quinta-feira, abril 09, 2015

Memorabilia diplomatica (XXIII) - O detalhe


Ontem, ficou claro que entre Marine Le Pen, líder do Front National, o partido de extrema-direita francesa, e o seu pai, o "histórico" fundador daquela formação política, está instalada uma guerra aberta. De há muito que se sabia que a chefe do partido discordava dos "infamous" comentários do seu pai sobre as atrocidades nazis. O facto de Jean-Marie Le Pen continuar a insistir nesses e outros comentários públicos de raiz xenófoba e racista terá feito transbordar o copo.

Hoje vou recordar uma história que já aqui referi, mas que vem a propósito da polémica aberta em França.

Aquele meu conhecido, um homem encantador que vive numa "péniche" atracada a um cais do Sena, estava claramente hesitante quando me abordou. Queria ter-nos como convidados para um jantar no seu barco, onde vive rodeado de antiguidades, mas não sabia se eu aceitaria que na ocasião também estivesse o seu "ami Jean-Marie". À primeira não percebi, à segunda lá entendi que se tratava de Jean-Marie Le Pen, o líder da extrema-direita, antigo candidato à presidência da República francesa, à época ainda presidente do Front National. Tratava-se de uma personalidade que, pelos seus propósitos negacionistas e outras tomadas de posição conexas, faz claramente parte das figuras "non fréquentables" para um grande número de franceses.

Le Pen é assim, a grande distância, dentre as personalidades do espetro político francês, a mais polémica. Confesso que tinha alguma curiosidade em conhecer, ao vivo, essa figura, com a qual, como já aqui um dia recordei, eu próprio tivera uma "accrochage" no Parlamento Europeu, em 2000. E, ultrapassando algumas hesitações íntimas, decidi aceitar o convite para jantar.

Há figuras que são exatamente aquilo que é a sua caricatura. Le Pen é uma delas. As suas reações em privado, a sua forma de estar e de interagir, reproduziam precisamente a imagem que eu tinha dele, recolhida das muitas aparições que lhe vira na televisão.

Foi cordial para com o embaixador de um país que conhece bem e sobre cujos nacionais, sem ser entusiático, disse as coisas óbvias do "politicamente correto" francês. Contou-me das suas viagens ao Porto, como velejador, onde conheceu o "Duque" da Ribeira, de quem se teria tornado amigo. Elogiou as qualidades gastronómicas de um restaurante português da periferia de Paris, que ainda hoje é uma espécie de cantina informal do "Front National", por se situar ao lado da respetiva sede. Não me disse, mas isso eu sabia, que há uma presença de portugueses e luso-descendentes nos apoiantes do partido.

À mesa, fiquei à sua direita (tem alguma graça, ficar "à direita" de Le Pen). Dominou a conversa, com um discurso bastante crítico do então presidente Sarkozy, muito centrado na necessidade de reforço das políticas securitárias e no combate ao que considerou ser a "permissividade" na gestão dos fluxos migratórios. Os circunstantes, gente claramente conservadora, mostravam-se simpáticos perante o que ouviam. Um, dentre eles, chegou mesmo a afirmar que, pela primeira vez, encarava votar "Front National" nas próximas eleições. O ambiente estava longe de ser desfavorável a Le Pen.  
Durante muito tempo, mantive-me bastante discreto na conversa, interessado que estava em olhar a personagem. "Entre la poire et le fromage", como se diz na linguagem social francesa, decidi intervir. Disse que o fazia como observador estrangeiro, não comprometido com a vida política francesa. Mas que não resistia a expressar uma curiosidade. Como ele bem constatara, algumas das suas propostas políticas até eram relativamente aceites, porque, aparentemente, iam ao encontro das preocupações, em matéria de segurança, que uma certa França alimentava. Por essa razão - perguntei eu a Le Pen - por que razão persistia em manter, no seu discurso político, uma outra dimensão, assente em pressupostos como a desvalorização da barbárie nazi nos campos de concentração, temática com óbvias conotações antijudaicas que acabava por radicalizar a postura do "Front Nationale" e dele afastar potenciais simpatizantes?

Le Pen olhou-me, talvez surpreendido pela frontalidade da questão. Mas reagiu bem. Sem hesitações, perguntou-me: "Está a referir-se ao 'detalhe'? ". Estava. Como disse, ficou famosa a frase em que Le Pen, a propósito da quantificação do número de assassinatos nazis nos campos de concentração, disse que isso não passava de um "detalhe" no contexto das mortes do segundo conflito mundial. E voltou a repetir isto. E acrescentou, por exemplo, que era muito estranho que nunca se falasse no facto das linhas de caminhos de ferro que levavam a esses campos alemães nunca tivessem sido bombardeadas pela aviação aliada (confesso que nunca ouvira isto!).

Tudo isto deu, por completo, e em escassos minutos, a volta ao ambiente. As mostras de simpatia pelas políticas securitárias ou de controlo da imigração preconizadas por Le Pen dissolveram-se no ar, que se tornou pesado. O jantar terminou de forma um tanto apressada. À saída, o convidado que havia dado mostras de poder vir a votar "Front National" aproximou-se de nós e, em voz baixa, pediu desculpa por termos sido testemunhas de "algumas tomadas de posição que envergonham a França".

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

quarta-feira, abril 08, 2015

Inocencio Arias


Inocencio Arias é um conhecido embaixador de Espanha. Coincidimos em Nova Iorque, onde reforçámos uma amizade que já vinha de uns anos antes. Figura agitada, de um humor magnífico, é sempre um prazer conviver com ele. Fez cinema, fala de tudo, sabe de tudo e até ousa expressar-se em russo, nacionalidade de ascendência da sua mulher Ludmila. Com uma larga capa, um "papillon" e um "borsalino" que o tornaram famoso, "Chencho", como é conhecido entre os amigos, foi diretor-geral do Real Madrid, secretário de Estado, tem livros publicados, escreve na imprensa e surge com frequência na televisão, mantendo o blogue "Crónicas de um diplomático jubilado". A sua palavra franca e verdadeira conduziu à sua saída de embaixador junto da ONU. Acontece!

Há dias, numa livraria de Valladolid, deparei com um seu livro já antigo (e que vai na 3ª edição) que fala da ação internacional de cinco primeiros ministros com que serviu ao longo da sua carreira (no meu caso, teria que falar de 15!). Dele retiro, deixando-a em espanhol, esta "pérola" sobre as chefias na carreira diplomática;

"Y de los jefes ya se sabe que uno es buena persona y competente, otro es incompetente y te pone nervioso, otro es competente pero va estrictamente a lo suyo, todo vale para trepar, y el cuarto, competente o incompetente, és un auténtico hijo de su madre. Habría que hacer un estudio para ver qué categoría es la más numerosa."

Grande escola, a carreira!

terça-feira, abril 07, 2015

Tolentino da Nóbrega

Na Madeira, ao longo das últimas décadas, não houve uma ditadura. Porém, só quem é cego, sectário ou de má fé é que poderá afirmar que o modelo político prevalecente na ilha garantia a plenitude dos direitos democráticos à generalidade dos cidadãos e às forças políticas de oposição. O regime que vigorou naquela região autónoma revestiu-se sempre - repito, sempre - de um registo autoritário que, assuma-se ou não, tinha algo de intimidante para quem o afrontasse. Todos os governos continentais viveram no embaraço de ter de lidar com esse modelo muito "sul-americano", que se instaurou à sombra do bananal madeirense, frequentemente fugindo ao confronto com ele, por pura cobardia, numa espécie de "realpolitik" de trazer por casa. Não integra as mais gloriosas páginas da nossa República a história do comportamento de quase todos os executivos lisboetas face à Quinta Vigia.

Nunca conheci Tolentino da Nóbrega, o correpondente do "Público" na Madeira, que agora faleceu. Mas acho que a liberdade da sua voz, a sua frontal e desempoeirada denúncia dos abusos que o poder regional foi cometendo ao longo destes anos, acabou por ser, muitas vezes, bem mais eficaz do que a pífia oposição política dos adversários do presidente cessante daquela região autónoma. Tenho para mim que, antes de levar a cabo algumas das suas recorrentes arbitrariedades, o poder regional deve ter pensado sempre muito mais naquilo que Tolentino da Nóbrega poderia vir a denunciar nas colunas do "Público" do que na efervescência, sem reais consequências, dos seus paroquiais adversários políticos. E esse é talvez o melhor elogio que é possível fazer na hora do seu desaparecimento.

"Boa Cama / Boa Mesa"


O "Expresso" publica anualmente o seu guia "Boa Cama/Boa Mesa", com uma listagem por distrito (é interessante como se utiliza ainda a divisão distrital, mesmo depois dela ter acabado na ordem administrativa portuguesa) dos locais selecionados para dormir e para comer, um pouco por todo o país.

Falemos apenas destes últimos. Como todas as seleções, trata-se de uma lista discutível. O que sempre achei mais criticável nas notas que acompanham as referências é um tom genericamente elogioso que por vezes não nos ajuda a destrinçar o que é, de facto, excelente do que é, frequentemente, menos bom. Dito isto, que fique claro que não passo sem o "Boa Cama/Boa Mesa" que é um "livro de cabeceira" que não abandona o meu carro.

O guia atribui galardões: um "Garfo de Platina" e vários "Garfos de Ouro".

O primeiro, como já é quase de regra, vai para um restaurante algarvio. Desta vez, é o "São Gabriel". No Algarve, à base de uma cozinha internacional que não raramente pouco tem a ver com a tradição culinária portuguesa, é viável manter, graças ao turismo estrangeiro, diversas unidades de restauração sofisticada, as quais, sejamos justos, tanto podiam estar lá como noutro lugar do mundo. Mas é lá que estão, têm muito boa qualidade e é bom que sejam reconhecidas e, nalguns casos, atraiam "estrelas" Michelin, o que se torna num chamariz interessante para o turismo. Que muitas floresçam!

Os 25 "Garfos de Ouro" ousam, por vezes, sair desse modelo internacional de culinária. Estão nesse caso quatro magníficos restaurantes: o "Cozinha da Terra", perto de Paredes, o "São Gião", em Moreira de Cónegos" e, pela primeira e merecida vez, o "Restaurante G", na pousada de Bragança (um abraço de parabéns ao Óscar e ao António Gonçalves, bem como aos seus pais, responsáveis pelo "Geadas"), e o "Vallecula", em Valhelhas, perto de Belmonte (um abraço à Fernanda e ao Luis Castro, cujo trabalho sigo há muitos anos). Entra também neste "ranking", pela primeira vez, o "Boa Nova", na antiga "casa de chá" desenhada por Siza Vieira, em Leça, um restaurante de maior ambição gastronómica, e preço a condizer!, do meu amigo Rui Paula, um excelente chefe nortenho.

Com o IVA da restauração a 23%, nunca é demais contribuir para a divulgação o trabalho das dedicadas pessoas que asseguram a indústria da restauração neste país.

segunda-feira, abril 06, 2015

Memorabilia diplomatica (XXII) - A planta


Era um aeroporto de um país tropical. A sala VIP era desconfortável, arejada por ruidosos aparelhos à espera eterna de revisão, que quase abafavam as conversas. A delegação portuguesa espojava-se por horrorosos sofás de napa, no final de cinco dias de uma viagem oficial quase tão intensa quanto inútil. 

O dignitário português que chefiava a comitiva, enfarpelado como a ocasião ainda recomendava, encaixara-se num canto, acompanhado por um qualquer ministro local, trocando banalidades.

Sem uma contraparte natural para a ocasião da despedida, já ansiosa pela "executiva" do avião que tardava, a esposa do chefe da delegação portuguesa errava pela sala, comentando as peças de artesanato que algumas senhoras da comitiva tinham ido adquirir, à última da hora, ao comércio do aeroporto, como forma de se verem livres do resto da moeda local.

A certa altura, nota-se que a senhora avança em direcção a um arbusto que fazia paisagem no fundo da sala. A embaixatriz de Portugal, mais por tropismo protocolar do que por uma qualquer evidente necessidade de apoio, segue-a, um tanto intrigada com aquele súbito interesse. E quando a vê, bem decidida, agarrar um dos ramos do arbusto, puxando-o com força, ousa perguntar-lhe, um tanto assarapantada: "O que está a fazer?". A resposta elucidou-a: "Estou a tirar um raminho para plantar lá no jardim. Não acha gira esta planta?". A embaixatriz, de facto, achava, mas duvidava muito que o plástico viesse a frutificar no jardim da esposa do nosso político.

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

Invejoso, me declaro

Alimentava a ideia de que era, em absoluto, imune à inveja. Até há pouco, ao ler este texto de José Ferreira Fernandes. É insuportável pensar que há pessoas que escrevem assim e nós não. 

Ó Zé, assim não vale!

Sampaio da Nóvoa


Para além de afloramentos críticos na mesma área política, que não vêm aqui para o caso e têm uma génese diferente, foi muito curioso verificar as reações de certa direita trauliteira - na imprensa, nos blogues e, em especial, no "site" jornalístico montado e financiado para o ano eleitoral - , ao comentar o surgimento da hipótese de candidatura presidencial de António Sampaio da Nóvoa. 

Essa mesma direita, que tão "simpática" se revelara, dias antes, quando veio a terreiro Henrique Neto - antegozando a hipótese dela dividir a esquerda -, deu agora ares de ter recebido um golpe certeiro, ao ser confrontada com o nome do antigo reitor da Universidade de Lisboa, como possível representante da esquerda na corrida presidencial. Leiam-se os "tweets" de graça acanalhada, os "posts" depreciativos no bem identificado aparelho blogueiro de 2011, que já (re)aquece os motores da intriga, bem como o coro dos comentadores televisivos oficiosos, para se identificar bem esse nervosismo que apossou a área conservadora - sentimento que, significativamente, pretendem que se transfira para dentro do PS. Nem sequer à "novidade" dos trocadilhos patetas com o apelido do putativo candidato o país foi poupado, como já era de esperar.

A apressada "desconstrução" já começou, com a microscópica análise do currículo político de Sampaio da Nóvoa (nele tentando descobrir quaisquer passos "vermelhuscos", que possam vir a inquietar o eleitorado do centro), logo seguida pela esperada exegese irónica do seu discurso, especialidade de que duas ou três figuras calistas fazem hoje modo garantido de vida. Daqui a dias, a ação prosseguirá com a desqualificação individualizada dos apoiantes que começarem a emergir, se bem se conhece a lógica sequencial deste tipo de operações. 

Desconheço qual será o destino da possível candidatura de Sampaio da Nóvoa. Uma coisa é certa: se ela preocupa assim a direita, já tem "meio caminho andado".

domingo, abril 05, 2015

Memorabilia diplomatica (XXI) - Circuitos


Num fim-de-semana, durante uma reunião que teve lugar em Genebra, nos anos 80, um grupo de delegados alugou um carro para um passeio fora da cidade.

Íamos no caminho entre Genebra e Nyon, à borda do lago, quando a conversa derivou para o trajecto sinuoso da estrada em que rodávamos, através de localidades. Alguém referiu que certas partes do percurso eram mesmo bastante perigosas.

Aí, um dos membros do grupo comentou: "E pensarmos nós que se faz aqui uma prova automobilística de tão grande importância...".

Nenhum dos comparsas de viagem fazia a menor ideia de que havia uma prova automobilística que passava por ali, pelo que pensámos que o nosso interlocutor se estaria a referir a algum rally. E, claro, pretendemos ser esclarecidos sobre o evento a que se referia.

O nosso homem - porque era um homem... - assumiu então um tom de connaisseur e, com ar de quem nos ia esmagar com a humilhante exposição do nosso tão óbvio desconhecimento, avançou: "Então vocês não sabem que passam por aqui as '24 horas de Le Mans'"?

Um ou dois segundos, para "digestão" mental da revelação, mediaram entre a frase e o coro de gargalhadas dos restantes viajantes. O lago à volta do qual passeávamos era o lago Léman, e o nosso interlocutor estava plenamente convencido que era nas estradas à volta desse lago que se disputavam as "24 horas de Le Mans". Ora Le Mans é uma localidade francesa a sudoeste de Paris...

Até ao final da viagem o nosso homem embatucou...

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

sábado, abril 04, 2015

A esquerda e as eleições presidenciais

  • Quando todos pensavam que as eleições presidenciais iam ser um problema para a direita, é a esquerda que parece um pouco atrapalhada nas suas soluções.
  • As figuras de esquerda que, teoricamente, poderiam ganhar mais facilmente as eleições presidenciais parece não quererem arriscar a hipótese de terem de acrescentar aos seus belos currículos uma linha sobre uma candidatura falhada.
  • Para ganhar as eleições presidenciais, a esquerda não precisa de um candidato com forte imagem de esquerda: precisa de um candidato que, defendendo os seus valores essenciais, abra espaços nos eleitores do centro. 
  • Qualquer candidato oriundo da esquerda que chegue à segunda volta contará sempre com os votos de (quase) toda a esquerda, por muito pouco "progressista" que a sua imagem possa ser.
  • Pela primeira vez, a questão da aceitação de soluções governativas com inclusão de forças à esquerda do PS pode vir a ser um tema no caminho para as eleições presidenciais. O que o PS vier entretanto a dizer sobre isso vai condicionar o debate presidencial.
  • A esquerda ir-se-á sempre "balcanizar" em candidaturas, na primeira volta. Está na sua irreprimível natureza.
  • Se o PS tiver uma derrota (ou uma não vitória clara) nas eleições legislativas, a direita aproveitará o "boost" para promover o seu candidato. A contrario, se o PS conseguir um bom resultado nessas eleições, as hipóteses do candidato que lhe estiver mais próximo ganhar serão muito maiores. O eleitorado há muito que deixou o tempo "do cesto e dos ovos".

sexta-feira, abril 03, 2015

José Silva Lopes


José Silva Lopes, o economista que agora desapareceu, não era um homem tranquilo. Profundo conhecedor da realidade económica portuguesa, pouco dado a edulcorar os factos, notava-se que vivia inquieto com as fragilidades estruturais endémicas do país e que isso o angustiava. Se havia alguém no mundo económico cuja palavra eu gostasse de ouvir, mesmo que dele pontualmente discordasse, essa pessoa era Silva Lopes. E, em Portugal, se a independência tinha uma cara, essa cara era a sua. 

Sendo uma figura pública marcante nos anos da Revolução, só vim a conhecer melhor José Silva Lopes ao tempo em que ambos coincidimos em Londres, nos anos 90, quando ele era representante português junto do BERD. Ouvi-o então com grande proveito, por várias vezes, na serena e fundamentada análise que sempre fazia das questões económicas.

Já em Portugal, tivemos mais contacto ao tempo em que ele chefiava o Conselho Económico e Social. Nesse domínio, desenvolveu um trabalho muito profundo sobre a integração europeia de Portugal, tendo eu tido o ensejo de nele colaborar, a seu convite, como membro do governo do setor. Era um privilégio escutar a sua perceção informada sobre o processo de adesão, tanto mais que Silva Lopes fizera parte dos precursores desse movimento. 

Começa a ser um lugar-comum dizer das pessoas desaparecidas que fazem falta. Mas, sendo bem verdade, como o é para José Silva Lopes, trata-se apenas de uma constatação óbvia. 

Nós por lá


Vai para meio século, o jornalista Silva Costa escreveu um livro que me alertou para uma realidade que, de tão próxima, eu não tinha visto em perspetiva. O título era "Portugal ­ país macrocéfalo". 

Nesse tempo, ainda sob Salazar, não havia muitas obras que refletissem criticamente sobre os desequilíbrios económico­-sociais do país. A interessante recolha de Silva Costa, apoiada em dados incontestáveis, revelou-­me então o abafante centralismo lisboeta, em todo o seu esplendor. 

Veio entretanto o 25 de Abril, o país mudou, o municipalismo reforçou­-se, a Europa alterou-­nos a paisagem e deu um abanão nas mentalidades. Porém, o essencial da mensagem de Silva Costa permanece hoje válido. E isso continua a ser dramático para Portugal. 

Há dois países neste país. Por muito que se disfarce, há duas realidade que não se complementam, mesmo que o discurso político se obstine em criar essa ilusão. Façam uma viagem pelo interior, olhem para as zonas deprimidas, despovoadas, para o Portugal envelhecido que por ali se agrava, dia após dia. Não se deixem iludir pelas rotundas, pelos pavilhões multiusos ou pela rede viária, pelas muitas piscinas sem água, que o "ouro" ocasional de Bruxelas nos trouxe. Atente­-se nas estatísticas demográficas, da educação ou da saúde. 

Não vou ao ponto de considerar que há uma "conspiração" do litoral contra o interior, mas não tenho a menor dúvida de que, na racionalidade desenvolvimentista dominante, prevalece a perspetiva de que o país deve tender a estruturar uma grande "metrópole" litoral. Assumida ou não, essa ideia acarreta uma filosofia de verdadeira exclusão territorial, que dá por adquirido um destino apenas sofrível para as regiões do interior. E isso nem de longe será invertido pelas escassas majorações voluntaristas, em matéria de incentivos, que o futuro quadro comunitário prevê. 

Na ausência de um poder político de expressão regional ­ - por via da regionalização ou de uma descentralização com capacidade operativa -­, parece-me evidente que o mais importante foco mobilizador em que o interior se poderá apoiar são hoje as suas instituições de Ensino Superior. Discriminar positivamente essa rede é um passo essencial para o reforço da coesão territorial do país. Haverá real consciência política disto? 

Há dias, numa reunião no Nordeste transmontano, alguém agradecia o esforço de quantos se haviam deslocado de Lisboa. Para logo acrescentar: "em Lisboa, acham sempre que é mais curto irmos nós lá". A macrocefalia é também um estado de espírito. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, abril 02, 2015

Manuel de Oliveira


Um grande cineasta põe fim ao seu mais longo "travelling": a vida

A saída de António Costa

Este post não é sobre quem estão a pensar! 

Quero deixar aqui uma palavra de forte simpatia ao diretor cessante do "Diário Económico", António Costa, que hoje abandona as funções que ocupava no jornal económico "cor-de-rosa". 

Escrevo no DE, a seu convite pessoal, desde novembro de 2013. Devo-lhe essa atenção, mas devo-lhe, essencialmente, a plena liberdade que me deu de nele opinar, muitas vezes a contraciclo da sua própria opinião, como ele sabia no momento em que me convidou.

A vida tem ciclos, o tempo profissional de António Costa vai agora ser outro. Desejo-lhe o maior sucesso pessoal. Vamo-nos encontrando por aí. Lisboa é apenas uma grande aldeia! 

Memorabilia diplomatica (XX) - Nomes

Era um encontro a quatro. O embaixador tinha-me encarregado de passar pelo hotel e trazer, para jantarem na sua residência, dois funcionários de umdepartamento do Estado português que tinham ido àquele país negociar um instrumento jurídico bilateral e que, dois dias decorridos e com a missão cumprida, se aprestavam para regressar a Portugal, no dia seguinte. À chegada, como era de bom tom, tinham passado pela embaixada a cumprimentar o embaixador e este retribuía agora a gentileza no termo da missão, convidando-os para uma refeição, que era também uma oportunidade para os "debriefrar" sobre o seu trabalho.

O chefe dessa pequena delegação era um funcionário já de uma certa idade (na minha memória, mas provavelmente era mais novo do que sou hoje), com forte experiência na matéria que tinha ido tratar, o que se revelava no modo competente e profundo como a abordava. O jantar correu animado, com o embaixador e o seu principal convidado a tomarem conta da conversa.

A certo passo, um de nós inquiriu sobre quanto tempo demoraria a entrar em vigor aquilo que ficara acordado. Notei que o homem foi apossado de um súbita irritação, que não nos era dirigida, mas que relevava, como logo viemos a constatar, da morosidade dos trâmites que, tradicionalmente, aquele tipo de assuntos sofria, nos corredores oficiais de Lisboa. Ouvimos então dele uma litania sobre a "via sacra" de pareceres e vistos, a expressão triste do país de burocratas que Portugal era.

"O senhor embaixador não imagina as más vontades que, por vezes, temos de defrontar", disse o técnico. E, para ser mais enfático e preciso, citou um determinado ministério, arriscando mesmo uma confidência: "Por exemplo, só ali, há um cretino, que tem lá um lugar importante, que há anos que me boicota tudo". E disse o nome do burocrata sabotador.

Olhei para o embaixador. Estava sereno. E, no entanto, o nome referido pelo homem vindo de Lisboa era precisamente o seu, nome aliás muito pouco comum, o que reduzia quase a zero a possibilidade de não haver uma relação de patentesco com a pessoa indicada. Mas o embaixador mantinha-se impassível, continuando a participar na conversa como se nada de estranho se tivesse passado.

O jantar terminou, sempre em excelente ambiente. Conduzi os dois visitantes ao hotel e, no caminho, perguntei ao líder da missão se acaso sabia o nome do embaixador.

"Ainda bem que me pergunta isso! É que não sei mesmo! Ia até pedir-lhe o nome dele para, logo que cheguemos a Lisboa, eu lhe enviar uma carta a agradecer toda a gentileza que teve para conisco. É uma simpatia, este seu embaixador!"

No segundo seguinte, quando lhe referi o apelido do embaixador, que coincidia com o do tal burocrata que ele tratara por "cretino", julguei que ia dar "uma coisa" ao nosso homem! Percebeu, logo aí, a imensidão da "gaffe" que cometera e que, na prática, seria difícil de retificar.

A situação - confesso, sem pudor - estava a dar-me algum gozo, mas não queria fazer transparecer esse meu divertimento, porque isso seria quase ofensivo, face à atrapalhação do homem, cuja noite presumi que já não iria ser muito sossegada. Que iria ele fazer? Pedir desculpa por carta? Telefonar ao embaixador? A dizer o quê? Até chegarmos ao hotel, entrou num embaraçado mutismo.

No dia seguinte, na embaixada, a vida correu normalmente. A certa altura, o embaixador entrou no meu gabinete, o que costumava fazer a meio de todas as manhãs. Comentou o jantar do dia anterior, sem denotar ter sido tocado pelo incidente. Pelo contrário, elogiou o chefe da delegação: "É um homem muito inteligente e competente".

Eu estava "em pulgas" para ver a sua reação à "gaffe", pelo que adiantei, um pouco a medo: "Foi um pouco desagradável aquela referência que o homem fez... Seria por acaso alguém da família do  senhor embaixador?"

Notei um ligeiro sorriso na cara do meu chefe. "Ele referia-se ao meu irmão, mas nem devia saber o meu nome, caso contrário, estou certo que não teria feito o comentário". Confirmei-lhe isso mesmo, referi-lhe a atrapalhação do homem no carro, quando percebera a dimensão da "argolada". Sem perder o sorriso, o embaixador retorquiu: "O meu irmão é um grande chato. O homem até deve ter razão na crítica que lhe faz". E, sem perder o sorriso, regressou ao seu gabinete.

quarta-feira, abril 01, 2015

Evasões


A convite do "Diário de Notícias", vou escrever - uma vez por mês - para a sua nova revista "Evasões", que tem uma edição semanal distribuída com o DN e o JN, uma crónica em torno de um restaurante, mas não só. Logo verão! 

Memorabilia diplomatica (XIX) - Das mentiras

O rapaz espreitou pela porta e o chefe de repartição lançou-lhe, do fundo da sala, num tom um tanto impaciente: "Entre! Entre! Ó Torquato!".

Voltando-se para o embaixador português na Mauritânia, sentado no sofá a seu lado, esclareceu: "O Torquato está cá há uns meses, é do último concurso de adidos". E olhou o adido: "O Torquato conhece o senhor embaixador Gameiro, que está em Nouakchott, não conhece?", com o Torquato a rumorar que sim.

O Torquato, embora simpático, era do género displicente e algo descuidado, gravata permanentemente descaída, um ar de quem anda ali por favor, a quem tanto se dá estar na carreira diplomática como viver à custa dos vastos rendimentos da família, cujo "social" lhe espreitava no nome e lhe permitia alguma subliminar cobertura de membros da hierarquia da casa. Entrara para a carreira quase por acaso, num bambúrrio do concurso. Era useiro e vezeiro em chegar tarde e a más horas ao serviço, passava o dia agarrado ao cigarro, a ler o jornal esticado num sofá, sendo de uma lentidão exasperante na execução das escassas tarefas de que era encarregado.

"Ó Torquato, você chegou a falar com o ministério dos Assuntos Sociais, sobre a questão do acordo sobre segurança social com a Mauritânia? Aqui o senhor embaixador Gameiro precisa de saber em que ponto o assunto está."

O adido, com um ar um tanto ausente, explicou que tinha telefonado duas vezes, que não tinha obtido qualquer informação sobre o estado do projeto de acordo, mas que ia ligar de novo.

"E com quem falou você lá?", inquiriu o chefe, já em tom levemente inquisitivo.

O Torquato embrulhou-se numas explicações menos convincentes, tão pouco plausíveis que delas quase se deduzia que, na realidade, não tinha mesmo tratado do assunto.

"Está bem, está bem! Vá lá ver isso já e diga-me alguma coisa à tarde. Sem falta!", com o rapaz a desaparecer, aliviado, pela porta.

O chefe explodiu: "Desculpa lá, pá! Este tipo é um mentiroso! Já não é a primeira vez que o apanho nestas patranhas", comentou, desalentado, o chefe. "Mandaram-mo aqui para a Repartição e agora não me consigo livrar dele."

O embaixador visitante tentou moderar a irritação do amigo: "Ó homem! Deixa lá! Também não tens a certeza se o rapaz mentiu. Até pode ter tentado telefonar..."

"Estás muito enganado! Este tipo é tão mentiroso que nem sequer se pode acreditar no contrário daquilo que ele diz..."

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

terça-feira, março 31, 2015

UK


Começou a campanha eleitoral no Reino Unido. Daqui a pouco mais de um mês, no dia 7 de maio, quinta-feira, dia normal de semana, os britânicos irão a votos. No dia seguinte, dia 8 de maio, sexta-feira, antes da sessão parlamentar, que começará impreterivelmente às 14 horas, o primeiro-ministro, nomeado pela raínha nessa manhã, estará na Câmara dos Comuns a apresentar, com todo o seu governo, o programa do novo executivo.

Em Portugal as coisas não são assim. Somos um país "rico" que se dá ao luxo de perder meses em campanhas eleitorais caríssimas, com tempos de antena que nos trarão, entre outros, o POUS e outros alienígenas de cujo nome logo nos esqueceremos, até ao próximo sufrágio.

Durante todos estes anos, à boca pequena, ouvimos muitos queixarem-se dos prazos eleitorais. O que suscita uma pergunta: o que é que, no decurso de uma década, fez o senhor presidente da República, tão vocal a pedir consensos, para convencer os partidos a aligeirar os calendários eleitorais? E que iniciativas tiveram levaram a cabo PSD e PS - os outros partidos são meros usufrutuários da visibilidade televisiva - para racionalizarem estes nossos atos eleitorais de extensão terceiro-mundista? Isto tem pouca importância? A indecisão que suspende o país por alguns meses tem mais efeitos deletérios na economia do país do que os feriados que tanto excitaram o governo e os seus mandantes da troika. 

É tão fácil!


De há uns meses para cá, tenho dado por mim a pensar que, em toda esta azáfama que por aí anda, a propósito das eleições presidenciais, há uma estranha confusão: nunca foi tão fácil escolher um presidente!

Os últimos dez anos terão instruído os portugueses quanto ao perfil para o futuro inquilino de Belém. Depois desta última década, a maioria dos votantes poderá ter já definido o “retrato robot” de um futuro chefe de Estado. Os leitores, maliciosos, perguntarão: pela negativa? Talvez, mas aprende-se às vezes mais com os erros do que com alguns exemplos.

Pertenço a um tempo que, em democracia, elegeu Ramalho Eanes com o encargo de vestir “à paisana” a chefia do Estado, depois de 50 anos de variadas fardas. E o país deve-lhe isso. Só votei no general “by default”, nunca lhe perdoei o PRD, mas reconheço o perfil ético que projeta.

Mário Soares, de quem comecei por não ser entusiasta, acabou por ser a minha alegria na política. Presidente com governos adversos, soube gerir magistralmente as tensões e proteger o regime, prestigiou o nome de Portugal, identificando-se pelo mundo como o verdadeiro presidente de abril. Olhando para os que hoje o detestam, fico ainda mais satisfeito em tê-lo ajudado a eleger.

Sou bastante suspeito em relação a Jorge Sampaio. Não sendo da sua geração etária, sinto-me da sua geração política, revejo-me nele como raramente me aconteceu com uma qualquer outra figura da nossa vida cívica, felicito-me por pertencer a um país que teve a sabedoria de lhe entregar os destinos da presidência por uma década.

Depois de Sampaio, transcorreram já dez anos. Anos que acabam por ser úteis, porque, em democracia, desde que saibamos aprender, todas as lições têm a sua importância, não obstante o seu preço.

O que queremos num futuro presidente, homem ou mulher?

Desde logo, queremos ver nele atitude e sentido democráticos, independência, respeito pelos partidos, uma observância inteligente da Constituição da República, não como um manual de instruções de um eletrodoméstico, mas como um permanente referencial cívico, uma agenda de valores, a moldura maior de um projeto de esperança. O presidente, respaldado na legitimidade unipessoal única do voto direto, tem de ser visto como uma espécie de “provedor” do povo. Como se dizia noutro tempo e noutro contexto, os portugueses merecem ter em Belém “um amigo”.

Um futuro presidente tem de ser alguém que nos orgulhemos de ter como imagem do país, pela sua cultura, pela estatura que nos eleva “lá fora”, pelo respeito que atrai para o nome de Portugal.

Quer-se também um presidente que, em todas as situações, seja a imagem da transparência, da lisura de processos, a ética feita pessoa – e assim reconhecida pelos outros. Alguém que não somatize ódios e frustrações, que não “jogue” para as escassas linhas que deixará na História, que não viva para “ter razão” mas que consiga efetivamente ser útil ao país e aos portugueses.

Um nome para reunir essas qualidades? Isso é um detalhe. O importante é consensualizar o perfil. Portugal não se pode dar ao luxo institucional de voltar a ter uma década como aquela que passou.       

(texto de um artigo que hoje publico no "Diário Económico")           

segunda-feira, março 30, 2015

Construtores da História


Um dia, tive o privilégio de visitar o forte Príncipe da Beira, uma construção portuguesa do século XVIII, nos confins do estado brasileiro da Rondónia, junto à fronteira com a Bolívia. É uma construção magnífica da arquitetura militar portuguesa.

À comoção de estar naquele lugar tão simbólico da presença portuguesa no Brasil somou-se, logo à entrada no forte, o deparar com uma placa onde se lê um extrato de uma carta de junho de 1776, enviada por D. Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, governador e 4º capitão-general da capitania de Mato Grosso. O que se escreve nesse texto passou para mim a consubstanciar o verdadeiro conceito de Serviço Público:

"A soberania e o respeito de Portugal impõem que, neste lugar, se erga um Forte, e isso é obra e serviço dos homens de El-Rei nosso Senhor e, como tal, por mais duro, por mais difícil e por mais trabalhos que isso dê, é serviço de Portugal. E tem que se cumprir".

Ontem à noite, hospedei-me num belo hotel beirão, adaptado a partir de um palacete. Olhei para a memória histórica da casa e verifiquei que a sua construção se ficou a dever a D. Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.

O grande mundo português é muito pequeno.

Armando Sevinate Pinto (1946-2015)


Creio que em 1998, fiz uma visita oficial à Roménia, como secretário de Estado dos Assuntos europeus. Aquele país estava então a trabalhar no seu processo de adesão às instituições europeias e o setor da agricultura era um dos dossiês mais difíceis que tinha de enfrentar.

A pedido das autoridades romenas, decidimos organizar, em paralelo à visita, um "workshop" sobre o tema. Convidei para orientar o "workshop" Armando Sevinate Pinto, um dos mais reputados especialistas na área, que havia trabalhado no processo de adesão de Portugal e, em Bruxelas, viria a ocupar funções da maior importância na área agrícola da Comissão. Sendo um homem de pendor conservador, a sua escolha para esta tarefa ia fazendo "cair o Carmo e a Trindade"... mais o Rato! Borrifei-me para estas reações e, como era expectável, o seminário foi um sucesso para a imagem de Portugal.

No final do dia de trabalhos, encerrei o "workshop" com um curto discurso. Expliquei aos romenos presentes que "aquele senhor" ali ao meu lado, se acaso a oposição em Portugal viesse a ganhar futuramente as eleições, seria, muito provavelmente, o próximo ministro da Agricultura. E acrescentei que, nesse cenário, também era provável que eu viesse a ser o futuro embaixador ... talvez em Bucareste. Enganei-me em termos relativos: Armando Sevinate Pinto iria, de facto, ser o futuro ministro. Eu, porém, acabei por não ir parar a Bucareste. Como eu esperava, o governo em que Sevinate Pinto era ministro retirou-me quase imediatamente da ONU, em Nova Iorque, mas decidiu mandar-me para... Viena.

Meses mais tarde, publiquei, em Lisboa, um livro. Não obstante eu ser, à época, "persona non grata" do governo em funções, Armando Sevinate Pinto fez questão de estar presente no lançamento, o que, segundo soube, não foi visto com muitos bons olhos em S. Bento.

Fui amigo de Armando Sevinate Pinto por cerca de quatro décadas. Hoje, o António Luis Neto, outro comparsa desses tempos, ao avisar-me da morte do Armando, lembrou-me que, de uma "célebre" equipa que fez parte do serviço militar em determinadas "guerras", só restamos nós os dois, de quantos se sentavam então na mesma sala. O mundo está perigoso!

Armando Sevinate Pinto era, para além do especialista indiscutível na agricultura do nosso país (e espero que alguém publique o importante conjunto de artigos que nos últimos tempos editou no "Público"), um excelente amigo, uma pessoa de sorriso são, quase adolescente, que se sentia que estava de bem com a vida e que tinha do país uma leitura positiva e de esperança. Não coincidíamos politicamente, divergíamos mesmo em coisas importantes e sobre pessoas sobre cuja importância discordávamos em absoluto, mas, em nenhum momento, essas dissonâncias criaram a menor núvem na nossa relação. Sempre que nos encontrávamos, regressávamos aos dias em que nos conhecêramos, como se o tempo se tivesse suspendido.

O Armando estava muito doente, como eu já sabia. Morreu agora. Vai hoje a enterrar, na terra que ele estudou como poucos, nessa "arte" da agricultura que foi o seu grande e glorioso destino de vida.

Um último abraço para ti, Armando!

domingo, março 29, 2015

Por hora


A hora muda duas vezes por ano. 

Num desses dias, lá para o Outono, chegados às duas da manhã, voltamos à uma. Ganhamos um hora! Posso ficar mais uma hora na cama ou no computador, sem ser sujeito a quaisquer remoques de ser um compulsivo "late riser", uma soez acusação que me persegue praticamente desde a infância.

Neste dia, a lei está comigo e tenho 60 minutos mais - 3.600 segundos! - para atrasar o meu regresso à vida ativa. Às vezes, confesso, só de tentar convencer quem está à minha volta da racionalidade indiscutível desta minha leitura, acabo por despertar e perder o sono. Já dei comigo a pensar que tenho de preparar melhor estas coisas, no futuro. 

O mundo está, infelizmente, construído num desagradável equilíbrio compensatório. E, assim, no final de março, acontece sempre uma noite aziaga em que nos roubam uma hora. É hoje! Não apenas somos impedidos de dormir a nossa quota habitual de sono como nos vão tirar mesmo uma hora, isto é, dão um alibi a quem nos desperta na manhã deste dia sinistro e nos avisa de que "já são dez horas!", uma sádica advertência face à insofismável realidade de serem apenas nove horas. 

Há sessenta e demasiados anos que convivo com esta tragédia. Tenho procurado companheiros de infortúnio, mas apenas encontro almas acomodadas com esta realidade ou - pior ainda! - madrugadores profissionais, figuras relutantes à minha pouco popular teoria de que as caçadas deveriam começar depois de almoço, que se deveria ir à pesca, qual Lorca, "a las cinco de la tarde".

Hoje mesmo, por esta hora, hospedado num Parador da planicíe castelhana, acabo de receber a advertência, imperativa, de que "el desayuno" é "hasta las 11 horas". E é, manifestamente, falso: se eu chegar, amanhã, um pouco antes das 11 horas, para a dose habitual de "embutidos", "queso" e "jugo de naranja", para acompanhar o meu tradicional "doble expresso", vou dar com o nariz na porta "del comedor": "La hora ha cambiado. Estamos cerrados, caballero!". 

O mundo é muito injusto! Bolas!

Memorabilia diplomatica (XVIII) - Sexo literário

Foi no Maputo, há já uns anos.

A lista dos condecorados era longa e o respectivo leitor, de nacionalidade portuguesa, era, manifestamente, uma pessoa pouco sensível às letras moçambicanas. Assim, sem hesitação, anunciou a certa altura da solenidade: "E agora, vai receber a ordem X a Senhora Dona Mia Couto".

Um frémito de embaraço e riso sacudiu a audiência. Mia Couto, o excelente escritor de Moçambique, afivelou um sorriso por detrás dos óculos e da barba, encaminhando-se para o palco onde o presidente português o aguardava, também este um pouco incomodado com a inesperada feminização do agraciado.

Um colega meu, de graça rápida, logo deixou cair, baixo: "Ainda bem que hoje não é condecorada a Senhora Dona Sara ... Mago!".


(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

sábado, março 28, 2015

Memorabilia diplomatica (XVII) - A poesia e o PIB


Morreu o prémio Nobel da literatura Tomas Transtromer, poeta sueco.

Recordo-me bem do dia em que Transtromer ganhou o Nobel. Não porque conhecesse a sua obra, mas precisamente pelo contrário, por nunca ter ouvido falar dele até esse mesmo dia e, numa curiosa coincidência, por ter tido nessa data um almoço com o meu colega embaixador sueco em Paris.

Fiquei a pensar se não conhecer tal poeta seria, ou não, uma imperdoável lacuna cultural da minha parte. E, pelo sim pelo não, durante o almoço, depois de o felicitar, perguntei ao meu colega sueco se acaso os nomes de António Ramos Rosa ou de Herberto Hélder lhe diziam alguma coisa. Disse-me que não e sosseguei. Também ele não conhecia dois génios da poesia portuguesa.

O meu sossego durou pouco, ao ouvi-lo dizer, logo de seguida, que, como poetas portugueses, apenas conhecia Fernando Pessoa e Camões. Ora eu não sabia o nome de nenhum poeta sueco (lembrei-me, depois, mas só lá cheguei com ajuda do Google, de um nome da respetiva literatura, mas não da poesia, de Lagerkvist)! O meu colega sueco ouvira falar de nomes da poesia portuguesa e eu, de literatura sueca, nicles!

Lembro-me de ter ido remoer o assunto, a caminho de casa. E, de súbito, aquietei o espírito com a reconfortante ideia de que, se isso acontece, é seguramente porque a nossa poesia é bem melhor do que a sueca. Deve ser isso! Pena é que ela não conte para o PIB...

(Fui recuperar esta historieta, aqui já publicada, neste dia em que morreu o poeta sueco)

sexta-feira, março 27, 2015

JN

Correspondendo a um amável convite do "Jornal de Notícias", passo a publicar naquele jornal uma coluna semanal, num painel de opinião que incluirá Mariana Mortágua, Fernando Teixeira dos Santos, Nuno Melo e João Gonçalves.

Julgo que a ninguém no JN passará pela cabeça que este apenas é um "regresso" meu ao jornal. Em 1967/68, escrevi por lá muito curtas crónicas - imaginem! - sobre jogos de futebol da distrital do Porto. Recordo-me de manhãs de domingo passadas em campos de subúrbio, recolhendo a composição das equipas junto à cabine. Depois, alinhavava algumas escassas linhas de comentário num estilo que creio muito tributário da imprensa desportiva desses dias. Tinha então direito no JN a três ou quatro linhas. Passado quase meio século, os temas mudaram e tenho algumas mais...

Carreira diplomática


Nunca por aqui fiz publicidade. Pois, hoje, vou fazer.

Daqui a dias, iniciar-se-á da Universidade Autónoma de Lisboa um curso de preparação para os futuros candidatos à carreira diplomática. Assegurarei a direção desse curso, que conta com qualificados académicos nas áreas temáticas que fazem parte da prova.

Para quem quiser saber mais sobre o concurso, pode fazer link aqui.

As pessoas interessadas no curso de preparação promovido pela UAL devem ligar aqui.

Não há Gelo para todos!

Andei muito pelo Montecarlo, mas nunca me sentei com o José Gomes Ferreira ou o Carlos de Oliveira. Nem com o Luiz Pacheco, que só vislumbrei entre as mesas. No Vává, nunca fui íntimo dos cineastas ou dos cantores. De alguns deles, só o fui décadas mais tarde. Parei na Smarta, mas nunca por lá falei com o Santareno ou a Natália Correia. Fui ao Café Lisboa algumas vezes, mas não fiz parte da gloriosa trupe jornalístico-cultural que fez a histórica travessia das cadeiras e das mesas, para o outro lado da Avenida da Liberdade, aquando da mudança de endereço. Fui visitante, regular ou episódico, de muitos e interessantes cafés e bares, cruzei muita gente que era ou veio a ser famosa, mas só conheci ou fui amigos de muito poucos, só à distância vi a esmagadora maioria dos outros. E não fiquei menos feliz por isso, podem crer.

Tenho amigos que conheceram toda essa gente, ou melhor, uns conheceram uns e outros outros. Ouço com gosto as suas histórias desse tempo, de uma Lisboa que passou por ali ao meu lado, que vi e apreciei como espetador, como aconteceu a tantos outros da minha geração. E, olhando para trás, acho que posso dar-me por muito satisfeito pelo privilégio de ter conhecido gente bem intetessante, pelo que não preciso de "inventar" os amigos que não tive e que, no parecer de alguns, parece que "dava jeito" ter. Por isso, irritam-me os que se colocam em "bicos-de-pé", algumas aves de arribação à sociedade intelectual lisboeta que hoje se colam a quem mal conheceram ontem. 

Neste capítulo, nada me atazana mais supinamente do que as memórias do "Gelo". Ando, há anos, a encontrar por aí pessoal que diz que esteve horas numa esquina de mesa do Café Gelo com os surrealistas, gente que um dia dirá que foi "quase por um pêlo" que não entrou nas antologias ou nas mostras plásticas, que só não fez parte da foto com o O'Neill a fingir de maneta porque foi ele próprio quem tirou o retrato. Como, nos dias que passam, já quase todos os famosos do Gelo estão mortos, há ainda alguns que ainda "estão mortos" por contarem, sem testemunhas desabonatórias, que eram íntimos do Cesariny, do Cruzeiro Seixas (se foram íntimos, porque o não visitam em Vila do Conde, onde ele hoje apaga a existência?), do Manuel de Lima, do Mário Henrique Leiria. 

A propósito da morte de Herberto Helder, que foi do "grupo do Gelo", eu pediria assim ao meu querido amigo Helder Macedo - esse sim, figura do grupo - que, de uma vez por todos, "fixasse" a lista dos habitués do local, por forma a evitar que o passado cultural do Gelo passe a ser como as enciclopédias da União Soviética, que mudavam as páginas quando alguém caía em desgraça. Lá em Moscovo, como acontece às vezes a propósito do Gelo, o passado estava sempre cheio de futuro...

quinta-feira, março 26, 2015

Memorabilia diplomatica (XVI) - "Le Monde" é pequeno


Há dias, num restaurante de Lisboa, encontrei Miguel Trovoada, antigo presidente e primeiro-ministro de S. Tomé e Príncipe. Estava a almoçar com um amigo de ambos e recordei-lhe uma história comum.

Estávamos em 1976. Surgira em S. Tomé e Príncipe uma greve dos professores cooperantes portugueses... por cuja pré-selecção eu próprio tinha sido responsável, pouco tempo antes. Aparentemente, os nossos docentes sentiam estar a haver alguma discrepância entre as condições que lhes haviam sido prometidas pelos santomenses, antes de partirem de Portugal, e a realidade local com que então se defrontavam. A coisa parecia séria, as aulas estavam suspensas e a "batata quente" foi passada para as minhas mãos, porque eu fora o elo de ligação com as autoridades de S. Tomé. E aí fui eu despachado de Lisboa, viajando através de Paris e de Libreville, no Gabão, para o cumprimento da minha primeira missão externa. Sozinho, cinco meses depois de entrar para o MNE, imaginem!

No dia seguinte à minha chegada a S. Tomé, onde tive de ficar uma semana porque só havia um voo semanal de ligação à capital gabonesa, o embaixador português, Amândio Pinto, homem simpatiquíssimo, sem dar mostras de qualquer agastamento por terem mandado um "miúdo" para resolver um problema diplomático que estava sob a sua jurisdição, perguntou-me se eu queria encontrar... o primeiro-ministro! Que era Miguel Trovoada e que assumia também a pasta da Cooperação. 

"O primeiro-ministro?!", inquiriu este recém-admitido adido de embaixada. "Claro, não há qualquer problema", disse o embaixador. E, com a maior naturalidade, pegou no telefone e ligou ao primeiro-ministro, creio que por um número direto. Para meu espanto de neófito, meia hora depois lá estávamos, no respectivo gabinete.

Ao cumprimentar o chefe do Governo de S. Tomé, que veio depois a ser presidente da República e que é pai do atual primeiro-ministro, dei-me conta de que, sobre a sua secretária, tinha um exemplar do jornal português "O Século". E, pelo título de uma notícia, percebi que aquele jornal teria, pelo menos, duas semanas. Aí, não resisti: "Vejo que está a ler um Século antigo. O senhor primeiro-ministro quer o "Monde" de ontem?". Trovoada fez um olhar surpreendido: "Mas como é que você tem o "Monde" ontem?". Expliquei-lhe que saíra de Paris na tarde da antevéspera, já com o "Le Monde" desse dia (que, como é sabido, tem sempre a data do dia seguinte) debaixo do braço. Miguel Trovoada, homem que muito frequentara a França, sorriu, encantado com a possibilidade de ter notícias frescas da Europa, e, logo ali, disse que mandaria um carro à nossa Embaixada, para recolher a novidade informativa. O nosso embaixador prontificou-se a ser ele a mandar entregar-lhe o jornal, de imediato.

Para a pequena história, assinale-se que o governo santomense fez algumas concessões que permitiram acomodar as reivindicações dos nossos professores e me deram ensejo de com eles negociar o fim da greve. Dias mais tarde, viajei com o próprio Miguel Trovoada no avião de regresso a Libreville. E o jovem adido de embaixada que eu era regressou a Lisboa, impante, com a missão bem cumprida.

Será que o "Le Monde" teve alguma coisa a ver com isso?

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

quarta-feira, março 25, 2015

Coincidências


Foi anunciado que o avião da Germanwings que ontem se despenhou em França, provocando 150 mortos, era de um modelo precisamente idêntico ao avião da brasileira TAM que, em 2007, vitimou, em S. Paulo, 199 pessoas, entre os quais um cidadão português. 

Há em ambos os acidentes uma curiosa coincidência que envolve Filipe de Espanha.

Ontem, o rei Filipe estava em visita oficial a Paris, à hora do desastre em França.

Em 2007, na noite em que o avião da TAM se despenhou em S. Paulo, o então príncipe Filipe estava em Brasília, no âmbito de uma visita oficial ao Brasil. Casualmente, fui eu quem o informou do acidente, escassos minutos depois dele ter tido lugar. No decurso da conversa, na embaixada de Espanha em Brasília, recebi um SMS de um amigo que estava no aeroporto onde o desastre ocorreu.

Memorabilia diplomatica (XV) - Visita de Estado

Os três dias tinham passado na agitação e correria que é típica das visitas presidenciais a um país estrangeiro. Na manhã seguinte, far-se-ia o regresso a Portugal. O ministro e a sua mulher, acabado que foi o último jantar oficial, voltaram cansados ao quarto do hotel, ansiando por uma boa noite de sono.

Havia, porém, um ritual a cumprir: neste género de deslocações, as regras logísticas obrigam a que os membros das comitivas deixem as malas do lado de fora dos quartos, aí pelas cinco da manhã, por forma a serem recolhidas pelos bagageiros, que as colocam no avião, bem antes da partida. É desta forma que os presidentes e as suas comitivas podem sair diretamente dos hotéis para os aviões, já sem preocupações com as bagagens.

Para isso, porém, há que fazer as malas bem cedo, deixando para trás apenas as coisas básicas de higiene e o vestuário para essa manhã. Foi essa regra que a mulher do ministro cumpriu, já com o marido a dormir. Concluída a função, colocou as malas à porta e foi-se deitar.

No dia seguinte, aí pela sete horas, o ministro toma o seu duche e - surpresa das surpresas! - dá-se conta de que a sua mulher, por lapso, tinha colocado nas malas o seu par de sapatos. A essa horas, as malas já deviam estar no avião!

Que fazer? Era um "país de Leste", as lojas da cidade estavam fechadas, o "concierge" do hotel revelou-se sem soluções. E, há que convir, era política e socialmente imprudente o ministro surgir em peúgas na fila de cumprimentos. Ou não surgir, o que seria protocolarmente muito grave e abriria lugar a infindáveis especulações.

É nessas horas que os embaixadores justificam a sua existência. Ou não. O meu colega em posto foi alertado para a crise ministerial quando já estava, no seu carro, prestes a chegar ao hotel. "Que número usa, senhor ministro?". A resposta "41" terrificou-o, olhando desolado para os seus pés "38" e para a impossibilidade de encontrar, na sua própria casa, uma alternativa.

O carro continuava a rolar em direção ao hotel, onde o presidente o esperava. Mas o embaixador tinha bem claro que o seu ministro também o esperava, embora ainda no quarto, e, claro, aguardando uma solução. Na falta dela, como seria de presumir, lá se iria a desejada promoção e o tal posto, uma sinecura simpática que prometera à sua mulher e que perseguia há muitos anos, como fim de carreira.Que importava a qualidade dos dossiês técnicos, que a Embaixada tão bem tinha caprichado em trabalhar e apresentar, face ao drama do ministro? Que representavam anos de bons serviços, perante a presumível fúria ministerial, que o gáudio da comitiva iria potenciar?

Apesar da hora matutina, pouco propensa a rasgos, o nosso embaixador, olhando casualmente de viés entre os bancos da frente do seu Mercedes de serviço, a pedir uma substituição que o chefe da gabinete do ministro lhe assegurara na véspera, intui uma solução: nos pés do seu motorista. "Ó Arnaldo, que número é que você calça?". Surpreendido pelo intimismo do seu sempre reservado chefe, o Arnaldo responde: "40, senhor embaixador". E aí, pese embora o diferencial que a tragédia tornava irrelevante, o Arnaldo selou, em glória, o seu destino matinal: lá se ficou no carro, em peúgas, até ao regresso à Embaixada, depois da partida da comitiva presidencial.

Dizem-me que o ministro arvorou, nas despedidas, um ar grave e compungido, que alguns jornalistas - rapazes bem sagazes - levaram à conta da tensão entre o governo e o presidente, que os últimos meses tinham agravado. Ora a verdade, porém, era bem mais terra-a-terra.

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

terça-feira, março 24, 2015

Herberto Helder


Durante anos, achei Herberto Helder um poeta críptico. Um dia, li-o com mais atenção e fiquei fascinado com a sua escrita. Entre nós, há muito pouca gente como ele a dominar o uso certo das palavras, sem excessivos rebuscamentos, sem essa obsessão, tão comum, da "trouvaille" estilística arrebicada que esconde, atrás de um "barroco" tido por criativo, uma mera falta de ideias originais.
 
Sempre me perguntei como é que Herberto Helder "alimentava" a sua escrita, passando os dias, ao que sabe, numa obstinada reclusão. De onde lhe vinha a vida que enchia a sua poesia? Mas eu já desisti de tentar entender os poetas. Só os leio e cada vez com mais prazer.
 
Herberto Helder morreu agora.

"Shark tank"


Por mera curiosidade, vi o primeiro programa do "Shark tank", onde um grupo de empresários, entre os quais um amigo meu, avalia propostas de negócio de candidatos em busca de financiamento. Tinha feito sempre "zapping" nas versões estrangeiras, mas achei interessante observar como é que as coisas corriam em Portugal. Não achei muita graça ao programa, devo confessar, pelo que não fiquei "cliente".
 
Porém, interpretei como muito instrutivos alguns dos comentários que ouvi da parte dos quatro avaliadores. Penso que pode ser muito útil, para quem possa ser tentado em arriscar o seu dinheiro em alguns negócios, obter comentários francos, por parte de pessoas com experiência, sobre a razoabilidade de certos investimentos. Em particular para gente jovem, motivada a envolver-se nos mundo dos negócios, é bom poder receber conselhos de quem tem competência para os dar.
 
Por vezes, no meu dia-a-dia, tenho deparado com iniciativas comerciais e industriais que "entra pelos olhos dentro" que não vão funcionar, que são uma ruína anunciada para os seus promotores e que, no entanto, levam poupanças e esperanças. A verdade é que não sou o melhor exemplo para esses criadores de projetos económicos: nunca me meti num negócio, não arrisco um tostão em ações e, se o estímulo à atividade económica dependesse de mim, o país "parava". Nem na lotaria ou no totoloto alguma vez joguei! Talvez por isso, tenho um imenso apreço e admiração por quem arrisca o seu dinheiro, por quem cria empregos, por quem investe no futuro. Espero que o "Shark tank" possa ajudar a que muitos o façam, cada vez mais, mas com os pés bem assentes na terra.    

Os putativos

Entendo que o PS não deve ficar preocupado pelo anúncio da candidatura presidencial de Henrique Neto. 

Mas já acho que os socialistas devem começar a preocupar-se pelo facto de, na sua área política, não ter ainda emergido um candidato com uma vocação ganhadora.

segunda-feira, março 23, 2015

Memorabilia diplomatica (XIV) - Rota da Seda

 
A Ásia Central é uma região do mundo que vive sob o manto de um relativo desconhecimento, como que escondida atrás de uma Rússia com a qual tem uma relação complexa e ofuscada pela vizinhança mais mediática da China, do Irão e do Afeganistão.
 
A antiga "Rota da Seda" é constituída por cinco dos 15 países que resultaram da implosão da antiga União Soviética e tem, dentro de si própria, fortes contradições, parte das quais resultantes de alguma arbitrariedade na definição de fronteiras que Estaline lhes impôs. O seu processo político, desde o fim da URSS, não tem sido linear e tem passado por convulsões diversas, quase sempre sob modelos políticos autoritários.

Há uns anos, com outros quatro embaixadores da OSCE, viajei (já agora e para que não restem dúvidas: à minha custa!) por todos esses países e pude aperceber-me que, por detrás de nomes com terminações similares que induzem à confusão dos não iniciados (Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzebequistão), vivem realidades muito diferentes e, não raramente, conflituantes entre si. Petróleo, escassez de água, lixos tóxicos, questões religiosas e de minorias, para além das tensões estratégicas provocadas pelo radicalismo islâmico e pela fragilidade das culturas democráticas, são algumas das temáticas de que, sem qualquer dúvida, ouviremos falar muito no futuro. Os tempos da luta anti-terrorista acabaram por travar, em alguns deles, a abertura que já se pressentia nos respectivos regimes e, em certos casos, deram mesmo um álibi para novas vagas repressivas. Noutros, porém, tem vindo a detectar-se alguma dinâmica de inclusão cívica, que deve ser estimulada e relevada.

A experiência dessa visita deixei-a expressa num artigo que, à época, causou alguma polémica nos meios OSCE, pelo tom crítico que assumiu: "Central Asia - not always a 'silk road' to democracy"

É a propósito da Ásia Central que deixo hoje uma pequena história.

Durante a nossa viagem, num desses países sujeito a um regime muito autoritário, verificou-se ser impossível conseguir contactos com opositores ao regime de partido único, por óbvio receio de represálias. O máximo que se conseguiu foi falar com a representante de uma Organização Não Governamental local, dedicada ao acompanhamento da situação dos prisioneiros políticos. Ela entrou na sede da delegação da OSCE, onde nos encontrávamos, sabedora que tinha de aproveitar a presença de diplomatas ocidentais para dar conta da terrível situação que afectava alguns dos seus compatriotas. Relatou-nos, sempre sem recorrer a um tom dramático, algumas barbaridades cometidas pelo governo do país, deu-nos nomes e locais, detalhou as imensas dificuldades sentidas pela sua organização e o escasso apoio que conseguia junto das missões diplomáticas estrangeiras, muitas delas há muito convertidas à cínica lógica da "realpolitik". Todos ficámos impressionados pela serenidade grave desta mulher, pela sua dignidade e coragem, pelo muito que arriscara ao vir falar connosco. À saída, num tom quase neutro de voz, com uma naturalidade desconcertante, deixou-nos um simples pedido: "Se vos fôr possível, peçam às embaixadas ocidentais que existem aqui no meu país para estarem atentas ao que me pode vir a acontecer. É que estou segura que as minhas autoridades não me vão perdoar pelo facto de ter vindo falar convosco..."

É em ocasiões como estas que dou mais valor à democracia em que vivemos.

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

Henrique Neto


Pronto! Começou a corrida. Henrique Neto é candidato declarado à presidência da República. O primeiro.

Com 78 anos, um passado digno de anti-fascista, "self-made man", industrial, homem de palavra frontal, Henrique Neto não é um homem "fácil". Tens ideias próprias, diz sempre o que pensa e di-lo com palavras fortes, às vezes ácidas. No seio do Partido Socialista, ao olhar para as últimas décadas, verifica-se que quase sempre foi uma figura incómoda, incontrolável, crítica. 

Deixo daqui um sincero abraço de simpatia pessoal a Henrique Neto, pessoa que me merece respeito, com quem tenho trocado impressões esparsas e francas, ao longo destes anos. Um respeito que é agora reforçado pela coragem que teve para entrar nesta aventura, a qual nem por ser impossível deixa de ser nobre. Estarei algures, mas só lhe posso desejar um valente combate.

A hora dos amantes


Encontrar um lugar para estacionar em Campo de Ourique, respeitando em absoluto as passadeiras e os sinais de trânsito, está a tornar-se cada vez mais complicado. Para zonas mais distantes do parque subterrâneo, a única e mais sensata solução é mesmo ir de taxi (ou de Uber!).
 
Há dias, quando discutia com alguém a minha forte e frustrante experiência na matéria, recebi uma resposta curiosa:
 
- À noite? Há uma hora excelente, um pouco depois da meia-noite e até cerca da uma. Há sempre carros a partir.
 
- Ah! Sim? Do pessoal que vai aos restaurantes?
 
- Também! Mas quem é do bairro e o conhece bem tem uma outra explicação.
 
- Qual é?
 
- É a hora dos amantes. É o momento de regressarem às casas, às "legítimas"...
 
Campo de Ourique é um mundo!

O herói

25 de Abril de 1974. Escola Prática de Administração Militar (EPAM). Eram aí 11 horas da manhã. Abri a fechadura da sala do quarto do oficia...