terça-feira, junho 24, 2014

BES

Nos dias que correm, os bancos não são empresas como quaisquer outras. A banca está definitivamente colocada no centro do processo económico-financeiro europeu e não é por acaso que, nos últimos anos, é em seu torno que se desenvolvem os grandes debates da União. Os contribuintes europeus já sofreram na pele o custo da irresponsabilidade de alguns operadores bancários e os efeitos detrimentais das suas ações na estabilidade global do sistema. Os bancos parece serem privados enquanto dão dinheiro, mas passam a problemas públicos quando entram em crise.

Por essa razão, não é legítimo que os agentes políticos portugueses olhem para a crise no BES como se isso significasse apenas um emergir de problemas conjunturais numa qualquer empresa privada. O governo sabe que as coisas não são assim e, em nome dos cidadãos - e dos contribuintes - que representa tem de dar mostras claras de estar atento a uma saga que não se esgota nos meandros da família Espírito Santo. Longe disso! O argumento da separação de interesses não é válido e não pode ser esgrimido com ligeireza. Ou alguém tem dúvidas de que, se as coisas acaso correrem mal, alguém nos virá cobrar ao bolso? Deixemo-nos, pois, de formalismos ridículos e assumamos a importância destas coisas.

Neste contexto e nos dias que correm, a família Espírito Santo pode não estar à altura da responsabilidade do nome que herdou. As explicações absolutamente incríveis dadas sobre o que ocorreu na gestão dos interesses da estrutura financeira no Luxemburgo, somadas à patética irresponsabilidade revelada em Angola, agravadas pelas dissidências e conflitos públicos entre os familiares, que deveriam mostrar solidez e determinação num momento desta delicadeza, provam que estamos perante um grupo em real crise de liderança e objetivos. E ao ter optado por uma solução de continuidade, titulada em alguém que está ainda sob suspeita, não revela bom-senso e faz temer o pior, agora para o banco.

Espera-se que o supervisor, o Banco de Portugal, seja capaz de tomar as decisões que possam acautelar o interesse público. Com firmeza, transparência e sentido de responsabilidade.

O amigo americano

Se alguém perguntar a um diplomata português quais são hoje as três principais prioridades da nossa política externa, a resposta, quase pela certa, será: Europa, lusofonia e relações transatlânticas. Para o bem e para o mal, a América está desde há muito no centro da nossa expressão internacional.

Salazar e uma certa esquerda portuguesa nunca gostaram da América. O ditador começou por desconfiar imenso da ambição americana no Atlântico, à qual teria que se resignar, para mais tarde perceber que também não podia contar com a proteção dos EUA para o prolongamento extemporâneo da aventura colonial lusitana. Já a esquerda começou por ver os EUA aceitarem como boa a credibilitação que o nosso "amigo da onça" britânico lhes deu das vantagens de conservar o regime ditatorial português, o que permitiu a sua sobrevivência após o segundo conflito mundial. E, com naturalidade, essa mesma esquerda rejeitou as derivas imperiais e o cinismo geopolítico americanos, do Vietnam ao Chile. E a aventura iraquiana, claro.

Neste cenário, a América cedo conquistou outros amigos portugueses: os "atlantistas", uma raça que começou por pulular em torno da NATO e cuja versão mais lamentável acabou a servir o "catering" nas Lages, em 2003. Estes acríticos não se esgotam, porém, na direita caseira. Na esquerda, está consagrado o princípio não escrito de que só tem estatuto de respeitabilidade em matéria de política externa quem for visto como "pró-americano".

Há décadas que a América se equivoca nos seus amigos portugueses. Os americanófilos oficiosos, que enchem o "4th of July", atulham os debates na FLAD e se "pelam" por um convite do outro lado do mar são o produto do vício, recorrente e cíclico, que os EUA alimentam entre nós. Esse pessoal, "taken for granted" para qualquer aventura em que Washington decida envolver-se, prolongou a fidelidade extrema da Guerra Fria até às portas de Badgad. Faria amanhã o mesmo se acaso Kiev (ou Moscovo) fosse o destino. Sofrem de uma ilusão de poder que deriva da sua eterna colagem à potência ocidental dominante. Na guerra do Iraque travestiram-se de "neo-cons" de trazer por casa, hoje debitam pelos blogues saudades ínvias de Bush filho, disfarçadas de críticas a Obama. Mas, na realidade, têm muito pouco préstimo. Ou melhor, servem apenas para prolongar entre nós uma triste caricatura simplista da América.

A América, esse país magnífico e com uma vitalidade que nenhuma Europa ainda conseguiu imitar, é uma potência que, como todas as outras, necessita de amigos. Portugal tem todas as condições para se poder colocar no eixo de uma relação frutuosa entre a Europa e os EUA, de onde não estejam ausentes o sentido crítico, a afirmação das nossas pontuais diferenças e o sublinhar da nossa leitura sobre o seu próprio comportamento.

Ser amigo dos EUA é saber dizer sempre a Washington que estaremos com eles para a consecução de uma agenda positiva e de progresso, que não se resuma à leitura mecanicista dos seus interesses, que respeite também os nossos. E não me refiro apenas às Lages e outros dossiês paroquiais. Quero com isto significar os interesses globais da Europa. A América é o mais velho amigo da Europa e deve continuar a sê-lo, sem subserviências ou equívocos. Qualquer que venha a ser o futuro da expressão coletiva da Europa no mundo, ele só terá significado e relevância se for levado a cabo em estreita articulação com Washington. O resto é retórica.

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, junho 23, 2014

Crónica do alho porro

Hoje, véspera do dia de S. João, andarei pela Ribeira e pelas Fontaínhas. Não usarei martelinho, mas tenciono comprar um valente alho porro, em memória póstuma da desaparição na selva amazónica de um inglório grupo de bandeirantes milionários, fiéis seguidores da Dona Inércia e com uma sorte idêntica à do banco onde ela aforra. Com toda a tranquilidade, eles colocaram um ponto final no sonho de um país convencido de que isto vai lá apenas com os pés.

domingo, junho 22, 2014

Bela solidão

Foi quase uma hora de futebol, num quarto de hotel de província. O "mute" garantiu que nenhum comentário de "especialistas" se interpunha entre mim e o que pude ver do excelente e emotivo Nigéria - Bósnia-Herzegovina. E, com a vitória da seleção africana, o resultado final agradou-me.

Sempre que posso, gosto de ver futebol na TV sozinho, sem som, pelo simples prazer da coreografia do jogo ou, o que em mim é raro, tomando partido por uma das equipas. O ruído de fundo distrai-me e os comentários cansam-me.

Amanhã, Portugal vai jogar com os Estados Unidos. Tenho alguma pena de não poder ver o jogo, mas vou estar ocupado a essa hora. Desejo ardentemente que ganhemos, quanto mais não seja para revertermos a nossa sorte, nesta nossa jornada brasileira. Os portugueses no Brasil merecem que Portugal lhes proporcione uma alegria. Além disso, uma prestação positiva da nossa seleção permitiria perceber melhor como o Brasil contemporâneo nos olha. Eu sei que uma "Copa" não é necessariamente um lugar de "experimentalismo" sociológico coletivo, mas podem crer que isso seria imensamente interessante. 

sábado, junho 21, 2014

Xavier Musca

Ninguém pareceu notar um nome francês ontem anunciado para a administração do Banco Espírito Santo: Xavier Musca.

E, no entanto, ele é um nome bem conhecido em França, onde desempenhou um lugar de relevo como secretário-geral da Presidência da República, ao tempo de Nicolas Sarkozy. Como eu, vários diplomatas portugueses privaram com Musca, aquando de encontros mantidos no Eliseu. Recordo diversas discussões sobre as finanças portuguesas e europeias, temáticas que o "sherpa" de Sarkozy para as reuniões do G8 seguia e dominava com uma grande competência.

Após a derrota de Sarkozy, Musca foi para diretor-geral do Crédit Agricole. E tudo indica que seja em representação do parceiro francês do BES que Xavier Musca vai surgir na nova administração.

sexta-feira, junho 20, 2014

A "branca"

Vi há dias uma fotografia do dr. Fernando Nogueira, presidente da fundação BCP. E recordei alguém que, depois de saído da liderança do PSD, vai para vinte anos, se remeteu a uma discreta vida profissional, abandonando por completo a vida política. 

Conheci-o pessoalmente em Londres, no início dos anos 90, ao tempo em que desempenhava as funções de ministro da Defesa e era uma das figuras mais marcantes do universo social-democrata. Numa das suas passagens pela capital britânica, coube-me acompanhá-lo ao aeroporto, onde havíamos reservado, como era da praxe, uma sala na respetiva área VIP, destinada a passageiros ilustres. Lá chegados, e após termos ultrapassado as barreiras de segurança, sempre invocando o nome da embaixada, dirigimo-nos ao balcão de atendimento.

Com o ministro ao meu lado, informei quem eu era, indicando que estava a acompanhar o ministro português da Defesa. A funcionária inquiriu qual era o nome do ministro. Foi nesse instante que tive una "branca" e o nome de Fernando Nogueira se me varreu por completo da memória. Fosse o cansaço ou a noite mal dormida, a verdade é que o nome não me ocorria. O meu embaraço era total. O ministro já olhava para mim, intrigado, e a funcionária aguardava a minha resposta.

- Desculpe! A reserva da assistência foi feita pela embaixada de Portugal, já lhe disse que se trata do ministro da Defesa, por que diabo precisa também do nome?

A senhora mirava-me, surpreendida com a duvidosa racionalidade da minha reação. E o ministro também:

- Porque lhe não diz o meu nome?

Tentando ganhar tempo, avancei então com uma "criativa" justificação, completamente tonta e até pesporrente:

- Senhor ministro: esta gente tem de perceber que deve funcionar com base na informação que é essencial. Imagine que era um nome chinês! Que interesse é que ela tinha em ouvir uns sons estranhos numa língua ainda mais estranha? Basta-lhes a embaixada e o título da pessoa!

O peso deste meu imaginativo argumentário de ocasião estava a começar a esgotar-se. E, na crescente atrapalhação, fui-me inclinando sobre o balcão, tentando ler, ao contrário, a folha que a funcionária tinha diante de si, com todas as reservas dos compartimentos da zona VIP. Por sorte, consegui descortinar a palavra "Portugal" numa das linhas. Então, com grande "autoridade", estendi o indicador e apontei-lhe a linha:

- Look! It's there!

- Mr. "Nóguêra"?

- That's right!

Ao meu lado, o ministro Fernando Nogueira, um homem cordialíssimo e de sereno sorriso, devia estar intimamente a pensar como é bizarra essa espécie profissional que são os diplomatas. 

Nunca tive oportunidade de lhe revelar este episódio. Quando isso acontecer, acho que vai achar graça.

quinta-feira, junho 19, 2014

Conflito de gerações

Há dias, um muito jovem cronista do "Expresso", culto e de boa escrita, explicava que tinha sido em textos de Vasco da Graça Moura que tivera acesso, pela primeira vez, a alguns vocábulos estranhos, de um português de outros tempos. E dava como exemplo, entre outros, a palavra "mocho", que o escritor lhe ensinara também poder significar um pequeno banco. Dei comigo a pensar que há um mundo "novo" do qual nos distanciamos, cada vez mais.

Contei este episódio numa tertúlia. E logo um amigo me relatou uma coisa análoga. Tinha ido, com um colega muito mais jovem, a um bar da geração deste último. Aproximaram-se do balcão, sob a barulheira da forte música. À pergunta do barman sobre o que ia beber, optou por uma hipótese conservadora:

- JB, com água lisa.

A resposta do rapaz surpreendeu-o:

- Não temos!

Essa agora! Bem à vista, na estante do bar, estavam duas garrafas do "Justierini & Brooks": uma do "blend" corrente, outra do "quinze anos". Apontou, não sem alguma ironia, para elas.

O barman respondeu, com um ar impávido:

- Não é o whisky. Não temos é a água que pediu.

O meu amigo continuou com um largo sorriso:

- Não têm água lisa?!

O rapaz manteve-se impávido:

- Não. Lisa não temos. Só temos Luso.

quarta-feira, junho 18, 2014

Boas notícias

Portugal acaba de ser eleito para a vice-presidência da Assembleia Geral da ONU. Trata-se de um cargo que confere alguma visibilidade à ação do representante permanente português na ONU, durante o período de um ano e, muito em especial, no último quadrimestre de 2014. 

Uma leitura menos elaborada tende a ver estas e outras eleições no quadro multilateral como uma espécie de coreografia diplomática, cujos "lucros" não são evidentes. E não são. Mas existem. Ser relevante e visível em áreas que lidam com interesses de outros Estados abre oportunidades de interlocução e, muitas vezes, de negociação de interesses cruzados. E coloca o nome de Portugal em evidência, o que está longe de ser despiciendo.

Portugal é um país que, à partida, não projeta um poder próprio forte, no quadro internacional. A crise financeira induziu mesmo uma debilidade acrescida à nossa imagem. Mas Portugal tem tradicionalmente um perfil, nomeadamente no quadro das Nações Unidas, que está bastante acima da força objetiva do país. Temos um histórico marcado por um grande sentido de responsabilidade, de coerência e, em especial, de um Estado que sabe cumprir os seus compromissos. Importa-nos assim alimentar esse nosso perfil, diversificar a nossa presença em diversas instâncias, mostrar aos nossos parceiros que temos uma contribuição a prestar em vários e complexos dossiês. E que essa contribuição é de qualidade. Não tenho a menor dúvida de que, uma vez mais, o faremos, sempre de forma prestigiante.

Na ONU somos hoje representados por aquele que é, sem sombra de dúvida, o mais experiente e qualificado diplomata português no âmbito multilateral, o embaixador Álvaro Mendonça e Moura. Em Nova Iorque, ele completa um percurso ímpar que já o havia levado a atuar em nome de Portugal junto das instâncias da ONU em Viena e em Genebra, para além de ter chefiado a importante representação nacional junto da União Europeia.

Um abraço de parabéns, Álvaro!

terça-feira, junho 17, 2014

Ignatz & Alexandre

São ambos convenientemente anónimos. São os siameses Ignatz & Alexandre, dois comentadores deste blogue. Um é de esquerda radical, acusando o autor do blogue de reacionarismo, conluio com as forças conservadoras e pactuante doloso com a "situação". O outro é o oposto, é da direita pura e dura, procura colar este escriba às mais vermelhuscas e "reviralhistas" tendências. Ambos são ácidos, procuradamente desagradáveis, roçam às vezes o insultuoso.

Um e outro já têm visto por aqui alguns dos seus comentários censurados, porque isto não é "o da Joana". Mas não desanimem! Continuem a esforçar-se, porque a reforma dá-lhes tempo para isso e eu continuarei a fingir que não sei decifrar o estilo de quem se esconde por detrás desses corajosos pseudónimos.

Automóveis

A minha terra, Vila Real, "tem a mania" das corridas de automóveis. É uma tradição com muitas décadas, profundamente enraizada na cultura da cidade. O nosso circuito (que inicialmente tinha 6.925 metros - como me lembro desde a infância) foi palco de grandes provas internacionais, com muitos e diversos tipos de automóveis. Em alguns anos, contudo, as corridas não se realizaram. Mas o entusiasmo dos vilarealenses sabe sempre renascer. 

No próximo fim de semana, volta a haver corridas. Porque não aproveita para dar uma saltada a Vila Real? Eu, infelizmente, não posso.

segunda-feira, junho 16, 2014

Alemanha

Não há desculpas! Os alemães ganharam bem. Até podiam ter metido mais golos. O penalti que sofremos foi penalti. Aquele que não foi marcado a nosso favor suscita dúvidas. Pepe foi bem expulso. O árbitro foi tendencialmente pró-alemão (c'os diabos! A Sérvia quer entrar para a UE e quem manda é a Alemanha. Percebe-se!), mas não foi por culpa dele que perdemos. Mas os alemães têm uma excelente equipa. A nossa - pelo menos a avaliar por hoje - não tem suficiente qualidade. Não é agradável perder. Mas seria pior se o vencedor não tivesse merecido a vitória. Parabéns à Alemanha. E isto - não se esqueçam - é apenas futebol. Pior seria se o governo alemão mandasse no nosso...

ps - apetece-me lembrar a frase célebre de Gary Liniker : "Futebol são 11 contra 11 e no final ganha a Alemanha"

O meu facciosismo

Ontem, dei comigo a pensar no que podem ser as nossas motivações íntimas, quando se trata de empatias. Os jogos de futebol entre equipas estrangeiras, face às quais não temos uma opção de simpatia natural e óbvia, é um bom exemplo.

Sentado num sofá, perante um Suíça - Equador, dei comigo a assumir uma neutralidade quase plena. O Equador é um país que me é simpático. Tenho vários conhecidos equatorianos, embora nunca por lá tivesse passado, com receio da pressão atmosférica de Quito. Jogando o Equador face à Suíça, e sendo potencialmente uma equipa mais fraca (e este critério é para mim fundamental) deveria gostar que ganhasse. Porém, eu aprecio a Suíça, aquela maneira relojoeira de combinar o rigor alemão com a desorganização latina do Ticino, com um toque francês à mistura. Por várias razões, conheço a Suíça como os dedos das minhas mãos, viajei por lá imenso. Mas o Equador, coitado, estava a jogar bem, mesmo se a Suíça subiu na segunda parte. O empate seria um resultado aceitável. No último minuto, a Suíça ganhou!

No França - Honduras, na lógica de apoiar o "underdog", a minha preferência começou a inclinar-se para a equipa centro-americana. Coitados! Face a um potência mundial, embora um pouco ciclotímica no futebol, uma vitória seria um alento moral. Mas, para ser justo, as Honduras não mereciam ganhar e a França, caramba!, é o país onde estão as minhas raízes culturais e tenho muitos amigos. Se bem que, às vezes, também mereçam umas lições e, lembrando-me de Platini, tive uma súbita pulsão pró-hondurenha. Mas aquela equipa anti-Le Pen, cheia de negros e árabes, era digna de uma vitória. Só que as Honduras não mereciam, de todo, ser humilhadas. E assim me "empatei" no jogo, até à vitória francesa.

Chegou o Argentina - Bósnia-Herzegovina. Nunca fui anti-argentino, como são todos os brasileiros. Tenho bons amigos locais, adoro Buenos Aires e, soberba e fanfarronice à parte, os argentinos criaram um país magnífico, servido embora por políticos geralmente da pior qualidade. E gosto muito do futebol de Messi. E a Bósnia-Herzegovina? Tenho uma imensa simpatia e conheço bem aquele complexo país, onde a tragédia histórica se acolheu com regularidade (e não sigo a graçola daquele amigo que dizia que "Bósnia" lhe soava a doença de pele, que se curava com três aplicações diárias de uma pomada com o nome de "Herzegovina"). A BH era, além disso, a equipa potencialmente mais fraca - e isso, como disse, costuma ser o fator de desequilíbrio dos meus sentimentos. Mas, com o decurso do jogo, o futebol argentino, ainda que sem deslumbrar, pareceu-me melhor - e eu também sou muito sensível a isso. Mas, c'os diabos!, vêm aqueles tipos de Serajevo, para o ambiente tórrido do Maracanã, para perderem face a quem muito já ganhou? E não jogam assim tão mal, embora pareçam cansados desde este primeiro jogo. A Argentina ganhou. É normal, mas eu gostei que os bósnios tivessem marcado, pelo menos, um golo.

Estão a ver? Não me consigo decidir! Valha-me a tarde de hoje, para poder tirar a barriga de misérias em matéria de saudável e patriótico facciosismo. 

domingo, junho 15, 2014

Notícias do calor

Já falta pouco. Acabado o futebol do Brasil, ou ainda com ele à mistura, as nossas televisões vão começar a brindar-nos, por algumas semanas, com os fogos. Os telejornais abrirão com as "Sónias Cristinas", de "corneto" em punho, tendo como imagem de fundo o "espetáculo dantesco" (os lugares comuns são o prato forte dessas reportagens em direto) dos incêndios. "Populares" angustiados, afogueados e de mangueiras em punho serão filmados, por câmaras trémulas, a relatar, de forma compreensivelmente atabalhoada, o que viram e o que sofreram. Bombeiros exaustos irão espalhar suspeitas sobre a "mão criminosa" por detrás dos "reacendimentos" e falarão dos "rescaldos" em que estão envolvidos. Autarcas reclamarão da "falta de meios" e falarão dos "custos humanos e materiais" provocados pelo "flagelo" na sua zona. Ministros graves, num traje intermédio entre o oficial e o estival, acolitados por umas figuras da Proteção civil de bonés bizarros, prometerão "ajudas" e darão números sobre a "área já ardida este ano", prometendo um "rigoroso inquérito" sobre os casos mais estranhos. As autoridades policiais, já em pose de gabinete, anunciarão a "detenção de alguns presumíveis incendiários" e a investigação de "negócios estranhos" relacionados com a "atividade da indústria madeireira". E alguns "soldados da paz", por impreparação, má orientação ou azar, desaparecerão, com governantes no funeral. Ah! E a imprensa especulará sobre as "negociatas" ligadas a contratos de aluguer de aviões de combate aos fogos.

É assim todos os anos. Chegadas as chuvas de Outono, regressado o futebol da paróquia às televisões, ninguém mais falará dos matos secos que a incúria de todos deixa criar até junto às casas, dos corredores corta-fogos que devem ser reforçados, da escassa limpeza que continuará a ser feita nas zonas adjacentes aos caminhos nas serras, enfim, da planificação e execução de medidas preventivas, a montante do início da época mais quente, com envolvimento das autarquias, que deveria ser feita e ninguém faz. Disso só se falará de novo, no Verão de 2015, uma vez mais, quando já for demasiado tarde. Isto é, antes deste ciclo recomeçar.

Teremos de ser assim para sempre?

sábado, junho 14, 2014

Futebol e paixão

Na noite de Santo António, optei por ir jantar com amigos, passear nessa jornada única no ano, pelas ruas de Alfama. Assim, não assisti, em direto, à abertura do campeonato do mundo de futebol. Verdade seja que só na manhã desse mesmo dia me havia dado conta de que o campeonato se iniciava nessa noite. Sabedores disso, alguns amigos brasileiros comentaram negativamente esta minha atitude, como se ela colocasse em causa a minha amizade pelo Brasil. Era o que mais faltava!

Gosto muito de futebol, como julgo que por aqui tem sido revelado, nesse campo tenho uma "paixão irónica" pelo meu clube e, naturalmente, sinto um grande gosto quando a nossa seleção vence. Mas, em geral, não fico "doente" quando ela perde, mesmo que injustamente. Estou longe de ser um fanático. Por exemplo, olhando para a minha agenda, já reparei que vou perder a transmissão direta de dois dos próximos jogos da nossa seleção, porque tenho outros compromissos simultâneos. Mas isso não me angustia minimamente: verei mais tarde a repetição dos jogos. E chega-me!

Entendo e respeito o sentimento de adesão patriótica que um campeonato internacional pode suscitar. No caso do Brasil, dessa "pátria em chuteiras", como escrevia Nelson Rodrigues, o futebol tem, de há muito, uma relação muito íntima com o sentimento profundo dos seus nacionais, que sofrem com a sorte do "time" nacional, como se o destino e o prestígio do país dependessem de um golo ou da prestação de um "craque". É bonito de ver e é uma expressão magnífica dessa forma de estar única que é a "brasilidade".

No nosso caso, de Eusébio a Ronaldo, passando por Figo, temos vindo a criar um entusiasmo crescente face à seleção, à medida que esta passou a obter mais vitórias do que desenlaces menos felizes, o que não era a regra do passado. Por cá, nestes tempos de défice, a nossa seleção é, para muitos, o superávite possível do orgulho nacional. E não devemos desprezar o efeito de estímulo à autoestima que as vitórias desportivas podem representar para o país: hoje é a seleção de futebol, como no passado foi o óquei em patins, como foram os tempos áureos de Joaquim Agostinho nos "tours" ou de Carlos Lopes e Rosa Mota no atletismo.

Dentro de mim, contudo, as coisas estão, desde sempre, muito claras: o desporto tem a sua graça, pode ser pontualmente emotivo, mas serve apenas para me divertir, nunca para me angustiar. As coisas que tenho por importantes na minha vida não passam por "futebóis".

sexta-feira, junho 13, 2014

Marchistas

O interminável desfile das marchas populares de Lisboa, coisa que nunca consegui ter a menor paciência para ver e ouvir, é, no entanto, o único grande espetáculo, simultaneamente público e gratuito, da capital, com uma constante e assinalável adesão popular. Não sei como as coisas se passam nos dias de hoje, mas tempos houve em que o despique entre os bairros era ferocíssimo. 

Um dia, nos últimos anos da ditadura, a conflitualidade chegou a um ponto tal que a Câmara Municipal, pela mão do vereador Leopoldo Nunes, decidiu suspender por algum tempo o tradicional desfile das marchas e o concurso entre os bairros. O mais curioso foi a justificação dada: o despique estaria a fomentar atividades "subversivas" no seio dos grupos. A paranóia do regime via comunismo por todas as esquinas. Recordo-me como, à época, alguns de nós nos divertíamos a comentar que a PIDE se dedicava a um novo e original combate ao "marchismo"...

quinta-feira, junho 12, 2014

Norte-Sul

No dia de hoje, o Centro Norte-Sul, uma instituição do Conselho da Europa, sediada em Lisboa vai para um quarto de século, atribui o Prémio Norte-Sul a duas personalidades eminentes: o filantropo chefe da comunidade ismaelita, príncipe Aga Kahn, com uma obra notável à escala mundial em matéria de ajuda ao desenvolvimento, e a advogada libanesa Suzanne Jabbour, detentora de um impressionante currículo como ativista dos Direitos Humanos e, em especial, da luta contra a Tortura.

A partir de fevereiro de 2013, e pelo período de um ano, tive o gosto de chefiar o Centro Norte-Sul, onde uma pequena mas muito entusiasta equipa, agora dirigida pelo diplomata Frederico Ludovice, desenvolve um dedicado trabalho. É pena que a atividade do Centro Norte-Sul não seja mais conhecida do público. É forçoso constatar que os temas do desenvolvimento, da promoção da cidadania democrática e da educação global são matérias que não mobilizam muito, nos dias de hoje, o interesse mediático. Nem mesmo o facto dos direitos das mulheres e da participação dos jovens na vida cívica, nomeadamente nos países do Magrebe, estarem no eixo das preocupações do Centro Norte-Sul tem conseguido mobilizar mais as atenções para esta instituição.

O dia da entrega do Prémio Norte-Sul é uma data importante para o Centro. Por isso, hoje, àqueles que lá trabalham, deixo um forte e amigo abraço de solidariedade e de estímulo.   

DN

A vaga de demissões que afetou o "Diário de Noticias", e que ameaça outras empresas do grupo, é uma notícia triste. Embora esperada. Custa ver o jornal entrar numa fase da sua vida cuja resultante final não sabemos qual será. Custa ver muita gente a perder o emprego, alguma que sei de grande qualidade. Custa pressentir que o DN pode nunca mais voltar a ser o que já foi, se bem que, nos últimos tempos, tivesse enveredado por um modelo que, para um leitor leigo mas atento, "não era carne nem peixe", misturando textos de grande qualidade com notícias simplificadas e pouco trabalhadas, numa espécie de "digest" de "takes" de agência.

Sou leitor do tempo do DN da "Moagem" (sabem lá as novas gerações o que isto significa...). Ainda li editoriais épicos de Augusto de Castro (embaixador em Paris, bem antes de mim), passei pela "evolução na continuidade" com Fernando Fragoso, aturei sem entusiasmo (e li muito menos) o seu oficiosismo radical no PREC, bem como a fase morna do controlo socialista. Só me voltei a reconciliar com o DN quando Mário Mesquita começou a pôr ordem, rigor e independência ("Deus não dorme!") no jornal. A partir de então, o DN, sem nunca ter passado a ser um jornal excecional, era para mim uma espécie de "Diário da República" informal: estava lá tudo, funcionava como um registo do essencial que se passava.

Em homenagem ao jornal, de que espero poder continuar a ser leitor, deixo aqui a clássica citação do Eça, em "A Cidade e as Serras", quando Jacinto, cansado de procurar na sua imensa biblioteca do 202, em Paris, algo para levar para a cama, para ler, fez uma derradeira opção: "Findou por voltar ao montão de jornais amarrotados, ergueu melancolicamente um velho "Diário de Notícias" e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer". 

Os brasileiros e a nossa seleção

"Portugal vai ter de aprender alguma coisa mais. Vai ter de perceber, de uma vez por todas, que a sua relação com o Brasil tem uma assimetria inescapável e eterna. Para nós, o Brasil "é" português, é uma "criação" nossa e, por isso, crises à parte, ser pró-brasileiro em Portugal é a opção mais natural e óbvia, salvo na mediocridade xenófoba e minoritária de alguns "pixadores" anónimos da nossa imagem. Ora o Brasil é muito mais do que o que Portugal deixou pelo Brasil, é uma sociedade onde africanos, alemães, japoneses, árabes, italianos e tantos outros se projetaram e ajudaram a construir um fantástico país, no qual livremente cultivam, sem qualquer pressão uniformizadora, as suas memórias e tradições. Por essa razão, porque não têm galos de Barcelos ou caravelas quinhentistas na sala, nada os obriga a reverenciar uma "terrinha" de onde não vieram os seus antepassados, de onde talvez só apreciem o bolinho de bacalhau ou o pastel de Belém, lugar de Lisboa que aliás não sabem muito bem onde fica - no que estão no seu pleníssimo direito. Por isso, quando a grande maioria de nós, portugueses, se junta a amigos brasileiros para apoiar, sem hesitação, o "escrete canarinho", durante as "copas" por esse mundo fora, não devemos esperar uma retribuição idêntica. Temos de acordar para a realidade de que, em Blumenau é a seleção alemã a escolhida ou que, na Móoca paulistana, a squadra azzurra terá sempre preferência, pelo que a sorte do "time" português lhes será provavelmente indiferente, em especial depois da saída de Felipão. Quem, em Portugal, não entender isto, não vai conseguir entender nunca o Brasil".

Escrevi isto na introdução ao meu livro "Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa" (ed. Thesaurus, Brasília, 2008). Porque continuo a pensar o mesmo, aqui deixo esta reflexão. Para que não haja surpresas nem ilusões, nestes dias da presença dos futebolistas portugueses no Brasil.

quarta-feira, junho 11, 2014

João Pequito

Foi o meu primeiro diretor-geral. Chamava-se João Pequito. Dirigia os "Negócios económicos" do MNE, setor que tratava da diplomacia económica (o que prova que, afinal, isso existiu sempre nas Necessidades...). Era um figura imponente, de voz forte, que atroava os corredores, às vezes com sonoras gargalhadas. Não era um homem consensual. Tinha presidido à "comissão de saneamento" do MNE e, embora não sendo acusado de "barbaridades", pagava algum preço de imagem por ter aceite tal função. Sabia-se que era uma pessoa bastante rica, que "não precisava" da carreira. Isso ou o seu pendor democrático - a doutrina predominante nos claustros nunca foi unânime na matéria - tinha-o levado a pedir uma licença por meia dúzia de anos, só regressando após o 25 de abril. Tinha fama de conquistador, bom garfo e amante dos prazeres da vida, de carros desportivos, antiguidades e viagens exóticas. Era inteligente, culto e informado, quiçá um tanto diletante e tudo isso somado irritava muita gente na "casa".

Quando passei a trabalhar sob as suas ordens, em 1976, eu era um jovem "adido de embaixada", recém-ingressado na carreira. Pequito atribuiu-me, desde muito cedo, algumas responsabilidades e eu terei correspondido. Pessoalmente nunca me deu grande confiança, mas senti sempre que confiava em mim. Até na gastronomia: um dia, à hora de almoço, o telefone tocou na minha secretária e, do lado de lá, ouvi-o perguntar: "Dizem-me que você conhece muitos restaurantes. Onde é que se come bem para os lados de Campolide?". Fui entretanto colocado na Noruega. Pequito foi para a Bélgica, como embaixador, e daí para o México. Em Oslo, em inícios de 1982, recebi uma sua carta, muito simpática, a convidar-me a ser seu "número dois" na Cidade do México. Acabei por ir para Luanda. Só voltámos a falar muito mais tarde, em 2000, e apenas pelo telefone. Morreu três anos depois. Tinha-se afastado da carreira, desde 1984, por vontade própria.

Ontem, na Feira do livro, entrei por curiosidade no pavilhão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Deparei com uma biografia de João Pequito, editada pela Misericórdia. Porquê? Porque, na hora da morte, deixou em herança à instituição uma muito considerável fortuna, sendo até agora o seu maior benemérito, no século XXI. O livro, assinado por Ana Gomes (não, não é a mesma em quem estão a pensar!), ajudou-me a lembrar, ainda com maior simpatia, aquele que foi o meu primeiro diretor-geral.

terça-feira, junho 10, 2014

Desmaios (2)

O debate que se instalou, nas últimas horas, sobre a questão da publicitação das imagens do desmaio do chefe de Estado não é de todo ocioso. É importante que, a propósito deste "cas de figure", como dizem os franceses, se discuta abertamente o tema da privacidade, até para deixar de fora desta aquilo que realmente deve ser aberto ao acesso do público, identificando o que deve permanecer no domínio do reservado.

Não sou um especialista na matéria, razão pela qual tenho apenas a opinião de um simples leigo, que vale assim tanto como qualquer outra. Essa opinião, ditada apenas pelo meu bom senso (que admito que pode ser mau), diz-me que, tendo as imagens sido colhidas numa cerimónia pública, à vista de toda a gente, não deve haver o menor impedimento à livre circulação do filme do que aconteceu. Já não digo o mesmo sobre o "direito" de acesso dos jornalistas ao curso dos cuidados médicos que foram prestados ao professor Cavaco Silva por detrás da tribuna: era o que mais faltava! E fez muito bem a segurança ao tê-los impedido de se aproximarem. De qualquer forma, é importante que se diga que o episódio, que não é nada degradante nem humilhante para a pessoa do chefe de Estado e é em tudo natural na vida de qualquer cidadão, foi uma ocorrência que só não foi banal porque o seu titular é quem é e teve lugar num momento de grande visibilidade. Entendo que ninguém tem o direito de procurar esconder os factos que se passaram à vista de todos, numa situação em que a simpatia das pessoas de boa fé esteve, quero crer, com o professor Cavaco Silva. Pelo menos, esse foi o meu caso. 

Desmaios

Cavaco Silva desmaiou durante as cerimónias do 10 de junho, que hoje estão a ter lugar na Guarda. Um presidente é um cidadão como qualquer outro, tem as fragilidades de uma pessoa comum e este tipo de situações deve ser tido como natural. Porém, para a imprensa e para a curiosidade pública, não deixa de ser um "fait divers" que abala a rotina de uma cerimónia. Mas que não é inédito, como um dia testemunhei de perto.

Em 28 de outubro de 1995, eu tomava posse no governo presidido por António Guterres. Por um mero acaso, fazia-o juntamente com os ministros e, como era de regra, com o secretário de Estado da presidência do Conselho de ministros, dias antes dos restantes colegas secretários de Estado. Era uma circunstância excecional, que tinha a ver com a urgência da minha deslocação ao Luxemburgo, para acompanhar Jaime Gama, onde tínhamos para resolver um berbicacho, numa complicada e inadiável negociação europeia sobre pescas que estava em curso.

O ambiente naquele espaço do palácio da Ajuda era abafante. A mudança de ciclo político trouxera à posse do novo governo uma imensa multidão, que se acotovelava e prolongava mesmo pela escadaria de acesso. Tratava-se do fim do "cavaquismo", desse período de uma década em que Cavaco Silva, depois de chefiar um governo minoritário de curta duração, obtivera duas maiorias absolutas, num Portugal favorecido pelo forte fluxo dos ventos financeiros comunitários, que se faziam sentir na paisagem do país e no bolso dos portugueses.

Viviam-se os últimos dias do segundo mandato de Mário Soares como presidente da República. Durante quase dez anos, entre Soares e Cavaco, havia-se travado uma guerra política surda, que se agravara nos últimos tempos. A saída de cena do primeiro-ministro e a vitória dos socialistas nas eleições legislativas do início de outubro devem ter constituído o culminar desejável de mandato para o presidente cessante. Também na presidência se iria assistir a um novo ciclo. Jorge Sampaio era o candidato anunciado às eleições que teriam lugar em janeiro do ano seguinte. Cavaco Silva, primeiro-ministro cessante, seria o seu adversário.

Voltemos à posse. Cavaco Silva estava ao lado de Barbosa de Melo, presidente da Assembleia da República, e de Mário Soares, naquela que seria a consagração de António Guterres, seu sucessor à frente do executivo. Estava pálido e tenso, o que, no meu caso, levei à conta do peso pessoal de uma cerimónia que punha termo a um longo mandato. Segundo as sondagens, as hipóteses de ser eleito para a presidência, contra Jorge Sampaio, não eram muito fortes, pelo que o pressão emocional daquele momento deveria ser muito grande.

Foi então que, de repente, as nossas atenções foram chamadas para um reboliço à volta de Cavaco Silva. Sentira-se mal, desmaiara, foi retirado para trás da cena. A sala ficou em suspenso. Por um instante, temeu-se algo de grave, mas felizmente logo ficou claro que fora uma indisposição passageira, provocada por uma noite mal dormida, na morte de um familiar. Lembro-me de, naqueles escassos minutos, ter trocado olhares perplexos com Jorge Sampaio, que estava num grupo de pessoas à nossa frente. Creio que, sem o dizermos, nos interrogávamos sobre se aquela súbita "humanização" de Cavaco não poderia vir a ter efeitos nas eleições presidenciais, que se realizariam poucas semanas depois. 

Não teve. Sampaio viria a ganhar as eleições à primeira volta. Cavaco Silva saiu de cena, para só regressar uma década mais tarde, para o substituir. O tempo político de Cavaco Silva acabará em 2015. Quase duas décadas medeiam entre os desmaios que protagonizou em cerimónias públicas.

Padre Alberto

"Já vi que você nunca fará parte do meu rebanho", disse-me uma noite o padre Alberto Neto Simões Dias, com uma das gargalhadas sadias com que enchia os jantares a que, de quando em quando, estava presente, na casa de familiares seus e meus, onde eu vivi por cerca de cinco anos, a partir dos últimos meses de 1968. O meu irrecuperável esquerdismo divertia o padre Alberto, a quem me recordo de ter ouvido falar, pela primeira vez e com entusiasmo, de António Guterres. Era também muito próximo de Marcelo Rebelo de Sousa e, creio, de Adelino Amaro da Costa. Movia-se num mundo lisboeta de que eu estava e pretendia manter-me distante, de estudantes católicos, que ele conquistava e organizava com o seu entusiasmo e o seu verbo. Oriundo do Souto da Casa, perto do Fundão, o padre Alberto estudou e viveu desde cedo em Lisboa, onde se foi aproximando do catolicismo "progressista", como à época se dizia, onde preponderava um seu grande amigo, o padre José Felicidade Alves. Garantiu um lugar muito interessante junto da comunidade universitária e em diversos círculos de Lisboa. A famosa vigília na capela do Rato, na noite de 31 de dezembro de 1972, passou-se nesse seu espaço.

O padre Alberto foi uma figura que sempre tive por muito simpática. Cordial, excelente contador de histórias, falava-nos com graça das inúmeras iniciativas em que se envolvia. Os jantares com ele eram sempre momentos divertidos e, naqueles "anos do fim" do marcelismo, também muito instrutivos quanto à inquietação que então atravessava os meios católicos. Notava-se que pressentia que o mundo estava a mudar, que ele tentava ajudar a essa mudança, mas sem laivos radicais, apenas com a energia da palavra e uma forte vontade congregadora. Apesar das nossas diferenças, mantínhamos uma espécie de cumplicidade cívica subliminar, reforçada pelo nosso sportinguismo, que eu, porém, nunca quis aprofundar. Um dia, convidou-me para uma sua iniciativa, creio que um debate, no qual me disse que estariam pessoas de várias tendências, alguns não crentes, como seria o meu caso. Fiquei de pensar no assunto e, no final, desisti de ir. O meu sectarismo da época não era compatível com esse tipo de exercícios, que achava uma mera perda de tempo. Tenho ideia de que ficou sentido com essa minha recusa.

Perdemo-nos por completo de vista, a partir de meados de 1973. Ouvia falar dele, a espaços, à família. Mais de uma década depois, em 1987, ocorreu a sua morte trágica, em condições infelizmente nunca esclarecidas. Lembrei-me dele agora, ao ler a bela evocação que o seu conterrâneo, Fernando Paulouro das Neves, aqui lhe fez.

segunda-feira, junho 09, 2014

Britânicos

Está a ser interessante seguir o aparente braço-de-ferro entre o PM britânico e outros dirigentes conservadores europeus, na sua recusa de aceitar o nome de Jean-Claude Juncker para presidente da Comissão Europeia. A experiência mostra que os britânicos são especialistas em "trade off" e que não é de excluir que, no termo desta barganha, a intransigência de Londres possa vir a ter como resultado vir a ganhar, noutro "tabuleiro", um qualquer "prémio de consolação" que satifaça alguma das suas várias reivindicações diluidoras da densidade da construção europeia. Mas também pode dar-se o caso de Londres estar a "fazer o frete" a outros Estados que também não querem Juncker, mas não o podem dizer, a fim de tentarem ainda a hipótese de um outro nome. Na Europa, tudo é possível.

Aproveito para relembrar um episódio que é bem definidor da forma britânica de negociar.

Foi durante a discussão de um dos dois tratados europeus (Amesterdão e Nice), em que fui "chief negotiator" português. No início de cada negociação, o nosso objetivo era tentar manter os ingleses "on board", isto é, procurar descobrir fórmulas que acomodassem os seus interesses e preocupações. Sabíamos que isso era sempre muito difícil, mas um tratado seria tanto mais forte quanto não comportasse quaisquer "exceções" nacionais, que quase sempre abriam caminho a outros casos similares. Assim, num determinado e importante dossiê, lembro-me de que, ao longo das semanas, fomos progressivamente prescindindo do "wording" inicial, mais ambicioso, para desespero de certos Estados, com vista a tentar caminhar para um consenso que nos pudesse vir a aproximar dos britânicos. Os seus negociadores iam alimentando essa esperança, dando sinais de que, se aceitássemos uma linguagem mais diluída, isso talvez fosse possível. Nós íamos transigindo, cada vez mais, até que se chegou a um limite máximo possível dessa diluição. E, nesse momento, mesmo perante uma fórmula já muito "soft", os britânicos informaram que lhes era impossível aceitarem, anunciando o seu tradicional "opt out", isto é, à sua desvinculação dessa política. Porém, com essa tática, havia conseguido diluir o compromisso que os restantes já tinham aceite. E, naturalmente, já era inviável o regresso à "square one", à fórmula inicial mais ambiciosa, a qual, se acaso os negociadores britânicos não tivessem estado presentes, teria sido aceite por todos. Com este expediente dilatório, Londres garantia o que, de facto e desde o primeiro momento, pretendia: ficar fora do acordo e que o tratado, de que pontualmente se desvinculava, não se afastava exageradamente daquilo que era o seu interesse. Ficava também claro que, desde o início, o Reino Unido nunca verdadeiramente tinha encarado a possibilidade de se juntar a qualquer compromisso. E nós tinhamos caído na "esparrela"...

ps - como se terá notado pelos termos ingleses utilizados no texto, os britânicos já entram a ganhar, pela língua, nas negociações europeias.

domingo, junho 08, 2014

Conversas

Decididamente, o país mudou. Durante estes últimos três anos, a conversa entre amigos passava-se entre a "heróica" minoria que defendia a chamada maioria (as eleições provaram que a maioria "já vai" em 28%) e os que não gostavam de Passos Coelho, Paulo Portas "y sus muchachos" - sendo que, dentre estes últimos, tenho amigos e familiares que oscilam entre os que acham que "isto só lá vai à bomba" e alguns, os mais complacentes, que estão apenas "descontentes". Parte destes, não querendo votar socialista ou na atomização anti-governo, passaram-se para a cómoda abstenção.

Desde há duas semanas que o país discussante se alterou. Agora, parece que as pessoas alinham todas as suas opiniões em favor de Seguro ou de Costa. De súbito - terá sido efeito da possibilidade de voto aberta pelas "primárias"? - não há bicho careta, por mais "reaça" ou "comuna" que seja, que não se ache no direito de "amandar bocas" sobre a crise interna do PS, tomando "partido" ou, mais modestamente, alinhando palpites sobre o saldo que resultará do debate. Os mesmos que, há semanas, enchiam a boca com o "programa cautelar" ou a "saída limpa", já só falam, com uma desenvoltura "xuxa", sobre a importância de haver "congresso+diretas" ou as "primárias". E têm opinião!

Quase que comove ver o país tão preocupado com a escolha para o Rato. Receio apenas que isto possa acabar num relativo "esquecimento" de Passos Coelho. Seria uma injustiça se isso acontecesse.

O autor

Ontem à tarde. Estava sentado a uma pequena mesa, recuado, entre duas barracas, na feira do livro. À frente tinha um pequeno banco. Desocupado. Sobre a mesa havia três livros e uma esferográfica. Era o autor. Estava distante da zona comum onde os seus pares, entre amigos e editores, vão disfarçando, às vezes por horas, a escassez de admiradores. Ele não, estava completamente sozinho. Discretamente, procurei ler o nome e o título do livro. Não me diziam rigorosamente nada. O livro era vendido na barraca em frente, de uma editora menos conhecida. O sucesso de vendas não era coisa evidente. Andei por ali uns minutos, por curiosidade. Ninguém se aproximou da mesa. Subi e desci a feira. Quando por lá voltei a passar, tudo estava igual. O autor, estóico, continuava sentado, com os mesmos três exemplares e a caneta sem préstimo, com um esgar de resignação. Confesso que cheguei a ter a tentação de comprar um livro, mesmo que o tema me não interessasse. Mas não. O homem não precisava de compaixão, precisava de leitores. E eu nunca seria um deles.

sábado, junho 07, 2014

Conveniências

O meu pai costumava contar que, no tempo da sua juventude em Viana do Castelo, havia um cavalheiro que ficou conhecido por não ter reagido quando um dia a sua mulher foi agredida em público por um homem. A justificação dada, confrontado com a indignação dos amigos da família que o inquiriam sobre a razão pela qual assumira tal passividade, colou-se-lhe à pele para sempre: "não me convinha!"
 
Lembrei-me da expressão ao ter visto já apoiantes das duas possíveis candidaturas à liderança dos socialistas (outras pode vir a haver, já pensaram?), em artigos, declarações e blogues, a recomendar aos respetivos líderes que se abstenham de discutir, desvalorizando-as ab initio ou considerando-as inoportunas, algumas propostas apresentadas pelo seu adversário. A razão não é dita, mas trata-se de mera conveniência política.
 
Termino lembrando que o homem de Viana do Castelo não ficou muito bem no retrato da memória local.

sexta-feira, junho 06, 2014

Normandia

Foi em Deauville, na Normandia, depois de um jantar, em 2010. Falava com o "maire" da cidade, a quem havia manifestado a minha admiração pelo facto de, em muitos locais da região, ter encontrado, lado a lado, bandeiras francesas e alemãs, em cemitérios que celebravam as vítimas da guerra em que ambos os países se haviam defrontado de forma trágica, entre 1939 e 1945. 

Meses antes, durante vários dias de férias, havia percorrido toda (mas mesmo "toda") a "costa do desembarque", passando pelas célebres praias que os americanos tinham crismado com nomes bem sonantes. Visitara as casamatas alemãs, museus militares e restos das lanchas aliadas utilizadas no "dia D", 6 de junho de 1944. Desde criança que eu era um "viciado" no tema. O meu pai falava-me com entusiasmo desse dia histórico em que os aliados desembarcaram na Normandia, dando um impulso decisivo à derrocada da agressão nazi na Europa. Tornei-me desde então um leitor compulsivo de livros sobre a Segunda Guerra mundial, um assunto sempre muito presente nas conversas e nas prateleiras de livros lá de casa. Viver em França deu-me oportunidade de percorrer, de mapa na mão e de forma organizada, todos esses locais que tanto haviam mobilizado a minha imaginação.

Ao "maire" de Deauville perguntei se aos mais velhos, àqueles a quem a guerra tinha afetado diretamente as suas vidas, não chocava essa convivência com a bandeira do antigo inimigo. Explicou-me que, de facto, para algumas pessoas dessa geração que vivera a guerra "a quente", não terá sido fácil aceitar a normalidade da relação pós-conflito, com um país que lhes infligira tanto sofrimento. Mas esse era o "preço" da nova Europa, da nova amizade franco-alemã à volta da qual se construíra a paz e a unidade económica e política das Comunidades. 

O "maire" acrescentou, contudo, algo por que eu não esperava. Disse-me que muitos habitantes da Normandia, no período imediatamente após a guerra, mantinham sentimentos ambivalentes face aos ingleses e aos americanos - que eu pensava, com naturalidade, serem vistos como os libertadores que, de facto, foram. "Convém não esquecer que, para a população civil que habitava a Normandia, a força aérea inglesa e americana era vista responsável por meses de bombardeamentos de posições militares alemãs distribuídas por toda a região, cuja precisão estava muito longe de ser total, frequentemente destruindo casas de civis, provocando vítimas francesas, em muitas noites de terror". Nunca tinha pensado nisso: o "friendly fire" também mata.

Passam hoje 70 anos sobre essa data memorável. As praias da Normandia foram cenário de comemorações sobre a paz reconquistada na sequência do "dia D". Mas a guerra não desapareceu por completo da Europa, primeiro nos Balcãs, agora na Ucrânia. A paz é o bem mais inseguro da História.

Culturgest

É hoje, sexta-feira, às 18h30. Mais uma conferência do ciclo de conferância "Portugal – Propostas para o Futuro", no Pequeno Auditório da Culturgest, com entrada gratuita. O tema não podia ser mais atual: "Que fazer com os Fundos Estruturais no período de 2014/2020?".

No painel estarão vozes qualificadas como Elisa Ferreira, João Ferrão e José Mariano Gago. A moderação estará a cargo de José Manuel Félix Ribeiro. Trata-se de mais uma iniciativa de um grupo de que faço parte, com Fernando Bello, José Manuel Félix Ribeiro, João Ferreira do Amaral, João Salgueiro, João Costa Pinto e Miguel Lobo Antunes, este último diretor da Culturgest.

quinta-feira, junho 05, 2014

Os amigos e as cerejas

Com a idade, sinto que os amigos são como as cerejas: vão uns atrás dos outros. Desde esta manhã, debatia-me com a ideia de que, à data de hoje, já passou um ano desde que António Pinto da França nos deixou. Há minutos, na caloraça da feira do livro, para onde me "desenfiei" entre duas reuniões e uma tosta a fingir de almoço, dei de frente com Onésimo Teotónio de Almeida, um "browniano" que atravessou o Atlântico para vir à capital do império. E veio à baila um amigo comum que também já se foi, o José Guilherme Stichini Vilela. Por imperativos meus, a conversa teve de ser breve. Mas esta dupla e triste evocação estragou-me, de certo modo, a tarde deste soberbo dia de insuperável sol lisboeta. Ao mesmo tempo, estou grato ao Onésimo por me ter trazido à memória a imagem desse outro amigo. Relembrá-lo, traz alguma melancolia mas também um sentimento de um certo conforto, a certeza que não o esquecemos e que a sua evocação nos deixa marcas. Volto ao princípio: com os anos, a vida torna-se numa espécie de album de recordações. De imagens que já foram a cores e que agora são, inapelavelmente, a preto e btanco.

A cidade proibida

Lembro, como se fosse hoje, as imagens televisivas. Ceausescu está na varanda do edifício da presidência, em Bucareste. À sua frente, espalha-se uma grande e organizada manifestação de apoio, a tentar contrariar os ventos com que as "democracias populares" estavam, por essa época, a ser definitivamente varridas das História europeia. Engorrado para o inverno, o ditador romeno saúda, com um sorriso plástico, a multidão oficiosa que o aplaude, quando, de repente, se começam a ouvir longínquas vozes de protesto, vindas de outros manifestantes algures na praça. Nota-se que Ceausescu fica atónito por aquela contestação inédita, que "não pode" estar a acontecer, num regime como era o seu. A câmara não nos mostra essas pessoas, não faço ideia se se saberá o que lhes aconteceu. Mas, para sempre, passei a ligar a atitude daquela gente, um punhado de pessoas num ambiente altamente hostil, sujeitos à repressão mais selvática, à verdadeira definição da coragem cívica.
 
Veio-me isto à memória ontem, quando revi a imagem patética daquele cidadão chinês, de saco plástico na mão, que, há 25 anos, na praça de Tiananmen, se colocou em frente dos tanques militares, protestando contra o esmagar da tentativa de liberdade, prestes a iniciar-se. Seria interessante saber o que terá dito aos militares, os mesmos que, curiosamente, travaram o tanque para o não atropelar, minutos antes de reprimirem barbaramente milhares de pessoas. Nunca se soube quem foi esse herói, se ainda é vivo, depois de afastado por amigos, se acaso escapou à razia feita mesmo às portas da "cidade proibida". E que continuou a sê-lo.     

quarta-feira, junho 04, 2014

"Granta"

A "Granta" é uma revista/livro que descobri há muitos anos, creio que quando vivi em Londres. Apelativa pelo grafismo elegante, embora sóbrio, incorpora quase sempre um interessante e pretendido "new writing", muitas vezes com autores muito pouco conhecidos, ao lado de nomes consagrados, misturando a ficção com outros registos. Comprei, ocasionalmente, algumas das edições temáticas, às vezes em alfarrabistas, que vou lendo a espaços - porque a "Granta" é uma publicação que se lê sem pressas. É uma revista para se ir lendo.
 
Há meses, vi que a "Granta" ia publicar uma edição em português (a "Granta" tem outras edições, além da original inglesa, sendo que a francesa, talvez não por acaso, nunca existiu), sob a batuta culta e de bom gosto de Carlos Vaz Marques, figura que só conheço dos "media", mas que verifico ser sempre garantia de qualidade em tudo aquilo em "que se mete". A "Granta" portuguesa é igualmente excelente. E acho magnífico que, num tempo de crise, haja coragem para avançar com este tipo de iniciativas. Leiam o seu nº 3 "Casa". Eu já comecei a ler. 

Pikkety

Portugal tem coisas curiosas.

Anda para aí toda a gente a falar do livro de Thomas Piketty, "O Capital no século XXI", que já foi considerado um dos livros económicos da década, por uma figura tão ilustre como Paul Krugman. Trata-se de uma obra de economia que, ao que vejo, recupera certas categorias inspiradas no famoso livro de Karl Marx, "O Capital". Quando o livro saiu em França, no final de 2013, não teve um sucesso estrondoso, o que só aconteceu depois de ter circulado em versão inglesa. Hoje, não se fala noutra coisa. A versão portuguesa ainda demorará uns meses.

O debate em torno das teses do livro já começou. Hoje, recebi um mail com uma boa dezena, não apenas de recensões críticas, mas também de artigos, a favor ou contra. Entre nós, a sensação que tenho é que se iniciou uma polémica em torno do livro... na maioria por gente que o não leu e que apenas tem (já) opiniões "sobre" ele, feita à luz do que escreveu quem, de facto, o leu. Não querendo "perder o pé" ao que está na moda, a muito do nosso "impressionismo" doméstico basta a opinião dos outros. E, por isso, já hoje vi comentários sobre a análise feita à obra por Vitor Gaspar (que, claro, a leu cuidadosamente), por parte de quem só quer aproveitar a onda para mandar bitaites, as mais das vezes cavalgando até a maré política.

País curioso, este.

terça-feira, junho 03, 2014

Spam

Já não é a primeira vez que algumas pessoas se queixam de que colocaram um comentário neste blogue e ele não apareceu. Às vezes, não muitas, foi o meu "lápis azul" que exerceu os seus direitos, por não me apetecer dar cobertura a ataques a terceiros ou a insultos que passam as margens do meu sentido autoflagelatório.
 
Mas hoje, carregando na tecla do "spam" dos comentários, fui por lá descobrir, entre mais de sete centenas de mensagens que a presciência do blogue travou, mais de duas dezenas de anódinas mensagens, que os leitores devem ter estranhado não terem aparecido publicadas. Tarde embora, os comentários integram agora os "posts" a que respeitavam.
 
A esses amigos, peço desculpa pela minha imprevidência ao não ter cuidado em visitar a caixa de "spam" há quase dois anos. 

A hora do presidente

Vai para nove anos, o país elegeu um presidente da República que, tal como os seus três antecessores no regime democrático, jurou "cumprir e fazer cumprir a Constituição". O país já não terá mais nenhuma oportunidade de, pelo sufrágio, manifestar a sua avaliação sobre a prestação da pessoa que escolheu para a chefia do Estado. Alguns adivinham que este seu segundo mandato será julgado com grande severidade pelo juízo histórico, pela inoperância do que deveria ter sido a sua magistratura de influência, pela parcialidade com que se situou no terreno político, por episódios menos edificantes que entretanto protagonizou, enfim, por uma leitura negativa sobre a sua capacidade de estar à altura das exigências do difícil momento que Portugal atravessa. Outros vão mesmo ao ponto de considerar que o modo como o professor Cavaco Silva exerceu o seu mandato contribuiu para uma degradação da própria posição da chefia do Estado no quadro interinstitucional. Outros não.

Nestes dias complexos que atravessamos, a responsabilidade das instituições torna-se ainda mais evidente, pela exigência acrescida que lhes é colocada face ao modo como afirmam e dignificam os valores que souberam decantar de cerca de quatro décadas de regime democrático. Umas têm uma legitimidade democrática direta, outras resultam do compromisso que o Estado encontrou para garantir os "checks and balances" que o consenso maioritário do país, expresso no texto constitucional, concordou ser indispensável para limitar o poder dos órgãos de soberania e articular a sua mútua interação.

O Tribunal Constitucional é um desses órgãos. Resulta da vontade maioritária e qualificada da democracia representativa, foi criado para preservar a integridade da lei constitucional, para dar aos cidadãos a certeza de que a administração do Estado tem uma "linha vermelha" que não pode ultrapassar. As decisões que profere não estão, nem podem estar, imunes ao escrutínio e à eventual censura pública. Mas a sua dignidade institucional não pode ser posta em causa, em especial pelos restantes órgãos de soberania: a sua existência e a forma da sua composição dependem apenas dos eleitos diretos do povo, pelo que só se o mesmo consenso maioritário e qualificado que o criou vier a modificar-se é que o seu lugar na arquitetura do Estado, ou o desenho da sua estrutura, podem ser revistos. E esse consenso está muito longe de existir, pelo que a instituição Tribunal Constitucional tem democraticamente de ser respeitada e preservada.

Ora o país elegeu o chefe do Estado para ser o garante do normal funcionamento das instituições, como portador de um mandato direto e único, fonte de legitimidade incontestável e referente de equilíbrio do sistema. Por essa razão, o presidente da República não tem o direito ao silêncio, que não quero adjetivar, perante os desafios institucionais de que o Tribunal Constitucional está a ser alvo. Tem mesmo o dever, se quer estar minimamente à altura da sua responsabilidade democrática, de sair a terreiro e deixar a palavra serena sobre a necessidade de respeito pelos órgãos da República. O professor Cavaco Silva tem, nesta questão, uma oportunidade única para redimir o seu mandato. Esperamos que a não perca.

segunda-feira, junho 02, 2014

Informando Klow

                       
Como é sabido, entre a Bordúria e a Sildávia mantém-se, de há muito, um tenso conflito, ao pé do qual a luta pela liderança dentro do PS não passa de um mero arrufo. Um comentador deste blogue, muito atento à vida das embaixadas, conseguiu - imaginem! - obter o telegrama que o embaixador da Sildávia (residente em Paris mas acreditado em Lisboa) enviou hoje às suas autoridades em Klow, ainda a propósito da situação política portuguesa. Sem surpresas, o tom é algo diferente do do seu colega da Bordúria. Aqui fica, para as devidas comparações:

"Sendo embora residente em Paris, não deixo de seguir o que se passa em Portugal, país onde estou acreditado, Estado nosso amigo e cada vez mais nosso aliado, graças à minha acção persistente e incansável. A nossa firme atitude contra a Bordúria, após o grave incidente de fronteira na ribeira Tentenokayas, em que invasores expansionistas borduros caçaram e grelharam um cabrito sildavo, em clara violação dos acordos de Nogent-sur-Marne de 1990, tem-nos grangeado vivas simpatias da parte de todos os partidos responsáveis de Portugal e o eco destes incidentes na imprensa local excedeu as minhas melhores expectativas ( ver meu 111).

A recente crise no PS português insere-se no drama geral das sociais-democracias na Europa que, apanhadas nos laços de uma malha normativa europeia que apenas permite aos Estados a execução de uma política ordo-liberalista (ver meu 222) , se debatem como peixes fora de água acabados de pescar, à procura de uma palavra a dizer. De um lado, o radicalismo idealista, filho da ética da convicção e sem necessidade de atender à responsabilidade, que alguns traduzem num simples "rasgar o memorando", que eles sabem impossível de rasgar; do outro, os que estão prontos a alinhar na Grande Missa Europeia, que à alternância veio substituir a mera dança de cadeiras e que aparecem a público, com grandes promessas de mudança, para depois virem simplesmente fazer o que lhes mandam - a França está muito perto daqui para se poder esquecer o resultado dessas políticas.

Os que os "rebeldes" do PS podem representar é a possibilidade de um outro jogo: de, através de uma plataforma com forças políticas diferentes, para além da clivagem tradicional esquerda-direita, se construir uma política "patriótica" (sem medo da palavra) de defesa dos interesses da economia portuguesa contra os telecomandados pela nova "ideologia alemã". Será possível? Talvez não, mas é a única saída. Renzi não hesitou em apunhalar Letta e o capital de entusiasmo ali está. Servirá para alguma coisa? Tentemos. Navegar é preciso.

Longa vida a Sua Majestade Muskar XV e que o espectro da abdicação de um rei de um país aqui vizinho nunca possa assombrar a nossa amada Sildávia!

a) Klopstock"

Juan Carlos

Fui oficialmente educado a detestar a Espanha. Desde os livros da escola primária, o "perigo castelhano" só me não perturbava o sono por mera inconsciência juvenil e porque, em casa, as coisas era faladas de outra forma. No liceu, a História do (velho) Mattoso era um apelo profundo à reconquista de Olivença e um aviso subliminar à perfídia eterna de Madrid. Com a idade, comecei a olhar para outras Espanhas, de Unamuno a Llorca. Percebi que, por ali, nem tudo começava em Primo de Rivera e acabava no primarismo de Franco. Emocionei-me com as tragédias da Guerra civil e com a sorte dos vencidos, de Guernica a Madrid, das Asturias a Barcelona. Cedo fiquei ao lado de uma das "duas Espanhas". Quando entrei para a diplomacia, encontrei ainda, pelos corredores, os resquícios de uma cultura anti-Espanha, instilada por décadas de doutrinação salazarenta. Só Juan Carlos de Bourbon, que hoje anunciou que vai resignar, reconciliou Portugal, em definitivo, com a Espanha, como um todo. A Europa fez o resto. A Espanha, e com ela a península, devem muito à sabedoria de um homem que demonstrou sempre ser um bom amigo de Portugal. Em Espanha, eu teria sido "juancarlista". Embora o nome do novo rei não soe muito bem aos nossos ouvidos lusitanos, espero que consiga seguir o exemplo do pai. No que nos respeita, melhor é impossível.

Informando Szohôd

"Há uma semana, aqui em Portugal, o PS ganhou as eleições europeias por uma vantagem de cerca de 4% sobre a coligação de direita. Dentro e fora do partido, surgiram de imediato vozes a considerar esse resultado como pouco expressivo, atendendo em particular ao elevado desagrado que a política do governo havia criado no país e que, aliás, reduziu a maioria a um resultado muito baixo, sem paralelo na História democrática recente. Essa leitura interpretou negativamente o facto do PS ter captado apenas 32% dos 72% dos votos que não beneficiaram os candidatos da maioria e atribuiu isso a uma prestação insatisfatória do atual líder socialista, António José Seguro, nomeadamente pela formulação do que foi considerada uma pouco convincente alternativa política.

Convirá notar que Seguro tem no seu palmarés de líder da oposição duas vitórias eleitorais (autárquicas e europeias) e, nesta última, deixou a quase 10 pontos o PSD (a coligação teve 28%, podendo presumir-se que isso corresponde a 22 ou 23% para o PSD e 6 ou 5% para o CDS). Acresce que Seguro assumiu a liderança do PS após uma derrota fragorosa deste partido, em junho de 2011, que largos setores da opinião pública ligaram a um juízo fortemente negativo sobre o saldo financeiro dos últimos anos de gestão socialista. Seguro herdou um PS internamente dividido e preso ao compromisso assumido com a "troika", ainda subscrito pela anterior liderança, de cujos principais protagonistas se afastou e cujo património político foi acusado de não defender. Ao longo do programa de ajustamento, confrontou-se com um governo que, dia após dia, foi recebendo de quase todos os setores da comunidade internacional vagas constantes de elogios - que acabou por instalar em muitos e diversos meios internos a ideia de que não havia uma real alternativa à política de austeridade - e com um presidente da República cuja atuação muito favoreceu, na globalidade, a maioria no poder. Na sua gestão da oposição, Seguro foi obrigado a colocar-se no caminho muito estreito entre o cumprimento das metas internacionais previstas no acordo com a "troika" e a propositura de outras alternativas em matéria de política económica, sendo que a maioria das ideias que apresentou vieram a encontrar escasso eco externo e abertamente contrariavam as orientações do BCE, da Comissão Europeia e do FMI. A perceção desta relativa "solidão" internacional de Seguro não terá deixado de ter consequências na sua credibilidade interna.

As linhas positivas que alguns detetam na prestação do líder socialista não convencem, contudo, os seus críticos internos, que os resultados das eleições europeias estimularam a abandonar o silêncio tático que vinham mantendo, decidindo apoiar com entusiasmo a esperada candidatura à liderança de António Costa, o popular presidente da Câmara de Lisboa. O antigo ministro, apreciado em áreas à esquerda e à direita do PS, é dado por muitos como tendo uma imagem pública capaz de melhor mobilizar a oposição para uma vitória nas eleições legislativas previstas para 2015. Trata-se de um dos mais experientes políticos portugueses, de quem muito também se fala como futuro candidato presidencial. Em 2011, Costa escusou-se a disputar a liderança do PS contra Seguro, após a saída do anterior PM Sócrates, tendo recusado também a possibilidade de o voltar a desafiar no Verão de 2013, quando outra crise idêntica, embora menos tensa, atravessou o partido. Há quem diga que este não seria ainda o seu "timing" mas que, se recusasse este novo ensejo, poderia estar a comprometer definitivamente as suas ambições. Não se conhece ainda a Costa o corpo de ideias que possa vir a apresentar como programa para uma futura liderança da oposição, mas o desagrado que deixou claro quando o PS aprovou o Tratado Orçamental e a sua atitude, mais entusiástica do que a de Seguro, favorável a uma reestruturação da dívida pública são elementos que podem indiciar a sua adesão a uma linha mais confrontacional no plano externo - o que também é reforçado pelo leque de apoios partidários que tem vindo a recolher. Mas será errado presumir-se que Costa possa ser tentado a dissociar-se de uma política de responsabilidade, em matéria financeira internacional, se acaso vier a ascender à liderança da oposição.

Sob forte pressão, Seguro decidiu sublinhar a sua legitimidade e não facilitar a iniciativa desafiadora de Costa, recusando-se a convocar um congresso do partido, escudado nos estatutos e num aparelho que maioritariamente (pelo menos, por ora) o apoia. Em contrapartida, e num movimento de surpresa, sugeriu a realização de um processo eleitoral do futuro candidato socialista a primeiro-ministro, através de umas inéditas "eleições primárias", seguindo aparentemente o modelo francês de 2012, esclarecendo já que se demitirá de secretário-geral do PS em caso de derrota no sufrágio. Os observadores não adiantam prognósticos quanto ao saldo final deste debate.

Neste entretanto, o governo, confrontado com mais uma recusa do Tribunal Constitucional em aprovar algumas das últimas medidas de austeridade que tinha acordado com a "troika", o que pode redundar num novo pacote de impostos, pode contar com a supracitada situação no principal partido da oposição, entretido nas suas guerras fratricidas, e, por essa via, fragilizado na sua capacidade de combate. Segundo alguns meios, cuja credibilidade não é possível precisar, esta situação poderia levar o primeiro-ministro a propor ao presidente da República uma "clarificação" política, através de uma antecipação das eleições legislativas para o segundo semestre deste ano, confiante em que algumas melhorias na situação económica do país e um eventual descalabro visível na oposição poderiam desenhar um cenário que acabaria por lhe ser favorável.

Mas, neste país, atlântico na franqueza, europeu nos costumes visíveis, mediterrânico nos hábitos públicos e levantino na insuperável capacidade para tornar complexas as coisas mais simples, nada é mais imprevisível do que o futuro daquilo que hoje se toma por certo. O que, aliás, é muito pouco".

(Tradução do telegrama que o embaixador da Bordúria em Lisboa enviou há minutos às suas autoridades em Szohôd)

domingo, junho 01, 2014

Auguinha


A janela é da antiga prisão de Caminha. Passei por lá ontem e lembrei-me de uma história que o meu pai evocava, dos tempos em por aquela terra trabalhou, vai quase para nove décadas.

Na então vila de Caminha, havia um pobre diabo, daqueles que era (e infelizmente é) muito comum encontrar em todas as localidades: um pouco atrasado de espírito, fazia recados, vivia de expedientes e, não raramente, era alvo fácil da chacota popular. Perdi-lhe o nome, que o meu pai referia quando contava o que se segue.

A gandulagem da cidade nem sempre se portava bem, "metia a unha" ou armava rixas, pelo que, de quando em vez, ia parar aos calabouços, que tinham esta janela para a rua. Porque o serviço "hoteleiro" da prisão não era estrelado, através das grades pediam água a quem passava. A tal figura popular, chamada a ajudar, apiedava-se deles e lá ia procurar com que lhes matar a sede.

A gratidão não era, contudo, a melhor das qualidades desse pessoal. Quando se viam cá fora, em lugar de premiar aquele que os ajudava em momentos menos fáceis, voltavam à gozação ao homem, achincalhavam-no e riam-se dele. O tal pobre diabo reagia então, avisando de que, no futuro, se tivessem problemas, não poderiam voltar a contar com ele, dizendo: "Hádes querer auguinha!"

Os EUA, a ONU e Gaza

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