terça-feira, dezembro 07, 2010

"Hard times"

No dia em que a revolucionária ideia do ex-futebolista Éric Cantona, de provocar uma corrida aos bancos franceses, se terá saldado por um  previsível insucesso, o centro cultural da Fundação Gulbenkian em Paris ouviu com atenção a palavra do vice-presidente do Banco Central Europeu, Vitor Constâncio.

Apresentado pelo presidente do BPI, Artur Santos Silva, Constâncio deixou claro que não parece haver espaço para uma reforma profunda do sistema financeiro internacional, atenta a continuidade previsível do dólar como principal moeda de referência. Contudo, o mundo entrou num novo tempo do processo de globalização e assiste-se hoje a uma sensível mudança do equilíbrio de poderes, favorecendo os países emergentes, que parecem fadados a anos de crescimento bem mais sustentado que o das economias dos mundo industrializado. Não obstante, o paradigma essencial do sistema de Bretton Woods não parece suscetível de ser subvertido.

No tocante à Europa, as perspetivas que Vitor Constâncio nos deixou, a médio e longo prrazos, em termos de crescimento económico, de saldo demográfico e de produtividade não foram de moldes a sossegar ninguém na sala, muito embora o conhecido europeísmo do orador procurasse dar uma nota de otimismo, na fase final da sua conferência.

Ao meu lado, o antigo diretor-geral do FMI e ex-presidente do BERD e do Banco de França, Jacques de Larosière, dizia-me, no final, que Constâncio "teve a coragem de ser realista".

Estes vão ser, de facto, "hard times", para utilizar a expressão de Dickens.

Acolhimento

Era uma Embaixada longínqua, não muito grande. O embaixador, acompanhado por toda a família, deslocava-se a Portugal uma única vez por ano, pelo que a sua partida e a sua chegada eram momentos marcantes na vida daquele posto.

Tradicionalmente, toda a embaixada se deslocava ao aeroporto, para se despedir. À chegada, repetia-se o mesmo tipo de presenças. Nessas ocasiões, quase por rotina, o embaixador, ao agradecer a deslocação do pessoal, deixava cair uma frase do género: "Mas para que se estiveram a incomodar?...". Via-se bem, contudo, o agrado com que aceitava o gesto coletivo.

Uma madrugada, o nosso embaixador regressava de Lisboa, depois de mais de um mês de ausência e, cumprindo a tradição, toda a Embaixada o esperava. Toda, não! O Albuquerque, o homem do arquivo, não aparecera, por uma qualquer razão.

O embaixador foi acolhido pelos funcionários, que saudou com simpatia. Como de costume, foi dizendo: "Ora essa! Então os meus amigos tiveram a maçada de vir ao aeroporto? Não deviam..." Um segundo volvido, lançou, para o encarregado de negócios: "O Albuquerque está bem de saúde?"

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Sobre a crise

Algumas vezes, a pontual notoriedade dos embaixadores só emerge por motivos que nós próprios bem dispensaríamos. Mas que, nem por isso, deixam também de ser a razão pela qual estamos em posto e nele nos compete defender a imagem e os interesses do país. É o caso de "prestações" televisivas como a que fiz, há dias, na BFM Business, o canal de televisão económico-financeiro, e, ontem, na LCI, uma espécie de SIC-Notícias francesa.

Como não podia deixar de ser, foi a difícil posição portuguesa no quadro da crise internacional que esteve no centro dessas duas aparições. No somátório de ambas, tive oportunidade de reiterar:

- a intenção do governo português de não recorrer aos mecanismos europeus de ajuda financeira;
- o carácter muito rigoroso das medidas orçamentais recentemente aprovadas;
- o facto dessa aprovação ter sido feita depois de um acordo que envolveu as duas principais forças políticas do país;
- o facto de, entre 2005 e 2007, já termos feito uma contração do nosso déficite de 5,9% para 2,8%, isto é, mais de 3% - a comparar com os 2% que nos propomos fazer entre 2010 e 2011;
- a realização atempada de uma profunda reforma no nosso sistema de segurança social, que lhe assegura condições de sustentação no tempo;
- a circunstância do nosso défice face ao PIB, da nossa dívida face ao PNB e da nossa taxa de desemprego não terem divergências dramáticas das médias europeias e, em especial, das de outros países que ainda aparecem poupados pelo nervosismo dos mercados;
- o anúncio de um ambicioso plano de privatizações entre 2011 e 2013, com impacto importante sobre a redução da dívida e, por consequência, sobre o peso do serviço da dívida no défice;
- o não sofrermos das "doenças" financeiras (estatísticas pouco fiáveis ou disfarçadas, "bolha imobiliária", crise bancária) que afetam outros países que também sofrem dificuldades de financiamento.
- os sinais positivos da nossa balança comercial recente.

Em ambas as entrevistas, foi-me colocada a questão, bem francesa, sobre se as medidas de austeridade aprovadas podem vir a gerar desregulações sociais difíceis de controlar. Embora sem poder prever o futuro, e não deixando de reconhecer que o desemprego e as dificuldades económicas conduzirão naturalmente a algumas situações de tensão social, fui de opinião que a experiência histórica portuguesa não aponta no sentido de convulsões com impactos políticos diretos.

Uma coisa tenho deixado claro: não alimentamos teorias conspirativas e entendemos que os mercados se movem pela raiz natural da sua lógica - o lucro, seja a que preço for. Teríamos gostado, no entanto, de ver a atitude desses mercados - e das agências de "rating" que, frequentemente, os antecipam - basear as suas avaliações em números e em factos, não em perceções algo impressionistas. Mas, provavelmente, isso seria querer demais.

domingo, dezembro 05, 2010

Carta de Paris

1.
Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia,

tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo

campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo

Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia luz com Leslie fazendo de francesa, e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que desperta,

na fuga da gaiola, na sede no deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada,

talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés

o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.

2.
Paris muda! mas minha melancolia não se move. Beaubourg, Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra.

Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você,

minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você,

amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro,

em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque

onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!

(Poema de Ana Cristina César (1952-1983), poeta brasileira)

sábado, dezembro 04, 2010

Debré

O nome Debré está fortemente associado à memória do gaullismo. Michel Debré foi primeiro-ministro do general e é considerado o "pai" da constituição da V República, que ainda hoje rege a vida política francesa.

Jean-Louis Debré, o actual presidente do Conselho Constitucional, é filho de Michel Debré e foi ministro do Interior do presidente Jacques Chirac, de quem é considerado uma das personalidades mais próximas. Do seu currículo consta igualmente a importante presidência da Assembleia nacional francesa.

Anteontem, num programa de rádio (e agora também de televisão) que, por vezes, raia o "politicamente incorreto" - o histórico "Grosses têtes", de Philippe Bouvard, de que já aqui falei - Debré foi entrevistado. Aí demonstrou como é possível conciliar a presença num lugar de responsabilidade institucional com o culto de um humor saudável, com uma liberdade de espírito de quem está de bem com a vida. Durante hora e meia, foi sujeito ao escrutínio irónico de grandes profissionais da "blague" e saiu-se desse exercício com garbo e "panache".

Além de outros livros, Jean-Louis Debré "ousa" ser escritor de romances policiais e possui uma graça refinada. Independentemente das ideias políticas que professam, confesso que me agrada ver as figuras políticas mostrarem-se capazes de sair para o mundo exterior e aproveitarem o melhor desse mesmo mundo.

Amaro da Costa

Adelino Amaro da Costa morreu há precisamente 30 anos, em 4 de dezembro de 1980, na queda do mesmo avião que vitimou o então primeiro ministro, Francisco Sá Carneiro.

Era ministro da Defesa do governo da Aliança Democrática e era considerado uma das mais brilhantes figuras da sua geração política. "Número dois" do Centro Democrático Social (CDS), era tido como o grande estratega da área conservadora portuguesa de então.

Foi agora publicada uma sua biografia, assinada pela sua irmã, Maria do Rosário Carneiro, e pela jornalista Célia Pedroso. Nela são acolhidos depoimentos de pessoas que privaram com Amaro da Costa, que o acompanharam desde os seus tempos de especialista em matéria de educação e de militante de grupos católicos até à sua ascensão ao poder político, passando pela difícil aventura que foi a implantação do CDS, no período posterior ao 25 de abril.

Não é uma biografia com a riqueza da que desenhou o percurso, pessoal e político, de Sá Carneiro, de que já falei aqui. Mas é um livro interessante - e até complementar do anterior - que ganha em ser lido no cruzamento com alguns outros testemunhos da época.

Na tese de quantos acham que o desastre de Camarate foi um atentado e não um acidente há uma quase certeza: o alvo seria Adelino Amaro da Costa e não Sá Carneiro, que apenas tomou a decisão de viajar no fatal avião muito pouco tempo antes. De acordo com essa leitura, o ministro da Defesa poderia estar a tocar em matérias sensíveis - desde a venda de armas a recursos financeiros confidenciais - que poderiam pôr em causa alguns importantes interesses. Será isso verdade? O livro fala do tema, mas não nos traz dados novos sobre o tema.

Pena é que a imagem de Portugal tenha ficado manchada pelo facto de nunca se ter conseguido provar, de forma incontroversa, as razões da morte de dois dos mais proeminentes políticos dessa época, bem como de seus familiares e outras pessoas. Entre os quais, aproveito para notá-lo, uma pessoa por quem tinha grande estima, António Patrício Gouveia.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Cimeira da OSCE

Na "Brasília do Casaquistão", Astana, teve lugar, em 1 e 2 de Dezembro, uma cimeira da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), que reuniu os chefes de Estado ou governo (ou seus representantes) dos 56 Estados da organização.

aqui se falou, com algum pormenor, sobre a OSCE, nomeadamente à luz da experiência na presidência portuguesa, em 2002. Quem quiser ir um pouco mais além neste assunto, pode procurar também aqui.

Na sua história de cerca de 35 anos, a OSCE teve poucas cimeiras, uma das quais em Lisboa, em 1996, num momento importante do complexo percurso desta organização de segurança. Vale a pena notar que Portugal apoiou, desde o início, a pretensão do Casaquistão de assumir esta presidência anual e, mais tarde, a própria organização desta cimeira. 

Muitos se interrogaram sobre se haveria novas circunstâncias que justificassem que a OSCE fizesse agora uma cimeira - originalmente, as cimeiras deveriam ter lugar a cada dois anos, mas cedo se verificou que isso era algo insensato; não seria por acaso que há 11 anos elas não tinham lugar. Não estando maturadas as condições para promover novos saltos qualitativos em matéria de objetivos no seio da OSCE, atentas as profundas divergências que subsistem entre os seus Estados, houve quem legitimamente se perguntasse sobre se a realização de uma cimeira que viesse a terminar sem grandes resultados não seria mesmo contraproducente para a própria organização.

A importância específica desta Cimeira de Astana residia, a meu ver, no facto dela consagrar o culminar, não apenas uma inédita tentativa de mobilização da OSCE por um grande Estado da Ásia Central, mas, em especial, pelo facto de se tratar da primeira presidência anual exercida por um país "a leste de Viena" - como se costuma dizer no jargão da OSCE. A circunstância de caber a um antiga república soviética essa responsabilidade representava uma certa mudança de paradigma dentro da organização, por muito que, em termos práticos, pudesse não trazer algo de substancialmente novo no tocante às linhas divisivas que marcam, no essencial, as suas duas últimas décadas de história.

Lendo a "Declaração Comemorativa de Astana", acordada no dia 2 de Dezembro, constata-se que a "agreed language" ficou bastante perto da dos princípios constitutivos da OSCE, se bem que com dois ou três interessantes sublinhados de contemporaneidade. Deliberadamente, essa linguagem fugiu a encarar algumas das linhas mais divisivas no seio da OSCE, notando-se, por omissão, óbvias cedências mútuas. Era natural que assim acontecesse, até porque é ainda muito cedo para se poderem refletir na OSCE, em termos de segurança cooperativa, os possíveis efeitos do novo partenariado estratégico que ficou desenhado na cimeira da NATO, em 24 de Novembro, em Lisboa. Refiro-me, naturalmente, à posição russa. Aliás, o título do artigo que o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, publicou no dia 1 de Dezembro, no "Le Figaro", não deixava qualquer dúvida sobre o "estado da arte", na visão de Moscovo: "A OSCE deve deixar de dar lições". Por esse título, e por ora, a Leste nada de novo...

A OSCE vai assim fazendo o seu caminho possível, num ambiente geopolítico complexo e, por ora, ainda muito pouco claro. Realisticamente, há que concluir que talvez não possa fazer mais do que atualmente faz. Pode ser um defeito de perspetiva de quem andou pela organização, mas eu continuo a ter a sensação de que, se determinadas condições vierem a alterar-se, a OSCE pode ainda ter um papel importante em matéria de prevenção de crises e de geração de medidas de confiança, quem sabe se num cenário de "regionalização" de tarefas delegadas pela ONU. E quem sabe se, nesse contexto, não interessará especialmente a Moscovo revitalizá-la. A ver vamos.

Clima

Leio hoje que 2010 terá sido um dos três anos mais quentes desde 1850.

No meu tempo transmontano, no máximo de três em três anos, caía neve em Vila Real. Proporcionava "feriados" e garantia ao excelente fotógrafo Marius alguns postais ilustrados. Mas era uma raridade. Agora, praticamente todos os anos, as estradas nortenhas de Portugal são cortadas pela queda de neve.

Não conheço a relevância das "séries" estatísticas, não sou obcecado com o aquecimento global ou o buraco do ozono, mas uma simples leitura empírica diz-me que alguma coisa mudou, desculpem lá!

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Futebol

Foi pena que Portugal e a Espanha não tivessem obtido ganho de causa na sua candidatura à realização conjunta do Mundial de futebol. A posição consistente dos dois países no "ranking" mundial justificaria essa escolha e, tudo o prova, teria sido um fator com impacto positivo para a economia - por muito que os arautos do pessimismo e da descrença tenham, por antecipação, anunciado as tragédias que por aí vinham com uma eventual vitória.

Há, no entanto, dois pontos que - agora pode dizer-se - nunca me agradaram muito neste projeto. 

O primeiro era o flagrante desequilíbrio aceite pela autoridades federativas portuguesas na distribuição dos jogos entre os estádios de ambos os países.

O segundo - e admito ser um preciosismo da minha parte - foram as referências feitas à "candidatura ibérica".

"Ibéria" é um conceito que, na minha perspetiva, não rima nunca com a singularização política dos dois Estados que habitam a península. Não é por acaso que esse é o nome da principal companhia aérea espanhola.

Voos

Será que a confusão é minha?

A correspondência diplomática americana revelada pelo WikiLeaks refere-se, a certo passo, ao conhecimento dado às autoridades portuguesas, pelos seus homólogos americanos, de voos tendo como origem Guantanamo, levando a bordo detidos repatriados, sobre cujo futuro tratamento, nos países de destino, Portugal cuidou em pedir esclarecimentos, antes de dar autorização para a sua passagem por aeroportos nacionais.

O que eu não entendo é o que isso tem a ver com anteriores voos tendo como destino Guantanamo, que terão passado anos antes por Portugal, relativamente aos quais as autoridades portuguesas sempre afirmaram, sem que alguém tivesse conseguido provar o contrário, não terem sido informadas de que transportavam detidos? É que, sobre esses voos para Guantanamo, que eu saiba, não há uma única linha nos documentos do WikiLeaks.

Com tanta gente - em jornais, blogues e não só - a dar por certo de que se trata de uma e da mesma coisa, e nem sequer admitindo estar a haver má fé ou ignorância da parte de ninguém, só posso concluir que, afinal, devo ser eu quem está errado.

Ernâni Lopes (1942-2010)

Há dias em que um país entra de luto. Este deve ser um deles. A morte de Ernâni Lopes é uma perda imensa para Portugal, para a nossa lucidez, para o nosso patriotismo. É-o também para a nossa diplomacia, onde ele exerceu, com brilho muito raro, funções da maior importância, que ajudaram o país em momentos negociais delicados. É-o, igualmente, para a política portuguesa, onde a sua coragem e a sua visão souberam afrontar momentos de rara dificuldade.

Nas últimas duas décadas, cruzei-me bastante com Ernâni Lopes, que teve a simpatia de discutir abertamente comigo algumas coisas sobre a Europa em que ambos acreditávamos. E, também, sobre esse triângulo entre Portugal, o Brasil e a África, que tanto o entusiasmava e que ele desenvolvia nas iniciativas da SAER. Sobre alguns temas, nem sempre estive de acordo com a sua leitura das coisas, mas reconhecia nela uma genuinidade que era forçoso respeitar, pela seriedade que sempre lhe estava subjacente.

Longe de uma intimidade pessoal que nunca tivemos, reconciliei-me ao tratamento por tu que ele generosamente me impôs, como que a sublinhar a proximidade de algumas das ideias que partilhávamos. Recordo-me, muito em especial, os tempos que passámos juntos numa "task force" criada, em 2003, para assessorar o primeiro-ministro de então, na fase terminal do defunto Tratado Constitucional. Notava-se que o exercício estava a ser algo penoso para ele, a quem esse mesmo governo não tinha autorizado a apresentar, no termo da Convenção Europeia em que ele representara Portugal, e que lançara as bases desse malogrado tratado (inspirador, no essencial, do Tratado de Lisboa), uma declaração de voto em que, de forma frontal, clarificava o seu afastamento (e o que achava dever ser o de Portugal) quanto ao equívoco consenso que resultou do trabalho dos "convencionais". Talvez valesse a pena, para a história da nossa política europeia, conhecer-se, agora, o texto desse projeto de declaração de voto.

A palavra livre de Ernâni Lopes vai fazer muita falta a Portugal.

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Caminhos para França

Há dias, num jantar em Paris, contei uma história de há quase 40 anos.

O Centro Nacional de Cultura, uma magnífica instituição hoje dirigida pelo meu amigo Guilherme Oliveira Martins, e que à época sofria uma profunda renovação de dirigentes e sócios (entre os quais eu me contava), organizou umas inéditas sessões de debate sobre temas políticos e sociais. Elas funcionavam como um teste para as margens de liberdade concedidas pelo marcelismo. Já não me recordo bem, mas creio que acabaram por ser suspensas, ao final de escassas realizações.

A suprema ironia é que esses encontros, com um orador convidado, tinham lugar na sede do Centro, a cerca de duas centenas de metros da polícia política da ditadura - que Marcelo batizara de DGS, na ridícula tentativa de fazer esquecer o nome da PIDE. Como a entrada era livre, algumas caras menos conhecidas, mas certamente oriundas desses "vizinhos", distribuiam-se pelos escassos lugares da sala.

Numa noite, o convidado foi o advogado Francisco Salgado Zenha, figura que se sabia pertencer ao movimento socialista clandestino e que, após o 25 de abril, foi ministro, candidato presidencial e, por algum tempo, a 2ª figura do Partido Socialista, depois de Mário Soares, com quem viria a incompatibilizar-se de forma irremediável. (Já agora, diga-se que Mário Soares estava presente no jantar em que contei este episódio).

Já não recordo o tema da palestra de Zenha, mas lembro-me que, a certa altura, ele citou uma frase que ouvira ao historiador de arte José Augusto França, que viria a ser diretor do Centro Cultural Gulbenkian, em Paris. Segundo este, desde há muito que os portugueses viviam divididos entre dois santos: São Bento, para quem era atraído pelo poder, e Santa Apolónia, para os que viviam na permanente miragem de Paris.

Foi nessa altura que se ouviu a voz forte, quase de tribuno, do advogado, jornalista e político Francisco Sousa Tavares, que estava na sala ao lado da sua mulher, a escritora Sophia de Mello Breyner, a interromper o orador: "O José Augusto disse isso? Essa agora!? Logo ele, que nunca usa o comboio, que vai sempre de avião para Paris!"

A sala desatou em gargalhadas. Nunca contei esta história ao professor José Augusto França. Espero que a aprecie.

O telefone europeu

Em tempos, ficou famosa a frase do chefe da diplomacia americana, Henry Kissinger, o qual, queixando-se da profusão dos interlocutores que sempre encontrava deste lado do Atlântico, dizia que gostaria de conhecer "o número de telefone da Europa". Na realidade, o que, com essa frase, ele pretendia realmente significar era a "inexistência" política da Europa e o facto de alguns dos seus integrantes se arrogarem o direito de tentar representá-la, muitas vezes de modo conflitual entre si. O que, vale a pena notar, nem sempre desagradou aos americanos.

Há alguns anos, para tentar ultrapassar esta debilidade, Javier Solana, o alto-comissário para a Política externa e de Segurança comum europeia, passou a funcionar como o interlocutor europeu para o exterior. Mais tarde, a criatividade institucional europeia - para utilizar um piedoso eufemismo, neste dia em que o Tratado de Lisboa faz um ano - acabou por gerar, não uma, mas quatro personalidades com responsabilidades partilhadas em matéria de relações externas europeias: o presidente permanente do Conselho Europeu (Van Rompuy), o presidente da Comissão Europeia (Durão Barroso), a alta-representante da União para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança (Catherine Ashton) e o presidente rotativo semestral (o chefe do governo europeu a quem cabe a Presidência).

Ontem, num momento em que o tema veio à colação, aqui em Paris, alguém notou que a jornalista do "Público", Teresa de Sousa, terá um dia escrito que, com este Tratado e com este modelo, a Europa deixava de ter um telefone e passava a ter um "switchboard"...

Esta graça foi então adubada por outras testemunhas da conversa, tendo resultado, da parte de uma delas, uma ideia curiosa, mas bem prática: aquelas personalidades do novo estrelato europeu deveriam passar a ter exatamente o mesmo número de telefone, disponível para os seus interlocutores estrangeiros, com uma gravação (que deve ser entendida pela ordem atrás referida). O atendimento poderia ser assim: "Aqui Europa! Se quer falar com alguém que representa os Estados que mandam na União, marque 1; se quer tentar obter algum dinheiro dos cofres da União, marque 2; se quer discutir declarações inóquas sobre política externa da União, marque 3; se quer passar algum tempo a conversar com alguém sobre a União, marque 4".

Acho esta versão muito pérfida e não tenho a certeza que o sentido de humor bruxelense lhe ache graça. Mas porque já passei o tempo em que isso me poderia preocupar, não resisti a deixá-la aqui, neste dia 1º de dezembro, em que nós, os portugueses, comemoramos a restauração da nossa independência, em 1640, dia que deveríamos aproveitar para refletir sobre o futuro possível da mesma, 370 anos depois.

terça-feira, novembro 30, 2010

Soares e a Europa

Ontem, o Centro Cultural Gulbenkian, em Paris, encheu para ouvir Mário Soares falar da Europa, das suas desilusões com o estado do projeto integrador e, muito em especial, da história de Portugal nessa mesma aventura, da qual foi um dos principais atores.

Numa introdução, o presidente da Gulbenkian, Rui Vilar, um europeísta, antecipou a leitura crítica do conferencista. Depois, António Coimbra Martins - académico, antigo embaixador em Paris e ministro da Cultura num governo de Soares - traçou um percurso muito interessante do seu amigo. Lembrou, a certo passo, que, quando Mário Soares foi deportado pela ditadura de Salazar para S. Tomé, em 1968, Jean-Jacques Servan-Schreiber escreveu no "L'Express" que "deportar Soares para S. Tomé é como se a França deportasse Miterrrand para as ilhas Kerguelem".

Na conferência de cerca de uma hora, Mário Soares foi igual a si próprio, na sua fé europeísta, na sua denúncia dos desregulações que desigualizam o mundo, nos seus elogios a Obama, por contraste com a cegueira de tantos outros. Traçou um retrato do Portugal do século XX, com vivacidade, testemunhos pessoais e muita graça.

No período das perguntas, coloquei-lhe uma questão "simples": "amanhã, dia 1 de Dezembro, fará precisamente um ano que entrou em vigor o Tratado de Lisboa. Devemos comemorar?" Màrio Soares respondeu-me que esse Tratado, que tem apenas um ano, é já hoje, em função da realidade que lhe sucedeu, um tratado "velho".

Leslie Nielsen (1926-2010)

Muitas vezes o humor era um tanto primário, os "gags" eram algo forçados, o conjunto de situações era frequentemente previsível. Houve um pouco de tudo, de bom e de mau, na imensidão de comédias "assim-assim" que protagonizou. Porém, num mundo cinzento como o que temos, será que não devemos uma singela homenagem a quem, durante tantos anos, nos fez dar umas saudáveis gargalhadas e nos alegrou por muitas horas?

Neste tempo propício a dívidas, quero declarar que tenho uma dívida de gratidão para com Leslie Nielsen. Deixo-a aqui expressa, na hora em que morreu. De riso, espero eu.

segunda-feira, novembro 29, 2010

Coscuvilhices

A prática da diplomacia tem como um dos seus pilares a garantia da confidencialidade naquilo que os profissionais dizem aos seus governos, e vice-versa. Na guerra como na paz, os serviços de “cifra” procuram assegurar a possibilidade de transmitir, com total franqueza e discrição, a apreciação de perfis de personalidades, a avaliação crítica de factos ou o desenho de cenários, tidos por relevantes para os interesses dos respetivos Estados. Não é por acaso que este tipo de comunicações só costuma ficar oficialmente disponível para escrutínio público algumas décadas depois.

A questão suscitada pela divulgação de centenas de milhares de documentos pela “WikiLeaks” configura uma quebra grave nesta relação de confiança. Ela coloca políticos e profissionais em elevado risco, nalguns casos com potenciais consequências funestas, podendo também induzir um ambiente de gratuita tensão entre Estados.

Com exceções muito raras, a diplomacia portuguesa não sofreu, até hoje, problemas desta natureza. Isso não significa que o que agora ocorreu não possa, subliminarmente, vir a retrair-nos no modo como, de futuro, venhamos a atuar.

O “voyeurisme” pateta de alguns setores sente-se deliciado com o acesso àquilo que deveria permanecer num registo discreto. É um belo teste de caráter, idêntico ao que qualifica quem revela conversas ouvidas nos locais públicos ou promove a divulgação de escutas telefónicas de natureza privada. Que se há-de fazer? São os novos “bufos”, as modernas comadres da eterna coscuvilhice.

(Texto de um artigo que hoje publico no "Diário Económico")

Blake & Mortimer

Este é um post "geracional". Saiu hoje o novo e esperado álbum da série "Blake et Mortimer", inspirado nas obras de Edgar P. Jacobs (1904-1987), agora desenhado por Jean Van Hamme e Antoine Aubin. Trata-se do 2º volume do "La malediction des trente deniers".

Para quem tem a coleção completa da obra de Jacobs e dos desenhadores que foram seus seguidores - como é o caso de quem escreve este post - é um exercício interessante apreciar a evolução do estilo e das personagens, sejam elas centrais ou conjunturais. Pergunto-me, contudo, o que poderá representar para as novas gerações um estilo de desenho e de escrita como o da "escola belga", que está muito ligado à segunda metade do século XX, se bem que com temáticas próximas dos dias de hoje.

Três notas, entre muitas outras, se podem fazer. Uma maior presença de figuras femininas é um facto evidente nos albuns mais contemporâneos. Por outro lado, a manutenção do cachimbo nos desenhos de Mortimer e de outras figuras demonstra uma saudável resistência ao "politicamente correto". Finalmente, alguém consegue explicar por que razão o "mau-da-fita", Olrik, se mantém, desde há anos, com a patente de "Coronel"? Não há promoções por lá?

domingo, novembro 28, 2010

Orwell & Kafka, SA

No mês de agosto, os confrades blogueiros do Delito de Opinião convidaram-me para publicar naquela prestigiosa coluna informática um texto. Nele contei uma história verídica, passada com um amigo estrangeiro, que atravessou algumas inesperadas agruras. Esse amigo veio, este fim-de-semana, visitar-me a Paris. Achei que era o momento para reproduzir aqui essa historieta. Ela aqui fica:

"Esta é uma história verdadeira.

Um amigo meu, estrangeiro, funcionário superior de uma organização internacional, notou que o seu passaporte era regularmente retido, nos controlos de fronteira, um pouco mais de tempo do que seria razoável. De início, achou estranho mas não se importou excessivamente. Porém, quando essa espera afetava as filas onde se colocava, levando a movimentos de impaciência dos restantes utentes, começou a ficar irritado e, simultaneamente, preocupado. Das vezes em que inquiriu dos controladores dos passaportes sobre a razão da demora, recebeu respostas vagas e nada esclarecedoras.

Um dia, à chegada aos EUA com a mulher, a situação tornou-se caricata: foi mandado esperar isolado numa sala, foi sujeito a um interrogatório estranho e só foi libertado ao final de mais de uma hora de conversa.

Viajar para o estrangeiro estava, assim, a tornar-se um pequeno pesadelo. O meu amigo lembrou-se então que tinha um conhecimento nos serviços de “intelligence” do seu país. Procurou-o e explicou o seu embaraço. O homem ficou de estudar o assunto. Chamou-o, semanas depois.

E foi então que esse meu amigo ficou a saber o que se passava, ou melhor, recebeu disso algumas ideias. Aparentemente, ele havia estado, por mais de uma vez, no lugar errado no momento errado ou, se tal não acontecera, havia indícios de tal poder ter acontecido. Não podendo ser mais específico, o contacto desse meu amigo deu alguns exemplos: uma foto de multidão, numa manifestação violenta por ocasião de uma reunião do G8, trazia uma cara que podia ser a sua; ele havia pernoitado num determinado hotel, na véspera de uma bomba ter explodido nessa cidade; por duas vezes, viajara num avião que também levava pessoas sobre as quais recaíam fortes suspeitas de ligações radicais, eventualmente de apoio ao terrorismo; etc, etc. Tratava-se de cerca de uma dezena de “infelizes coincidências”.

O meu amigo estava siderado! Todas essas circunstâncias eram facilmente “desconstruíveis”, desde a primeira, em que provaria, com facilidade, que estava noutro lugar, até às restantes, em que as suas deslocações haviam sido feitas por decisões e motivos oficiais a que era alheio. Ao mesmo tempo, sentiu-se aliviado. Tudo era esclarecível. Com quem poderia falar para explicar cada um dos factos, com vista a anular as suspeitas?

O seu conhecido das “secretas” desiludiu-o: não podia falar com ninguém, não havia interlocutor algum com quem ele pudesse discutir o circunstancialismo que lhe afetava a imagem, nem sequer estava autorizado a utilizar publicamente a informação agora recebida. Os dados a seu respeito provinham de “serviços de informação” variados, estavam já cruzados numa rede comum, acessível a muita gente, embora grande parte dos utilizadores apenas tivesse, como nota relevante, a noção de que havia “algo de errado” em torno da pessoa em causa. Não era suspeito de nada, não era acusado de nada, pelo que não havia nada a fazer. Ou melhor: apenas havia que esperar que novos dados “comprometedores” não aparecessem, que pudessem “agravar” a sua situação.

Nos últimos meses, não tenho falado com este meu amigo. Só espero que não tenha ido passar férias à Rússia, por ocasião dos incêndios…" 

Porto

As Éditions Autrement há muito que nos habituaram a olhares diferentes sobre realidades comuns, que julgamos conhecer bem, mas sobre as quais, com surpresa, acabamos por vir a aprender coisas novas e perspetivas inesperadas.

Há semanas, tinham-me falado deste "Porto, poètes et bâtisseurs", um trabalho muito cuidado de Édouard Pons, com belas fotografias de Antonin Pons Braley. O autor é um antigo diretor da Agence France-Presse e já havia sido responsável pela obra "Lisbonne, terre de rencontres".

Este livro sobre o Porto, integrado numa coleção sobre cidades do mundo, é uma viagem feita através da voz de várias e, algumas inesperadas, figuras que nos ajudam - mesmo a nós, portugueses - a entender melhor o que há de particular numa cidade que, talvez melhor que qualquer outra em Portugal, destila um orgulho na sua intimidade, ao mesmo tempo aristocrática e regional, com tudo o que isso tem, simultaneamente, de notável e limitativo.

O Porto contemporâneo é uma realidade complexa, que - desculpem lá! - combina frequentemente algumas frustrações de afirmação nacional com dimensões de uma riqueza única no espaço português. Às vezes, o Porto aparece provinciano, no simplismo de um discurso através do qual auto-limita as suas fronteiras. Outras vezes, se se for mais ao seu fundo, a "capital do norte" dá-nos lições de modernidade e de inesperado cosmopolitismo. Talvez por isso, há imensa gente em Portugal que acha o Porto uma cidade e uma sociedade "estranha". De certo modo, não deixam de ter razão, mas eu entendo que isso é um involuntário elogio.

É este retrato múltiplo que este livro surpreendente nos traz. Por ele passam testemunhos de renomadas figuras da cultura, misturadas com pessoas simples, mas representativas, do dia-a-dia portuese. Não está lá tudo, mas está lá muito e, melhor!, está o suficiente para o que é importante: seduzir um leitor francês a interessar-se por essa realidade metropolitana ímpar que, em Portugal, é o Porto. Pena é que muitos portugueses teimem em não conhecer o Porto.

sexta-feira, novembro 26, 2010

25 de novembro

Para alguns, será talvez um pouco estranho estar a escrever sobre uma data, dois dias depois da passagem da mesma. Mas, a pedido "de várias famílias" (como se dizia, noutro tempo, noutra imprensa), aqui fica a minha memória breve do 25 de novembro de 1975, já 35 anos depois dessa data.

O chamado "25 de novembro" configura uma espécie de resultante  final de toda a grande confrontação político-militar que se viveu ao longo do ano de 1975, em especial entre Março e Novembro, mas que tinha tido já afloramentos conflituais na questão da lei da "unicidade sindical" e nas discussões em torno do plano económico coordenado por Melo Antunes.

No "11 de março" desse ano, um setor ultra-conservador português, liderado pelo general António de Spínola, havia caído na "ratoeira" de tentar um golpe de Estado, sem preparação, o qual, de certo modo, havia sido antecipado pela chamada "esquerda militar", que então dominava as Forças Armadas. Recordo-me bem da frase proferida pelo almirante Rosa Coutinho, durante a assembleia do Movimento das Forças Armadas, nessa célebre noite: "Sabíamos que estavam a preparar qualquer coisa, assustaram-se e nós ficámos à espera que saltassem. E eles saltaram". Na sequência desse frustrado movimento, a Revolução portuguesa acelerou-se, foram decretadas nacionalizações e foi criado o Conselho da Revolução.

Já no "25 de novembro", seria o desespero de certos setores militares de extrema-esquerda, aliados à ambição irrealista de algumas estruturas civis, que levou a que viessem a cometer um erro simétrico: tentar um golpe militar, sem para tal terem criado um mínimo de condições para o seu sucesso. Neste caso, acabou mesmo por ser a esquerda militar moderada, pela voz de Melo Antunes, que impediu que alguns setores conservadores mais radicais, e outros conjunturalmente radicalizados, viessem a "explorar o sucesso" e, em especial, a promover a ilegalização do Partido Comunista - objetivo que chegou a ser encarado - ao afirmar que "a participação do PCP na construção do socialismo é indispensável".

Entre o "11 de março" e o "25 de novembro", muita água correu sob as pontes políticas da vida portuguesa. Após a forte viragem à esquerda provocada pela derrota do golpe conservador de Março, tiveram lugar eleições para a Assembleia Constituinte, o resultado das quais mostrou, à evidência, que a opinião votante do país estava, esmagadoramente, num registo bem mais moderado do que aquele que prevalecia na respetiva gestão política. A legitimidade revolucionária era, pela primeira vez, posta em causa pela legitimidade eleitoral e esse confronto não deixaria de ter consequências. Fruto da agudização das tensões, o Partido Socialista e o então Partido Popular Democrático (hoje PSD) viriam a abandonar, sucessivamente, o IV governo provisório.

O primeiro-ministro, general Vasco Gonçalves, cujo isolamento dentro das Forças Armadas se tornara crescente - e que era considerado como muito dependente do Partido Comunista Português (PCP) - decidiu então formar um novo governo (o V governo provisório) com uma representação política muito limitada, formado pelo PCP e por personalidades, civis e militares, os quais, na prática, eram seus "compagnons de route". Essa fórmula fracassou e, por essa altura, um conjunto moderado de militares - "o grupo dos nove" - afirmou-se como uma crescente alternativa à chamada "esquerda militar" (ligada ao PCP).

Vasco Gonçalves foi afastado e um conjunto diverso de circunstâncias (algumas com caráter bem caricato) acabou por colocar à frente de um novo governo pluripartidário o almirante Pinheiro de Azevedo. Os bloqueios político-sociais prolongaram-se por alguns meses, até que a já referida insensata aventura de alguns militares de extrema-esquerda, com a cumplicidade mais ou menos explícita de setores político-partidários, acabou por provocar uma confrontação, para a qual os setores moderados e conservadores das Forças Armada se haviam, entretanto, preparado. O contra-golpe vitorioso deu-lhes o poder militar e a solução pluripartidária de governo pôde prosseguir até às eleições legislativas de abril do ano seguinte.

O "25 de novembro" terá sido a derrota do "25 de abril", como alguns teimam em dizer? O "25 de novembro" abriu caminho a um desequilíbrio nas Forças Armadas que acabou por vitimar, política e militarmente, os setores moderados que foram responsáveis pelo seu êxito? Ou o "25 de Novembro" representou, no fundo, o "25 de Abril" possível na Europa de então?

Neste retrato, alguns podem dizer que falta a questão colonial e os jogos táticos que, no parecer de muitos, estiveram por detrás de certos "timings" desse fantástico "verão quente". Essa seria uma longa história, na qual seria talvez interessante fazer intervir também os interesses de Moscovo, de Washington e de certas capitais europeias. Mas, mais importante do que revisitar todas as teorias da conspiração - que existiu, vinda de vários setores -, talvez devamos convir em que a história do 25 de novembro acabou bastante bem. Essa é hoje, pelo menos, a minha opinião.

Geografias

Ontem, num jornal alemão, o primeiro-ministro russo, Vladimir Putin (que aqui em França se escreve sempre Putine), diz preconizar uma "comunidade harmonizada de economias, de Lisboa a Vladivostoque". A ideia é teoricamente apelativa e, se vista na perspetiva de uma zona de comércio livre, pode haver algumas condições para ser explorada. Isso implicaria, no entanto, a prévia adesão da Rússia à Organização Mundial de Comércio (OMC) e um conjunto de outros entendimentos que tivessem em conta as relações especiais que Moscovo tem com alguns Estados do seu "near abroad". Verdade seja que, em matéria de entendimentos entre a Rússia e o seu ocidente, já estivemos muito mais longe.

A expressão "de Lisboa a Vladivostoque" não deixa de lembrar, numa perspetiva mais moderada, a consagrada fórmula geopolítica utilizada pelo general de Gaulle, ao falar numa "Europa do Atlântico aos Urais". E, por graça, vem-me logo à memória a snobeira de um amigo, residente na linha do Estoril, que entendia que o conceito gaullista podia ser aperfeiçoado e se deveria falar na "Europa de Cascais aos Urais"...

A cada um a sua geografia.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Memória

Bruno Le Maire é uma figura em ascensão na vida política francesa. Com 41 anos, é ministro da Agricultura, depois de ter sido secretário de Estado dos Assuntos Europeus e trabalhado de muito perto com Dominique de Villepin.

Dando curso a uma tradição comum a muitos homens de Estado franceses, Le Maire escreve. E escreve muito bem. Publicou já três livros, dois deles ligados a memórias do trabalho político ("Le Ministre" e "Des Hommes d'Etat") e, mais recentemente, um outro, de diferente natureza, intitulado "Sans mémoire, le présent se vide". Li os dois primeiros (citei aqui um) e estou a ler o terceiro.

O aspeto curioso deste livro é que, ao longo de todo o texto, surgem frequentes referências à obra de José Cardoso Pires "De Profundis, Valsa Lenta". O tema da memória, como sustentáculo indispensável para a vida, é tratado por Le Maire de uma forma muito interessante, indo buscar à experiência trágica revelada na admirável obra de Cardoso Pires a inspiração para algumas ideias que desenvolve.

Em Portugal, com muito honrosas e raras exceções, os nossos políticos escrevem muito pouco. E é pena.

quarta-feira, novembro 24, 2010

Hoje

Hoje, vão-me permitir que este seja o meu único post.

Rede diplomática

Paulo Gorjão é diretor do Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança (IPRIS) e, desde há anos, mantém grande atenção sobre a política externa portuguesa, para além de ter estudos sobre outros aspetos das relações internacionais.

Hoje, no jornal "i", Paulo Gorjão faz uma reflexão sobre a rede diplomática do nosso país e as eventuais mudanças a que pode ser sujeita. É um texto que, a meu ver, merece ser ponderado, sem prejuízo de, num ou noutro ponto, eu discordar das soluções que adianta. Mas a seriedade deste exercício, levado a cabo por quem não é da profissão, merece ser sublinhada.

Leiam aqui.

terça-feira, novembro 23, 2010

Cartões

Não lhes digo o nome do país de origem daquele divertido diplomata. Ele olhava para a profissão com uma visão lúdica, atitude pela qual pagara já alguma coisa, em termos de promoções e de postos - porque a justiça divina às vezes funciona. Era sempre um momento garantido de boa disposição encontrá-lo em cocktails ou jantares, ouvir as suas anedotas ou historietas de férias fantásticas, que se gabava de conseguir prolongar bem para além dos dias a que tinha direito. Tudo menos falar de "serviço", de política local (salvo os mexericos, claro!) ou internacional, de coisas mais sérias: nunca estava a par de nada, achava-nos, uns "chatos workaholics", uma versão diplomática dos "stakhanovistas". Quando provocado, repetia a frase clássica de Talleyrand - "surtout pas trop de zèle" -, expressão que os diplomatas calões (e ignorantes do significado real da mesma) às vezes utilizam, para bem merecerem o seu lema, corruptela do do infante dom Henrique: "talent de rien faire".

Como em qualquer outra profissão, também há, em todas as carreiras diplomáticas do mundo, uma minoria que ainda é assim: pouco dispostos ao trabalho, ligando o mínimo àquilo que lhes compete fazer, sem iniciativas, fugindo aos empresários, puxando "de arma" a quem lhes fala de cultura, olhando com sobranceria os seus nacionais residentes no país onde estão acreditados. São os que chegam tarde, que partem cedo, que fazem longas horas de almoço, que desaparecem os fins-de-semana, que desligam os telefones fora do serviço mas passam o tempo agarrados a eles lá dentro, que inventam pretextos para nada fazer depois do "from-nine-to-five" (ou melhor, "from ten-thirty..."),  que ficam fulos quando têm de ir a um aeroporto receber alguém a horas tardias ou matutinas. Alguns não fazem qualquer "representação" ou confundem-na com a sua própria vida social, permanecem vidrados no culto exacerbado de um estilo e, invariavelmente, identificam a carreira com os seus sinais exteriores. Escrevem pouco e ainda lêem menos. Quando se lhes pergunta alguma coisa, "vão ver", nunca sabem nada à primeira.

Muitas vezes - diga-se! - acabam por ser gente ótima para o convívio e para a amizade. Era o caso desse nosso amigo, cidadão de um país simpático, embora, pelos vistos, uma pátria pouco exigente com os seus servidores públicos.

Um dia, à saída de uma receção, vi-o numa conversa, às gargalhadas, com outro colega, também estrangeiro. Perguntei a razão da graça: era uma história de cartões de visita. O nosso homem explicou-me então, pedindo-me segredo, a brincadeira a que tradicionalmente se dedicava nessas ocasiões.

No bolso direito do casaco, trazia os seus próprios cartões de visita. Quando trocava cartões com alguém, ia colocando os que recebia no bolso esquerdo. Durante uma receção, se alguém lhe entregava o um cartão, esse meu colega optava: se era uma pessoa que tinha eventual interesse em rever, tirava do bolso direito um seu cartão pessoal e entregava-lho. Porém, se era alguém desinteressante, que não pretendia voltar a ver, ia ao bolso esquerdo e dava-lhe... um dos cartões que antes tinha recebido de outra pessoa! Se acaso o seu interlocutor notava o erro, pedia desculpa e dizia ter sido confusão.

Continua a haver este estilo de diplomatas. São já muito poucos, até porque o grau de exigência profissional não permite facilmente o "bluff". Mas, por vezes, ainda os encontro por aí... 

Literatura de guerra

Toda a guerra suscita compreensíveis emoções. As guerras colonais que Portugal disputou em Angola (a partir de 1961), em Moçambique e na Guiné (estas últimas depois de 1964) representaram um período muito importante da história portuguesa, estando na génese do próprio movimento de 25 de abril de 1974. As guerras mudaram o país e, de uma forma muito nítida, mudaram também os portugueses que nelas intervieram. Mortos, feridos, deficientes e traumas de guerra marcaram uma geração de sacrifício, a qual inclui quantos tiveram de procurar no estrangeiro acolhimento para fugir a participar num conflito que nada lhes dizia ou à penúria de um país que se arruinava nessa aventura insensata.

A Revolução de abril como que procurou exorcizar essa tragédia, pela indução no país de um movimento coletivo de esperança num futuro melhor. Mas os sentimentos dos "retornados" e dos soldados que sofreram esse período ainda estão presentes em muitos setores da sociedade portuguesa, por muito que mais de três décadas nos distanciem do momento em que ele terminou. A guerra só acaba, dentro das pessoas, muito depois do cessar-fogo.

Não há muita literatura, em língua portuguesa, sobre as guerras coloniais portuguesas da segunda metade do século XX (outras houve, no passado). Ontem, a Fundação Gulbenkian, em articulação com universidades francesas onde a cultura portuguesa se investiga e estuda, trouxe a Paris João de Melo e Carlos Vale Ferraz, dois escritores portugueses que colocaram em vários romances a sua vivência pessoal como militares nesse período - "atores e autores da História". Julgo que foi importante ouvi-los, embora seja mais importante lê-los, se possível em contraponto com os testemunhos de escritores oriundos das guerrilhas independentistas das antigas colónias, aqueles que nos dão a visão "do outro lado". Como é "dos livros", só nos percebemos completamente quando nos reconhecemos no olhar dos outros sobre nós.

segunda-feira, novembro 22, 2010

NATO

Não é fácil proceder à transformação de uma organização de defesa e segurança coletiva, com membros mais recentes que para ela carreiam outra cultura estratégica, no quadro de um cenário mundial em rápida mutação de ameaças. Particularmente num tempo em que se procura restaurar a confiança num parceiro exterior originário de uma entidade internacional que, não há muito, era a preocupação maior da própria organização.

Em Lisboa, no passado fim de semana, a NATO deu uma prova de uma maturidade que, há alguns anos, muitos duvidassem que ainda pudesse vir a ter, balcanizada que estava por tensões que a paralisavam e aparentando uma mera reatividade. Com esta cimeira, com a aprovação de um novo e mais concreto "conceito estratégico", a NATO provou que conseguiu ultrapassar o período de alguma indecisão de objetivos que marcou o percurso percorrido desde a "guerra fria".

Tudo isto foi possível - diga-se -, em grande parte, graças aos Estados Unidos e à liderança do presidente Obama, que teve a coragem de pôr termo a fórmulas datadas da administração Bush e conseguiram desenhar com Moscovo um modelo onde a generalidade dos Estados da Aliança se podem sentir confortáveis. Da Rússia espera-se, agora, uma atitude aberta de colaboração, geradora de confiança.

As núvens não desapareceram por completo do horizonte da NATO, até porque a incógnita afegã se prolonga e os meios para suportar a estrutura atual da organização, ainda que redefinida, são escassos para as finalidades e com aspetos importantes ainda por discutir. Mas o que parece ter ficado claro é que, não obstante as reticências de alguns e as suspeições residuais de outros, começa a definir-se um novo terreno de segurança cooperativa que federa as nossas comuns debilidades perante o quadro de ameaças potenciais. É irónico dizê-lo, mas, às vezes, somos levados a concluir que o temor é uma ajuda à congregação de vontades.

Portugal esteve, uma vez mais, à altura do desafio que a si mesmo se impôs, de realizar uma das mais importantes cimeiras da história da organização e, nesse contexto, conseguir preservar o essencial dos interesses que nela tem afirmado, alguns desde a sua fundação. A diplomacia portuguesa provou, uma vez mais, a sua capacidade de levar a bom porto um projeto bem complexo e exigente. A quem não consegue ver isto não vale a pena explicar nada.

domingo, novembro 21, 2010

Aeroporto

- O embaixador vem? Ó diabo! Então temos carro, telhas ou contínuo!

Não percebi logo a observação irritada do governante português, que eu acompanhava, em resposta à indicação, dada pelo seu chefe de gabinete, de que o nosso embaixador naquela capital europeia, onde mudaríamos de avião, iria aparecer na "sala vip", durante a escala de cerca de duas horas que aí faríamos, vindos sei lá de onde, a caminho de Lisboa. O nosso avião estava prestes a aterrar, pelo que o governante das Necessidades, ao ver a perplexidade que a sua observação provocara em mim, explicou:

- É que os seus colegas, sempre que me apanham de passagem por algum país, fazem de mim uma espécie de "muro das lamentações", trazendo-me os problemas que não conseguem resolver diretamente com os serviços, lá em Lisboa. Como se eu pudesse andar a despachar pelo caminho! É o carro que é velho, é o contínuo que falta, é o orçamento para as obras no telhado! Começo a estar farto!

Nessa como em outras ocasiões, eu notara já que os governantes perdem a paciência, com frequência, quando são "apanhados" para questões de "intendência", no decurso de uma viagem. Muitas vezes cansados, sem nenhumas respostas à mão, reagem mal a terem de tomar conta do pedido ou chamar os membros dos gabinetes que os acompanham para apontar a questão. Muitos anos mais tarde, eu fui vítima desse assédio. Talvez por isso, aprendi: hoje, como embaixador, gabo-me de nunca ter incorrido nesse pecadilho, precisamente porque sei bem "do que a casa gasta"...

Assim, nessa madrugada, à saída do avião, a cara com que o nosso governante olhou para o pobre do meu colega, que se havia tirado dos seus cuidados e dos seus lençóis àquela indigesta hora matutina, estava longe de ser a mais simpática. Seguimos para a "sala vip". Um boa meia-hora depois, vejo o embaixador debruçado sobre o ouvido do governante, que continuava com um ar de poucos amigos.

Regressados ao avião, não me contive:

- Desculpe a minha curiosidade, se calhar não devia estar a perguntar isto. Mas, afinal, o que queria este embaixador? Vi-os numa longa conversa...

O governante sorriu:

- Queria apenas outro posto. E nem pediu "muito". Sempre é melhor que querer reforço do orçamento, do pessoal ou um carro novo. É que quem manda em tudo isso são as Finanças.

Sábias palavras!

sábado, novembro 20, 2010

Trópicos

Escândalo! Leitor/a atento/a do "Diário da República", um/a  anónima profissional de um jornal "de referência" indignava-se ontem com o facto de Portugal ter acabado de designar um "experiente embaixador de topo" para "a representação diplomática portuguesa em Samoa", um pequeno país do Pacífico. 

O/a jornalista, qual escrutinador zeloso do Tribunal de Contas, mostra a sua indignação e diz que o facto "está a ser visto" (por quem?) como "um degredo ou um ato de despesismo puro e duro", "em tempos de contenção e numa altura em que se fala de fecho de embaixadas e consulados".

Será por falta de tempo ou será por outras razões que o/a jornalista não cuidou em informar-se, junto do MNE ou da Presidência da República, sobre a razão dessa "bizarra" nomeação? Se o tivesse feito, saberia que Portugal não tem, naturalmente, nenhuma "representação diplomática" na Samoa e que o credenciado embaixador é o nosso representante diplomático na Austrália, onde reside. A ele cabe, por inerência de funções, ser acreditado junto de todos os restantes Estados independentes existentes no Pacífico, nos quais, como é óbvio, não existe qualquer representação portuguesa, mas com que o nosso país mantém relações diplomáticas. Relações essas - diga-se - que nos garantiram um significativo voto dos Estados do Pacífico na nossa recente eleição para o Conselho de Segurança na ONU.

Eu e os leitores deste blogue vamos esperar sentados para ver o/a jornalista, com destaque idêntico ao dado a esta escandalosa e "despesista" nomeação, fazer o seu mea culpa e pedir desculpa pelo erro em que induziu os seus leitores.

Lusofonia

Acabo de ter conhecimento do blogue Estudos Lusófonos, criado por professores da Sorbonne.

Bela iniciativa, à qual desejo muita sorte.

Sono

Um das boas cabeças diplomáticas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que bem nos tem representado em Timor-Leste, tombou ligeiramente de sono durante uma cerimónia pública. A foto do "acontecimento", bem como a graça do presidente Ramos Horta ter aproveitado para registar também o instante na sua máquina, andam a correr o nosso mundo, da blogosfera ao jornalismo.

Esta é talvez a ocasião de dizer que vale mais o embaixador Barreira de Sousa a dormir do que muitas pomposas e ridículas figuras, que agora o podem criticar, bem acordadas.

Há anos, uma grande personalidade política, cujo nome agora não me ocorre, e que estava ao meu lado num painel, pediu-me que a despertasse, se acaso viesse a cochilar durante a intervenção do orador seguinte. Foi "tiro e queda": segundos depois, tive mesmo de desligar discretamente o microfone que tinha em frente, porque já ressonava baixinho...

25 de abril no Monaco


Divertiu-me imenso, ontem, à chegada formal dos embaixadores ao palácio do Príncipe monegasco, nas cerimónias nacionais anuais, sermos recebidos por uma banda musical que tocava o "A life on the ocean wave" - a marcha militar britânica* que, entre nós, ficou ligada ao 25 de abril.

Os meus colegas estrangeiros não percebiam a minha boa disposição!


*Um atento leitor esclareceu-me que a marcha não é americana, mas sim britânica, o que explica as horas que eu perdi em Nova Iorque a tentar descobri-la nos hinos americanos... E o nome exato é como agora figura. Estamos sempre a aprender e o seu é devido a seu dono.

sexta-feira, novembro 19, 2010

Caixa

Faz hoje 39 anos, dia por dia, que entrei para a função pública. Para a Caixa Geral de Depósitos, que tinha então a sua sede no majestoso edifício do Calhariz, onde eu passei a trabalhar no "serviço de títulos".

As regras eram à antiga. Entrava-se às 9.30. Às 9.35, o senhor Marques, chefe da secção, recolhia o livro de ponto. Para o assinar depois, era necessário justificar o atraso e penitenciar-se pelo mesmo. A hora de saída, para almoço e à tarde, era, também, sagrada. Cinco minutos antes do encerramento do expediente, o Serra, na secretária ao meu lado, sacava invariavelmente de um pano de feltro para limpar os sapatos que, logo depois, apontavam para a porta, para onde disparava quando o ponteiro do relógio tremia nas 17.30.  Ah! e trabalhava-se nas manhãs de sábado!

Ao almoço, espalhavamo-nos pelas tascas da zona, em grupos variáveis. Se o sol aparecia, escostavamo-nos, antes do regresso ao trabalho, pelos passeios em frente, apreciando o "pequename" que passava. Eu aprendia a vida com quem a vivia com dificuldades bem maiores do que as do episódico colega que eu era, futuro licenciado, olhado como figura passageira pelos colegas, entre os quais fiz - diga-se - sólidos amigos.

O meu curso universitário prosseguia entretanto, como "estudante voluntário". No primeiro ano, para fazer as "frequências", tive de pedir autorização excecional para as escassas ausências. Mais tarde, foi necessário utilizar os dias de férias, para poder  estar presente a esses exames. Dispensa para aulas ou exames era, então, uma miragem.

No concurso público de entrada, algum domínio da escrita terá compensado falhas na área da contabilidade. Antes de ser admitido, li e assinei, sob o olhar atento de um antigo ministro de Salazar, uma declaração onde atestava o meu "ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas". No meu bolso, recordo-me bem, levava um livro de Engels, das Éditions Sociales. 

O trabalho era sereno, burocrático, sem surpresas. Nem muito exigente, nem deixando tempo para "calaceirices". Essas ficavam para colegas antigos, "primeiros oficiais", com mais "ronha", alguns eternamente parados nas suas secretárias ou saltitando em conversas, sempre sob o olhar crítico do senhor Marques, que prescutava as várias áreas do imenso "open space" por onde nos distribuíamos. 

Os contínuos, o Rui e o Abrantes, forneciam-nos, regularmente, uma caneta Bic. Quando a respetiva carga acabava, trocavamo-la por outra igual, devolvendo a velha, claro está! Nas horas vagas, tentavam impingir-nos relógios Cauny, com preços "de favor".

Às segundas-feiras, dominava o futebol. Não se falava muito de política, salvo com  o Aldeia e com o Murta, amigos com quem essa maior intimidade entretanto se criara. Dois ou três sabiam que a minha eleição não tinha sido "homologada", por duas vezes, como dirigente associativo universitário, e que isso me tinha criado "problemas", sobre os quais nunca elaborei muito Com eles, mantinha alguma cumplicidade, pela comunhão de que "isto" tinha de mudar, mais cedo ou mais tarde. As vigorosas manifestações do sindicato dos bancários, do qual não podíamos ser associados por sermos funcionários públicos, eram comentadas com todo o cuidado, porque as paredes tinham ouvidos. As paredes e alguns "fachos" que nos rondavam, que pressentíamos poderem ser perigosos.

Pela véspera de Natal, o chefe de repartição, o senhor Trancoso, que durante todo o ano assomava uma meia dúzia de vezes à nossa sala, quase sem nos olhar, colocava-se junto à saída para um excecional  aperto de mão anual de favor. E, de 26 até 31 de Dezembro, lá estávamos nós, em horas extraordinárias (não pagas aos novatos), para tentar garantir os "acertos" para as contas do ano ficarem exatas.

Era assim a vida de um bancário público, nos tempos do Estado Novo. Nostalgia? Nenhuma, podem crer. Mas, hoje, lembrei-me.

Manias

Tive um amigo, infelizmente já desaparecido, que colecionava daquelas papeletas de "Não incomodar", para pendurar nas portas dos quartos de hotéis. Numa altura em que a minha vida me fez viajante frequente, implorava-me que lhe arranjasse novos modelos e, de tempos a tempos, queixava-se se eu o não fornecia de novo material. Tendo-lhe feito a vontade algumas vezes, cansei-me, a certa altura, da vergonha que já sentia em surrupiar esses anúncios. Nunca soube o que aconteceu à sua, seguramente apreciável, coleção.

Vem isto a propósito de um outro conhecido, diplomata estrangeiro, que um dia visitei na capital do seu país. Depois de um magnífico jantar que me ofereceu, quis que fôsse beber um copo lá a casa. A certo passo, ao fazer o "tour du propriétaire", mostrando-me o belo apartamento, disse-me, com ar misterioso:

- Quero que vejas aqui um espaço especial.

Era uma espécie de arrecadação. De início, pensei tratar-se de uma zona "proibida", alguma videoteca de vícios escondidos, coisa só "para homens". Mas não. Eram livros. Algumas centenas. Ao fundo da divisão, havia uma parede inteira de estantes, quase completamente preenchida, com volumes quase todos de tons sombrios. Pensei: "vêm por aí os clássicos anónimos do século XIX, Sacher-Masoch, Sade, Miller, Louys, Bataille ou Anais Nin".

- Sabes o que tenho aqui? Bíblias! Todas "sacadas" de hotéis, em várias línguas, nas minhas viagens pelo mundo. Quase 500. Não achas que é uma bela coleção?

Eu achava, claro! Cada um tem a sua mania...

quinta-feira, novembro 18, 2010

Dores

Eu sei que o jogo era amigável, que não contava para nenhuma competição. Mas ganhar desta forma à poderosa equipa de Espanha, campeã do mundo e da Europa, com justiça e brilho, é um estímulo de grande importância para um grupo de jogadores que tinha sido levado à debilidade anímica ao tempo da gestão do senhor Queirós.

Ao ver o andamento do resultado, não consegui, contudo, deixar de lembrar os 9-0 por que perdemos em 1934.

Apenas me interrogo sobre que raio de diferença haverá entre o joelho de Pepe (belo jogo!) e o meu, tratados pela mesma equipa médica com efeitos tão contrastantes...

quarta-feira, novembro 17, 2010

Maria João

Já a não ouvia, ao vivo, há muito tempo. Ontem, numa manifestação dos centros culturais estrangeiros em Paris, em que o nosso Instituto Camões participa, Maria João e grupo Ogre deram-nos quase duas horas de uma sonoridade por onde perpassou jazz, música brasileira, sons africanos e, acima de tudo, uma das grandes vozes portuguesas. Um espetáculo muito prestigiante para a imagem de Portugal.

Deixo-lhes a canção com que o espetáculo encerrou: a "Torrente".

terça-feira, novembro 16, 2010

Da ironia e do humor

Um bom amigo, pessoa que sofre as coisas da vida com uma seriedade asceta, dizia-me há dias que eu deveria refletir sobre se não haveria uma excessiva "leveza" humorística na escolha de algumas coisas que aqui publico e no estilo com que as trato, porventura pouco consentâneos com a gravidade dos tempos por que passamos. Assim, no parecer desse meu leitor, afetivamente atento, eu deveria cultivar um estilo mais sóbrio - ele não disse, mas eu presumi-o, mais "embaixadorial" - e seco, quiçá devendo optar para, por este intermédio, fazer chegar à Pátria o sumo destilado do que vou aprendendo por este posto, tido por privilegiado, de observação.

Descanse o amigo. Sirvo diariamente à Pátria as reflexões que creio poderem ser úteis a quem a gere. Isso é feito pelas vias adequadas, embora eu próprio me interrogue sempre sobre a real utilidade daquilo que remeto a Lisboa - com desvelo informativo, zelo burocrático e o mínimo possível de erros de ortografia.

Mas este blogue, volto a repeti-lo, não tem grandes pretensões. Ou melhor: tem - isso sim! - nos seus objetivos escondidos (gosto mais do termo britânico "hidden agenda") a finalidade de ajudar quem o escreve e quem o lê a suportar a quase endémica acidez dos espíritos que a digestão da dura realidade quotidiana a todos provoca. A vida já é o que é. Valerá a pena torná-la mais sombria, retratando-a a  tons negro e cinza? Ou não será preferível servir algumas pílulas de ironia e humor qb, por forma a que algumas das nossas rugas passem a ser devidas a sorrisos, em vez de resultarem das preocupações? Estou consciente de que não consigo controlar todos os efeitos secundários do que por aqui sirvo. Mas, como rezam todas as bulas, eles variarão sempre de pessoa para pessoa...

O outro lado do vento

Na passada semana, publiquei na "Visão", a convite da revista, um artigo com o título em epígrafe.  Agora que já saiu um novo núme...