sexta-feira, fevereiro 03, 2017

Notícias do anti-americanismo

O anti-americanismo, essa velha doença infantil da esquerda europeia, que curiosamente também afeta algum pós-salazarismo, renasceu por cá de uma forma curiosa, tendo Trump como argumento. E permitiu "flic flacs" que dão vontade de rir.

Senão vejamos.

Assistimos a gente que detesta o liberalismo, e o tem por jurado inimigo, a clamar contra o "ataque à ordem liberal" que Trump empreendeu.

As críticas do presidente americano à NATO provocaram uma curiosa onda de comoção em muitos que sempre acharam que a organização era uma estrutura intrusiva e agressiva. Agora não: parece que está toda a gente num imenso "clube de amigos" da NATO.

Emocionante foi ver pessoas que passaram anos a sublinhar os malefícios da globalização verdadeiramente indignados contra a rejeição dos tratados comerciais multilaterais. Afinal, o livre-cambismo tinha por cá muitos fiéis que se mantinham "na clandestinidade".

Há também os neo-europeístas convertidos à pressa. Gente que vinha a achar que o euro era um projeto condenado, que a Europa comunitária era a fonte de todos os males, escandaliza-se com o apoio de Trump ao Brexit e as suas profecias negativas sobre a moeda única.

Há muitas e boas razões para se não gostar do novo presidente americano, mas convem ser-se sério, não vale tudo...

Do mal o menos?

Tenho saudades do tempo em que desejava que ganhassem os meus.

Tenho saudades do tempo em que, nas eleições americanas, era a favor de George McGovern, porque era a América que me entusiasmava, face às trampolinices de Richard Nixon. Agora, nas últimas eleições, fui a favor de Hillary Clinton, uma mulher a quem nunca perdoei o apoio dado a George W. Bush na invasão do Iraque, uma candidata a quem cabiam as maiores responsabilidades na tragédia da Líbia, uma das culpadas pelo estado de conflitualidade criado na Ucrânia.

Tenho saudades do tempo em que fazia figas para que o SPD alemão arrasasse a CDU aliada ao radicalismo conservador bávaro da CSU. Agora, sinto-me tentado a cantar loas a Angela Merkel, a elevá-la a expoente da consciência da moral europeia, pelo seu gesto humano perante os refugiados, depositando esperanças em que ela possa dar um mínimo de liderança a esta pobre Europa.

Tenho saudades do tempo em que vivia as presidenciais francesas como se fossem no meu país, em que me entusiasmava com Mitterrand e, mais tarde, com a possibilidade de Jospin poder colocar um ponto final às ambições do gaullismo tosco de Chirac. Depois, foi o que se viu: "votei" por Chirac para derrotar o pai Le Pen e agora, perante a inexistência de um candidato de esquerda com um mínimo de hipóteses de vitória, já me satisfaria uma figura de direita menos radical, fosse François Fillon (mas não deve ser) ou um modelo político plástico como Emmanuel Macron. O importante será conseguir derrotar a filha Le Pen na 2ª volta.

Por este andar, para evitar que os (meus) adversários da Segunda Circular vençam a Liga, ainda me verei a resignar-me a que a rapaziada das Antas tenha êxito. 

Estou farto deste "do mal o menos" a que pareço condenado...

O poder da exceção


Há dois dias, ouvimos o novo responsável pela Defesa dos Estados Unidos exigir ao Irão o estrito cumprimento de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, relativa ao seu equipamento militar. Ninguém lhe ouvirá, contudo, uma palavra de exigência a Israel para que cumpra as múltiplas resoluções, aprovadas no mesmo âmbito, que o governo judaico se recusa a respeitar desde há décadas.

Os americanos foram os inspiradores da ordem multilateral em que vivemos, após a Segunda Guerra mundial. As Nações Unidas e as instituições de Bretton Woods (o Banco Mundial e o FMI) devem-se ao seu impulso. Mas é uma evidência que os Estados Unidos tiveram sempre uma leitura muito própria do seu papel no mundo: usam as instituições multilarerais tanto quando podem, delas retirando legitimidade para aquilo que corresponde aos seus interesses, mas recusam-se, por sistema, a aceitar ficar em minoria nessas instâncias, isto é, a acatar uma vontade que não seja a sua. Perante esses casos, decidem ações unilaterais (como fizeram no Iraque, em 2003) ou jogam com a asfixia financeira das organizações (como fizeram na Unesco, em 2011), não pagando as contribuições a que livremente se obrigaram. Este multilateralismo “à la carte” representa a arrogância de uma potência que tem consciência de que a sua força é um fator que pode sobredeterminar muitas coisas. E, mais do que isso, que intimida e, frequentemente, faz vergar os outros.

Note-se que este comportamento americano não é exclusivo das administrações republicanas. Com maior ou menor frontalidade, em todos os ciclos politicos de Washington houve sempre uma reserva dessa espécie de direito à “excecionalidade”. Se o “outro lado” geopolítico do mundo nunca aceitou este autoproclamado estatuto, os aliados ocidentais, temerosos e dependentes, foram-se quase sempre acomodando a este “poder de facto”. 

Apesar desta sua prática, Washington nunca abandonou, sobre o seu compromisso perante o mundo multilateral, uma retórica discursiva de adesão teórica aos seus princípios. E a retórica, mesmo hipócrita, é sempre reveladora da existência de alguma saudável vergonha.

Isso, agora, parece ter acabado. A primeira declaração da nova embaixadora americana nas Nações Unidas é um atestado de rejeição frontal dos fundamentos por que se rege a comunidade internacional. A nóvel diplomata deixou claro que está ali para fazer prevalecer a vontade dos EUA na a ONU, e que “tomará nota dos nomes” dos países aliados que a tal se oponham. E outros sinais já surgiram, entretanto, denunciando que a cartada financeira será usada para condicionar o funcionamento futuro das várias estruturas da organização.

Podemos imaginar a magnitude da tarefa que aguarda António Guterres num contexto como este. Só lhe podemos desejar sorte, porque coragem sabemos que nunca lhe faltará.   

quinta-feira, fevereiro 02, 2017

Irresponsabilidade

Espero que o Estado português encontre meios para poder ressarcir-se das despesas em que incorre quando lança operações de salvamento para o bando de irresponsáveis que vai para desportos no mar, em tempo de tempestade, ou arriscam passear ou fotografar em zonas proibidas, pondo também em risco as vidas das forças públicas encarregadas do seu resgate.

Sucedâneos

Hoje, em mais um grande texto no Diário de Notícias, Ferreira Fernandes lembra o filme de Elia Kazan, "America, América", a célebre expressão do imigrante ao chegar à vista de Manhattan.

Uma noite, em Nova Iorque, fui convidado para um jantar com a mulher de Elia Kazan, inglesa, a qual, creio, estava acompanhada por uma filha. Kazan ainda era vivo, mas já não saía de casa. O jantar - espero que a minha memória me não traia - era em casa dos embaixadores turcos. Kazan nasceu em Istambul.

Eu teria tido grande curiosidade em conhecer Kazan, não apenas porque ele era um génio do cinema, mas porque teria assim o ensejo de me cruzar com alguém que havia tido um comportamento miserável, aquando do sinistro Comité das Atividades Anti-Americanas, denunciando colegas ao macartismo.

Mas Kazan não estava lá. Os convidados estavam reunidos à volta da sua mulher. Que estava ali, claramente, apenas por ser mulher de Kazan, nome que veio à baila uma única vez, numa breve referência. A ocasião era assim, manifestamente, sem objeto. Foi uma noite que recordo como algo pífia.

Vinte anos antes, em Oslo, eu havia sido convidado para jantar com um chileno, refugiado há poucos meses na Noruega. Ele era a estrela do jantar, muito por se saber que era primo da famosa secretária de Allende, a Payita.

A certo passo, dei-me conta do ridículo da situação: todos olhávamos, com alguma reverência política, para aquela figura, apenas e só pelo parentesco que tinha. (Acabaríamos por nos tornar bons amigos). O nome da Payita acabou por nunca vir à conversa.

À saída, o amigo que me levara ao jantar notou que eu não fizera quaisquer perguntas sobre a Payita. Respondi-lhe: "O que é que tu querias que eu perguntasse? Talvez: 'olha lá! E que tal era a tua prima?' " Acabámos às gargalhadas.


Isto de gente um bocado "ao lado" é como o queijo "tipo Serra"...

Dona Marisa


Marisa Letícia foi uma mulher muito bonita. Lula conheceu-a quando era dirigente sindical. Um dia, ela surgiu no seu escritório, como viúva, para tratar de uma questão relativa ao seu falecido marido. Lula confessou mais tarde que "complicou" o processo para forçá-la a ir por lá mais vezes... E casaram.

Era uma mulher simples. Mostrava-se sempre pouco à vontade no cargo de "primeira dama", cujos rituais cumpria a custo. Evitava, tanto quanto podia, ocasiões sociais e nelas, como é sempre típico de quem assim se sente, colava-se a amigos ou a quem lhe desse alguma atenção.

Era muito protetora de Lula e, em especial, uma feroz fiscalizadora dos seus abusos: "Se dona Marisa autorizasse, eu pedia uma aguardente portuguesa aqui ao nosso embaixador", recordo-me de ouvir, um dia, de Lula, num jantar oferecido na nossa residência em Brasília. E ela anuiu, sorrindo.

Marisa era ferozmente "petista" e teve a ousadia, algo irresponsável, de pedir ao jardineiro do palácio de Alvorada desenhasse no jardim, num canteiro, uma estrela de flores vermelhas, o símbolo do PT, episódio que deu algum escândalo.

Quero crer que Lula, sem dona Marisa a seu lado, sentir-se-á ainda mais fragilizado, neste tempo, político e pessoal, altamente complexo que atravessa. Para o meu amigo Luiz Inácio Lula da Silva, deixo um abraço sentido de pesar pela morte de dona Marisa.

Paris e este blogue


Faz hoje precisamente oito anos. Cheguei nessa noite a Paris, ido de Lisboa, para aquele que seria o último posto da minha carreira diplomática. A certeza da data do termo das minhas funções (à época, os diplomatas não podiam permanecer no estrangeiro depois dos 65 anos) permitia-me planear os quatro anos à minha frente com alguma calma. E, nesse dia, iniciei este blogue.

Paris havia sido uma escolha minha. Simpaticamente, tinham-me sido dadas várias outras e interessantes possibilidades em matéria de postos, mas optei pela experiência numa cidade que (pensava que) conhecia bem, com uma cultura que me era muito próxima. Paris era o sonho da minha juventude, para onde, nos anos 60, partira de Lisboa à boleia, como um muçulmano vai a Meca. A partir de então, com a periodicidade que me era possível, fui um visitante frequente da cidade. Aí viver por alguns anos não era uma hipótese que me pudesse ser indiferente. Mas, nos quatro anos que se seguiram, aprendi bem a diferença entre ser turista e residente...

Dois outros fatores me entusiasmavam. A França era um parceiro central do processo europeu e eu tinha uma especial apetência (e, vá lá, conhecimento) pela matéria, pelo que achei que tinha algumas condições para ajudar a promover os interesses portugueses, no plano europeu, junto das autoridades francesas. O segundo fator era a comunidade portuguesa, a maior no exterior. Eu vinha do Brasil, onde os portugueses residentes refletem uma realidade diferente, mas onde tinha começado a entusiasmar-me por essa fantástica aventura que era o mundo expatriado lusitano. Em ambos esses domínios iria ter excelentes experiências.

Vivi dois períodos muito diferentes, em Paris. Nos dois primeiros anos, foi tudo um pouco "business as usual". Os últimos dois anos coincidiram com os tempos da "troika", com fortíssimas restrições financeiras, com cortes drásticos nos orçamentos, salários e pessoal. Foi também um tempo de redução de estruturas consulares, de despedimento de professores que ensinavam português na comunidade.

Não foi nada fácil "representar" da mesma forma os dois tempos, tentando ser completamente leal em ambos, porque um embaixador tem de calar os estados de alma, tem como obrigação obedecer aos governos de turno, representa em última instância o Estado, de que esses governos são apenas gestores conjunturais. E é a imagem externa do Estado, isto é, do país em nome do qual atua, que importa acima de tudo preservar.

Este blogue começou, assim, há precisamente oito anos, no dia 2 de fevereiro de 2009. Sem exceção, aqui deixei, pelo menos, um texto ou uma imagem todos os dias. Às vezes, mais. Lendo-o em retrospetiva, noto nele um retrato contido, nunca oficioso mas sem nunca esquecer as funções que exercia, do modo como fui lendo a realidade desses quatro anos intensos de vida. Um retrato às vezes alegre, outras vezes sofrido. Mas sempre sincero, porque aprendi que a verdade pode dizer-se de várias maneiras. 

Em 2013, o blogue mudaria de estilo e de tom, a partir do momento em que a saída das funções oficiais me desobrigavam de alguma contenção, que até aí era natural. Alguns dos leitores não gostaram, outros apreciaram o que, para quem me conhecia, não era um "outing", mas apenas a vocalização mais livre das minhas ideias. E assim continuou, até hoje. E assim continuará, até que me canse definitivamente deste exercício.

Uma última nota. Saí de Paris há quatro anos, quase dia por dia. Sem a mais leve nostalgia. Quando por lá passo, e continuo a gostar muito da cidade, às vezes quase me esqueço de que vivi por ali. Pode parecer estranho, mas é pura verdade. E deixo um "segredo", que talvez ajude a explicar muita coisa: não há nada como viver em Portugal!

quarta-feira, fevereiro 01, 2017

Avante!

Um sindicato qualquer anunciou a possibilidade de fazer uma manifestação em frente à sede do PCP para protestar contra a decisão dos comunistas de tentarem rever a legislação que entrega ao município de Lisboa os transportes coletivos da cidade.

Foi preciso vir a "geringonça" para podermos vir eventualmente a assistir a um momento inédito na história do movimento operário português: uma estrutura sindical a manifestar-se em frente à Soeiro Pereira Gomes. 

E não há nada de mais irónico de que isto aconteça no ano em que se celebra o centenário da Grande Revolução Socialista, em 1917, património histórico de que o PCP é o fiel "caretaker" em Portugal.

Avante, camaradas! 

Eutanásia

Não tenho posição sobre a questão da eutanásia. Tenho muitas dúvidas e muito menos certezas. Tenho, porém, duas certezas fortes.

A primeira é a que não quero esta discussão sujeita à demagogia de um processo referendário - esse infeliz instrumento populista onde as emoções, o "achismo" e as pressões ideológicas e irracionais têm o seu pasto preferido.

A segunda é a de que desejo que as pessoas que elejo para tomarem por mim as decisões legislativas - os deputados, o governo e o presidente da República, fiscalizados pelo Tribunal Constitucional em que ibstitucionalmente confio - recolham as melhores informações técnicas, comparem os melhores exemplos estrangeiros e, depois, decidam em consciência.

Mas, por favor, poupem-nos ao espetáculo de um processo referendário, essa infantilização caricatural da democracia. Esta é uma questão demasiado séria para ser deixada na mão de demagogos e de instituições arrebanhadoras de emoções.

Falemos da América, não de Trump


Com óbvia razão, temos concentrado a nossa atenção em Donald Trump. O primarismo caricatural de algumas das suas primeiras decisões, que não desiludiram as piores expetativas, mostra que estamos perante uma agenda radical que poucos pensavam ser possível. Mas é. E porque as coisas são o que são, e porque os Estados Unidos não são uma potência qualquer, o que é decidido em Washington tem uma importância determinante para o mundo. Tem-no para os adversários da América, como o tem para os seus amigos e aliados, como é o nosso caso.

Mas o problema, desculpem lá!, não se chama Donald Trump, chama-se Estados Unidos da América. A América não é vítima de Trump, ele não é um epifenómeno que, coitados!”, os americanos sofrem. Trump foi eleito pelos americanos, ele representa a América e é à América política – ao Congresso, aos Estados, aos nossos interlocutores institucionais, a cada diplomata americano que encontremos pelas esquinas da vida internacional – que devemos pedir responsabilidades por aquilo que Washington faz enquanto este presidente lá estiver.

Trump não está "Home alone" na Casa Branca, tudo o que fez e tudo o que vier a fazer fá-lo porque o povo e os políticos americanos o autorizaram ou o autorizam. Deixar que Trump sirva de alibi às barbaridades que a América possa vir a determinar pelo mundo nos próximos tempos é isentar de responsabilidades os congressistas que o apoiam e podem vir (ou não) a implementar a sua legislação. A América política que passar à prática as determinações do presidente não é uma vítima de Trump, é cúmplice dele. Porquê? Porque está nas mãos dessa América política não aprovar muitas das medidas que Trump decida, reverter na prática grande parte daquilo que está nas suas “executive orders”. E, no limite, “impichá-lo”, como dizem os brasileiros. Nunca esqueçamos isto.

O que se está passar por estes dias em Washington tem laivos de uma revolução, porque abala os fundamentos daquilo que nos habituáramos a ver surgir das bandas do maior país do Ocidente, impulsionador da ordem multilateral que serviu de esqueleto ao mundo contemporâneo, assente numa cultura de valores que haviam funcionado como importante referente ético-político, base, aliás, do  "soft-power" em matéria de valores que fazia parte do nosso proselitismo democrático e de Direitos Humanos.

A reboque dessa nova agenda revisionista, os EUA espalham hoje sinais que deixam dúvidas sobre a sua fidelidade essencial a alianças estruturantes da nossa segurança coletiva, introduzindo imprevisibilidade no seu futuro comportamento face a atores que, como a Rússia, se mostram hostis à preservação de um corpo de princípios que temos por básicos numa ordem global pactuada – e que os próprios EUA foram os primeiros a considerar importante preservar. O que vem sendo dito sobre as Nações Unidas, bem como a filosofia arrogante que acompanha a sua nova postura neste contexto, é de uma gravidade sem precedentes.

No Médio Oriente, caldeirão de insegurança de largo potencial, o que chega de Washington é muito perturbador, em especial ao colocar em causa, num gesto de inédita irresponsabilidade, aquilo que demorou anos a conseguir na tensão israelo-palestina: uma fórmula de sucesso limitado mas com a virtualidade de ter transformado o “status quo” num conflito de baixa intensidade.

Para a Europa, a nova agenda americana, para além dos abalos na NATO, apresenta-se como quase hostil. Se a rejeição do TTIP é uma reversão séria mas admissível como opção nacional (do lado europeu também haveria problemas e uma potencial administração Clinton não dava garantias plenas neste domínio), o aplauso ao Brexit, o estímulo agressivo à sua futura reprodução e a mensagem negativa sobre o futuro do euro constituem a mais frontal bofetada que os EUA alguma vez deram nos seus mais fiéis aliados à escala global. A América que estimulava a unidade europeia, e que forçou o acolhimento no seu seio dos países libertos da tutela de Moscovo, desapareceu, pelo menos por ora.

Às perspetivas de conflito comercial na Ásia, que acarretam riscos político-militares cujas consequência estão longe de se confinarem nas áreas de interesse americano, somam-se ainda declarações de extrema sensibilidade sobre os equilíbrios no âmbito nuclear, pela indução de dúvidas sobre a pertinência do atuais instrumentos de combate à não-proliferação.

Neste rol de recuos sobre o que havia sido consensualizado – que o foi, as mais das vezes, sob impulso americano, o que é ainda mais irónico – destacam-se ainda atos e declarações detrimentais para marcos civilizacionais como os acordos climáticos, que põem em causa entendimentos laboriosamente conseguidos, libertando os infratores internacionais do isolamento constrangente a que haviam sido acantonados.

Quase que custa dizer que restamas questões migratórias, acompanhadas por um discurso estigmatizante e discriminatório, que nos faz recuar décadas, ou declarações fora de qualquer classificação sobre a legitimidade da tortura e de outros comportamento dignos de tempos de barbárie.

Fica aliás a sensação de que agora, no domínio dos princípios, já nada está adquirido, tudo pode voltar atrás – um movimento relativizador cuja gravidade pode ser medida pelo modo eufórico como algum extremismo internacional está a acolher esta nova agenda. E Europa, palco de tensões políticas onde estas preocupações estão muito ancoradas, e que contou em tempos com outra América para limitar a sua expansão, será a primeira vítima deste desvario.

Volto ao que disse. Esqueçamos Trump. Falemos da América e das ações do seu novo presidente. Mas, a partir de agora, não libertemos os Estados Unidos das suas responsabilidades por via de um voyeurisme” divertido sobre a figura patética que os americanos escolheram para os representar.

(Artigo hoje no "Público")

terça-feira, janeiro 31, 2017

François Fillon


François Fillon foi primeiro-ministro de Nicolas Sarkozy, durante os cinco anos de mandato deste. O presidente não teve razões de queixa deste homem discreto que, bem pelo contrário, sofreu constantes humilhações por parte do hiperativo chefe do Estado francês. 

Fillon surgiu na política sob a asa de Philippe Séguin, um gaullista "social", soberanista e antieuropeu - e poucos já recordam que Fillon esteve ao lado do "non" no referendo a Maastricht. A deriva contra a Europa desapareceu do seu discurso, mas igualmente dele sumiu a dimensão social. 

Fillon tentou explorar o filão da direita pura-e-dura decente, isto é, um conservadorismo radical, com raízes ideológicas numa democracia-cristã (que, em França, nunca gerou um partido com futuro) que o choque com alguma liberalidade fraturante de costumes e com a recusa ativa do multiculturalismo tem vindo a fazer crescer. Escrevi "decente" porque, ao contrário do oportunismo de Sarkozy, Fillon cuidou sempre em colocar uma barreira entre si e o Front National. (Basta lembrar a sua recusa do obsceno "ni-ni" - "ni FN, ni PS" - que alguma direita seguiu, quando teve de optar entre a extrema-direita e os socialistas, na segunda volta das legislativas, quebrando a regra "republicana" que, por exemplo, havia levado Chirac ao poder).

Depois da saga da disputa pela liderança do partido da direita (e Fillon, significativamente, tem assumido essa marca política com frontalidade), surpreendeu ao surgir como o vencedor das primárias desse setor, derrotando Alain Juppé (e, sem surpresa, Sarkozy, de quem a França está mais do que farta), um gaullista que garantia com facilidade o voto de muita esquerda, numa segunda volta presidencial contra Marine Le Pen. A imagem gasta e algo arrogante de Juppé tê-lo-á feito perder o "appeal" face a um Fillon mais moderno. Tudo parecia indicar que bastava Fillon surgir como a barreira a Le Pen para que o tapete vermelho de acesso ao Eliseu começasse a ser desenrolado.

Só que a vida traz surpresas, ao virar da curva. Ao adotar um discurso "mãos limpas", que jogava bem com o sentimento de uma França cansada dos "affaires" de interesses, que marcam historicamente a sua vida política, Fillon colocou-se a jeito perante qualquer deslize pessoal nesse âmbito. E ele surgiu, com revelações comprometedoras de nepotismo com dinheiros públicos, numa sucessão de trapalhadas que pode vir a afetar as suas ambições presidenciais. Os últimos dias não têm sido fáceis para Fillon, a quem se está a aplicar a sugestiva imagem aeronáutica cunhada por Jacques Chirac: "Les emmerdes, ça vole toujours en escadrille..."

José Fernandes Fafe


Os diplomatas que investem a sua vida numa longa e exigente carreira que, apenas para alguns, culmina na ascensão à chefia de uma missão, com a categoria de embaixador, não veem com muito bons olhos, e julgo que compreensivelmente, a nomeação de embaixadores "políticos". Estes foram em algum significativo número no passado, em especial após a Revolução de abril, sendo que, nos tempos mais recentes, a frequência desse tipo de nomeações caiu muito e ficou centrada em lugares de perfil mais especializado. Hoje, não há mesmo nenhum. Mas, para sermos honestos, há que dizer que algumas dessas personalidades exteriores que passaram pela carreira - na minha pessoal opinião, apenas uma muito pequena minoria - constituiram-se como um real valor acrescentado para o serviço diplomático.

Há um nome de um embaixador "político", que sempre mereceu o meu maior respeito, uma figura moral e um grande homem de cultura, cuja ação diplomática trouxe um evidente contributo para a defesa e promoção dos interesses de Portugal, nos quatro postos onde desempenhou funções. O seu nome é José Fernandes Fafe.

Precisamente no dia de hoje, alegre data republicana, José Fernandes Fafe completa a bela idade de 90 anos. Tenho pena que me não seja possível dar-lhe um abraço nesta ocasião. Mas faço-o por esta via. E vou contar uma história leve com ele ocorrida em Angola.

Estávamos na primeira metade dos anos 80. Chefiava a nossa missão em Luanda José Stichini Vilela, como encarregado de negócios, no intervalo entre dois embaixadores. Fernandes Fafe deslocara-se a Angola, vindo de S. Tomé, na qualidade de embaixador itinerante para os países lusófonos, acompanhado do professor Luís Filipe Lindley Cintra, outra magnífica figura da cultura portuguesa, para contactos no âmbito universitário.

Stichini Vilela convidou, naturalmente, Fafe e Cintra para jantar, na véspera do seu regresso a Lisboa. Foi para todos os presentes uma conversa com imenso interesse, com dois interlocutores extraordinários, duas personalidades serenas e complementares, que muito nos enriqueceram, num tempo em que, em Luanda, se vivia algum isolamento. Despedimo-nos dos convidados, depois do jantar, desejando-lhes boa viagem para Portugal.

No dia seguinte, fomos informados que o único voo diário da TAP para Lisboa havia sido suspenso e que os visitantes teriam de ficar mais uma noite no hotel. O então cônsul-geral português, Fernando Andresen Guimarães, tomou a iniciativa de organizar um novo jantar em sua casa, incluindo os convivas da noite anterior. Nova noitada de "bom papo", como dizem os brasileiros, e nova despedida coletiva a Fernandes Fafe e Lindley Cintra.

A grande surpresa viria na manhã subsequente. Afinal, também nesse dia, por uma qualquer razão técnica, o voo da TAP não se realizaria. Eu era então primeiro-secretário da Embaixada e, com gosto, propus-me fazer em minha casa um terceiro jantar aos nossos visitantes. Recordo-me que foi uma noite igualmente agradável, finda a qual brincámos com a possibilidade do voo também não ter lugar no dia seguinte. 

À despedida, Fernandes Fafe voltou-se para aqueles que haviam sido os seus sucessivos anfitriões e perguntou: "Os meus amigos gostam de Raymond Chandler?". Julgo que todos dissemos que sim, no meu caso porque fui um fanático da literatura policial. "E estas três noites não lhes fazem lembrar Chandler?". Ficámos perplexos, sem resposta, não percebendo onde queria chegar com a questão. Com um sorriso, Fernandes Fafe acrescentou: "então não se lembram do livro dele, do "The long goodbye" ("O longo adeus?")?

Longa vida, querido embaixador José Fernandes Fafe!

segunda-feira, janeiro 30, 2017

A nova banha-da-cobra

Há atualmente uma estação de rádio que, pelo tipo de música que passa, deve ser escutada por imensas pessoas idosas. Quer em música portuguesa, quer em antigos êxitos estrangeiros, é um fartote de nostalgia, para quem estiver para aí virado. Até aí, tudo bem. Cada um ouve o que gosta e é até excelente que uma camada etária mais avançada possa encontrar as sonoridades que aprecia.

Só que idade rima frequentemente com doenças e padecimentos vários. E se a isso somarmos alguma falta de "instrução" (que belo era este termo antigo, do tempo da "lavoura" do dr. Paulo Portas) e cultura, estará criado o ambiente propício para que a fragilidade destas pessoas possa ser explorada por mensagens enganosas.

Nessa tal rádio para a "terceira idade" (também já não se diz, não é? Agora é "seniores" que se convencionou chamar a quantos são simplesmente velhos), ouvi há dias uma das mais obcenas propagandas a uma milagrosa mezinha. Juntando depoimentos obtidos sabe-se lá como, os "senhores óvintes" ficam a saber que esse produto pode ter efeitos positivos do cancro à hipertensão, dos diabetes ao colesterol.

É simplesmente arrepiante constatar que é permitido difundir publicidade enganosa desta forma, creio que com o clássico "se telefonar no prazo de uma hora, receberá dois pagando só um". É uma imensa fraude, que recorda os cobertores e os tacho dos vendedores da banha-da-cobra - esse histórico unguento milagroso, que "curou" gerações de papalvos.

Não há instâncias oficiais que ponham cobro a isto? E o Infarmed? Não há associações médicas que desmascarem esta fraude? E onde anda a Deco, de que sou sócio, perante este escândalo?

domingo, janeiro 29, 2017

Ai Carmela!


As ideias são como as cerejas. Ao ler, há pouco, um comentário de Jaime Nogueira Pinto sobre Carmen Franco (a detestada Carmela), mulher de Francisco Franco, no seu livro sobre cinco ditadores europeus, veio-me à memória um dia, há uns anos, em que entrei numa casa de venda de CD nas Ramblas, em Barcelona.

Andava então à procura de canções da Guerra Civil espanhola, entre as quais versões da famosa "Ai, Carmela", mas também era comprador de cânticos fascistas, embora tivesse já diversos "Cara al sol!", "El camarada" e "Falangista soy!"

(Aos saudosos das ditaduras ibéricas, recomendo irem almoçar à marisqueira "Casa Olga", em La Guardia, na Galiza, onde a dona trauteia pelas mesas o hino franquista "Cara al sol". Por contraste, faz-me lembrar a "roja" mulher espanhola do Gil, comunista dono da "Casa dos Frangos", em Colares, que, nos tempos da outra senhora, cantarolava o "Ai Carmela!" quando passava junto de mesas com gente "de confiança")

Coleciono músicas ligadas à história revolucionária (e reacionária). Meses antes, em Milão, com a ajuda da minha colega Josefina Carvalho, havia descoberto algumas preciosidades do cancioneiro popular do fascismo italiano, que complementavam lindamente uma coletânea de sinal contrário que adquirira antes em Roma (com o magnífico "Bandera Rossa" em destaque). O João Lima Pimentel nunca me copiou umas coisas germânicas "hard" de que é orgulhoso possuidor, e que eu prometi trocar por excelente coros do Exército soviético com que, por vezes, me delicio. Em Paris, guardei muita canção da Resistência, embora tenha ficado com a sensação de que Pétain, Laval e o pessoal de Vichy não foram muito inspiradores neste domínio. Cá por Portugal, tenho uma coleção (que acho) imbatível das canções do 25 de abril e, claro, toda a parafernália dos hinos do tempo do Estado Novo, do "Hino da Mocidade" ao "Angola é nossa".

Mas voltemos às Ramblas. A casa de discos não era muito grande (é ou era à direita de quem desce), mas, por qualquer razão, talvez porque nenhum lugar de Barcelona é mais icónico (palavra que, com "viral", está conjunturalmente em moda) quando se fala do conflito fratricida que (até hoje) dividiu a Espanha, achei adequado fazer a compra naquela avenida. Caramba! Para um ex-sonhador como eu, ainda por ali passava o Orwell (não o do "1984", tão popular nas últimas horas, mas o da "Homenagem à Catalunha").

O rapaz que me atendeu tinha ar de ter nascido já depois de Franco ter mandado assassinar o catalão Puig Antich pelo garrote.

- Tem músicas da Guerra Civil?

O tipo olhou para mim com estranheza.

- De quê?

- Da Guerra Civil? Dos que eram contra Franco. E também dos fascistas.

Voltou-se e, num catalão compreensível, sintetizou a minha pergunta para o compartimento das traseiras, com ar de quem estava a falar de coisas de Marte (e estava, sem o saber, numa perspetiva romana). Dali saiu um cavalheiro, com uma década a menos do que eu na idade, com um fácies fechado.

- Já não temos dessas coisas.

- "Já"? Quer dizer que já teve?

O homem sorriu um pouco, mas não muito.

- A música agora é outra.

Até hoje fiquei sem perceber se era legítimo ter feito uma leitura não linear da frase.

("For the record", consegui depois, noutro local, o que queria. E ainda há pouco ouvi, com perdão dos ouvidos/olhos mais sensíveis: "La mujer de Paco Franco/No cocina con carbón/Pues cocina con los cuernos/de su marido el cabrón/ai Carmela! ai Carmela!") 

sexta-feira, janeiro 27, 2017

Não estamos com gente disso!


Esqueçamos por um instante Donald Trump. Falemos dos Estados Unidos da América que aí estão e dos novos desafios que eles colocam à Europa.

A América amiga (e historicamente promotora) da unidade europeia desapareceu, por ora, do horizonte. Todos nos recordamos do tempo em que Washington era o grande defensor do alargamento da União aos países que se haviam libertado da tutela soviética – e até da Turquia. Agora, temos perante nós uma administração que se regozija com o Brexit, que pretende mesmo que o exemplo floresça e que acaba de designar como representante diplomático em Bruxelas alguém que acha que o euro acabará em 18 meses. No topo da cereja, temos o abandono frontal do TTIP, numa colagem aos inimigos do comércio livre e a quantos favorecem uma nova onda protecionista, lida como a defesa possível face aos malefícios da globalização.

Um outro desafio não deixa de ser também altamente relevante. A Europa mostrou um evidente seguidismo face à anterior administração americana no que respeita ao seu relacionamento com a Rússia. Foi Washington quem mais entusiasmou os seus aliados europeus – excitando mesmo o sentimento anti-Moscovo da « nova Europa » traumatizada pela Guerra Fria – na irresponsável aventura de forçar uma mudança na Ucrânia, onde conseguiu fazer depor um presidente livremente eleito, apenas e só porque era pró-russo e não facilitava um desequilíbrio estratégico do país em favor do Ocidente. A Europa deixou-se arrastar nesse aventureirismo e, com isso, suscitou uma reação estratégica por parte de Moscovo que, para já, fez perder a Crimeia à Ucrânia. Em contra-retaliação, a União Europeia decretou sanções económicas contra a Rússia, que vieram agravar ainda mais a recuperação dos seus setores que, no pós Guerra Fria, tinham vindo a conquistar importantes segmentos de mercado russo.

Ora, neste novo contexto, a América parece, pelo menos nos primeiros tempos, privilegiar um diálogo estratégico com Moscovo, visivelmente com vista a desengajar-se, tão cedo quanto possível, de responsabilidades militares no Médio Oriente, facilitando a emergência de um tandem Moscovo-Ancara para combate simultâneo ao Daech e aos inimigos do poder sírio. Como compensação estratégica, Washington reforça as « mãos livres » de Israel, numa estratégia de contenção potencial do Irão, quiçá complementado, a prazo, com a colocação do eixo sunita como um dos novos elementos de poder regional.

Onde fica a Europa, neste puzzle? Para já, em sítio nenhum, a ler bem as posições de Washington. Uma coisa é certa : este « namoro » americano com Moscovo é desconcertante para o investimento feito pela União Europeia no caso ucraniano, e basta ler as parcas reações desse lado da Europa para o sentir.

E chegamos a um outro e decisivo desafio. Poder europeu desde a Segunda Guerra mundial, os EUA criaram a NATO como escudo de defesa desta parte do mundo face à então ameaça soviética. Ganharam, entretanto, a Guerra Fria e, simultaneamente, impuseram o alargamento da organização, criando uma confortável « buffer zone » face a Moscovo, em particular para um país como a Alemanha. No seu afã de afirmação hegemónica, nunca tendo conseguido gizar um modus vivendi são com a nova Rússia, os americanos levaram a NATO longe demais, cederam às pretensões quase revanchistas dos recém-convertidos e foram criando um “build-up” de tensão militar que roça a irresponsabilidade, em particular sabendo-se que, do outro lado, está um poder autoritário, sob desespero económico, que assenta toda a sua nostalgia de grande potência no seu arsenal militar.

Aqui chegados, o que é que ouvimos da nova América? Que a NATO está obsoleta, que cada um deve pagar a sua defesa e que os EUA não estão dispostos a gastar o seu dinheiro na defesa dos outros. Seria necessária uma imaginação muito forte para conseguir desenhar um discurso que pudesse fazer sorrir mais Moscovo.

Será a Europa capaz de aproveitar este contexto desfavorável para ganhar alguma autonomia estratégica, reforçando-se como poder autónomo, no desenho das suas opções próprias? Como dizia um velho amigo meu, quando descria na capacidade dos outros para qualquer coisa, “não estamos com gente disso”. É, pelo menos, o que eu penso.

Os dilemas, nossos e da Eurpa

"Participei" ontem nesta sessão, com um texto meu lido por voz amiga, dada a minha conjuntural impossibilidade de estar presente. Para quem estiver interessado, pode ser lido aqui.

Back to basics?

Um amigo meu, pessoa muito conhecida e que já teve elevadas responsabilidades, alimenta a teoria de que Portugal só "voltará a ser um país verdadeiro" quando desaparecerem do horizonte as ajudas europeias e cada um souber viver "alavancado" no seu trabalho, no crédito bancário tradicional e nas eventuais discriminações fiscais positivas que o Estado entenda dever conceder para a promoção de negócios de interesse para o país. Nada mais. Esse amigo vai mais longe, ao achar que só uma nova geração, de onde tenha sido erradicada a nefasta "cultura de subsidiação", pode vir "reconstruir um país independente". E "ai de quem não concordar com isto e, ainda por cima, se arme em liberal!"

Ouvi-o em silêncio e nem ousei responder-lhe.

Marcelo é fixe?


É costume dizer-se que são os homens quem faz os cargos. Nem sempre isso é verdade, em especial quando os “coletes” institucionais são um espartilho que deixa pouca margem para a afirmação das personalidades que os habitam.

A Constituição portuguesa, revista pela experiência histórica posterior à sua entrada em vigor em 1976, acabou por desenhar um cargo que, tendo embora um espaço de manobra inferior ao modelo original – esse sim, um claro semi-presidencialismo –, deixa ainda uma apreciável capacidade de atuação ao titular do cargo, a qual, no entanto, varia sempre na razão inversa da força parlamentar de que os governos dispõem. Se Eanes foi o executante do primeiro modelo, Soares, Sampaio e Cavaco, cada um a seu modo, protagonizaram a plenitude civil do exercício do poder. Cada um teve a conjuntura política que lhe calhou em rifa. 

Soares viveu quase sempre com governos maioritários alheios à sua família política, ungidos de fundos e loas europeias, mas nem por isso deixou uma marca política impressiva, tendo para tal contribuído bastante o facto de ter sido o alegre notário do declínio do cavaquismo.

Sampaio e Cavaco conviveram ambos com as áreas políticas contrastantes. Sampaio foi discreto durante os governos não-maioritários de Guterres e demonstrou uma medida firmeza, de grau nem sempre apreciado pela sua família política, quando teve de confrontar-se com orientações governativas de que estava ideologicamente mais distante. 

Cavaco foi prudentemente institucional quando, do lado do executivo, estava uma maioria de sinal oposto e, enquistando mal as crises, perdeu a tramontana perante o desvario de Sócrates, parecendo viver depois bem mais confortável com o governo maioritário da sua cor sob tutela externa.

Que sobra dos três presidente na memória coletiva? De Soares, o estilo, as presidências abertas e o garbo com que presidiu ao funeral do cavaquismo governativo. De Sampaio, o incansável escrúpulo funcional, o rigor institucional endémico e o faz-desfaz do período Santana Lopes, que o afastou muito da direita e acabou por semi-reconciliá-lo com a esquerda. Cavaco Silva ficou marcado por um penoso segundo mandato, em que não soube representar um país sofrido que também o tinha elegido e pactou, de forma imperdoável e silenciosa, com ataques inomináveis à corte constitucional, de cuja autonomia também devia ser garante.

Marcelo é um presidente de tipo novo. Segue o sentido instituicional de Estado de Sampaio, tem uma genuinidade, na proximidade às pessoas, que pede meças a Soares, descuidando a distância presidencial que este não dispensava. De Cavaco, a meu ver felizmente, herda pouco. A Marcelo, o presidente mais tranparente da nossa democracia, parece aplicar-se, na perfeição, a fórmula anglo-saxónica: “what you see is what you get”. Mas é fixe ou não? Por ora, tudo indica que sim. Vamos falando…

quinta-feira, janeiro 26, 2017

Leitura política para o fim de semana


... oferta de uma querida amiga, chegada diretamente das perturbadas terras de sua majestade britânica

Fora da História

Seria melhor um governo constituído por alguns nomes que foram aventados nos últimos dias mas que, afinal, acabaram por não integrar as esco...