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quarta-feira, agosto 05, 2015

Entre portas


Ontem, o "Diário de Notícias", no seu "folhetim" de Verão, ficcionava um encontro secreto no largo do Rato, entre António Costa e Paulo Portas, a pedido deste último. Dizem-me que, por algum tempo, a Santana à Lapa tremeu, antes de perceber que, pelo menos por ora, se tratava de uma invenção. É que o PSD não confia, mesmo nada, em ... António Costa. Ao ler esse segundo episódio do anónimo escriba que vai fazer tremer o país político nas semanas que se seguem, recordei uma cena que, de certo modo, dá alguma verosimilhança ao episódio ficcionado.

Não sei a data do que vou relatar. Ou melhor, sei, mas não vou dizer, apenas posso revelar que o facto se passou entre 1995 e 2001.

O governo socialista, chefiado por António Guterres, governava então com maioria relativa. Necessitava, por isso, de compromissos permanentes com os partidos situados à sua esquerda e à sua direita, para fazer passar os seus orçamentos e legislação. Foi uma sina diária de negociações, "peça-a-peça", que obrigava a desgastantes negociações, mobilizava bastidores e obrigava a entendimentos que, para todos os atores políticos, eram sempre complicados de gerir. E, as mais das vezes, difíceis de explicar abertamente, perante as opiniões públicas e partidárias.

Num desses tempos, o processo político no seio do governo estava a revelar-se mais complicado. Como sempre sucede nestas coisas, seguia-se a regra clássica da "intelligence": o clássico "need to know" aplicava-se ao nosso dia-a-dia de membros do governo. Sabíamos apenas o que devíamos saber, nada mais. Presumíamos que, à nossa revelia, se passavam muitas "conversas", mas não éramos mantidos, e bem, no "segredo dos deuses". E raramente perguntávamos, não fora termos como resposta o também britânico "mind your business!".

Num sábado de manhã, fui chamado a S. Bento. Era necessário preparar uma qualquer mensagem a transmitir a Bruxelas, já não me recordo a propósito de que assunto. Eram tempos ansiosos, em que não tínhamos a certeza de que os nossos propósitos pudessem fazer vencimento. Não ter maioria fragilizava muito a nossa posição. A nossa capacidade de garantir determinados objetivos na Assembleia da República era limitada, e isso afetava a governabilidade.

A reunião da meia dúzia de membros do governo que Guterres convocara acabara entretanto. Por algumas horas, havíamos estado naquela sala que, ao tempo de Cavaco Silva, fora criada na cave de S. Bento, com o objetivo de ser uma espécie de "gabinete de crise". Numa decisão que ainda hoje reputo de infeliz, Guterres tinha decidido transferir para aí as reuniões do governo em S. Bento (outras tinham lugar no edifício da Presidência do Conselho de Ministros, na rua Gomes Teixeira, em Campo de Ourique). Foi assim que se acabou com uma bela sala, ornada por uma estupenda tapeçaria de Portalegre, que Marcelo Caetano decidira transformar em sala do Conselho de Ministros, no 1º andar da residência oficial. Seria depois um gabinete que, se bem me recordo, foi ocupado por António Vitorino, Guilherme Oliveira Martins e José Sócrates, entre outros que se por ali se seguiram.

A reunião caíra sobre a hora do almoço. Saí apressado pela pequena escada que leva ao hall rés-do-chão, em direção à porta exterior. À passagem, não pude deixar de olhar, por um instante, para a porta entreaberta da sala de espera. Esse é, muitas vezes, o espaço para encontros ou entrevistas, a zona mais ampla que os primeiros-ministros têm ao seu dispor, para receber, naquele edifício.

Por entre portas, vi-o então, de modo fugaz. Era um dos líderes da oposição. Nas semanas anteriores, no areópago a cem metros de distância, durante os debates parlamentares, ele zurzira, sem dó nem piedade, o primeiro-ministro, a quem acusara das maiores malfeitorias feitas à pátria, das abdicações mais ignominiosas perante Bruxelas. Por humilde tabela, como responsável direto por essa frente europeia, eu próprio fora atingido por essa catilinária oposicionista. Imagino que, na bancada do governo, com a bonomia que lhe era própria, olhando o meu nervosismo de neófito político, Guterres me possa ter dito: "Não se preocupe, meu caro, é a vida!".

Agora, ali estava ele. Vinha, com toda a certeza, para uma conversa (senão mesmo para um almoço!) com o primeiro-ministro, num daqueles encontros que se não podem contar, mas que o compromisso nacional justificava. Com uma curiosidade insanável, ou com uma impaciência legítima, espreitara quando ouviu passos e, desprevenido, acabou por revelar-se a quem passava. Que era eu. 

Não hesitei. Escancarei a porta. Ele sorriu-me, tentando não se mostrar embaraçado, fingindo à-vontade, procurando ser mestre da cena.

- Então por aqui?!, lancei-lhe, com um sorriso do tamanho da minha supresa.

Ele não se deu por achado. Fingindo, sem fingir, uma seriedade que o momento justificava, lançou-me esta frase que, ainda hoje, não esqueci:

- Você não me viu, Francisco! Eu não estive aqui...

Procurando estar à altura da tragicomédia, retorqui:

- Era o que mais faltava! Você nunca aqui viria!

Ontem, ao ler o relato da "ida" de Portas ao Rato, lembrei-me deste episódio. Às vezes, a realidade é mais imaginativa do que a ficção.

segunda-feira, junho 22, 2015

Cruzamentos políticos



Falei aqui há dois dias de Eurico Figueiredo, por estas horas muito nas notícias por via do seu conflito com Marinho Pinto, no âmbito do PDR.

Anoto agora uma história antiga, para mim curiosa, em que com ele me "cruzei" na política interna.

Estávamos em julho de 1999. Eu era então, desde há três anos e meio, secretário de Estado dos Assuntos europeus. Um dia, informei o gabinete do primeiro-ministro de que necessitava de falar com António Guterres, com alguma urgência. Horas depois, foi-me perguntado o motivo da reunião, para justificar a pressa com que pedia o encontro. Mandei dizer que não revelava. No dia seguinte, já um pouco irritado, voltei a insistir. Ao final desse dia, o primeiro-ministro recebeu-me.

António Guterres acolheu-me com um sorriso e grande simpatia com que sempre me tratou.

- Este seu pedido de reunião, com caráter de urgência, criou por aqui alguma especulação, como já deve ter percebido.

Eu já então presumia essa especulação. Num segundo, liguei-a ao facto de, três dias antes, ter estado numa audiência, também a meu pedido, com o presidente da República, Jorge Sampaio. Que diabo um simples secretário de Estado, lugar subalterno no governo, quereria, na mesma semana, das duas principais figuras do Estado?

Esclareci então António Guterres que a razão da minha visita nada tinha a ver com aquilo que fora tratar com o presidente. No seu caso, eram assuntos estritamente ligados às questões europeias, mas que exigiam uma orientação urgente do primeiro-ministro. A particular sensibilidade do tema recomendava, porém, uma conversa pessoal. Só isso.

Guterres disse-me então das razões da especulação em S. Bento.

- Como você sabe, estamos em pleno processo de formação das listas de candidatos a deputados à Assembleia da República. E, como também é público, Eurico Figueiredo deixou vago o lugar de cabeça de lista por Vila Real, que também é a sua terra. Houve muita gente que pensou que você, sendo embora independente e não militante do PS, poderia estar interessado no lugar e que era essa a razão por que pretendia falar comigo com urgência. Eu, contudo, conhecendo-o, devo dizer que nunca pensei que quisesse ser deputado. Mas também achei que seria legítimo se acaso o quisesse ser.

E tinha toda a razão. A vida parlamentar nunca me seduziu minimamente. Mas, à distância, fiquei sempre com a curiosidade de saber o que teria acontecido se eu, de facto, tivesse tido essa pretensão. Assim, salvo na boataria entre S. Bento e o Rato, não me "cruzei" com o meu amigo Eurico Figueiredo nos caminhos da representação política de Vila Real. 

sábado, janeiro 04, 2020

Júlio Castro Caldas


Morreu Júlio Castro Caldas, leio nas notícias. 

Já o não via há muito tempo e, em especial, havia notado a sua falta ao almoço em que, há uns tempos, juntei em minha casa aquilo a que chamo o “grupo dos nove e meia“ - essa tertúlia “do bem”, para refletir sobre país, que, sob o estímulo de Miguel Lobo Antunes, reuniu por vários anos, às nove e meia da manhã (não conheço outras tertúlias matutinas), na Culturgest, tendo publicado alguns textos coletivos, ainda consultáveis aqui. O Júlio foi um dos últimos membros a aderir ao grupo, mas a sua participação, num estilo que lhe era muito próprio, era sempre muito informada e animada. Na fotografia dos membros dessa tertúlia, Júlio Castro Caldas é o único que se vê de casaco.

Um dia, numa conferência de imprensa no fim de um Conselho Europeu, nos anos 90, um jornalista perguntou a António Guterres se já tinha nomes para uma remodelação do governo de que toda a gente falava. Guterres disse que nomes não faltavam, se quisesse fazer uma mudança e exibiu um pequeno retângulo de papel com coisas rabiscadas. Eu estava ao seu lado e, quando ele pousou o papel sobre a mesa, saltou-me à vista a sigla JCC. Quando nos íamos a levantar, ousei perguntar-lhe: “Está a pensar no Júlio Castro Caldas?”. Notei que Guterres ficou um tanto surpreendido, e talvez desagradado, com a minha “espionagem” e pouco adiantou. Eu tomei nota da sigla.

A remodelação acabou por ter lugar e Castro Caldas não entrou no governo. Passaram uns meses e, um dia, vi Júlio Castro Caldas assumir o ministério da Defesa, pelo que concluí afinal tinha razão. Foi já com o novo ministro que, tempos mais tarde, me desloquei, em substituição de Jaime Gama, a uma reunião ministerial da União da Europa Ocidental (UEO), creio que em Bruxelas, tendo estabelecido com ele uma excelente relação. Lembro-me, meses depois, de ter estado com o Júlio, a convite de António Guterres, num almoço restrito com Mikhail Gorbachev, em S. Bento. Depois de sair do governo, fui para o estrangeiro, perdemo-nos de vista e só nos voltaríamos a reencontrar nessa tertúlia da Culturgest.

Júlio Castro Caldas era uma figura muito cordial, que rapidamente tratava as pessoas por tu, como comigo sucedeu, desde o primeiro momento. Além de ser um advogado de primeira linha, era um homem que gostava da vida e dos amigos. Tinha sempre histórias magníficas, sabia de factos que ninguém mais sabia, era intenso e definitivo na apreciação das coisas do mundo e da vida. Vida e mundo de que agora se despediu.

quinta-feira, janeiro 20, 2022

David Davis


Ontem, na Câmara dos Comuns, o deputado conservador britânico David Davis lançou uma espécie de “bomba atómica” política, ao apelar, da bancada “tory”, a que o primeiro-ministro Boris Johnson saia de Downing Street.

Davis é um “maverick” da política britânica, uma figura que nunca receia a polémica. Foi o primeiro responsável ministerial para o Brexit, pasta em que ficou famoso por parecer olhar com alguma distância os dossiês técnicos e insistir em proclamações políticas incendiárias. Demitiu-se depois, com estrondo, do governo de Theresa May. Esteve então muito próximo de Boris Johnson, de quem vinha a dar sinais de afastamento nas últimas semanas e que agora parece pretender minar no seio do partido.

Conheço pessoalmente David Davis há mais de 25 anos. No final de 1995, acabado de entrar para o governo de António Guterres como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, fui por ele convidado a ir a Londres. Era então o meu contraparte no governo britânico, como vice-ministro para a Europa. Era uma figura agradável, galhofeira, com a piada cáustica britânica, que dava ares de não se levar excessivamente a sério, o que é sinal de inteligência. É visceralmente anti-europeísta e, por mais de uma vez, deu sinais de ter ambições primo-ministeriais. 

Tinha-o conhecido bem, ao longo desse ano, em várias reuniões do “grupo de reflexão”, organizado no seio da União Europeia, para rever o Tratado de Maastricht. Portugal era representado nesse grupo pelo professor André Gonçalves Pereira, de quem eu era o “número dois”, ao tempo em que tinha o cargo de subdiretor-geral dos Assuntos Europeus.

O convite de Davis ocorreu por ocasião da primeira reunião em Bruxelas a que fui na minha nova função. Durante o almoço com os restantes colegas, Davis disse, a rir: “Um destes dias, os meus funcionários começam a ter ideias de me substituir”. Era uma referência ao facto de me ter conhecido, durante meses, como diplomata e, de um momento para o outro, ver-me no governo. Mas também era apenas uma graça: no Reino Unido, só pode ser membro de governos quem tem um assento parlamentar. Nenhum funcionário do Foreign Office, salvo de abandonar a profissão e conseguir ser eleito, pode aspirar a entrar para um governo. Com uma exceção: se for aristocrata e, por essa via, ter lugar na Câmara dos Lordes.

Na visita que fiz a Londres, Davis recebeu-me com grande simpatia, tendo mesmo feito uma entrevista conjunta comigo na BBC.

O novo governo britânico parecia inquieto quanto ao “novo” Portugal. Tentava perceber se o recém-empossado governo português, chefiado por António Guterres, ia introduzir alguma clivagem, em matéria de política europeia, face à linha seguida pelo anterior executivo, de Cavaco Silva. Alguma coisa devia ter “transpirado” de Lisboa que levava essa perplexidade. Imaginei que fosse a postura muito pró-europeísta de Guterres que estivesse a preocupar os britânicos, que cada vez se viam mais isolados no debate europeu.

Quando, depois de um almoço que me ofereceu no Foreign Office, eu disse a Davis que ia ter um encontro na nossa embaixada com um representante do Partido Trabalhista, vi-o reagir, perplexo: “Vais-te encontrar com os meus adversários?” Eu esclareci: “Quando os vossos ministros forem a Lisboa, asseguro-te que acharemos normal que eles se encontrem com figuras do PSD ou do CSD”. E rimo-nos.

De facto, a preocupação britânica tinha algum fundamento: é possível datar o início dos governos de António Guterres como o ponto de viragem para um crescente afastamento entre Portugal e o Reino Unido, no âmbito da Europa. Embora, depois de 1997, com o governo trabalhista de Tony Blair, tivesse havido alguma aproximação entre os primeiros ministros português e britânico, no terreno de Bruxelas, que me competia gerir, as dissonâncias foram sempre muito grandes, salvo nas questões de Defesa e Segurança e na atitude face à importância de manter o laço transatlântico. Nunca mais se atenuaram, julgo saber.

Veremos agora se Davis, com a sua ousada provocação a Boris Johnson, consegue o mesmo efeito que a célebre intervenção de Geoffrey Howe acabou por ter na queda de Margareth Thatcher, em 1990. Comparando o nível das personalidades envolvidas neste teatro de poder, pode talvez concluir-se que, três décadas depois, os atores têm uma grandeza bem diferente.

quinta-feira, novembro 29, 2012

Chirac

A figura pública viva mais popular entre os franceses, Jacques Chirac, completou ontem 80 anos. Nos últimos tempos, o seu estado de saúde tem limitado crescentemente a atividade pública do antigo presidente, mas, ainda há dias, o descortinei, num fim de tarde, a entrar no "Le Concorde", uma "brasserie" do boulevard Saint-Germain de que é frequentador habitual, avançando apoiado em colaboradores.

Tive o ensejo, ao longo de algum tempo, de estar presente, ao lado de António Guterres, em diversas reuniões com Chirac, em Paris e em Lisboa, mas igualmente em Conselhos europeus, onde ainda testemunhei a sua comum presença com Helmut Kohl, numa das "edições" do dueto franco-alemão que, à época, dava o tom à União Europeia. Era um homem de gesto largo, o qual sempre acompanhava a sua palavra, num tom que, parecendo algo teatral, ia bem com o estilo de uma certa França. Desenhava uma figura onde alguma arrogância era adocicada por uma naturalidade do "terroir" e por uma busca de cordialidade que o tornava globalmente simpático.

Guardo desses momentos com Chirac algumas memórias, mas, muito em particular, recordo, com genuína admiração, o seu trabalho incessante na longa cimeira que, em finais de 2000, concluiu o tratado de Nice. Foram vários dias e noites em que o chefe de Estado francês foi incansável, como figura central na busca por um compromisso que pudesse "salvar" a finalização do tratado. Portugal não foi dos parceiros mais fáceis nesse exercício. Nas noites de Nice, Chirac levou até muito tarde, às vezes no limite do aceitável, o "braço de ferro" com António Guterres, o qual não desarmou até obter o peso que queria para Portugal, em termos de votos no Conselho e no número de deputados ao Parlamento europeu, além de outros aspetos.

Por volta das três da manhã da noite final de negociação, Chirac chamou-nos a um canto da grande sala do Conselho e informou que a presidência francesa acedia exatamente ao que, desde o início, pedíramos. Foi a necessidade do fecho do compromisso, que só se faria por unanimidade, que o obrigou relutantemente a acomodar as nossas solicitações, depois de algumas horas em que a possibilidade do abandono por Portugal da mesa negocial chegou a constar - elemento que pode ter pesado na flexibilidade final francesa. António Guterres estava prestes a aceitar o compromisso, que era excelente, quando eu, numa ousadia de que hoje me admiro, decidi "explorar o sucesso" e intervim, perguntando a Chirac: "Senhor presidente, e o nosso pedido quanto à necessidade de haver sempre uma maioria de Estados membros para aprovar uma votação por maioria qualificada?". Essa era uma questão pela qual, como negociador português do tratado, contra a opinião de alguns na nossa delegação, me tinha batido durante quase um ano (por razões que não importa agora explicar, mas que quem quiser pode detalhar aqui). Chirac que, já numa reunião em Lisboa e noutra anterior em Nice, havia dado mostras de irritação com observações que eu fizera, mirou-me bem do alto da sua elevada estatura e, depois de uma troca rápida de olhares com o seu colaborador Pierre de Boissieu, que lhe "fez que sim" com a cabeça, lançou-me, muito pouco contente com aquele impertinente português, que andava sempre ao lado de Guterres, cujo nome nunca sequer lhe passou pela cabeça saber: "Encore vous! Vous l'aurez, votre majorité, vous l'aurez...". E, "for the record", esse princípio lá ficou no tratado de Nice e hoje ainda sobrevive no tratado de Lisboa.

terça-feira, dezembro 13, 2016

E agora, António?


António Guterres foi ontem entronizado como novo secretário-geral das Nações Unidas, cargo em que assumirá funções no primeiro dia de 2017. É o cume da carreira extraordinária deste engenheiro eletrotécnico que, sem nunca ter sido secretário de Estado ou ministro, chegou um dia à chefia do governo em Portugal, onde ficou por mais de seis anos. 

Oriundo de famílias de meios limitados, estudante sem mácula, profissional de excelência no Gabinete da Área de Sines, Guterres é talvez a prova de que a meritocracia funciona, em Portugal, mais vezes do que se pensa. Militante católico fervoroso, humanista por vocação, dialogante por convicção, procurou transmitir na sua governação um choque de modernidade à sociedade portuguesa, conduzindo habilmente o país no plano europeu e internacional. Um dia, sob o cansaço do impasse político, cumulado por questões familiares, pôs fim definitivo à experiência política nacional, a que se dedicara por décadas. 

Remeteu-se a partir de então à dignidade de um quase inquebrantável silêncio e, com o empenhamento total que está nos seus genes, enveredou por uma desafiante experiência internacional, numa área que casava bem com as suas preocupações sociais. Teve sucesso, ganhou prestígio e, aproveitando muito bem uma conjuntura que acabou por sorrir-lhe, viu as suas raras qualidades reconhecidas, na escolha para o lugar mais relevante na maquinaria internacional para a defesa da paz e da segurança.

Guterres chega à ONU num momento muito complexo. A potência que um dia estimulou o desenho da ordem internacional que tem as Nações Unidas no seu centro acaba de eleger, para a chefiar, a pessoa menos propensa a aceitar uma ordem global equilibrada e solidária. Ao "America first" somam-se uma Rússia em pleno curso de recuperação estratégica da humilhação da Guerra Fria, uma China que vive um tempo de afirmação política para sustentar o seu crescente peso económico, um projeto europeu declinante, dividido e sem entusiasmo, que vive um dia-a-dia de mera sobrevivência, com o risco de crise ao virar da esquina. O Médio Oriente está inflamado como nunca nas suas tensões, com efeitos colaterais que desestabilizam largos espaços geopolíticos. A pobreza e a desigualdade continuam a marcar várias regiões do mundo e a liberalização comercial global está em claro refluxo, com o nacionalismo protecionista a ganhar um novo ciclo de popularidade. O mundo está perigoso.

A fé move montanhas, diz-se. Não será por falta dela que esta nova montanha em frente de António Guterres se não moverá.

terça-feira, fevereiro 23, 2016

O Rossio, a Betesga, Guterres e Barroso

O exercício televisivo ontem conduzido por Paulo Dentinho e António José Teixeira, com a mútua entrevista a Durão Barroso e António Guterres, ficou aquem daquilo que poderia ter sido. "Meter o Rossio na Betesga" é um exercício difícil e a ambição foi excessiva. 

Desde logo, como aproveitamento para lançamento da revista XXI, a iniciativa falhou. Salvo uma breve menção no início do programa, a publicação "desapareceu" muito cedo como pretexto para a conversa. E é pena. Havia boas questões que alguns dos textos da publicação poderiam ter suscitado (e claro que não falo do meu, cujo tema - Schengen - não era de todo relevante para o debate). Assim, a meu ver, a conversa com as duas personalidades portuguesas com maior visibilidade internacional em tempos recentes acabou por não ser algo muito estimulante. 

O antigo presidente da Comissão Europeia assumiu uma postura que poderíamos chamar de "euroentusiasmo" correto, isto é, optou por sublinhar os inegáveis feitos da integração, pretendendo esconder que, não obstante estes, a Europa está num estado caótico, com divisões internas muito fortes e sem um sentido de direção. Remeter toda a responsabilidade para os Estados membros foi também uma forma de iludir as responsabilidades de quem teve nela funções executivas relevantes, as quais, se diferentemente exercidas, talvez tivessem podido atenuar alguns dos problemas atuais.

António Guterres tinha um problema nesta conversa. É óbvio que tem uma leitura muito crítica da situação internacional e da partilha de responsabilidades que incumbe aos vários atores políticos pelo estado de coisas em que vivemos. A sua experiência no terreno, ainda mais recente do que a de Barroso, deu-lhe elementos muito concretos para, se quisesse, "chamar os bois pelos nomes". Mas não pode fazê-lo, num tempo em que é obrigado a fazer a quadratura do círculo, com vista a conseguir apoios à sua pretensão à ONU, procurando harmonizar à sua volta apoios contraditórios.

Barroso defendeu o seu passado, Guterres o seu futuro. Valeu a pena ouvir? Confesso que me soube a muito pouco. Sabendo-se à partida que o contraste de visões seria mínimo, como se verificou, talvez duas mesas redondas separadas em duas ocasiões diferentes, com vários interlocutores a colocarem uma bateria de questões a cada uma das personalidades tivesse tornado esta iniciativa mais viva.

Uma última nota. Na assistência, estava Jaime Gama. Embora sabendo-se ser isso impossível, teria a maior das graças, podem crer!, ter ouvido a sua opinião sobre o espetáculo a que assistiu.

domingo, agosto 24, 2014

António Guterres

Está agora na moda falar-se de António Guterres para a presidência. Alguma esquerda suspira já por ele em público, a restante sentir-se-ia aliviada se acabasse por vê-lo em Belém, depois da década que atravessou. Sem inocência, a direita, que o teme como a ninguém, lança cada vez mais o seu nome, técnica vetusta de o tentar ir queimando em lume brando, ainda a quase 18 meses do ato eleitoral.

Faço, desde já, uma declaração de voto: se Guterres for candidato, apoiá-lo-ei com entusiasmo. E creio que não vale sequer a pena estar por aqui a explanar as razões por que o faço. Trabalhei com ele no governo e conheço as suas qualidades e qualificações.

Não faço a menor ideia se Guterres irá candidatar-se. Acho, com a maior franqueza, que se acaso, nos tempos que correm, ele tivesse dois botões à sua frente, em que pudesse definir definitivamente a sua posição sobre o assunto, um com um "sim" e outro com um "não", ele inclinar-se-ia por pressionar o "não". Tenho esta profunda convicção.

Ainda bem que ele não tem essa possibilidade. Isso significa que continua a existir a hipótese de uma das mais competentes, bem preparadas e eticamente irrepreensíveis personalidades portuguesas poder vir a assumir a chefia do Estado. E isso não é pouco.

domingo, janeiro 03, 2021

O caso austríaco


Como prometido, deixo uma história da nossa presidência europeia de 2000.

Recordo-me do assunto ter sido abordado à margem do Conselho Europeu de Helsínquia, no termo de 1999. A hipótese dos conservadores austríacos poderem vir a fazer uma coligação com o partido de Jörg Haider, o FPÖ, com notórias marcas de extrema-direita e com inequívocas declarações filo-nazis por parte de alguns dos seus dirigentes, começava a ser falada.

Em janeiro de 2000, enquanto eu andava numa roda-viva, entre capitais europeias, para conseguir apoios para um alargamento da agenda da Conferência Intergovernamental, que iria rever o Tratado de Amesterdão, que nos permitisse obter do Parlamento Europeu o necessário “avis conforme” prévio ao arranque dos trabalhos, começou a gerar-se, entre os dirigentes políticos europeus, um profundo mal-estar em torno daquela opção austríaca. Franceses e belgas eram os mais vocais, muito por virtude dos seus próprios problemas internos, onde o exemplo da Áustria poderia “normalizar” a ascensão dos seus partidos de extrema-direita.

No dia 28 de janeiro, em Estocolmo, fui acordado com o anúncio da concretização da coligação. Apanhado no hall do hotel pelos jornalistas que me acompanhavam nesse périplo, fiz uma declaração cautelosa: “Estamos bastante preocupados, mas é muito importante olhar agora com cuidado o programa da nova coligação, a fim de verificar se infringe os compromissos austríacos subscritos no seu acesso à União”.

Viajei de Falcon, a caminho de Madrid, e quando pousámos na capital espanhola, ainda na pista, tinha uma chamada telefónica de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros.

Disse-me para, depois da reunião que eu iria ter com o meu homólogo espanhol, falar à imprensa, em nome da presidência portuguesa, tomando uma atitude bastante mais firme do que aquela que eu próprio assumira nessa manhã, que estava a ser lida, em certos meios europeus, como uma relativa contemporização da presidência portuguesa face ao anúncio austríaco.

“António Guterres quer que você assuma uma tomada de posição muito forte, de rejeição aberta da fórmula governamental austríaca”, disse Gama. Tinha de ser eu a fazê-lo, porque fora eu quem tinha sido “soft”, ainda nessa manhã. A verdade é que eu tinha dito o que disse apenas porque desconhecia até onde Lisboa estava disposta a ir. Em cerca de cinco anos e meio de governo, deve ter sido essa a única ocasião em que me foi pedido, por Guterres e Gama, para ter uma posição mais à esquerda...

Mal eu tinha acabado a conversa telefónica com Gama, o embaixador português em Madrid aproximou-se. Trazia um recado do meu colega espanhol, Ramón de Miguel, com quem eu iria reunir dentro em pouco: informava-me que, numa sala do Palácio de Santa Cruz, as Necessidades espanholas, me aguardava a nossa colega austríaca, a até ali secretária de Estado Benita Ferrero-Waldner, que tinha vindo secretamente a Madrid. Benita fora já anunciada como nova ministra dos Negócios Estrangeiros do novo governo de coligação. Assim, e ainda antes de encontrar o meu homólogo espanhol, eu teria de ter essa conversa.

Conhecia muito bem Benita Ferrero-Waldner. Tinha-a tido como hóspede oficial em Lisboa, tinha estado em Viena a seu convite, havíamos criado uma relação muito agradável, ao longo dos últimos anos. Recebeu-me com um imenso sorriso, começando por dizer que a minha declaração, nessa manhã, em Estocolmo, em nome da presidência portuguesa, fora muito bem acolhida pelo novo primeiro-ministro, Wolfgang Schüssel. Mal ela sabia que eu tinha acabado de receber instruções para endurecer esse discurso!

Nos minutos que se seguiram, Benita deve ter percebido que alguma coisa tinha entretanto mudado. Elenquei, com ar já mais pesado, as dificuldades crescentes que estavam a surgir, um pouco por toda a Europa e a necessidade que Lisboa estava a ter de federar uma posição “a catorze”, que seguramente não iria ser muito agradável para Viena. Imagino que, na conversa, possa ter prometido fazer o meu melhor, mas a minha margem de manobra era muito apertada.

A minha colega mostrou-se desolada: tinha colocado toda a esperança na minha declaração e, agora, via-me a afastar-me dela. Lembro os seus olhos cheios de lágrimas, quando me dizia: “Francisco. Tu conheces-me a mim e ao Wolfgang, sabes que não somos fascistas!”

Saí dali para a reunião com Ramón de Miguel, que me parecia ter dito a Benita coisas um pouco mais simpáticas do que as que eu acabara de lhe dizer. Seguiu-se uma conferência de imprensa, na qual, na sequência das instruções recebidas, endureci fortemente o discurso. Os três jornalistas que comigo viajavam, e que desconheciam (e continuariam a desconhecer, até ao final da viagem) o meu encontro secreto com a recém-indigitada ministra austríaca, mostravam-se siderados com o meu novo tom.

Nos dias seguintes, o nosso governo, em Lisboa, viveu sob pressão forte de alguns dos seus pares. Chirac telefonou várias vezes a Guterres, Védrine a Jaime Gama e eu procurava fugir às pressões constantes do meu contraparte, Pierre Moscovici. Outros governos europeus subiram de tom contra Viena.

Guterres e o seu gabinete coordenaram habilmente a posição dos “catorze”, que culminou numa declaração conjunta. Escassos dias depois, coube-me defender, num debate muito intenso no Parlamento Europeu, dessa vez em Bruxelas, essa posição condenatória da Áustria. Jean-Marie Le Pen tomou-me, na ocasião, como alvo da sua violenta intervenção, tendo a minha resposta sido apoiada, entre outros, pelo centrista francês, François Bayrou, que se colocou abertamente a meu lado no debate. Um dia, em Paris, tive ocasião de agradecer pessoalmente a Bayrou esse apoio.

Guardei para sempre, nessa sessão, a pusilânime posição do presidente da Comissão, Romano Prodi, a querer estar “de bem com deus e com o diabo”. E não esqueci a solidariedade do comissário britânico Niel Kinnock, que atravessou o hemiciclo para me dar um abraço, dizendo que queria que eu soubesse que não se revia na atitude do presidente Prodi. Foi um dia difícil, que acabou numa animada entrevista, com Jeremy Paxton, no “Newsnight” da BBC TV.

Nos meses seguintes, a preocupação de Portugal, enquanto presidência europeia, foi tentar evitar que a nossa agenda de trabalhos pudesse ficar refém do problema austríaco. Tínhamos de garantir à Áustria o exercício pleno dos seus direitos como Estado membro, mas igualmente nos competia, em nome dos restantes “catorze”, objetivar uma forte e constante pressão política perante Viena.

Recordo o primeiro Conselho “Assuntos Gerais” em que Benita Ferrero-Waldner participou, em Bruxelas. Entrou na sala e, praticamente, com duas ou três exceções, ninguém a cumprimentou. E todos a conheciam bem do passado. Ostensivamente, levantei-me do meu lugar de representante de Portugal (Jaime Gama estava a presidir à sessão) e saudei-a. Gama fá-lo-ia, quando Benita passou por ele. Anos depois, num jantar privado, quando vivia em Viena, Benita, que veio a ser comissária europeia e muito nos ajudou a lançar a parceria estratégica com o Brasil, lembrou quanto esse nosso gesto a tinha sensibilizado.

Várias reuniões informais da nossa presidência viriam a ser perturbadas pelo ambiente hostil contra a Áustria. Acho que nos comportámos então com grande equilíbrio, como “honest brokers” que nos competia ser. Recordo ter ido a Bruxelas com António Guterres, para um encontro discreto com o primeiro-ministro Schüssel, na procura de soluções para acomodação do impasse. E ainda tenho na memória chamadas telefónicas recebidas de ministros portugueses, que viam colegas seus sairem da mesa, em reuniões informais que organizavam em Portugal, quando entrava o delegado austríaco, a perguntarem-me: “Olha lá! O que é que achas que eu faça?”. Foi muito instrutivo, pelo menos como experiência.

Depois, os franceses sucederam-nos e foi o que se viu: com o relatório de um “grupo de sábios”, meteram o assunto debaixo do tapete. É muito fácil delegar a coragem nos outros.

Hoje, visto à distância, o caso austríaco é uma brincadeira de crianças, ao lado de Estados membros que, com escandalosas cumplicidades, quanto mais não seja pelo silêncio, infringem, aberta e impunemente, as regras europeias que se comprometeram a cumprir.

quarta-feira, abril 10, 2013

Entrevista à revista “Sábado”



Há muito que Francisco Seixas da Costa tinha o dia 28 de Janeiro assinalado no calendário. Nessa data atingia os 65 anos e ficaria impedido de exercer funções no estrangeiro. No final do ano passado, quando soube que o embaixador Morais Cabral o iria substituir como representante de Portugal em Paris liguei-lhe a pedir uma entrevista de vida. Simpaticamente, pediu para esperar pelo seu regresso a Lisboa mas garantiu-me que a daria. Confesso que, na altura, desconfiei. Não seria a primeira vez que um “empurrão para a frente” serviria como desculpa para uma recusa encapotada. Ainda assim, no início de Fevereiro voltei a ligar-lhe. Já em Lisboa, andava ocupado com a mudança e com o novo cargo no Centro Norte-Sul para o Conselho da Europa. Mas agarrou na agenda e marcou um dia: 22 de Fevereiro, às 15h.

Na data marcada recebeu-me e ao Rafael G. Antunes no seu gabinete no palacete da Rua de São Caetano. Disponibilizou-se para as fotografias e durante mais de duas horas respondeu a todas as perguntas. O resultado dessa conversa foi publicado a 4 de Abril na Sábado. No entanto, as limitações de espaço impostas por uma revista em papel fizeram com que muitas partes interessantes da entrevista ficassem de fora. Para quem tiver paciência, fica aqui uma versão mais alargada.

Dois dias antes de completar os 65 anos e ficar impedido de exercer funções no estrangeiro, Francisco Seixas da Costa meteu-se no carro com a mulher e deixou Paris rumo a Portugal. Parou duas vezes antes de chegar a Vila Real: em França e na Cantábria, em Espanha. 

A capital francesa foi o último posto de uma carreira diplomática que começou em 1975 e que foi apenas interrompida pela passagem pelos governos de António Guterres. Em Lisboa, guia um Smart e, após 12 anos no estrangeiro, já se perdeu várias vezes nas artérias da capital portuguesa. 

Recebeu a SÁBADO no seu gabinete na Lapa, sede do Centro Norte-Sul para o Conselho da Europa, onde é director não remunerado. Foi recentemente nomeado administrador não executivo da Jerónimo Martins, e entrou para os conselhos consultivos da Mota Engil e da Fundação Calouste Gulbenkian.

- Depois de uma vida como funcionário público entrou no mundo dos negócios. Porquê?

- A certa altura ainda pensei em dar aulas na universidade porque tive convites. O problema é que eram de universidades públicas e há uma lei que impede a acumulação de reformas com um salário no sector público. Depois, no dia 12 de Dezembro de 2012 [12/12/12], recebi três convites: para a Jerónimo Martins (JM), para a Monta Engil e para a Fundação Gulbenkian. Sou administrador não executivo da JM e posso contribuir em determinadas áreas devido à minha experiência e leitura da situação internacional. É vulgar ver diplomatas assumirem funções empresariais quando se desligam do Estado.

- Vai finalmente ganhar dinheiro a sério?

- O poder complementar a minha reforma – que não é das mais brilhantes – é um factor importante. E achei interessante ter uma segunda vida no plano profissional. Surgiram outras oportunidades, também na área empresarial, a que disse não. Estas achei compatíveis comigo e nunca me cruzei com elas ao longo da vida. Ainda por cima são duas das grandes empresas nacionais.

- Durante anos foi o único embaixador português a manter um blogue pessoal onde, além de memórias, dava a sua opinião sobre a actualidade. Porque decidiu fazê-lo?

- Quando estava em Viena, entre 2002 e 2004, os blogues começaram a explodir em Portugal. Na época achei que era um método interessante de partilhar ideias com meia dúzia de amigos. Eu e vários diplomatas fizemos experiencias, com pseudónimos. Era quase clandestino porque trocávamos opiniões e fazíamos comentários sobre a vida política. Quando fui para o Brasil suspendi isso e criei um para a embaixada que chegou a imensa gente. Ao preparar a ida para Paris pensei que seria uma forma interessante de comunicar com a segunda geração portuguesa em França.

- Funcionou?

- Foi um fracasso. Acho que cheguei a umas dezenas dessas pessoas. Mas percebi que o blogue podia ser uma revisitação da memória e actualidade cultural. Acaba por ser um exercício em que nos expomos e colocamos perante as pessoas para nos conhecerem melhor. Tem um defeito: as nossas opiniões e posições nem sempre obedecem a um padrão uniforme. E há pessoas que gostam de nós porque dizemos uma coisa e ficam surpreendidas quando dizemos outra. O blogue é um retrato mais ou menos curioso do que sou. Tenho levado para lá histórias inócuas da vida diplomática e algumas experiências das que se podem contar em termos de memória diplomática, politica e militar.

- Contém-se muito?

- Contenho. Há uma regra fundamental: não quebrar a lealdade em relação ao que soubemos em virtude das funções que ocupámos. Há coisas que nunca podemos contar. Em Paris continha-me muito. Hoje menos.

- Nasceu em Vila Real. O que faziam os seus pais?

- O meu pai era gerente da Caixa Geral de Depósitos. Casou com a minha mãe que era filha de um jurista da cidade. Foi gerente da Caixa durante 27 anos. Foi com ele que ganhei o sentido de serviço publico. Fiz a escola primária e o liceu em Vila Real e em 1966 fui estudar para o Porto.

- Como foi a transição para uma grande cidade?

- Era filho único e fiquei completamente perdido no Porto – que para mim era Nova Iorque. Fui estudar engenharia electrotécnica e viver num lar universitário. Fiz duas cadeiras em dois anos. Se tivesse mantido o ritmo estaria agora a acabar o curso. Andei em festas; dirigi um programa de rádio chamado Momento de Teatro, no Rádio Clube Português; escrevia crónicas de desporto para o Jornal de Notícias aos domingos, sobre jogos entre equipas como o Lordelo do Ouro-Campanhã; fiz teatro no Teatro Universitário do Porto…

- Que peças fez?

- Era a peça do ano que era a Ana Kleiber, de Alfonso Sastre em que a Manuela Melo era a nossa vedeta. Eu fazia de jornalista. Entrevistava o escritor no início e no fim da peça. Durante o resto do tempo era sonoplasta devido à experiência na rádio.

- Praticava desporto?

- Sim, era corredor de velocidade. Estraguei o meu menisco nessa altura. Corria 100, 200 e 4×100 metros.

- Quanto fazia?

- Éramos péssimos. Entrávamos nos 11 segundos à vontade. No Centro Desportivo Universitário do Porto fundei a secção de filatelia, a de xadrez era árbitro de ping-pong, joguei futebol pela universidade onde fui um péssimo lateral direito. Os pontas passavam todos por mim. Fazia tudo menos estudar. Foi um período magnífico da minha vida que me fez ter uma adoração pelo Porto. Em 1968 vim para Lisboa para o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Meti-me logo na primeira lista associativa desse ano que foi suspensa pelo ministro Hermano Saraiva.

- Meteu-se em movimentos políticos?

- Não. Trabalhei na CDE de 1969, em Vila Real. Nunca fiz parte de grupos políticos, nunca ingressei em grupos da extrema esquerda embora à época estivesse muito próximo deles.

- Em que sentido?

- Ideológico. Tinha uma atitude de esquerda radical mas nunca me senti próximo dos movimentos maoístas. Também nunca tive grande apetência para ser membro do Partido Comunista, que era a grande referência. Talvez porque tenho grande dificuldade em manter a disciplina. Gosto de pensar pela minha cabeça.

- Já escrevia?

- A partir de 1968 publiquei vários artigos na Voz de Trás-os-Montes sobre política interna e internacional. Fui proibido pela censura quando tentei publicar uns artigos cheios de ambiguidades com aquela linguagem críptica da época. Num, questionava: “será que o futuro da Rodésia é negro?” O censor deixou passar e a censura em Lisboa chamou-lhe a atenção. Depois publiquei um sobre um filósofo russo chamado Vladimir Ilyitch Uliánov que o censor não sabia que era o nome do Lenine e deixou passar. Foi chamado a atenção e a partir daí comecei a ter uma barreira.

- É verdade foi à boleia para França?

- Várias vezes. Fui em 1967, em 1969 e 1970. Uma vez fui da Rotunda do Relógio até à fronteira com a Noruega, sozinho, de mochila às costas. Era uma coisa que se fazia com facilidade e sem muito dinheiro.

- Onde ficava?

- Nas pousadas de juventude. No outro dia estava a confrontar experiências com o Luis Amado [ex-ministro dos Negócios Estrangeiros] que me contou que ficou em Paris a dormir debaixo de uma ponte, magnificamente, provavelmente com uma amiga [risos]. Eu era muito cuidadoso na organização das coisas.

- Como se sustentava?

- Com o dinheiro que levava. Era possível viver com pouco. As pousadas eram muito baratas e comia-se com parcimónia. Fiz uma viagem dessas de 35 dias e gastei três contos e quinhentos. Hoje são uns 17 euros mas na época era muito dinheiro. Juntei durante o ano para isso. Tive algumas aventuras agradáveis, nada que se possa contar [risos].

- Em Lisboa tornou-se melhor aluno?

- Tornei. Aluno de 14. Excepto no final do curso, que era de Ciências Sociais e Política Ultramarina, em que tive uns problemas a uma cadeira. Nessa altura, como não tinha acabado o curso por causa dessa cadeira, pedi para ir para o serviço militar. Entretanto, empreguei-me na CGD. Fiz concurso público e entrei. Um dia telefonei ao meu pai e disse-lhe “sou seu colega”. Fiquei lá de 18 de Novembro de 1971 até ir para a tropa, em 1973. Seria esse o meu destino de regresso normal. Entretanto acabei o curso, fui para a tropa e tive um percurso militar atribulado porque foi o 25 de Abril.

- Porque pediu para apressar o ingresso no serviço militar? Não tinha receio de ir para a guerra?

- Todos pensávamos que íamos fazer a guerra. Portanto, estávamos a perder tempo em relação à nossa vida profissional. É preciso ter a perspectiva da época: nós olhávamos para o regime e para a guerra colonial como um dado adquirido para o futuro. Não pensávamos que acabaria dois anos depois. Tive a sorte de ter uma especialidade militar rara, que é a da Acção Psicológica, e ficar em Portugal. Éramos um grupo pequeno. Dos 900 de Mafra só nove eram escolhidos. Fiz bons amigos nesse grupo que ultrapassam dimensões políticas. Um deles é o Jaime Nogueira Pinto.

- Quando soube do golpe do 25 de Abril?

- Na véspera, por volta do meio-dia. Estava na Escola Prática de Administração Militar. O António Reis, que fazia a ligação aos militares do quadro, veio à biblioteca e informou um grupo de milicianos sobre o golpe. Não se fazia ideia do que ia acontecer. Só que era naquela noite.

- O que fez?

- De manhã fiquei na unidade. A certa altura recebemos o comandante e tivemos que o deter. É uma cena patética. Os militares do quadro que tinham a unidade na mão sentiam-se intimidados porque era subverter a hierarquia. E éramos nós, milicianos, a estimulá-los: “é preciso prender o comandante” [risos]. Hoje tem graça. Na época havia alguma taquicardia. Depois fiz parte do grupo que fez uma espécie de guarda de honra à Junta de Salvação Nacional que foi à RTP. Tenho ideia de estar atrás das câmaras a ver o discurso do Spínola.

- Teve a noção do que estava a viver?

- Relativa. Se tivesse levava uma máquina fotográfica. Não temos a noção da importância das coisas. Tive isso presente na famosa Assembleia do 11 de Março, que foi histórica e não estava planeada.

- Esteve na sua origem?

- Estive. Depois do golpe spinolista do 11 de Março um conjunto de pessoas que diziam “é preciso tirar consequências disto” começou a reunir-se no que é hoje o Instituto de Defesa Nacional. Visto hoje, toda esta operação foi comandada pelo PC. Nós éramos inocentes úteis nessa manobra de tentar dar a volta ao 11 de Março. Fomos dali até Belém em vários carros e entrámos quase à força. O Conselho dos 20 suspendeu a reunião para nos ouvir. Exigimos que as pessoas fossem para o IDN onde se fez a assembleia que acabou às 6h. Foi onde se definiu uma linha mais radical que consagrou as nacionalizações da banca, seguros, etc

- Porque deixou a Escola Prática de Administração Militar?

- Fui expulso por esquerdismo. Não quis votar um castigo a um soldado cadete. Fui para a comissão de extinção da PIDE/DGS e depois tornei-me adjunto do General Galvão de Melo, na Junta de Salvação Nacional.

- Como se tornou diplomata?

- Um dia fui a um café e encontrei um colega que era diplomata. Ele disse-me que havia um concurso e eu meti os papeis. Foi quase um desafio intelectual porque nem tinha muito tempo. O serviço militar começava às 13h e acabava às 19h. De manhã trabalhava na Ciesa- NCK, uma agência de publicidade, onde fazia uma análise ao modo como a imprensa tratava os temas da semana com algumas pessoas que mais tarde fundaram O Jornal: o José Silva Pinto, Manuel Beça Múrias, Cáceres Monteiro. Isto era vendido a empresas estrangeiras e embaixadas que queriam perceber a situação portuguesa. Fiz esse boletim até muito tarde – mesmo depois de entrar para o Ministério (risos).

- No MNE alguém sabia disso?

- Isto começou antes de ir para lá e era um auxílio importante para a minha vida. Fazia-o aos fins-de-semana. Mas julgo que o eventual crime já prescreveu [risos].

- O seu exame de ingresso na carreira foi feito por Cavaco Silva?

- Foi. Fez-me a prova de Economia Política. Correu-me mal. Baixei da escrita para a oral mas acho que ele foi extremamente justo e rigoroso. O tema não me era muito familiar: a integração europeia. Mal sabia que mais tarde chegaria a secretário de Estado dos Assuntos Europeus [risos]. Mas não fiquei bem classificado no meu concurso, fiquei em 13º. Quando comecei as provas pensei que não entrava. Mesmo depois de receber a carta a dizer que tinha sido admitido hesitei entre regressar à CGD ou ir para o MNE.

- O que o fez optar?

- A graça do MNE, não o salário. Na CGD ganhava bastante mais. O MNE era mais apelativo. Isto parece estúpido, mas na época tinha a esperança de que era possível ser diplomata sem ir para o estrangeiro. Havia a ideia de que se iam criar uns postos de especialistas em política externa em Lisboa. No início não me apetecia ir viver para o estrangeiro. De tal maneira que durante anos não concorri. Primeiro porque o salário que me pagavam na Ciesa NCK era bastante bom. Conseguia somá-lo ao do ministério. Depois por causa da profissão da minha mulher.

- Ela acompanhou-o sempre?

- Sim. Ela era assistente social e perdeu a carreira dela. Também está aposentada e sofreu em matéria de promoções e lugares de chefia por me acompanhar.

- Quanto se casaram?

- Em finais de 1973. Conhecemo-nos quase desde a escola primária. Fizemos o liceu juntos, começámos a namorar em 1965. Estivemos juntos no Porto e depois em Lisboa. Ela só não me acompanhava nas viagens à boleia porque a família não deixava [risos]. Os tempos eram outros.

- Como foi para Oslo?

- Um dia telefonaram-me e disseram-me “estás colocado em Oslo”. Andava à tanto tempo a atrasar a saída do país que um dia meteram-me lá.

- Depois foi para Angola.

- Era um período muito complexo, de guerra civil. Luanda estava sitiada. Não saíamos mais de 30km a norte, 15 km a leste, 60, 70 km a sul, até ao cabo Ledo. Havia recolher obrigatório, não havia comércio, tínhamos de mandar vir tudo de Lisboa. A mala diplomática era feita num merceeiro da Av. Infante Santo. Até batatas e ovos recebíamos de Lisboa.

- Furavam muitas vezes o recolher obrigatório?

- Às vezes distraíamo-nos e passava da meia-noite. De repente tínhamos uma metralhadora à frente. Havia uns cartões com autorizações que nem sempre funcionavam. O ambiente e os nervos de militares, de madrugada, às vezes estimulados de forma alcoólica, não ajudavam muito a criar uma sensação de segurança. Lembro-me de uma cena patética. Tinha mandado vir um Golf novo. Um dia sou parado por um polícia que me diz com toda a delicadeza: “camarada, posso ver se os piscas funcionam? Posso ver se os stop funcionam?” Isto num carro impecável. Ao lado passavam automóveis sem portas. A certa altura ele pergunta-me: “e o triângulo?” Fui ver e não tinha. Aí ele diz: “sabe que é obrigatório?” Lá disse que sabia e saiu-me esta: “e onde é que se compra?” O tipo fez um sorriso magnifico e disse, “pode ir, camarada”.

- Mais ou menos 10 anos depois foi convidado para o governo de António Guterres.

- Em 1994 vim de Londres. Fui para sub-director-geral das Comunidades Europeias. Um dia fui convidado para trocar impressões com o engenheiro Guterres, que não conhecia. Queria discutir comigo a Europa. Disse-me uma coisa interessante: “você é diplomata e eu quero falar consigo, quero as suas ideias, não quero os seus papéis. Não quero nada do MNE.” Tivemos umas horas de discussão e passado um mês e tal fui convidado.

- Como surgiu?

- Estava numa reunião da Associação Sindical dos Diplomatas quando o telefone da sala tocou. Eu não tinha telemóvel. Era o Jaime Gama, que ia ser ministro, a convidar-me. Aceitei. Já tinha rumores de que isso podia acontecer e já tinha falado com a minha mulher sobre essa hipótese. Contra a vontade dela, aceitei.

- Porquê?

- Porque ela achava que eu não devia ter deixado a carreira. Nunca gostou da vida política. Se outras aventuras eu não tive, se calhar felizmente, foi graças à profunda rejeição da minha mulher pela vida política.

- Os colegas começaram a dar-lhe graxa?

- Não. Acho que as pessoas perceberam que tinha alguma especialidade técnica. Nos cinco anos em que fui secretário de Estado tivemos o Tratado de Amstrerdão, a presidência de Schengen, a Agenda 2000, a presidência portuguesa e o tratado de Nice. Aliás, acho que estive tempo demais no governo. Para quem não é político com assento na Assembleia da República, uma passagem pelo governo deve ser no máximo de quatro anos.

- Porquê?

- Há um momento a partir do qual já não conseguimos ser criativos. Já fomos novidade, já demos as nossas ideias, já fomos úteis. Claro que a experiência é importante. Mas há um momento terrível na política: quando temos a ideia de que fazemos as coisas com demasiada facilidade. Vamos a uma reunião e já não precisamos de ler nenhum papel. É o momento em que as pessoas começam a pôr os dossiers de lado. Já têm uma dose de confiança que se torna perigosa. É a altura de sair.

- Quando chegou, sentiu-se olhado de lado, como um intruso com ideias novas?

- No início não. No governo Guterres muitos dos ministros e secretários de Estado eram independentes. Mas à medida que vamos sobrevivendo no governo e nos vamos prestigiando fora dele tornamo-nos incómodos. Os partidos, que precisam dos independentes para chegar ao poder, se puderem ver-se livres deles, fazem-no. É a recuperação da máquina. É o upgrade de chefes de gabinete que passam a secretários de Estado e destes a ministros. A qualidade média começa a baixar em função de um uso excessivo de pessoal político sem dimensão técnica.

- Do que mais se recorda desses anos?

- Da importância das pessoas na afirmação dos países. O papel de António Guterres numa certa fase do processo europeu, ao nível da mesa do Conselho Europeu, era absolutamente desproporcionado em relação ao peso do país. Ele tinha uma influência e capacidade de mediação e de propor medidas tão grande… e Portugal estava muito abaixo disso.

- Dê-me um exemplo.

- Lembro-me de um Conselho Europeu em que houve um conflito entre o Jacques Chirac e o Helmut Kohl. Guterres tomou a palavra, fez uma proposta entre os dois, juntou a isso uma ideia do Wim Kok, da Holanda, e aquilo passou. Eu fiquei aturdido. Primeiro porque parecia uma presunção estar a intervir num processo tão elevado. E aquilo passou, com prestígio. Os países conseguem pela capacidade das pessoas uma dimensão que não têm. O Guterres teve isso.

- É verdade que Guterres teve hipótese de ser presidente da Comissão Europeia e recusou?

- Completamente. Só não aconteceu porque ele não quis. Surgiu uma janela de oportunidade e foi montada uma operação, da mesma forma que julgo que mais tarde se fez com Durão Barroso. Estava a criar-se um consenso naqueles que tinham uma palavra a dizer em relação a isso que tornavam o processo irreversível. O porquê da não ida terá de ser ele a contar.

- Internamente, pelo contrário, nos últimos tempos do guterrismo houve situações complicadas.

- Já não assisti à fase final. Saí em Março de 2001. Mas há sempre um problema na parte final dos governos que é a manutenção de confidencialidade. Vemos isto em todos.

- Como era o ambiente nos conselhos de secretários de Estado?

- Eles têm um carácter bastante burocrático. Trata-se de preparar os diplomas. Não há discussões de fundo. O de ministros é mais complicado. Com os tempos a grande camaradagem dá lugar a uma certa tensão. Porque há conflitos, porque o primeiro-ministro não gosta de um ministro…

- Viveu alguns?

- Vivi mas não posso contar porque é uma regra de ouro: nunca contar o que se passa num conselho de ministros.

- Sentia-se um diplomata na política ou um político a tempo inteiro?

- Na política só fazia política. Desliguei-me completamente do funcionamento do MNE. Afastei-me das promoções, colocações, tudo isso. Ao contrário é o mesmo: quando estava em funções diplomáticas não houve quem me apanhasse com um pé na politica. Em 2001 regressei à carreira diplomática e fui para Nova Iorque.

- Um ano e meio depois de chegar às Nações Unidas foi afastado. Foi uma retaliação política por ter sido secretário de Estado de um governo socialista?

- Quem tomou a decisão é que tem de o dizer.

- Não lhe comunicaram porquê?

Disseram-me que queriam mudar o embaixador nas Nações Unidas e deram-me algumas opções. O compromisso era a ida para a OSCE – que me pareceu a mais interessante – com a passagem posterior para outro posto, mas o governo não honrou esse compromisso.

- Sentiu a sua competência posta em causa?

- Creio que não. A presidência da OSCE foi um sucesso reconhecido pelo ministro de então. Haverá outros factores.

- As suas relações com o ministro António Martins da Cruz não eram as melhores…

- Tive 21 ministros dos Negócios Estrangeiros na minha carreira. Desafio qualquer um é a testar a minha lealdade. O ministro Martins da Cruz não encontrou da minha parte qualquer tipo de deslealdade funcional.

- Pensou abandonar a carreira?

- Mais do que uma vez tive tentado a outras opções profissionais. Curiosamente, nessa conjuntura, decidi continuar. Convidaram-me para ser representante especial da União Europeia para o Médio Oriente e não aceitei.

- Qual desses 21 ministros destacaria?

- É difícil. Mas o tempo que trabalhei com Jaime Gama marcou-me. Ele tem uma visão do país e da política externa extremamente completa e sólida. É talvez a pessoa mais bem preparada da minha geração para os mais altos cargos do estado.

- Foi embaixador em Nova Iorque, Rio de Janeiro e Paris, foi vice-presidente da Assembleia Geral da ONU e secretário de Estado. Depois da experiência nos negócios só lhe falta ser ministro?

- Já faltou. Acho que já não falta. Não tenho qualquer ambição política. Posso dizer que, em anos recentes, tive convites para ingressar em cargos ministeriais e não aceitei.

- Muito recentes?

- Recentes [risos]. Não aceitei por opção de vida. Hoje a vida política faz-se com outra idade, na casa dos 40 ou 50. Há uma grande exigência e é preciso estar fisicamente disponível para isso. Há um tempo para tudo.

- Os diplomatas são vistos como uns tipos que passam a vida em festas. Enquadra-se nesse estereótipo?

- Os cocktails e jantares fazem parte de um processo logístico Não sou avesso mas os cocktails são das coisas que mais me irrita. Os jantares podem ser simpáticos ou inúteis. Mas a vida diplomática é feita da relação entre colegas. Em Paris eram ocasiões interessantes para perceber como os parisienses que nos convidavam olhavam para o Sarkozy ou para os socialistas. O encontro com diplomatas era importante para cruzar informação. Há colegas bem e mal informados. Considerava-me bastante bem informado. A prova é que, nos dois meses que antecederam a chegada dos socialistas ao poder, eu e um pequeno grupo de colegas tivemos pequenos almoços, almoços e jantares de trabalho com personalidades, algumas desconhecidas, que viriam a entrar neste governo. 

- Há ideia de privilégio sobre os diplomatas. Um estudo recente concluiu que são os funcionários públicos mais bem pagos.

- Mas só se incluir os abonos que recebemos no estrangeiro e sobre os quais não nos deixam fazer descontos. Esquecem-se que há pessoas com filhos na escola, que muitas vezes têm de manter uma casa em Lisboa e outra fora. Esquecem também que há uma dupla exclusividade, como aconteceu comigo, em que um dos membros do casal perde a sua profissão. A minha mulher manteve o direito à aposentação porque descontou, mesmo sem salário, com base no último rendimento antes de ir para o estrangeiro. A reforma de um embaixador, apesar de razoável, surpreendia muita gente. O que os diplomatas ganham a mais tem a ver com a compensação do custo de vida que é diferente de Lisboa. Mas não descontam sobre isso. Já percebi que é impossível vender a ideia que o diplomata não é um privilegiado. 

- Como analisa a situação política portuguesa?

- Acho que o governo segue uma receita que não está a provar. Os sinais, a falta de resultados relativamente à aplicação da receita ainda não induziu o governo a mudar a receita. Não sei quanto tempo vai ser possível manter esta aproximação à realidade sem que a realidade lhe caia em cima.

- Qual o caminho alternativo?

- São muito escassos. Os discursos de retórica sobre crescimento são simpáticos e agradáveis. Parece-me que o acordo que foi feito pelo governo português, demitido, com o apoio dos maiores partidos da oposição, resulta da circunstância de esse governo estar fragilizado. Pergunto-me: se o acordo tivesse sido feito por um governo em funções teria sido outro? Dito isto, com a evolução da conjuntura e com a leitura da aplicação prática destas medidas, já há muito que devia ter sido feita uma correcção no plano europeu e internacional sobre isto.

- De quem é a culpa?

- Não sei. Se percebemos que os resultados que se esperam não chegam, se os sinais são contraditórios, tem de haver uma correcção de percurso. O mundo está a olhar para nós como uma espécie de cobaia de modelo. O eventual sucesso dessa experiência ser-nos-ia creditado mais tarde. Resta saber se o país aguenta o peso destas medidas sem uma forte ruptura do tecido económico e social. Internacionalmente tinha que haver uma atitude diferente. Quer o caso grego quer o português são baratos face ao que seria a crise global do euro. A prova é que a Grécia tem vindo a ter sucessivos perdões de dívida e alargamento de prazos. Se calhar devíamos jogar com isso, independentemente de devermos fazer os esforços para corrigir a situação interna.

- Isso deve partir de quem?

- Como é uma questão nacional, não pode deixar de envolver as oposições, particularmente o PS.

- Como viu o regresso de José Sócrates?

- É um factor de animação que não deixará de ter consequências no PS e na política portuguesa. Não estava à espera. Estou muito curioso para perceber o registo, o impacto que terá no país e como ele se vai colocar no panorama político.

- Seria possível, em França, um ex-primeiro-ministro ou ex-presidente ocupar um espaço de comentador político num canal público?

- Oh, meu amigo!!! Não conheço nenhum país em que haja utilização de figuras ligadas aos partidos na crítica televisiva. O que diz muito da capacidade dos jornalistas e dos comentadores de outra natureza se afirmarem. As televisões estão tomadas por um conjunto de políticos que fazem dos comentários tempo de antena. Às vezes de natureza partidária, outras pessoal. Mesmo nos jornais: não há mais países onde políticos no activo tenham colunas regulares. Podem publicar um artigo ou serem entrevistados. Os embaixadores estrangeiros ficam muito surpreendidos com isto. Também somos o único país do mundo onde há os “tudólogos”, pessoas que falam de tudo. Em mais lado nenhum a mesma pessoa fala de hospitais, remodelação, memorando da troika e esquadras de polícia. Conheço alguém que um dia falou com uma dessas pessoas e disse-lhe: “normalmente estou de acordo consigo, excepto quando conheço os assuntos”. São grandes momentos de “achismo”.

(Entrevista a Nuno Tiago Pinto)

quinta-feira, março 24, 2016

Carlos Cruz, o terrorismo e "A Bola"


O antigo apresentador de televisão Carlos Cruz apresentou ontem em Lisboa umas memórias. Pelo que me foi dado ver, a questão da candidatura portuguesa ao campeonato de futebol Euro 2004 está a converter-se num dos temas polémicos suscitados pela obra. Também eu tenho uma pequena história relacionada com Carlos Cruz (pessoa que não conheço), com o Euro 2004 e, curiosamente, com o terrorismo, de que agora, e por más razões, tanto se fala.

Numa manhã, creio que em 1999, andava Portugal em campanha pela Europa, para garantir que a realização do Euro 2004 pudesse vir a ser atribuída ao nosso país, deparei com uma declaração da figura de proa da nossa candidatura, Carlos Cruz, que procurava valorizar Portugal face a outro concorrente, a Espanha. O apresentador feito promotor, com uma sensibilidade diplomática abaixo de zero, comentava que a Espanha não era um adversário com um mínimo de credibilidade, porquanto era um país "com terrorismo", o que desqualificava como cenário de provas desportivas internacionais.

A Espanha vivia então assolada regularmente por atos de terrorismo, face aos quais a prudência e a solidariedade de um vizinho como Portugal era o mínimo que deveria ser-lhe concedido. Surgir alguém ligado a uma candidatura oficial portuguesa com um discurso como o de Carlos Cruz era um "faux pas" imenso.

Era uma quinta-feira, recordo, porque tinha lugar um Conselho de Ministros. Antes dessa reunião, dei a conhecer a António Guterres e Jaime Gama o teor das infelizes declarações de Cruz. Elas já haviam provocado, em Madrid, uma reação irada do secretário de Estado espanhol para o Desporto, que fora ao ponto de anunciar que o governo espanhol estudava o envio de um protesto ao executivo de Lisboa, de repúdio pela inconveniência dos propósitos de Cruz. Acrescia que, semanas depois, iria ter lugar uma Cimeira Luso-Espanhola e este incidente, a ser explorado, converter-se-ia necessariamente no "issue" do encontro. Guterres e Gama entenderam, num segundo,  o potencial disruptor do tema e encarregaram-me de tentar "congelar", de imediato, o assunto. Este trabalho de "trouble shooter" situava-se precisamente na charneira entre o diplomata e o político que era o meu papel no governo.

Telefonei ao embaixador espanhol em Lisboa, Raúl Morodo, e pedi-lhe que tentasse evitar a "nota verbal" que o excitado governante espanhol anunciara. Morodo é um "gentleman", um bom amigo de Portugal e de muitos portugueses, entre os quais eu tinha o gosto de me incluir. Percebeu, com rapidez, o potencial de acidez que estava prestes a ser criado e prometeu-me intervir, ajudando ao "dammage controle".

No dia seguinte, numa chamada para o meu chefe de gabinete, pediu que me fosse transmitido que o assunto estava definitivamente sanado. Avisei Guterres e Gama e nunca mais me preocupei com o tema.

Passaram largos meses. Um dia, estava eu na República Checa, numa visita de trabalho, recebi a indicação, através do assessor de imprensa do MNE, Horácio Cesar, de que estava instalada na nossa comunicação social uma imensa polémica em que o meu nome era envolvido.

O secretário de Estado dos Desportos espanhol, que estava em Lisboa a convite do seu homólogo português, perguntado sobre se ainda subsistia em Espanha algum ressentimento pelas declarações de Carlos Cruz, proferidas meses antes, referiu que, para Madrid, o assunto estava, há muito, encerrado porque, entretanto, "o secretário de Estado dos Assuntos europeus de Portugal já havia apresentado, em devido tempo, as desculpas formais portuguesas ao governo espanhol, através do respetivo embaixador em Lisboa". 

O que ele foi dizer! Carlos Cruz veio logo a terreiro afirmar que não admitia ser "desacreditado" pelo governo, ameaçando demitir-se da organização da candidatura. José Sócrates, ministro da tutela, e Miranda Calha, secretário de Estados dos Desportos, fizeram de imediato declarações desdramatizantes mas, como é natural, remeteram o assunto para eu esclarecer. Portugal pedira ou não "desculpas" a Espanha? O governante espanhol mentia ou tinha razão?

Recordo ter dito, creio que à "Lusa", que a minha anterior intervenção não configurava um qualquer "pedido de desculpas" a Espanha. Tinha-se tratado apenas de um esclarecimento, junto do embaixador espanhol em Lisboa, de que o governo português não se revia nas palavras ditas por Carlos Cruz. E reiterei essa posição.

Não retive muito pormenores do que se passou depois. Creio que Cruz não "se ficou", prestou mais declarações, mas ficou na candidatura. Eu, entretanto, regressei a Lisboa, nessa noite. Na manhã do dia seguinte, a caminho do meu gabinete, dei uma vista de olhos à pilha dos jornais, para verificar como é que o assunto fora abordado. Não traziam nada de especial, pelo que deduzi que a questão acabava ali. 

Tocou, entretanto, o meu telemóvel. Era um amigo: "Já viste os jornais? A tua polémica com o Carlos Cruz dá-te duas capas!". Essa agora! Eu tinha a imprensa ali ao meu lado, não trazia nada! Erro meu: "A Bola" e o "Record" ofereciam a primeira página à polémica. O meu amigo, homem atento ao desporto, não deixou de acrescentar: "Deve ser a primeira e a última vez na vida que fazes manchete nos jornais desportivos".

Ele tinha razão. Lembrei-me disso ontem, ao ver a cara de Carlos Cruz, agora noutras atribulações bem mais complexas. O que trará hoje "A Bola" sobre o assunto?

quinta-feira, março 21, 2024

Foi assim


Outubro de 1999. Na emigração, a arte de José Lello tinha conseguido dar ao PS três deputados, com o PSD a ficar com um, invertendo o que era habitual. Porém, nas contas finais das eleições legislativas, os socialistas só tinham obtido 115 deputados, com outros tantos para toda a oposição somada. Era o empate. A almejada maioria absoluta esfumava-se. Para o primeiro-ministro António Guterres, continuaria a ser necessário recorrer a complicadas negociações para aprovar as leis no parlamento. Como seria o caso de um orçamento, que necessitou do famoso arranjo do "queijo limiano".

Nas hostes socialistas, o ambiente era de alguma desilusão. Depois de uma década de "cavaquismo", em que a esquerda penara a bom penar, refugiada em Macau e em algumas autarquias, já a escassa vitória de Guterres, em minoria, em 1995, se bem que muito saborosa, tinha obrigado a recolher as ambições de moldar algumas políticas públicas ao programa do PS. Esse esforço de contenção de despesas, para conseguir atingir as metas para a entrada no euro, tinha desagradado a muita gente do PS. O resultado da eleição de 1999 ameaçava agora prolongar o "aperto do cinto".

Naquela noite de 1999, o João Paulo Bessa, um arquiteto (ele gosta de "arquitecto", com "c") que vive para o rugby e para as coisas desportivas em geral, entrou, façanhudo, no "Procópio". 

Na "mesa dois", o Nuno Brederode dos Santos filosofava cenários, em frente ao whisky. Recém-reconduzido como secretário de Estado, eu ia alimentando, em voz alta, a narrativa oficial de que, infelizmente, haveria que evitar aumentar o défice, controlando, por essa via, a forte dívida pública. Havia, por isso, a necessidade de continuar a limitar despesas, em algumas áreas, mesmo que incumprindo, aqui ou ali, com algumas promessas eleitorais.

Foi então que a voz do João Paulo, sentado num daqueles bancos aveludados a vermelho, recostado no varandim de madeira, de costas para o bar, explodiu, julgo que desta forma: "Porra, pá! Estivémos dez anos a sofrer as políticas 'dos gajos', sem nada poder fazer. Em 95, lá saiu o Cavaco mas vocês disseram logo: 'Ah! Pois é! Mas não se pode fazer nem isto nem aquilo'. E nós, durante estes quatro anos, a ver o tempo a passar e as coisas a não se fazerem. Agora, o PS continua a governar, mas volta a não ter maioria e, mais uma vez, o teu governo vem dizer que continua a não se poder fazer o que foi prometido. Eh, pá! Explica lá quando é se pode fazer alguma coisa! Primeiro era o Cavaco com as políticas do "Pê-pê-dê", agora é o Guterres com os cuidados para o euro. Porra, pá! Mas, afinal, quando é que se cumpre o programa do PS?" 

Não sei o que respondi ao João Paulo Bessa, comigo feito "situacionista", eu que até nem era do partido, nessa noite de 1999. A minha memória não cobre as conclusões desse debate, tido num lugar onde, como alguns diziam, alguns aculturavam "a via alcoólica para o socialismo". Só sei que, na noite de ontem, na mesma "mesa dois", já com o Nuno ali só em saudade, recordei ao João Paulo aquele episódio. E rimos todos um pouco, embora, para os ocupantes da "dois", o tempo esteja, por estes dias e noites, mais para sorrisos amarelos.

sexta-feira, setembro 30, 2016

Já combinaram com os russos?


A escolha do secretário-geral da ONU foi sempre um processo de alguma complexidade. Encontrar alguém em quem, simultaneamente, se revejam Estados com interesses contraditórios é uma verdadeira quadratura do círculo. No passado, esse compromisso chegou a ser obtido através de cedências em outras áreas do funcionamento da ONU, atribuindo discretamente a alguns dos principais países envolvidos, isto é, aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, cargos importantes, em jeito de compensação.

Este ano, o novo processo de audições públicas prometia trazer alguma transparência e uma maior objetividade. O método evidenciaria, em princípio, os mais qualificados, o que, no entanto, poderia não garantir os objetivos de quantos entendiam que, desta vez, o lugar deveria ser ocupado por uma mulher, oriunda da zona centro-oriental da Europa, que nunca tinha produzido um SG.

À luz da leitura que faço do modo de funcionamento da ONU e dos seus equilíbrios geopolíticos, sempre achei que seria muito difícil António Guterres vir a ser eleito. Porém, Portugal, nunca tivera alguém tão qualificado e prestigiado para ocupar aquele cargo. Valia a pena tentar! Por isso, fui e continuo a ser um convicto apoiante dessa candidatura, embora, tal como o próprio Guterres, moderadamente otimista quanto ao êxito do empreendimento. 

O modo como as audições ocorreram, e as fantásticas «performances» de Guterres, tornaram-me mais confiante, sentimento que se reforçou com as sucessivas votações indicativas, em que o candidato português se destacou dos demais. Mas algo me dizia, intimamente, que as coisas estavam a correr «bem demais»... Por isso, o surgimento de uma nova candidatura, já numa fase adiantada do processo de seleção, não me surpreendeu. 

Quem segue estas coisas sabia que germinava em setores da direita europeia, em especial no «pangermanismo»,  a vontade de encontrar uma forma de contrariar, com um golpe de bastidores, o sentido do novo modelo de avaliação, cuja resultante final não produzira o resultado «esperado». Com o argumento, simplório e oportunista, de que assim se quer ultrapassar o «impasse» criado, Kristalina Georgieva avança do «banco», a poucos minutos do fim do jogo. 

Agora, a palavra decisiva vai competir a Moscovo: um SG da ONU é sempre alguém que o mundo ocidental propõe e a quem o Kremlin não diz que não.

Ora qualquer brasileiro conhece o significado da frase que serve de título a este artigo. É uma expressão famosa de Mané Garrincha quando, tendo-lhe sido explicado o que deveria fazer para ultrapassar a defesa russa, e achando a tática do treinador simples demais, terá perguntado : «E já combinaram com os russos?». Acho que seria prudente Georgieva inquirir o mesmo de Merkel.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")


quarta-feira, dezembro 13, 2017

Soares europeu


O Parlamento Europeu vai dar a uma das suas salas o nome de Mário Soares. Nada mais justo. Soares é, a grande distância, o mais insigne dos cultores da ideia europeia em Portugal. Ao aceitar ser deputado europeu, deu uma prova notável desse seu empenhamento.

Quando Jaime Gama me deu a novidade, num dia do primeiro semestre de 1999, caí das nuvens : Mário Soares iria ser o cabeça de lista do Partido Socialista às eleições europeias. Estava já tudo assente entre ele e António Guterres, que passaria a contar com um trunfo importante para o sufrágio. Três anos depois do fim da sua década de Belém, Soares voluntariava-se para uma batalha pela Europa.

Gama pediu-me que falasse com Soares, para o preparar para os debates que iriam seguir-se, procurando garantir que ele não se afastaria da "linha" que o governo Guterres projetava na sua política europeia. 

Convidei Mário Soares para um almoço discreto num restaurante na Madragoa. Expliquei-lhe, com jeito, qual era a minha tarefa. Foi simpático e amigo, como sempre, mas logo concluí que me tinha sido atribuída uma missão impossível: Soares não se deixaria enquadrar. Propus-me preparar-lhe eu próprio um conjunto de fichas temáticas, simplificadas, que refletissem a nossa orientação. Aceitou, de muito bom grado, a ideia. Quando, uma semana depois, lhe enviei o que me tinha dado um imenso trabalho a fazer, telefonou-me de volta, gratíssimo, dizendo que aquilo passaria a ser a sua "Bíblia". Dois dias depois, li na imprensa extratos de uma intervenção sua em Paris : algumas ideias contrariavam abertamente o que vinha na "Bíblia"...

Mário Soares foi sempre um político instintivo e intuitivo, e, as mais das vezes, os factos deram-lhe razão. Isso induzia-lhe uma imensa confiança que o levava a pensar, quase sempre, pela sua própria cabeça. Na Europa, as coisas iriam passar-se da mesma forma. Soares tinha criado uma certa ideia da Europa, das suas linhas tendenciais de evolução desejável, do desiderato mobilizador. Nada o irritava mais do que a tibieza dos burocratas, o peso dos aparelhos, a falta de ousadia, de ambição, de sentido de destino. Em muitas conversas que com ele tive, senti-o descontente com algumas cautelas soberanistas que eu cuidava em ter. Várias vezes me disse que, nas questões europeias se sentia muito mais próximo de Guterres do que de Jaime Gama. Ou de mim. Soares olhava "grande" para a Europa. Eu fui (e sou) sempre um "possibilista".

Quando, em 2002, pedi a Soares um prefácio para o meu livro “Diplomacia Europeia – as instituições, o alargamento e o futuro da União”, a que se voluntariou de imediato, notei que se viu obrigado a distanciar-se ligeiramente nesse texto de algumas das minhas propostas e posições. Mário Soares nunca me achou suficientemente federalista, pelo menos pelos padrões de exigência que ele entendia dever seguir. E tinha razão para pensar assim.

Mário Soares foi um dos portugueses que melhor sentiu o espírito europeu, talvez porque tivesse aprendido que, para um país como o nosso, a palavra Europa é o outro nome da liberdade. Ao honrá-lo, neste que é o ano da sua morte, o Parlamento Europeu tem um gesto de justa gratidão.

Parabéns, concidadãos !