sábado, março 04, 2017

Miguel Lobo Antunes


Sou muito suspeito, sou amigo do Miguel, por quem tenho uma grande admiração, pelo que é e por tudo quanto soube construir ao longo da vida, com azares e muitas coisas boas pelo meio. Fizemos "tropa" juntos, temos algumas ideias (nem todas) em comum, mas eu tenho melhor feitio do que ele (o que, aliás, é fácil).


A seu convite, faço parte de uma "conspiração do bem" que ele criou há vários anos, uma combinação improvável de pessoas que discretamente se dedica, sem a menor agenda de interesses, a refletir sobre os caminhos de futuro para o país - e que deve ser a única "tertúlia" no mundo que reúne às 9.30 da manhã (temos água e café de borla).

Gostei agora de uma entrevista que deu, feita, com a serenidade inteligente de sempre, pela Ana Sousa Dias, onde ele se mostra perplexo com a reforma que aí (lhe) virá.

Não te preocupes, Miguel! O ativo ou a reforma não são categorias que se excluam mutuamente. Conheço muita gente que, estando teoricamente "no ativo", está "reformada" há muito, às vezes desde sempre. E, tal como tu, também conheço alguns "maduros" para quem estar tecnicamente reformado significa apenas ter conseguido muito mais tempo para aquilo em que quer manter-se ativo.

Welcome to the club, old chap!

(Leia-se a entrevista aqui)

Um estranho almoço

Há pouco, entrei no carro e "olhei para trás", para o longo almoço que hoje tive, com amigos, em casa de outros amigos. Foram mais de cinco horas de conversa, bem acompanhada por belas vitualhas e líquidos adequados. Um almoço divertido, bem disposto, com muitas histórias e ironias qb.

Contudo, foi um almoço estranho. Porquê? Porque nessas cinco horas não se falou do livro de Cavaco, dos SMS de Centeno, de Passos Coelho, de António Costa, de Núncio, dos "offshore", do jornalismo de José Gomes Ferreira, de Ricardo Salgado, de Carlos Alexandre, de Sócrates, das eleições no Sporting, quase nada de Trump, das eleições francesas, do Brexit, da salgalhada europeia.

E, no entanto, falou-se de tanta coisa! Um magnífico almoço.

sexta-feira, março 03, 2017

Angola e nós


Fui diplomata em Angola na primeira década pós-independência. Luanda era uma cidade sitiada, a guerra civil abrangia grande parte do território, mantinha-se uma forte presença cubana, civil e militar, a África do Sul apoiava militarmente a Unita, sedeada na Jamba, com apoio americano. A Guerra Fria estava a poucos anos do seu termo, mas Angola era então uma das suas trincheiras mais evidentes. 

Todos os dias, na embaixada, olhávamos para o « Jornal de Angola », esperando a diatribe do dia contra Portugal. A Unita passeava-se por Lisboa, era apoiada por portugueses, tinha acesso à nossa comunicação social. Tornava-se impossível explicar às autoridades angolanas que, menos de uma década passada sobre o 25 de abril, não era sensato esperar que os governos de Lisboa pudessem  limitar a expressão e a liberdade de movimentos dos opositores do regime de Luanda, muitos deles beneficiando do facto de terem nacionalidade portuguesa. 

Há poucos países de expressão portuguesa de cujos cidadãos eu me tenha sentido mais próximo do que dos angolanos. Vivendo uma realidade diametralmente diversa, com um regime cujo funcionamento e práticas nada têm a ver connosco, nem por isso os angolanos deixam de ter algo que se nos assemelha – nas qualidades e nos defeitos. Um dia, Venâncio de Moura, que foi ministro das Relações Exteriores de Angola, dizia-me, a brincar, numa conversa, em que eu comentava precisamente naquele sentido : « Nós, angolanos, tal como vocês, somos latinos », assim justificando a forma expansiva daquele povo magnífico, cujo destino histórico tem incorporado um sofrimento recorrente.

Há dias, um incidente judicial, com contornos políticos, voltou a agravar as relações bilaterais. Se acaso eu encontrar, daqui a horas, um qualquer amigo angolano – e tenho vários e bons – e lhe disser, com a verdade iniludível dos factos, que o governo português nada pode fazer face à autonomia do Ministério Público, pelo que é totalmente injusta a imputação de responsabilidades políticas e o alarido que isso provocou em setores de Luanda, quase que apostaria que ele acabará por me dar razão. Os angolanos, lá no fundo, sabem bem que as coisas são assim, que ninguém terá ficado mais desagradado pela coincidência temporal das revelações de um processo do que a nossa ministra da Justiça, originária de Angola e oriunda do próprio Ministério Público português, e que viu o incidente cancelar a sua deslocação oficial a Luanda.

Há quem, em Portugal, esteja apostado em prejudicar as relações com Angola ? Claro que sim, mas aí a « reciprocidade » é total… Por isso, só resta ter sangue frio e esperar.

quarta-feira, março 01, 2017

François Fillon

Vai ser penoso assistir à campanha eleitoral da direita democrática francesa, a partir de agora. Não obstante a Justiça ter decidido avançar no processo que envolve os alegados empregos fictícios da sua família, pagos pelo erário público, François Fillon optou por manter a sua candidatura. Fillon joga o "tudo ou nada", numa obstinada ambição de quem desenhou, de há muito, um futuro que pensava acabar no Eliseu. E que pode, afinal, acabar muito mal.

Veremos como reagirão agora os seus apoios políticos e, em especial, se Fillon conseguirá continuar no terreno sem sobressaltos humilhantes. É que nada indica que o "affaire Fillon" deixe de continuar no centro da campanha. 

Será isto uma boa notícia para Marine le Pen, não obstante ela também estar a braços com "trapalhadas" financeiras no Parlamento Europeu? E Emmanuel Macron terá a vida facilitada, agora que os socialistas franceses parecem fortemente divididos quanto a Benoît Hamon?

Não fosse a circunstância de passar pelo desfecho presidencial francês parte importante do futuro coletivo europeu, observar esta eleição podia ser um exercício divertido.

Diplomata de Abril

«Nada mata mais um escritor do que obrigá-lo a representar um país», disse um dia Julio Cortázar, citado por José Fernandes Fafe nas «Conversas durante anos» (Almedina 2002) que António Silva com ele teve. Não para concordar necessariamente com a asserção, mas para questionar ironicamente essa dicotomia nem sempre fácil de assumir. Na limitada abertura a quadros exteriores à carreira diplomática tradicional, que o poder democrático subsequente à ditadura decidiu levar a cabo a partir de 1974, José Fernandes Fafe, ao lado de Coimbra Martins, Álvaro Guerra e José Cutileiro, figura entre as personalidades oriundas da área cultural que vieram a ser escolhidas.

Ser o nosso novo homem em Havana foi o desafio que Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros, lhe lançou, quem sabe se lembrado de uma viagem clandestina que ambos haviam feito à ilha de Fidel, em meados dos anos 60. Fafe partilhava, há muito, uma sedução geracional pela revolta que havia deposto Baptista. Uma simpatia que tinha menos de ideológico – Fafe era um socialista moderado, com um pendor liberal – e bastante mais de romântico. Ele fora «David Alport», o pseudónimo com que assinou, para escapar ao crivo da ditadura portuguesa, aquela que é hoje considerada uma das primeiras biografias de Che Guevara. 

O novo embaixador beneficiava da boa vontade política junto do regime cubano, num tempo em que alguns militares e outras figuras da Revolução portuguesa se deliciavam em romagens à terra dos heróis do «Granma». A memória das Necessidades guarda a ideia de que a densidade objetiva das nossas relações com Cuba estava, à época, algo aquém daquilo que uma figura com o prestígio e os excelentes contactos de Fernandes Fafe poderia ter proporcionado

Daí que, para essa memória coletiva da nossa ação externa, o seu posto seguinte, o México, se tenha consagrado como um ponto particularmente alto – eu diria, na perspetiva de um profissional da casa, aquele que o tornou verdadeiramente «one of us». A profunda interação cultural que aí conseguiu levar a cabo, com presença constante na imprensa e nos meios da cultura, viria a ser muito marcante, num  país onde a imagem das ditaduras ibéricas permanecia ainda forte, com culturas de exílio a misturarem-se com os novos tempos. Mas seria ainda no México que Fernandes Fafe se iria «libertar» do estigma redutor que, um pouco por todo o mundo, sempre persegue as figuras da cultura convertidas à diplomacia: no forte impulso que deu às relações económicas bilaterais, nomeadamente aquando da sensível questão do abastecimento petrolífero a Portugal, as «esporas» de um embaixador completo viriam a assentar definitivamente a Fernandes Fafe.

Mas a cultura, com naturalidade, regressaria ao seu horizonte. Por um par de anos, o papel de embaixador itinerante para esse domínio caiu-lhe que nem uma luva. Diga-se que, com o brasileiro Celso Cunha e Lindley Cintra, Fernandes Fafe foi então um dos autores de um estudo sobre uma estratégia para a Lingua Portuguesa que ainda hoje ganharia em ser revisitado. Foi, aliás, nessa qualidade que o cruzei pela primeira vez, ao tempo em que eu próprio era diplomata em Angola.

Acabaria por ser também um país de lusófono, Cabo Verde, o seu terceiro posto de destino. Um país onde trabalhou muito e bem, como todos reconhecem. Cultura e economia foram pontos fortes dessa sua ação, marcada também pela dinamização do apoio às várias instituições do país, através das estruturas congéneres portuguesas. O êxito atual de Cabo Verde, o seu papel de «benchmark» para a África, rima muito com essa sua linha de trabalho.

A carreira de Fernandes Fafe viria a reencontrar a América Latina naquele que seria o seu último posto: Buenos Aires. Um desafio aos 63 anos, numa embaixada onde teria, contudo, um mandato curto. Dois anos depois, como mandava a lei, regressava a Lisboa.

José Fernandes Fafe foi um diplomata de abril, uma figura que levou o seu prestígio intelectual para as estruturas da política externa portuguesa. Serviu o país com brilho, empenhamento e qualidade. O seu desaparecimento, aos 90 anos, é um momento triste para a nossa diplomacia.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Letras")

Mónica Ferro


Mónica Ferro, professora universitária no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, foi escolhida para diretora regional do Fundo das Nações Unidas para a População, no âmbito da ONU. É muito prestigiante para Portugal ver uma cidadã nacional assumir este lugar, uma decisão que, simultaneamente, representa um reconhecimento das qualidades de Mónica Ferro.

Pessoalmente, tenho muita pena de vê-la abandonar a equipa do programa "Olhar o Mundo", da RTP, onde temos sido colegas nos últimos anos. Mas esta é também, de uma certa maneira, uma distinção mais para o programa dirigido por António Mateus. 

Voltaremos a encontrar-nos, pela certa, nos nossos jantares do "dream team" e, quem sabe?, talvez antes disso em Genève, onde já sinto falta de espiolhar os livros da Payot.

terça-feira, fevereiro 28, 2017

Bonnie and Clyde


Olhei ontem para ambos, ainda antes da "gaffe' patética que involuntariamente protagonizaram nessa gala dos Óscares, e tive algumas saudades. De mim, confesso. Nessa noite do Porto, há quase meio século, num cinema então novo junto à Costa Cabral, por detrás do Estádio do Lima. Era o "Bonnie and Clyde", esse belo filme sobre a dupla de bandidos (só o cinema e a política tornam charmosos os bandidos), que dava ares de cinema europeu de autor (e, talvez por isso, fez tanto sucesso na Europa), mas eu, na altura, não fazia ideia do que isso era. Chovia, lembro-me, porque a sala tinha uma cobertura metálica onde isso se sentia, julgo recordar-me (mas posso estar equivocado). Debaixo do braço, levava comigo "A Capital", um novo jornal que era uma dissidência do "meu" "Diário de Lisboa", que trazia uma análise detalhada ao filme, num tempo em que a crítica cinematográfica não tinha necessariamente como finalidade mostrar-se ininteligível. Saí dali com amigos para o Ginjal, no Bonjardim, para acabar a noite. Aquelas imagens impressivas de Faye Dunaway e Warren Beatty, de armas na mão em carros "vintage", nunca mais me largaram. Por isso, vê-los entrar, algo trémulos, naquele palco, fez-me alguma impressão, agravada pela confusão que se seguiu. Depois, passou. Tudo passa, já aprendi.

Sócrates

Depois de ouvir com atenção José Sócrates na entrevista à TVI, defendendo-se das acusações que lhe são feitas no livro de Cavaco Silva, dei comigo a pensar que, depois de todos estes anos, ele acabou por criar uma relação estranha com o país: diga ele o que disser, isso só conforta o fervor dos seus apoiantes e alimenta a rejeição por parte dos seus críticos.

Que fazer?


Já lá não ia há um bom par de anos. Começa a fazer parte daquele tipo de restaurantes onde só volto quando verdadeiramente me esqueci da má impressão com que fiquei, da última vez que lá fui.

Há restaurantes maus ou medíocres a que regresso apenas por razões sentimentais - ou porque gosto muito dos donos ou porque vou com amigos a quem não quero dizer que não ou porque me dá jeito, por uma qualquer razão, pousar episodicamente por lá. Nesses, sei, à partida, que a experiência gastronómica vai ser desastrosa e, talvez por essa razão, valorizo ao máximo qualquer menor ponto que saia menos mau: "Olha! As batatas fritas até que nem estavam nada más!" ou "o pão e as azeitonas aproveitavam-se" ou "o café estava bom!" ou coisas residuais assim. Visito esses locais, como disse, por sentimentalismo ou por facilidade ou por oportunidade. Alguns são aquilo a que eu chamo restaurantes "sustentadamente maus": têm um nível de mediocridade à prova de bala ou de melhoria, os donos são já honestamente incapazes de perceber a falta de qualidade daquilo que nos servem e, pelo contrário, dizem com a maior candura que "as pataniscas, hoje, estão excecionais" - para depois nos chegar uma coisa amassarocada, com fiapos de bacalhau, altíssima, frita num óleo reciclado.

Mas este não. Este é um restaurante que já foi bastante bom, que teve nome, onde me desloquei várias vezes, ido de longe, com prazer, pela certeza segura de ir lá comer bem. Depois, as coisas começaram a "descarrilar". Há uns anos, ao tempo em que escrevia uma crónicas gastronómicas para a "Sábado", fiz uma visita "profissional" ao local. Ia com alguma esperança. Frustrada. No final, paguei a conta do meu bolso e acabei por não escrever nada. 

(As revistas e os jornais para os quais escrevo críticas gastronómicas só pagam se eu elaborar um texto para ser publicado. Ora eu só escrevo sobre aquilo que gosto; se não gosto de um restaurante, não digo rigorosamente nada sobre ele. Não quero correr o risco, irresponsável, de poder contribuir, com uma crítica negativa, que às vezes pode ter sido causada apenas por um mau momento da casa, para afetar um investimento e pôr em causa um negócio e postos de trabalho.)

Hoje, voltei ao tal restaurante. Comi mal? Mal não comi. Comi "assim-assim-para-mal", paguei excessivamente e, havendo por aí tantos restaurantes onde se come garantidamente bem, combinei comigo mesmo que nunca mais vou repetir aquela experiência. Ao despedir-me do simpático dono, a quem não fiz o mais leve comentário, tive a estranha sensação de estar a dizer o derradeiro adeus a um velho conhecido, que parte emigrado para a Austrália, a quem, com toda a certeza, nunca mais verei. Mas tem que ser assim.

(Qual é o nome do restaurante? Não digo, claro!)

segunda-feira, fevereiro 27, 2017

Gerald Kaufman


Gerald Kaufman, que acabo de saber que morreu ontem, aos 86 anos, era o "shadow Foreign Secretary" ao tempo em que Neil Kinnock era líder da oposição trabalhista. Eu vivia em Londres nesse período e seguia com atenção as prestações de Kaufman, uma voz muito respeitada, num período complexo para a construção de uma alternativa a Margareth Thatcher, que demoraria algum tempo a concretizar-se. Quando isso ocorreu, já sob a liderança de Tony Blair, Kaufman não seria escolhido para liderar a diplomacia britânica, tarefa que coube a Robin Cook. Recordo ainda que é dele a magnífica e assassina frase com que qualificou o programa esquerdista de Michael Foot, em 1983: "the longest suicide note in History".

Como se sabe, na terminologia britânica, os Ministros são designados por "Secretary of State" e aquiles a quem entre nós chamamos Secretários de Estado são apelidados de "Minister", o que muitas vezes confunde a nossa imprensa.

Kaufman tivera funções govenativas num anterior governo trabalhista e havia escrito, já em 1980, um curioso livro sobre o mundo da política governativa no Reino Unido, na relação entre os governantes e o "civil service". Esse livro tem por título "How to be a minister".

Um dia, estando no governo em Portugal como secretário de Estado, numa passagem por Londres, encontrei uma reedição do livro numa livraria e comprei-o. No avião para Lisboa, comecei a lê-lo. Os passageiros foram entrando e, como mais tarde vim a constatar, entre eles devia ir um jornalista. Porquê? Porque, uns dias mais tarde, numa daquelas colunas anónimas de imprensa tipo "Gente", lá vinha uma graça de que eu andava a ler um livro cujo título representava ambições que tinha... Enfim, a intriga, combinada com falta de cultura.   

domingo, fevereiro 26, 2017

Agora, a sério

Paulo Núncio assumiu a sua "responsabilidade política" no caso da listas das transferências para "offshores". Muito bem, dirão alguns. Menos bem, digo eu.

Porquê? Porque, enquanto secretário de Estado, Paulo Núncio não tem, à luz da Constituição, "responsabilidade política".

Leia-se o n° 3 do artigo 191° da CRP: "Os Secretários e Subsecretários de Estado são responsáveis perante o Primeiro-Ministro e o respetivo ministro". Essa é uma responsabilidade funcional.

Ora a CRP é muito clara no n° 2 do mesmo artigo 191°: "Os Vice-Primeiros-Ministros e os Ministros são responsáveis perante o Primeiro-Ministro e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República".

As coisas são muito evidentes. Paulo Núncio era responsável perante o seu Ministro e é este quem tem "responsabilidade política" face à instituição perante a qual o Governo e os Ministros respondem: a Assembleia da República.

Quero com isto dizer que a responsabilidade política pelo ato ou omissão do Secretário de Estado Paulo Núncio, ao longo dos anos, pertence aos Ministros de quem dependeu, Vitor Gaspar e Maria Luís Albuquerque. São estes responsáveis políticos que devem ser chamados a prestar contas perante a Assembleia da República.

Ou não será assim?

sábado, fevereiro 25, 2017

Máscaras de Carnaval

( Dos jornais: "Paulo Núncio assume responsabilidade política e demite-se de funções no CDS". )

Se eu tivesse funções políticas e tivesse que demitir-me, limitando ao mínimo o "estrondo" do assunto incómodo para o meu partido, fá-lo-ia num sábado à tarde, depois de publicados os cinco semanários com impacto político, ainda bem longe dos próximos "Quadratura do Círculo", "Expresso da Meia Noite" e "Governo Sombra". E então se houver um feriado de Carnaval a atenuar a mobilização político-mediática na semana seguinte, a "faena" em prol do esquecimento ficaria garantida.

sexta-feira, fevereiro 24, 2017

Crónica gastrófila


A crónica que publico na revista "Evasões", hoje distribuída com o "Jornal de Notícias" e o "Diário de Notícias", aprecia o restaurante "Costa do Sol", em Vila Pouca de Aguiar.

Pode ser lida aqui.

A terceira idade da Europa


Eça de Queirós escreveu um dia que «a crise é a condição quase regular da Europa ». Com um pouco de exagero, poderia ter dito que a guerra era também algo que, por séculos, viveu historicamente inscrito no código genético do continente. Eça não teve presciência para prever que, no período subsequente ao segundo conflito mundial, a Europa viria a usufruir de um desenvolvimento em paz que lhe parecia induzir um destino de felicidade eterna, não obstante conviver com vizinhanças próximas sob elevada tensão. Um período em que as crises foram controladas e que criou a ilusão, se não do “fim da História”, pelo menos da aparente garantia de um não surgimento, em termos trágicos, de velhos demónios. O tempo veio a atenuar essa ilusão, embora a Europa, comparativamente a outras áreas, seja ainda um invejável oásis..

O projeto integrador europeu constituiu um inegável sucesso. Mas o sucesso tem sempre um prazo de validade e faces inesperadas. Ao procurar alargar-se a Estados que carrearam consigo uma cultura de valores diferente e obsessões estratégicas muito diversas, por muito compreensíveis que estas últimas sejam, a Europa mudou fortemente de natureza. Ao entender como inevitável levar a sua integração a domínios que tocam de perto o cerne tradicional da soberania dos Estados que a compõem, a União Europeia acabou por ressuscitar pulsões nacionais que pareciam eternamente adormecidas. Alargamento e aprofundamento criaram desafios a que a Europa parece ter dificuldade de ultrapassar.

Isso aconteceu por uma razão relativamente simples: ao não comportar no seu projeto um modelo de representação operativa de interesses onde, de uma forma vista como equitativa pelos seus cidadãos, estes pudessem expressar e resolver, com eficácia e resultados, as preocupações muito diferenciadas que os atravessam, a Europa como que obrigou esses mesmos cidadãos a procurarem refúgio no único espaço onde, tradicionalmente, sentiam representada com legitimidade a sua diferença – os Estados nacionais. O único onde, para muitos deles, a sua voz conseguia ser ouvida. Ao fazê-lo, retiram implicitamente legitimidade ao projeto europeu e dão força, no interior de cada Estado, a quantos afirmam que a sede ideal para a resolução dos problemas é aquela que lhes está mais próxima, provando que é o défice democrático e de representatividade das instituições europeias que afasta estas dos cidadãos.

Esse processo de perda de representatividade das instituições europeias agravou-se ao verificar-se que, na perspetiva de muitos cidadãos, estas passaram a ser fautoras dos seus problemas e, muito menos, o espaço e o mecanismo para a sua resolução. Alguns governos nacionais, como forma de alienarem responsabilidades pelos seus insucessos, colocam também a débito do projeto europeu grande parte das insuficiências que afetam o quotidiano das populações – escondendo que a esmagadora maioria das políticas que são objeto de contestação não relevam de decisões europeias mas, simplesmente, de meras opções nacionais. Esta transferência de responsabilidades, transformando a Europa num bode expiatório de tudo quanto corre mal, é um ato de irresponsabilidade e de cobardia política. Mas é, igualmente, um sintoma muito evidente de um mal-estar europeu que não parece ter tendência a atenuar-se.

A Europa integrada vai, daqui a dias, comemorar o seu 60° aniversário. Vamos ter discursos com muitas platitudes políticas. Infelizmente, os seus líderes serão incapazes de uma autocrítica franca que explique as razões do Brexit, a subida de Le Pen e congéneres, que denuncie quem, no seu seio, lhe contraria os valores. A Europa vai comemorar um passado de que pode orgulhar-se, mas para os seus cidadãos o futuro, para o qual parece com escassas soluções, é o mais importante.

quinta-feira, fevereiro 23, 2017

José Afonso


Há 30 anos, morreu José Afonso, que o tempo tinha entretanto transformado num mais íntimo Zeca Afonso. Sou mesmo do período em que na capa dos seus discos figurava ainda "Dr. José Afonso". 

Não me recordo quando o ouvi pela primeira vez, mas tenho a perfeita noção - e digo-o aqui com total abertura - que reagi negativamente a algumas das suas primeiras canções apenas e só porque eram cantadas num estilo muito próximo da canção ou fado coimbrão, que é uma música que nunca me disse rigorosamente nada, e que, à época, associava negativamente a uma espécie de elitismo social fardado de preto, ao traje de capa-e-batina que sempre detestei - e que ainda hoje considero algo ridículo. Esse foi o meu primeiro José Afonso. 

Depois, com os anos, fui apreciando a coragem cívica de José Afonso, a sua denúncia do colonialismo e da ditadura, a subtileza inteligente da sua poesia, uma assunção de risco na intervenção pública que sempre me tocou. Lembro-me, creio que em 1970 ou 1971, de o ter ouvido na Associação de Estudantes de Direito e de ter vaiado, no Coliseu de Lisboa, no dia 29 de março de 1974, o boicote que a última censura do regime, que dali a dias cairia, então lhe fez. 

Naturalmente que me não foi indiferente a elevada utilidade política da sua mensagem, mas devo confessar que, embora reconhecendo a genialidade de muitas das suas composições, nunca fui um fã incondicional da sua música e, em especial, da sua (por muitos tão apreciada) voz. Vou dizer mesmo o que alguns considerarão talvez uma barbaridade: sempre ouvi, e continuo a ouvir, com muito mais agrado Sérgio Godinho, Fausto e até Jorge Palma do que José Afonso. 

Dito isto, José Afonso - de quem possuo toda a obra, note-se - permanecerá para mim como o cantautor mais importante de todo o período da transição da ditadura para a democracia. E o seu "Venham mais cinco" e a "Grândola" ficarão eternamente ligados ao meu 25 de abril. Só por isso - e há muito mais - junto-me à saudade dos que hoje assinalam que o perderam há 30 anos. 

quarta-feira, fevereiro 22, 2017

Interiores

Pelas redes sociais, dou-me conta de que o "Prós e Contras" da passada segunda-feira, dedicado aos problemas da interioridade do país, foi considerado por muitos uma "seca". Imagino que quem estava à espera de ver discutidos os SMS entre Centeno e Domingues ou a saga do Acordo Ortográfico ou o aeroporto no Montijo ou outra temática "fraturante", como o quase aniversário de Marcelo em Belém, tivesse ficado desiludido ao assistir a uma discussão serena, sobre questões que importam à vida das pessoas, sem histerias nem provocações. Como é sabido, as boas notícias não são notícia e, como ficou patente naquele debate, já há boas notícias, embora não suficientes, no que respeita à tentativa de ultrapassagem das questões da periferização dentro do país. Percebo que não seja muito "sexy" ver os mais populares programas televisivos "raptados" de Lisboa, da agenda da capital, desse mundo que vive entre os jornais e os deputados, entre os donos do regime e os que os comentam. As televisões, como se queixava com razão uma participante, mostram ainda o interior como um espaço de tipicismo rural, decadente, feito de clichés de aldeia, de cabelos brancos e de uma simplicidade amável parada no tempo, para a qual alguns olham com paternalismo complacente. Ora o que este programa ensinou ao país é que nesse interior - e esta edição foi gravada em Vila Real - há hoje interessantes fatores de inovação e de rutura com o marasmo, a despontarem por muitas das suas terras, jovens com iniciativa a sacudir o fatalismo do destino, instituições a pilotarem a modernidade, uma massa crítica pensante muito para além do paroquialismo, autarcas a olhar bem para a frente e a não se acomodarem ao país macrocéfalo, lisboacrêntrico, que alguns teimam em querer prolongar. Querem um bom teste para se perceber quem vive no passado e quem quer agitar positivamente o futuro? Olhem para as posições face à descentralização. É um excelente barómetro!

terça-feira, fevereiro 21, 2017

Do défice

Há um truque novo nas notícias que nos chegam nas redes sociais ou nas menções feitas pelos "media" através destas (em especial no Twitter), havendo mesmo uns jornais nisso "especialistas", useiros e vezeiros nessa prática: publica-se um título com algo que garantidamente chama a atenção, criando a subliminar sensação de que as coisas se passam em Portugal e, depois, quando se vai ler a notícia, verifica-se que é do outro lado do mundo.

Estejam atentos a coisas como "pais vendem gémeos à nascença" ou "avionetes chocam no ar" ou algo assim. Clica-se a notícia e verifica-se que, afinal, o tráfico humano foi em Nauru ou em Tegucigalpa e o acidente em Alice Springs ou no deserto de Atacama. O site, entretanto, tendo-o nós "visitado" porque caímos no "isco", já nos inundou de "pop-up" ou de outra publicidade, colocando-nos no fundo da página outras notícias enganadoras de natureza similar. Para o que interessa ao site, passou logo a contar com mais "clicks", para os números que vai mostrar aos anunciantes com vista a promover-se.

Assim, caros amigo, quando lerem "mulher foi ao banco nua" podem ter a certeza de que não foi em Cête ou em Tercena. Mas se acharem mesmo picante (e tiverem tempo para) ler essa historieta passada em Ulan Bator ou em Baku, não hesitem...

Em Portugal, quando a realidade não provoca escândalos ou situações anómalas, importamo-los. Faz parte do nosso défice... É assim que a coisas funcionam neste país de inocentes úteis e chicos espertos. E siga a Marinha!

segunda-feira, fevereiro 20, 2017

José Fernandes Fafe (1927-2017)


Há dias, assinalei aqui a passagem do 90º aniversário de José Fernandes Fafe, um intelectual de grande mérito que, em boa hora, Mário Soares chamou um dia à diplomacia portuguesa, onde teve uma prestação que redundou num elevado prestígio para o nosso país.

Fernandes Fafe representou muito bem a diplomacia do Portugal democrático e consagrou-se como um indiscutível valor acrescentado para a política externa portuguesa. Pessoalmente, era um amigo por quem eu tinha imensa admiração e respeito, para além de uma forte consideração cívica.

José Fernandes Fafe morreu hoje. Deixo aqui o meu pesar e os respeitos à sua Família.

domingo, fevereiro 19, 2017

O livro

As memórias presidenciais de Aníbal Cavaco Silva (já lidas de fio a pavio, porque faço parte dos estóicos de biblioteca) é uma espécie de livro de atas de um notário meticuloso (quase picuínhas) da política. 

Do texto, que em escrita é basicamente escorreito mas onde o que sai do oficioso resvala para um discurso literariamente menos glorioso, ressalta um tropismo, em crescendo, para a adjetivação ácida, aqui ou ali algo vingativa, "to say the least".

É um livro auto-elogioso à náusea, de quem tudo viu, tudo previu, numa omnisciência que só foi pena não ter tido afinal consequências de maior para bem do país que insistiu em colocá-lo em Belém por um longo decénio.

Cavaco Silva sabe que, ao ter elegido José Sócrates como "bombo da festa", garantiu um "pós-eleitorado" seguro para dar um pouco mais de credibilidade à narrativa eufórica que faz sobre si mesmo. Muito pouco elegantes são as palavras que dedica a Mário Soares. Nada que surpreenda, contudo, conhecido o autor.

Uma nota inevitável para a ligeireza com que se refere a algumas trapalhadas próprias, a menor das quais não será a das escutas.

Enfim, um livro de quem tem pressa em tentar que o país dele fixe de si uma imagem à altura da elevada conta que guarda de si mesmo.

sábado, fevereiro 18, 2017

Pedro Leite de Noronha


Hoje, em mais um excelente artigo no "Diário de Notícias", Ana Sousa Dias fala das "cartas ao diretor" dos jornais, revelando o "segredo" de que, no passado, na ausência dessa correspondência, era aos próprios jornalistas que era pedido que "inventassem" textos para encher esse espaço.

Vou repetir uma história (que já uma vez aqui contei) de uma dessas cartas, de que eu próprio fui autor, embora sob pseudónimo - e logo perceberão porquê.

Nem sempre os funcionários diplomáticos portugueses foram sindicalizados. Quando entrei para a profissão, em 1975, não havia nenhuma estrutura sindical representativa dos diplomatas. Um dia, creio que dois ou três anos mais tarde, foi criada uma Associação dos Diplomatas Portugueses. Por algum radicalismo que à época partilhava, decidi não entrar como associado dessa estrutura, por não ver a palavra "sindical" incluída no respetivo nome, condição de representatividade que achava indispensável. Cheguei mesmo ao ponto de mobilizar um grupo de jovens colegas como forma de tentar obstruir essa iniciativa, que considerava "recuada" e pouco ousada.

Mais tarde, nos anos 80, as coisas mudaram e foi, finalmente, criada a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses. Dela cheguei a ser vice-presidente, nos anos 90 e, nos últimos dois anos, fui presidente da respetiva Assembleia Geral. Alguns colegas mais antigos não apreciaram a mudança registada e reagiram fortemente à dimensão sindical da nova Associação.

Porque o tema dos diplomatas terem um sindicato era verdadeiramente novo e o "Expresso", por discreta sugestão de alguns de nós, tinha trazido uma notícia sobre o assunto, tive a ideia de escrever uma carta ao respetivo diretor, em nome do "ministro plenipotenciário Pedro Leite de Noronha", na falsa qualidade de um dos contestatários do novo sindicato. Nessa carta, escrita num tom snobe, expressava o "desgosto" por ver os diplomatas do MNE "banalizarem-se" e enveredarem "tristemente" pela via sindical, trazendo a público questões que, no passado, eram sempre resolvidas "entre os claustros e a tapada" das Necessidades. O "Pedro Leite de Noronha" ia mais longe e considerava que o facto dos diplomatas andarem a colocar "nas bocas públicas do mundo" as peculiaridades da sua vida profissional refletia, muito simplesmente, "o facto do nível social do seu recrutamento ter baixado", fruto dos "lamentáveis ventos de abril", de terem "deixado, na sua maioria, de possuir fortuna própria", o que os tornava "permeáveis às pulsões materiais da vida".

Nos dias subsequentes à publicação da carta, os comentários sobre a mesma motivaram muitas conversas "entre os claustros e a tapada", muito embora ninguém alimentasse a menor dúvida sobre a não autenticidade do texto, porque não havia, nos quadros do ministério, nenhum "Pedro Leite de Noronha". Procurei que o nome tivesse um toque onomástico suficientemente "bem" para poder abrir caminho à sua credibilização em áreas para fora da "casa". E todos perceberam que o absurdo do argumentário da carta mais não era de que uma forma de ridicularizar o reacionarismo primário de quantos se opunham à ação da nova associação sindical.

Só tempos depois vim a saber que, por essa altura, numa embaixada portuguesa numa importante capital europeia, por onde curiosamente eu viria a passar alguns anos mais tarde, o embaixador comentara o assunto com uma colega (hoje também já embaixadora) com uma observação do género: "É evidente que este nome é falso: não temos nenhum colega que se chame assim. Mas que ele tem bastante razão, lá isso tem!"

O comandante

As ordens, nessa manhã de há precisamente 50 anos, tinham sido claras: os portões da unidade ficavam fechados e ninguém entrava sem uma auto...