhadas de senhoras, algumas que vim a saber historicamente poderosas: Olhavam com superioridade o jovem "adido de Embaixada" que eu era, particularmente o teimoso que não queria ter procurador: "Ó dona Maria Garcia, está aqui um doutor que quer receber o ordenado sem ter procurador!" - dizia uma delas, como se acabasse de avistar um extra-terrestre, provocando a concentração em mim de dezenas de olhos incrédulos, acompanhados por alguns sorrisos de benévola piedade. "Isso só vendo amanhã, passe então por cá da parte da tarde, pode ser que estejam por aí as 'folhas', mas olhe que vai ter muito trabalho, ó doutor!", advertiu-me logo alguém. No dia seguinte, afinal, também não foi possível. E, no outro, as 'folhas' ainda não apareciam... "To make a long story short", cedi e lá acabei por arranjar um procurador...

Verdade seja que, se o procurador era quase inútil em Lisboa, ele era, num tempo sem internet e com dificuldades de comunicação, precioso durante as nossas longas estadas no estrangeiro: ia aos bancos, pagava contas, mandava e expedia correspondência, fazia diligências de todo o tipo (alfaiates e costureiras incluídos). Contudo, para mim, a sua função mais apreciada era e continua a ser mandar-me livros e jornais pela mala diplomática.

Entre os procuradores, houve sempre "classes" bem distintas e até gratificações diferentes: os procuradores mais "finos" só tratavam de prestigiados embaixadores e já não aceitavam "mais gente". Outros, eles próprios mais velhos, dedicavam-se preferencialmente a diplomatas muito antigos, já na reforma ou perto dela. Finalmente, os mais novos procuravam singrar na vida através de clientela das gerações recentes. Os mais afortunados ou poderosos tinham mesmo cubículos ou vãos de escada, com chave própria, onde guardavam os embrulhos e envelopes. E, se bem me lembro, alguns havia que já subcontratavam mais novos, para tarefas ou deslocações mais pesadas.

Na minha memória de algumas décadas, o grande procurador do MNE foi o senhor Jaime Matos, homem da portaria, figura de grande educação e óptimo trato, sempre delicado, mesmo para os mais novos. Nunca foi meu procurador, mas eram famosas as cartas com que fazia acompanhar as contas mensais, nas quais pré-anunciava os "movimentos diplomáticos": "Saiba Vossa Excelência que consta pelos corredores que o Senhor Embaixador X poderá vir a ser substituído em breve pelo Senhor Ministro Plenipotenciário Y, que corre que será promovido. Quem não estará contente, ao que se diz, é o Senhor Embaixador Z, que agora poderá que ter de aceitar "tal posto"...". E depois, modestamente, terminava: "Mas Vossa Excelência sabe, bem melhor do que eu, que isto podem ser só boatos...". Qual quê! O Matos acertava sempre, pelo cruzamento de ouvidos vários, que faziam da portaria do Ministério um lugar privilegiado de informação.

Confesso que não sei se, nos dias de hoje, os meus colegas mais jovens ainda têm o seu procurador. Provavelmente já não. Eu tive um, de uma eficácia imbatível e que, além do mais, se transformou num querido amigo.

(Reedição adaptada)

sábado, julho 04, 2015

O panarício

Há muitos anos, o nosso Raul Solnado, numa daquelas suas deliciosas historietas, falava, a certo ponto, de "um panarício e meia dúzia de bicos de papagaio", a propósito de um rol de padecimentos de alguém.

Ao olhar uma radiografia minha, há uns dias, um especialista fez-me notar umas coisas brancas e disse-me, pedagógico: "Sabe o que isto é, não sabe? São bicos de papagaio". Fiquei ciente, como se diz na minha terra.

Hoje, numa farmácia, mostrei um dedo dorido e ouvi da senhora do balcão: "Ah! Mas isto é um panarício!". Aqui entre nós, até ao dia de hoje, eu não fazia a menor ideia do que era um panarício...

Que pena tenho de já não poder dizer ao Raul, nas nossas divertidas charlas na "Dois" do Procópio, que, também eu, finalmente, tenho "um panarício e meia dúzia de bicos de papagaio".

sexta-feira, julho 03, 2015

As voltas do Eusébio

Um turista, de chanatas, olhava há pouco o passeante féretro de Eusébio por Lisboa, a caminho da companhia de Garrett, Sophia e Aquilino.

Viu escrito num cartaz "o rei morreu" e, com o português já aprendido entre as casas de fado e os balcões do absinto, perguntou a um transeunte:

- Has the king died?

O rapazola, camisola vermelhusca no dorso, inglês de engate, respondeu:

- Yes! The king! "Eusibio", como ele achava que se diz Eusébio p'ra camones.

A pergunta/resposta do turista, ciente, apesar de tudo, de estar em pátria jacobina e sem coroas, foi deliciosa:

- Was he in exile? Where?

Ao lado, um meu amigo, lagarto de coração de leão, que acaba de me contar a cena, não terá tido a coragem de explicar ter sido precisamente o Lumiar o lugar de "exílio"...

(Obrigado Tó Luis!)

A Grécia e a irracionalidade


O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schultz, uma figura altamente estimável, por quem tenho elevado apreço pessoal e que, por mais de uma vez, deu mostras de ser um bom amigo de Portugal, também se deixou contaminar pela irracionalidade. Schulz propôs que fosse criado um governo "tecnocrático" em Atenas, o que, em especial nesta delicada conjuntura, é uma inaceitável ingerência nos assuntos internos do país, vindo de uma das mais altas figuras da constelação eurocrática de poderes. A resposta que mereceria dos gregos devia ser um forte "mind your business!".

Mas a irracionalidade não fica só por este lado. Percebo que a defesa do "não" seja assumida como um gesto com uma forte justificação emocional, como denúncia indignada de um modelo de austeridade que, de facto, também não funcionou por ali, deslegitimando assim a aceitação de um novo pacote de sofrimento nacional imposto pelos credores. Mas, para além disso, o "sim" também me não parece ser solução para nada, dado que vai criar um imenso impasse político, com obrigatoriedade de novas eleições e um período de grande indecisão quanto ao futuro. Mas, voltando ao "não", devo dizer que ainda não encontrei alguém que me explicasse (para além do "porque sim!") a racionalidade da ideia de que, com ele no bolso, o governo grego chegará a Bruxelas e conseguirá, de imediato, melhores condições para negociar do que as que teve até agora. Tudo isto me parece muito "wishful thinking", mas admito que possa ser eu quem está a ver mal as coisas. Resta-me a vantagem de não ser grego e, por isso, não ter de optar.

quinta-feira, julho 02, 2015

Notas para dois amigos

                     

Caro Sérgio

Com a vida a ocupar-nos as agendas, ainda não falámos desde que trocámos mensagens por ocasião da tua nomeação para diretor de informação da TVI. E, podes crer, não é com gosto que esta minha nota, que tem de ser pública, seja para lamentar a decisão de afastamento do Augusto Santos Silva da sua "coluna" de comentário semanal. Sei que as coisas às vezes são mais complexas do que parecem. Por isso, por não conhecer os detalhes da decisão, imagino que eles possam eventualmente ser mais esclarecedores do que aquilo que já veio a público. Mas, para já, e antes que esses possíveis factos sejam conhecidos, apenas me posso pronunciar sobre os resultados. E esses são claros: o pluralismo dentro das nossas televisões sofreu um imenso "trambolhão" e, até ver, isso foi da tua responsabilidade pessoal. Sentir-me-ia mal se não to dissesse. Já nos conhecemos há muito tempo e, como sabes, nunca me dei ao luxo de esconder o que penso. Principalmente aos amigos, como tu és.

Um forte abraço

Francisco


                    


Caro Augusto

Agora que o teu mano-a-mano com o Paulo Magalhães saiu de cena, quero deixar-te um abraço de gratidão. Ao longo de muito tempo, foste capaz de dar voz a uma visão das coisas que, estando muitas vezes bem longe de ir com "l'air du temps", era importante que fosse conhecida. Só aos patetas soava como uma visão partidária oficiosa. É de quem te não conhece! A tua palavra, serena, inteligente e acutilante, com a dignidade de quem pensa sempre pela sua cabeça e sabe, como poucos, exprimir organizadamente as ideias, vai fazer falta nas noites da TVI 24, e digo-o agora mesmo ao Sérgio Figueiredo. Alguns, claro!, estão a exultar já, pelo mundo das "redes sociais", com a tua saída de cena. Não imaginam que é o maior elogio que te podem fazer! 

Um solidário abraço do

Francisco

Ubiquidade

Cruzei-o ontem à saída do Procópio onde fui beber uma cerveja, depois de sair da universidade, cerca das onze da noite, logo depois de duas horas de aula aos esperançados e atentos candidatos a serem futuros diplomatas.

- Eh, pá! O que é que se passou ontem? Liguei um canal e estavas, todo engravatado, a falar da Grécia. Num "zapping" apanho-te, colarinho aberto "à Syriza", noutro canal, sobre o mesmo assunto. E à mesma hora! Fui-me deitar e até contei à minha mulher. Sabes o que é que ela disse? "Pode lá ser! Tás c'os copos, é o que é. Já te disse: bebe menos whisky à noite..."

Não estava com os copos. Aconteceu. Como dizia o outro, "hard times"...  

quarta-feira, julho 01, 2015

UNESCO

Em 2012, este governo decidiu que a nossa missão junto da UNESCO deveria deixar de ter um embaixador dedicado exclusivamente à organização e que o lugar deveria passar a ser exercido, cumulativamente, pelo embaixador em França. 

Várias vozes se fizeram então ouvir contra esta decisão, tentando mostrar a insensatez da mesma, num tempo em que o país comemorava ainda a elevação do Fado a "património imaterial" da UNESCO, quando, no seio da organização, levávamos a cabo uma delicada negociação para a compatibilização da construção da barragem Foz Tua com o estatuto do Alto Douro Vinhateiro como "património material", para além de outros dossiês complexos em curso. 

Procurou-se mostrar que não tinha sentido Portugal enfraquecer uma das principais frentes de defesa e promoção da língua portuguesa, numa organização a que o Brasil ou Angola dedicavam embaixadores e grande atenção, onde um modelo como o português, no quadro da União Europeia, só era seguido por um grupo reduzidíssimo de minúsculos países. Finalmente, explicou-se que o acompanhamento das questões do Mar, a que Portugal dedicava uma atenção, pelo menos retórica, ficaria debilitado por este gesto. Nada feito: a decisão de retirar o embaixador dedicado à UNESCO era definitiva.

O diplomata que ocupava o posto da UNESCO estava nele há menos de um ano e foi transferido para outro destino. Mudar um embaixador é caro, envolve encargos importantes, significa a perda de uma rede de contactos entretanto estabelecidos. Encerrar uma residência de uma embaixada também, com finalização de contratos, despedimento de pessoal, transporte de mobiliário, etc. Mas a decisão do governo, e do ministro que a titulou, cumpriu-se. E o embaixador em Paris (que, por acaso, era eu) assumiu as funções e as respetivas tarefas.

Passaram três anos. O governo decide agora recolocar um embaixador na UNESCO. Nunca o devia ter retirado. E lá vamos agora ter que realugar uma casa, mobilá-la, recontratar pessoal e toda a imensidão de passos necessários à instalação do novo chefe da missão, o qual, entretanto, nem gabinete passou a ter nos escritórios junto da UNESCO, dispensado então por desnecessário. 

O que é que se terá passado para justificar que o mesmo governo que, com "sólida" argumentação, tomou a anterior decisão assuma agora uma posição inversa? Mudou o ministro? Ora essa! Então as decisões não são colegiais, do governo? E nesse governo não é hoje vice-primeiro-ministro a mesma pessoa que, em 2012, era o ministro dos Negócios estrangeiros? 

Andam a brincar com o dinheiro e a dignidade do Estado, com este ao sabor de humores de quem conjunturalmente o titula. 

Notícias da aldeia

Nas aldeias, os cartazes das festas de verão, em honra do santo padroeiro, costumam apodrecer de velhos, chegando até à primavera. O país pa...