Nós, os portugueses, temos uma relação muito curiosa com o passado. País "com História a mais", vimo-la apropriada de forma despudorada pela ditadura, que a utilizou como pretenso fator da unidade nacional que pretendeu forjar em seu reforço, adubando o nosso orgulho nesses tempos da busca das Índias e dos Brasis, espalhando, na passada, "a fé e o império".
O Estado Novo, ao construir a sua narrativa sobre a "gesta" lusitana por mares e terras nunca dantes navegados ou pouco pisados, instilou-nos, parece que para sempre, a ideia mirífica de que o colonialismo português era "menos mau do que o dos outros", de que, ainda hoje, somos "menos racistas" do que as gentes dos restantes países, de que a miscigenação feita foi a prova provada da nossa tolerância, bondade e moderação enquanto povo. A teoria do "bom selvagem" foi, entre nós, substituída pelo mito do "bom civilizador".
No Portugal depois de abril, logo que exorcizadas politicamente as guerras coloniais através da independência das colónias, foi-se instalando subliminarmente, embora já em democracia, uma surpreendente leitura benévola do colonialismo lusitano. Há que perceber por que é que isso foi feito: tratou-se de uma espécie de compromisso para a reconciliação nacional, entre os que, agora já forçadamente por cá, tinham sofrido com o termo do período colonial e os anti-colonialistas, vitoriosos históricos. Essa leitura de compromisso, concessão destes últimos, conviveu sempre mal com exegeses mais rigorosas do normativo que Portugal impôs, ao longo dos anos, na sua dominação colonial, e que nos não deixam muito bem na fotografia (leia-se a obra de alguém como Charles Boxer para se ter uma ideia melhor disto). E, sejamos honestos, nos últimos anos temos assistido ao país (repito, democrático) a dar-se como que absolvido de todo esse passado, procurando esquecer os seus recortes sombrios, desde que a relação com os novos Estados saídos das zonas colonizadas se "normalizasse". Sem ironia: como se o MPLA e a Frelimo fossem os "legítimos representantes" dos escravos acarretados à molhada pelos negreiros para o Brasil.
Não sou um grande fã das "desculpas" históricas, dos arrependimentos no tempo presente por atos no passado, cometidos em contextos diferentes, à luz de valores da época. Mas há alguns limites para esse "relativismo". A escravatura, as desumanidades decorrentes de se não considerarem os negros como pessoas, da mesma maneira que mais tarde os crimes nazis, não podem nunca ser absolvidos através de uma contextualização benévola. Posso assim perceber o que Mário Soares disse sobre o tratamento dado aos judeus ou o discurso do Vel d'Hiv de Jacques Chirac, sobre o miserável colaboracionismo francês durante a ocupação nazi. E não posso senão saudar o que Emmanuel Macron, para surpresa de muitos, disse sobre o colonialismo francês na Argélia.
É nossa obrigação olhar para a frente, falar para as novas gerações, às quais é importante criar "alertas" éticos e humanistas, induzir noções concretas daquilo que fez avançar a História (como as descobertas), mas igualmente das tragédias que isso implicou (como a escravatura). A melhor defesa para tentar garantir Portugal como um espaço de tolerância, de aceitação da diferença, resistente aos cantos das sereiras populistas e radicais é falar do passado colonial abertamente: da genialidade do Infante ou da coragem de Gil Eanes no Bojador, mas também dos massacres de Wiriamu, da Baixa do Cassange ou de Batepá.
Fernanda Câncio, num excelente artigo no DN de ontem (que pode ser lido aqui), intitulado "Fomos sempre tão amigos dos pretinhos", põe o dedo no lugar da ferida onde ela dói mais. Fá-lo a propósito de uma deslocação do presidente da República a Gorée, no Senegal, um dos lugares mais emblemáticos da barbárie escravocrata. E do que ele por lá disse, que escandalizou muita gente, por alguma ligeireza na abordagem que então fez.
A jornalista tem toda a razão e ao presidente da minha República, cujo comportamento neste primeiro ano de mandato globalmente tenho vindo a saudar (com tanta ou mais autoridade quanto não votei nele), não consigo admitir que, ao enveredar por um tema com esta delicadeza, o tenha feito num registo impressionista que não está à altura do homem culto e sabedor que (felizmente) hoje temos em Belém. E que, como pessoa, é indiscutivelmente um homem sensível e humano.
Há uns anos, quando vivia em Paris, ouvi Nicolas Sarkozy fazer, em Dakar, um discurso vergonhoso sobre a realidade africana e o modo como a França (dele) a olhava. Lembro-me de ter então pensado que, se um qualquer dirigente do meu país ousasse um dia dizer aquelas coisas (Sarkozy pronunciaria, anos mais tarde, em Grenoble, infâmias de idêntico jaez, dessa vez a propósito dos estrangeiros e dos franceses "diferentes", na sua mimetização à extrema-direita), eu me sentiria profundamente envergonhado. Não foi nada disso que Marcelo Rebelo de Sousa disse, convenhamos. Muito longe. E, por essa razão, ao contrário de Fernanda Câncio, não fiquei envergonhado. Mas o chefe do Estado de um país talvez "com História a mais", tem de ser muito mais cuidadoso quando olha, no retrovisor, o nosso percurso coletivo. É que o passado é uma coisa muito séria.
O Estado Novo, ao construir a sua narrativa sobre a "gesta" lusitana por mares e terras nunca dantes navegados ou pouco pisados, instilou-nos, parece que para sempre, a ideia mirífica de que o colonialismo português era "menos mau do que o dos outros", de que, ainda hoje, somos "menos racistas" do que as gentes dos restantes países, de que a miscigenação feita foi a prova provada da nossa tolerância, bondade e moderação enquanto povo. A teoria do "bom selvagem" foi, entre nós, substituída pelo mito do "bom civilizador".
No Portugal depois de abril, logo que exorcizadas politicamente as guerras coloniais através da independência das colónias, foi-se instalando subliminarmente, embora já em democracia, uma surpreendente leitura benévola do colonialismo lusitano. Há que perceber por que é que isso foi feito: tratou-se de uma espécie de compromisso para a reconciliação nacional, entre os que, agora já forçadamente por cá, tinham sofrido com o termo do período colonial e os anti-colonialistas, vitoriosos históricos. Essa leitura de compromisso, concessão destes últimos, conviveu sempre mal com exegeses mais rigorosas do normativo que Portugal impôs, ao longo dos anos, na sua dominação colonial, e que nos não deixam muito bem na fotografia (leia-se a obra de alguém como Charles Boxer para se ter uma ideia melhor disto). E, sejamos honestos, nos últimos anos temos assistido ao país (repito, democrático) a dar-se como que absolvido de todo esse passado, procurando esquecer os seus recortes sombrios, desde que a relação com os novos Estados saídos das zonas colonizadas se "normalizasse". Sem ironia: como se o MPLA e a Frelimo fossem os "legítimos representantes" dos escravos acarretados à molhada pelos negreiros para o Brasil.
Não sou um grande fã das "desculpas" históricas, dos arrependimentos no tempo presente por atos no passado, cometidos em contextos diferentes, à luz de valores da época. Mas há alguns limites para esse "relativismo". A escravatura, as desumanidades decorrentes de se não considerarem os negros como pessoas, da mesma maneira que mais tarde os crimes nazis, não podem nunca ser absolvidos através de uma contextualização benévola. Posso assim perceber o que Mário Soares disse sobre o tratamento dado aos judeus ou o discurso do Vel d'Hiv de Jacques Chirac, sobre o miserável colaboracionismo francês durante a ocupação nazi. E não posso senão saudar o que Emmanuel Macron, para surpresa de muitos, disse sobre o colonialismo francês na Argélia.
É nossa obrigação olhar para a frente, falar para as novas gerações, às quais é importante criar "alertas" éticos e humanistas, induzir noções concretas daquilo que fez avançar a História (como as descobertas), mas igualmente das tragédias que isso implicou (como a escravatura). A melhor defesa para tentar garantir Portugal como um espaço de tolerância, de aceitação da diferença, resistente aos cantos das sereiras populistas e radicais é falar do passado colonial abertamente: da genialidade do Infante ou da coragem de Gil Eanes no Bojador, mas também dos massacres de Wiriamu, da Baixa do Cassange ou de Batepá.
Fernanda Câncio, num excelente artigo no DN de ontem (que pode ser lido aqui), intitulado "Fomos sempre tão amigos dos pretinhos", põe o dedo no lugar da ferida onde ela dói mais. Fá-lo a propósito de uma deslocação do presidente da República a Gorée, no Senegal, um dos lugares mais emblemáticos da barbárie escravocrata. E do que ele por lá disse, que escandalizou muita gente, por alguma ligeireza na abordagem que então fez.
A jornalista tem toda a razão e ao presidente da minha República, cujo comportamento neste primeiro ano de mandato globalmente tenho vindo a saudar (com tanta ou mais autoridade quanto não votei nele), não consigo admitir que, ao enveredar por um tema com esta delicadeza, o tenha feito num registo impressionista que não está à altura do homem culto e sabedor que (felizmente) hoje temos em Belém. E que, como pessoa, é indiscutivelmente um homem sensível e humano.
Há uns anos, quando vivia em Paris, ouvi Nicolas Sarkozy fazer, em Dakar, um discurso vergonhoso sobre a realidade africana e o modo como a França (dele) a olhava. Lembro-me de ter então pensado que, se um qualquer dirigente do meu país ousasse um dia dizer aquelas coisas (Sarkozy pronunciaria, anos mais tarde, em Grenoble, infâmias de idêntico jaez, dessa vez a propósito dos estrangeiros e dos franceses "diferentes", na sua mimetização à extrema-direita), eu me sentiria profundamente envergonhado. Não foi nada disso que Marcelo Rebelo de Sousa disse, convenhamos. Muito longe. E, por essa razão, ao contrário de Fernanda Câncio, não fiquei envergonhado. Mas o chefe do Estado de um país talvez "com História a mais", tem de ser muito mais cuidadoso quando olha, no retrovisor, o nosso percurso coletivo. É que o passado é uma coisa muito séria.