quarta-feira, agosto 10, 2016

Quarta-feira de Ramos

Houve hoje por aqui, fruto das distrações da "silly season", um troca de nomes. Parabéns, agradecimentos e desculpas aos leitores atentos.

terça-feira, agosto 09, 2016

Os livros e as férias


A minha relação com os livros, em férias, é muito complexa. E, invariavelmente, frustrante, embora eu disfarce isso perante mim mesmo, com relativo sucesso.

Em miúdo, em casa da minha avó, lá por Viana do Castelo, durante as férias, passei a dormir, por vários anos, num divã colocado na biblioteca. De três grandes armários envidraçados surgiam-me as lombadas de uma imensidão de livros, na maioria encadernados, numa escolha que não era muito óbvia mas que correspondia aos interesses culturais de um tio por afinidade - o tio Túlio - que morrera antes de eu nascer e cuja biblioteca ficara como a sua imagem póstuma. (Às vezes penso que é possível fazer um perfil bastante aproximado de alguém através dos livros que deixou ao longo da vida). Durante alguns anos, olhava para aquilo como cenário. Depois, com artes, acedi à chave e, sem o menor critério, ou melhor, com critérios erráticos de quem não tinha para isso a menor orientação, lá fui lendo (às vezes só algumas páginas de) livros um pouco ao acaso. Era o tempo em que a banda desenhada me ocupava quase obsessivamente as horas  - e nunca me perdoei disso.

Noutro cenário de férias, na casa do meu avô, em Bornes de Aguiar, ao lado das Pedras Salgadas, o ambiente da disponibilidade bibliográfica tinha a caraterística de ser mais eclético, mais caótico e muito mais contemporâneo (bastante fornecido por um tio que vivia em Lisboa e era dado à curiosidade pela literatura). Havia de tudo por ali, mas, estupidamente, não me lembro de ter aproveitado devidamente muito de bom que podia ter lido, que poderia ter ajudado fortemente a colmatar falhas graves que permanecem na minha cultura no terreno da ficção. O que eu por ali então li, em grande prioridade, foram livros sobre a Segunda Guerra mundial, sobre as relações Leste-Oeste ou artigos das Seleções do Reader's Digest. De romances, apenas alguns Camilo e Redol, ou romances da guerra, de Leon Uris ou Erik Maria Remarque. Ou então uma coisas chatíssimas, mas informativas, de Fernando Namora, sobre uns encontros de debate internacional a que assistira, na Suíça.

Um dia, para todos nós, as férias passam a ser da nossa exclusiva conta. E os livros que para elas levamos também. De início, havia muito "whishful thinking": livros que "havia que ler" mas que, durante o ano, nos não apetecia ler. Se eram coisas "pesadas", menos razão havia para ir carregado com esses monos, muitas vezes coisas "essenciais" mas ai damais impossíveis de digerir em ambiente estival. (Recordo-me que o mais próximo que estive de ficar deprimido alguma vez na vida foi, numas férias algures na Beira, quando dei por mim a soçobrar a meio do segundo volume do "Traité d'Economie Marxiste", de Ernest Mandel. Talvez por essa razão, senti um imenso alívio, há dois anos, quando ofereci os três volumes dessa obra do pensador trotskista belga à Biblioteca de Vila Real, para integrar o espólio de milhares de livros meus que para aí vão caminhando com o tempo).

Desde há muitos anos que, incluída na bagagem para as férias, há a chamada "saca dos livros". Tem sempre entre 30 e 50 volumes e, não raramente, alguns deles transitam de ano para ano. Por lá figuram obras "virgens", compradas num momento de inconscinte otimismo num dia bem disposto numa livraria, de que nunca abri um página. Outros são livros que comecei a ler, que ascenderam à pilha sobre a minha mesa de cabeceira, mas que foram lentamente submergidos por outros. Um dia, aí de três em três meses, quando a resma começa a inclinar-se, qual "torre de Pisa", são retirados alguns para uma estante de apoio, também estategicamente existente no quarto de dormir, que funciona como uma espécie de "banco de suplentes". Aí se vão acomodando, sem o menor critério temático, à espera de melhores dias, isto é, das férias. A sua inclusão na "saca dos livros" (de longe, a mais incómoda peça da nossa bagagem, ou, como diz a munha mulher, que "a que pesa como chumbo") é uma espécie de rebate de consciência, de autocrítica subliminar, de ilusão de que posso vir a fazer a devida justiça a essas obras que, numa noite, foram friamente desprezadas, trocadas por uma qualquer novidade editorial mais apelativa e prometedora.

Há mais de duas décadas, por uma razão pontual, fui obrigado a fazer férias sozinho. Estive quase duas semanas numa já desaparecida pousada alentejana e, logo no dia da chegada, arrumei mais de meia centena de livros por todo o quarto. Nos dias seguintes, notei que o pessoal me olhava com uma inusitada curiosidade. A notícia devia ter circulado. Eu não tinha, humanamente, a menor hipótese de ler aquilo tudo, ainda por cima (mas julgo que não chegaram a esse ponto de análise) eram obras muito díspares, sem a menor coerência entre si. Ao final de alguns dias, com um estatuto já meio "da casa", à conversa com a jovem diretora da pousada, o assunto derivou para livros, para o que se quer (e deve) ler e o que é realisticamente é possível. Ela não podia assumir que sabia que o meu quarto estava estranhamente atulhado de livros, pelo que fez uma conversa "à volta", perguntando se eu estava a escrever algum. Matei-lhe a curiosidade, mas perdi de caminho boa parte do mistério criado, quando lhe expliquei que, das dezenas de livros que sempre levava comigo para todas as férias, só em anos muito excecionais eu conseguia ler mais do que um quinto de todos os títulos. Na vida, expliquei-lhe, o que é bom é podermos ter à disposição, à "mão de semear", em abundância, o que nos pode trazer prazer, com a total liberdade da escolha a fazer parte integrante desse mesmo gozo. Não sei se ela ficou com a impressão de que eu estava a "fazer-lhe a folha" quando, juro!, só estava a tentar reproduzir, por outras palavras, o dito batido de Pessoa: "Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / e não fazer!"


segunda-feira, agosto 08, 2016

A pergunta eternamente sem resposta


Era, com toda a certeza, o resto de uma conversa que nascera ainda no carro, a propósito de limites de velocidade, e que se prolongava agora à mesa do restaurante.

O miúdo tinha um ar de "sabichão", óculos de aros grossos, daqueles que querem saber tudo. Falava com uma voz agaitada, estridente e algo irritante, que ecoava por toda a sala. A pergunta era "simples":

- Mas, ó mãe, se cá é sempre proibido andar a mais de 120, porque é que deixam vender carros que "dão" mais?

A senhora olhou em volta, embaraçada, sem saber o que dizer, com o puto a insistir, alto, "diz lá, mãe!"

Não a pude ajudar, porque justificar perante uma criança uma chocante hipocrisia da nossa sociedade é algo que não está ao alcance de um simples escriba de blogue.

domingo, agosto 07, 2016

Maracanã


Como era de esperar, Temer teve a vaia tradicional no Maracanã. Nada de novo: "Maracanã vaia até minuto de silêncio", já escrevia Nelson Rodrigues, o mais genial reacionário brasileiro.

O Maracanã, esse estádio-símbolo do futebol mundial, esse Wembley com sol, está hoje muito diferente. Mas ao ver nele entrar, na inauguração olímpica, a "vóvó" Elsa Soares (por que será que, ao vê-la, me lembro sempre da Mara Abrantes?), tive pena que ali não estivesse também Mané Garrincha, esse seu famoso namorado, o mago de pernas tortas na ponta-direita, que tanto génio por aquele (ou outro) gramado ilustrou. E, claro, a história dos russos.

Foi no Mundial de 1958. Garrinha estava a ser instruído pelo treinador Feola sobre o modo de ultrapassar a defesa russa. Há muitas versões do episódio. No essencial, Feola teria dado sucessivas dicas a Garrincha sobre como atrair e derrotar, sucessivamente, os jogadores russos, até conseguir chegar à linha de fundo e centrar para a cabeça de Vává. O dispositivo era descrito de forma tão precisa, com decorrências tão automáticas no colapso da defesa então soviética, que Garrincha, a certo ponto, não se terá contido e perguntou: "E já combinaram com os russos?" 

A frase ficou até hoje e é utilizada regularmente, no dia-a-dia brasileiro, para significar uma situação difícil em que apenas por ingenuidade se pode crer num resultado favorável, como se o adversário não existisse.

Às vezes, acho que a Nato tem, um destes dias, de pensar a sua estratégia europeia com Garrincha.

Ivo Pitanguy


Em 2005, acabado de chegar ao Brasil como embaixador, fui um dia convidado para um jantar dado no Rio por Yeda e Roberto Assumpção. Eu havia encontrado esses meus anfitriões numa outra ocasião. Assumpção era um embaixador brasileiro reformado e a sua mulher tinha escrito um livro de memórias que, por um mero acaso, eu havia lido uma semana antes desse encontro. Nasceu então o convite para um jantar com os seus amigos, um grupo de cerca de vinte pessoas da sociedade tradicional da cidade. Entre elas estava Ivo Pitanguy.

Pitanguy era um nome mítico da cirurgia plástica à escala internacional e, a grande distância, o cirurgião dessa especialidade mais conhecido do Brasil. Recordo-me de ser uma figura muito interessante, belo conversador, com um domínio excecional da língua francesa, como na ocasião tive oportunidade de constatar, por estar alguém presente dessa nacionalidade. Falámos bastante nessa noite, ou, pelo menos, tanto quanto a necessidade protocolar de "circular" entre os vários convidados o permitia. Revelou-se um homem de uma cultura multifacetada, leitor de coisas essenciais e pessoa muito atenta ao mundo.

A certo ponto da nossa conversa, juntou-se-nos uma senhora bonita e elegante. Já não sei por que motivo, veio à baila o facto de ela ter andado no colégio com uma amiga brasileira que eu também conhecia e que, à época, teria quase 70 anos. Numa tirada, meia de charme meia de sinceridade, disse-lhe da minha perplexidade: como é que ela podia ser colega de infância dessa nossa amiga, sendo muito mais nova que ela? A minha interlocutora, sentada num braço de sofá, com uma saia que punha a descoberto uma perna bem torneada, exibindo um sorriso que se rasgou com o elogio, fez a pergunta de resposta impossível: "Que idade você me dá, "baixadô"?". Percebendo que todo o exagero por defeito me seria perdoado, quiçá mesmo agradecido, arrisquei: "Talvez 58 ou 59? Enganei-me?". A senhora alargou ainda mais o sorriso e revelou: "Que simpático, querido embaixador! Tenho 67 anos. Mas não pareço, "né"? É graças aqui ao mestre!", voltando-se para Pitanguy. Este assistira à cena, deliciado, com aquela sua cara redonda, sorridente, que nos anos seguintes algumas vezes voltaria a encontrar no tradicional chá dos académicos, nas tardes das quintas-feiras, na Academia Brasilleira de Letras (ABL), de que ele era um dos "imortais".

Pitanguy, que na sexta-feira chegou a empunhar a chama olímpica, morreu precisamente ontem, sábado, aos 93 anos.

Duas coincidências. Um grande amigo brasileiro enviou-me ontem um email, dizendo ir concorrer a um lugar vago nos 40 "imortais" da ABL. Com a morte de Pitanguy, passará a haver mais uma vaga. A segunda coincidência é que tenho combinado um jantar hoje com um outro grande amigo, excelente cirurgião plástico português, que, há bem mais de três décadas, na Noruega, pela primeira vez me falou sobre Ivo Pitanguy. Isto é um mundo muito pequeno, não é?

sábado, agosto 06, 2016

O Mini, o Zé e o Verão


Anda aqui pela praia, há dias. É um Mini Cooper, dos antigos, todo "artilhado", como antes se dizia. Esta manhã, à ida para os jornais, lá estava ele, ao pé do Pereira. Lembrou-me uma historieta de um Verão dos anos 60.

Lá por Vila Real, quem tinha uma "máquina" parecida com essa era o José Araújo, conhecido pelo "Foquita", um dos meus mais sólidos (e saudosos) amigos desde a infância. Em férias, depois dele regressar da tropa, passávamos horas sentados no carro, à conversa com música, discutindo este mundo e o outro, quando não às "voltas ao circuito", depois de meter "cinco escudos de gasosa", na bomba do Platas, em frente à farmácia Almeida.

Um dia, foi anunciado que o Rali Tap tinha uma "classificativa" que passava ali perto, pelo Marão. Os automóveis nunca me interessaram minimamente (embora Vila Real seja a indiscutível "capital" do desporto automóvel em Portugal), mas o espetáculo noturno de uns aceleras a levantar poeira, com faróis dardejantes, nos caminhos de terra batida lá para os lados da Pousada, entusiasmou-me a alinhar numa expedição com o Zé, com o Antonio Lopes e o Gama mais novo, numa certa madrugada de Verão. Ainda guardo fotos dessa noite.

No regresso a Vila Real, ainda sob o efeito do ambiente excitado do rali, ao Zé Araújo deu-lhe para acelerar e apertar nas curvas, sob alguns protestos de prudência, pelo menos meus. Já estávamos quase a chegar a Parada de Cunhos, uma das portas da cidade, quando, na curva a seguir à Toca do Lobo, o Mini fugiu do controlo do Zé, fez um "pião", desligou-se e aí fomos nós, numa silênciosa queda às arrecuas, para dentro do que julgo que era uma vinha. O carro ficou "de pé", connosco, ilesos, a olhar para o céu e a emitir alguns qualificativos pouco abonatórios (e impublicáveis) sobre os dotes do condutor. Eu e o Zé, que íamos à frente, fomos os primeiros a conseguir sair, com o Lopes e o Gama (que, tal como o Zé, já se foi desta vida), vindos lá de trás, a terem de ginasticar-se para o exercício.

Depois, seguiu-se a operação "resgate". De boleia, fui aos bombeiros "de cima" (em Vila Real, os bombeiros estão "balcanizados") acordar o chefe Artur, com quem regressei ao local do acidente no Jeep com guincho, com ele a remoer todo o caminho contra o Zé Foquita. 

Mas a noite ainda não tinha terminado... Retirado o Mini para a estrada, verificou-se que o tubo de escape havia ficado bloqueado com terra, o que impedia o arranque da viatura. Simpaticamente, o ocupante de um dos carros que pararam para "ver o desastre" colocou a cara ao nível do escape e procurou desobstruí-lo com uma chave de fendas. O Zé, que estava mais do que nervoso, distraído, colocou o carro a trabalhar no preciso momento em que o improvisado ajudante ainda olhava para dentro do tubo. Um último torrão atingiu então a vista do prestável cidadão, que ficou aos berros de dor na noite, tendo que ser conduzido de imediato ao hospital. Os colegas do ferido, pessoal da Régua, queriam dar um "enxerto" ao Zé Foquita, pela sua imprudência. Deu trabalho acalmar as hostes! 

O que um Mini na praia agora me fez lembrar!

Hombre!

Afinal, na tabacaria da vilória, a oferta em matéria de revistas não era melhor do que na da praia, onde já me aviara de jornais. Claro que havia tudo quanto o social de coscuvilhice exige, mas o Nouvel Observateur era-lhes desconhecido, o L'Express não tinha vindo e o Economist "talvez só amanhã".  

Trouxe o El Pais e vinha a olhar para os títulos da primeira página, com a tragicomédia do impasse político espanhol, quando me dei conta de que tinha deixado o carro muito mal estacionado, quase no meio da estrada.

Pensava para comigo "ando muito distraído, tenho de ter mais cuidado", quando abri a porta do carro e comecei a sentar-me.

Foi então que ouvi, do banco ao lado, um sonoro e feminino "Hombre!" Que diabo tinha dado à minha mulher?! Como é que ela tinha adivinhado que eu tinha comprado um jornal espanhol?

Olhei melhor: era outra senhora, era outro carro, de cor exatamente igual ao meu, o qual, claro, estava imediatamente atrás. Pedi "perdón!", com a minha mulher a rir-se imenso e eu encavacado.

Será do calor ou da idade?

sexta-feira, agosto 05, 2016

António Guterres


Continua a ser encorajante a votação obtida por António Guterres, agora no segundo escrutínio na corrida ao lugar de secretário-geral da ONU. O favoritismo que vinha do primeiro apuramento de resultados não se perdeu, mas o facto de terem surgido dois votos de "não encorajamento" tem de ser analisado com atenção.

Na primeira votação Guterres tinha tido 12 votos de "encorajamento" (agora teve 11), nenhum de "não encorajamento" (agora teve dois) e três votos "sem opinião" (agora teve dois). Se acaso pelo menos um desses votos de "não encorajamento" tiver tido origem num dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (os chamados P5), só uma reversão do sentido desse voto pode garantir hipóteses ao candidato português. Chamo a atenção de que um voto negativo de um P5 é um veto.

Mas, atenção! Os principais adversários de António Guterres não mostraram uma evolução favorável nas suas votações. Danilo Turk aumentou de dois para cinco os votos de "não encorajamento", Helen Clark de cinco para oito, Susana Malcorra de quatro para seis, Irina Bukova de quatro para sete. Apenas o sérvio Vuk Jeremic reduziu de cinco para quatro esses votos se sentido negativo. E os 11 votos de "encorajamento" de Guterres comparam com apenas oito para Malcorra e Jeremic, sete para Turk (tinha 11!) e Bukova, seis para Clark.

Este cenário, a meu ver, deixa ainda em aberto a possibilidade de surgirem novos nomes para juntar à lista de candidatos.

Uma pequena nota para o facto de se falar, nos "mentideros" da ONU, do lugar de secretário-geral adjunto poder vir a ser jogado num "trade-off" final.

Seguros?


O que vier a passar-se, em termos de grau de cobertura dos prejuízos e rapidez de reembolso dos danos, no triste caso das centenas de viaturas que arderam em Castelo de Vide, vai ensinar-nos muito quanto à verdadeira responsabilidade assumida pelas seguradoras. Esperamos que elas não existam apenas para a cobrança dos prémios em tempos em que nada acontece. Um caso a seguir com muita atenção.

Que achas?


Na minha terra, utiliza-se bastante uma expressão de modéstia opinativa, depois de falar sobre qualquer tema que temos por não consensual: digo eu, não sei!

No Brasil, chama-se «achismo» à tendência natural para emitir opiniões, a propósito de tudo e de nada, muito «conversa de mesa de café». Os italianos criaram a expressão «tudólogos» para qualificar os catedráticos públicos de generalidades – e os portugueses conhecem bem alguns.

Lá no fundo, todos «achamos» alguma coisa sobre quase tudo, sobre o que conhecemos bem ou apenas «pela rama». Raras vezes guardamos para nós essas ideias, geradas no que lemos ou ouvimos a alguém que temos por «abalizado» (adoro este conceito antigo).

As redes sociais «democratizaram» o exercício de troca de opiniões e deram à generalidade dos cidadãos um «altifalante» para dizerem o que pensam junto de um público mais alargado. Com franqueza, não tenho a certeza de que o esclarecimento coletivo tenha ganho muito com isso, mas essa seria uma longa conversa.

Alguns leitores estarão a perguntar-se : «Mas então ele não tem um blogue diário, uma página no Facebook, uma conta no Twitter e colunas na imprensa?» Claro que sim. E nelas escrevo o que penso sobre vários temas. Quase sempre, porém, apenas sobre aquilo de que julgo saber alguma coisa. Ou, quando isso não acontece, faço um «disclaimer» relativizador, do género «digo eu, não sei».

Uma passagem pelo governo, em tempos idos, refreou em definitivo a minha pulsão para dar opiniões de «mesa de café». Nesses anos, confrontado com a necessidade de estudar melhor algumas questões, dei-me conta da complexidade de temas sobre os quais, antes, «mandava bitaites» sem grande rigor. E passei a ser muito mais cuidadoso ao pronunciar-me sobre assuntos distantes das áreas onde atuei ou onde exerço atividade profissional.

Ninguém nunca me ouviu uma palavra sobre se os hospitais devem ser centralizados ou regionalizados, sobre se deve haver grandes esquadras ou polícia de proximidade, sobre opções em matéria de ensino, se o novo aeroporto devia ser na Ota ou em Rio Frio, sobre se deve ou não haver TGV, etc. São assuntos sobre que não tenho opinião, decisões que, no quadro da democracia representativa que acerrimamente defendo, entendo que devem ser decididos por quem elejo para gerir o país. E por aqui me fico.

«Olha lá! Então nem uma palavra sobre o juíz com filho na escola subsidiada, sobre o secretário de Estado que «galpeou» para o Europeu, sobre o boato da privatização da ADSE, sobre o mito da introdução do sol & vistas no IMI?» - já imagino alguns amigos a perguntar. Não! Sobre isso, só a tagarelar debaixo do toldo da praia...

(Artigo hoje publicado no JN)

quinta-feira, agosto 04, 2016

Conversa no Pereira (3)

- Então, meu sortalhudo, já estás a preparar-te para dar uma saltada até às Olimpíadas? Quando partes?

- Já não vou.

- Não vais? Porquê? Tens medo ao virus zika? Ou à violência no Rio?

- Nada disso! Mudei de ideias...

- Assim de repente?

- Pois foi!

- Mas não tinha sido o Meireles quem te tinha convidado? Até me tinhas dito que era tudo de borla.

- Foi ele, foi...

- Já não o vejo há muito tempo. Onde é que ele trabalha?

- Na Galp...

Digo eu, não sei...

A aceitação pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de uma "boleia" da GALP para ir ao Europeu é uma insensatez. Acho eu.

Daí a isso justificar a sua demissão vai uma imensa distância. Acho eu.

O país, contudo, não pode estar à mercê do meu (ou do seu, leitor), "achismo". Tem de haver alguem com legitimidade, originária ou delegada, para se pronunciar sobre isso.

A ausência de um organismo próprio, que avalie e dê pareceres sobre as questões de ética pública, não implica que essa avaliação se não faça.

No tocante ao comportamento dos membros do governo, é ao presidente da República que compete essa avaliação.

(Recordo, em 2000, que Jorge Sampaio exigiu a António Guterres a demissão de Armando Vara, por uma determinada questão).

Se, neste caso, o presidente (que se saiba) não atuou, isso pode significar que, no seu juízo (o juízo de quem tem uma indiscutível legitimidade), o caso não se reveste de uma gravidade que justifique a demissão do secretário de Estado.

É essa, também, a minha opinião, que, porém, vale tanto como a do leitor. Ou, para usar uma bela expressão que muito se diz na minha terra: digo eu, não sei...

A título devolutivo

Um secretário de Estado recebeu um subsídio de residência, por uma espertalhice qualquer. A imprensa agitou-se, ele retorquiu que era legal, mas devolveu a massa.

O presidente da República foi num Falcon do Estado ver um jogo da seleção no Europeu. Algumas boas consciências escandalizaram-se. O chefe de Estado tentou, com contas "à moda do Porto", devolver a percentagem do gasto. O governo não aceitou e o cheque ainda deve andar por aí.

Um outro secretário de Estado, à boleia aérea da Galp, foi ver dois jogos do Europeu. Legal, diz ele, mas, pelo sim pelo não, quer devolver o custo da viagem.

Os três casos, muito diferentes entre si, têm em comum a sujeição à pressão mediática. 

No primeiro, tratou-se de uma chico-espertice.

No segundo, tentar pagar foi um nítido caso de excesso de zelo, em que o presidente não deveria ter caído.

O terceiro caso é um exemplo acabado de "porreirismo" à portuguesa. 

Três tristes tramas.

Somos um país que ainda não encontrou o registo certo para estas questões de ética pública. Talvez por isso, a exemplo de outros Estados, devesse ser criada - mas, por favor, "longe" da Assembleia da República! - uma comissão de ética e regulação de conflitos de interesses, com um estatuto idêntico ao da Provedoria de Justiça, que pudesse funcionar como um órgão de consulta automática neste tipo de questões, acionado por queixas ou por iniciativa própria, que igualmente pudesse dar sugestões de alterações legislativas. Tenho mesmo um nome para presidir a esse órgão: Guilherme d'Oliveira Martins.

quarta-feira, agosto 03, 2016

Conversas no Pereira (2)

- Que achas das modificações na lei do IMI que o governo apresentou? Já está tudo "aos saltos" com a ideia de que as casas com vista e exposição ao sol vão pagar mais...

- Esses critérios já estavam na lei. De uma coisa tenho a certeza: só se muda uma lei tributária para recolher mais impostos. É dos livros.

- Mas aquela do sol é um bocado exagerada, não te parece?

- Deve ter sido o PCP, com preocupações igualitárias.

- O quê?! O PCP? Não estou a perceber...

- Não estás? É muito simples. Na base desse critério solar todos iremos um dia pagar exatamente o mesmo.

- Agora é que não entendo nada.

- Ó homem, lembra-te do hino deles: "o sol brilhará para todos nós".

Lembram-se do BES?

Foi precisamente há dois anos. Tenho pena se as televisões (coisa que não vejo, por estes tempos) não recordarem aos portugueses as declarações de Pedro Passos Coelho e de Maria Luís Albuquerque, distanciando-se e assegurando que o assunto não passava de uma mera questão privada com a qual o governo nada tinha a ver, tal como depois fizeram no caso da PT. E, do mesmo modo, seria interessante registar as posições de então do Banco de Portugal, cujos esforços de "acalmação" passaram por colocar o presidente da República e o líder da oposição a espalhar mentiras sobre o real estado do banco. Este país é um paraíso de Pilatos.

Antes, já tinha sido o BPN e o BPP. O BES, pela sua importância, era contudo cabeça de cartaz e tornou-se no mais negativo fator reputacional sobre a imagem económica externa do país. Depois, foi o que se viu. O Banif foi por águas (espanholas) de bacalhau, connosco a pagar. O Novo Banco patina a olhos vistos. O Banco CTT mostra os seus primeiros prejuízos. Engolfada nos conflitos pessoais que são a imagem de marca da "old boys's network" que é o clube da banca, a Caixa Geral de Depósitos, essa jóia da coroa que o PSD tinha o sonho de pôr com dono (estrangeiro, pela certa, porque esse era o objetivo das privatizações, estratégia que só falhou uma vez), foi instabilizada como nunca antes o fora, na sua digna história centenária. Fora disso, a União Europeia, sob o silêncio político português em Bruxelas, encarregou-se de destruir a principal fonte de rendimento do BPI, que há muito já deixara de ser um banco português, e o BCP está, dia-sim-dia-não, nas notícias, o que é o pior que pode acontecer a um banco, sendo agora palco de mais uma bulha pelo seu controlo, com angolanos e chineses à mistura.

Esta não é uma nota de culpas. Confesso que, nos dias de hoje, interessa-me muito pouco o "naming names" vingativo, o apontar de dedos a fulano ou a cicrano, o escarafunchar no passado, o "voyeurisme" sádico e algo invejoso do desmantelar dos ex-poderosos, feito naquelas comissões parlamentares que, nos dias de hoje, se assemelham a instrumentos para a construção de currículos mediáticos para os deputados intervenientes, a caminho de uma futura secretaria de Estado como recompensa. A mim, preocupa-me apenas o futuro e, dentro deste, a triste constatação de que estamos perante um sistema bancário frágil, que reflete uma economia frágil, de um país muito frágil. O qual, sendo o nosso, merece que essa nossa preocupação e angústia nos levem à exigência máxima - de rigor, probidade e transparência - sobre aqueles que voluntariamente se oferecem para o gerir, no governo, parlamento e outras instituições do Estado. 

Juízes e juízo

Confio na justiça portuguesa? Nos tempos que correm, apenas relativamente, confesso. Como cidadão, a minha confiança no sistema judicial tem vindo a baixar ao longo dos últimos anos e, podem crer, isso angustia-me imenso. Porque fui habituado a acreditar que a justiça é como uma espécie de rede última de salvação, que pode e deve servir-nos de derradeiro e sério anteparo, quando tudo o resto falha. 

No entanto, dia após dia, somos confrontados com decisões judiciais arbitrárias, discricionárias e frequentemente contraditórias entre si. Quando se refere isto a alguém "do ramo", somos logo criticados por não compreendermos que, sendo os juízes humanos, é mais do que natural que, na sua interpretação da lei, possa haver diferentes sensibilidades. Muito bem, aceito isso, mas será que perante duas decisões judiciais em absoluto contraditórias, precisamente sobre o mesmo assunto, devemos "respeitar" a legitimidade de ambas? Ora essa! Então um diz uma coisa e o outro diz o seu contrário e um cidadão é forçado, bovinamente, a aceitar de cara alegre essa dualidade de atitudes?  E a ter de considerar que ambas têm o seu mérito próprio? 

Acredito que a maioria dos magistrados sejam pessoas de bem, que procuram fazer o seu melhor, nem mais nem menos do que em qualquer outra profissão. Haverá assim bons, maus e péssimos juízes, como há bons, maus e péssimos diplomatas, como há bons, maus e péssimos médicos, e por aí além.  Só que a profissão judicial é constitucionalmente ungida do caráter de órgão de soberania, pelo que é quase um crime de lesa-pátria dizer que um determinado juiz é um refinado cretino, que uma certa sentença é um chorrilho de imbecilidades, que uma ou outra decisão releva de uma incompetência profissional manifesta. O juíz vive "lá em cima", é-lhe devida uma reverência funcional automática, qualquer que seja a sua efetiva qualidade profissional. Se um cidadão afirmar publicamente que o juíz fulano é incompetente, arrisca-se a um processo e, claro, a ser julgado ... por um juíz! Se disser o mesmo de um diplomata, por exemplo, tem logo fartos aplausos da bancada, a começar pela comunicação social.

A que propósito vem isto? Vem da circunstância de me parecer escandaloso que um juíz que teve interesses pessoais diretos no caso colégios privados/ensino público possa, de longe ou de perto, estar envolvido no julgamento das providências cautelares suscitadas sobre a questão. A argumentação de que o cavalheiro saberá muito bem discernir entre o interesse pessoal e as questões jurídicas de princípio, que irá julgar o caso com neutralidade e independência, "só contado p'ra você", como diriam os brasileiros. 

Dito isto, também me parece menos curial que o Ministério da Educação, numa sociedade democrática onde vigora o princípio da separação dos poderes, saia à estocada contra o juíz, suscitando uma suspeição. Eu, cidadão, posso desconfiar da isenção do juíz e gostaria de ter o direito de proferir todas as diatribes que contra ele que me apeteça dizer. O governo pode tentar acionar os mecanismos legais de contestação que ache adequados. O que não pode é proceder de forma idêntica à de um executivo recente, de muito má memória, que tentou, sistematicamente, afetar a liberdade do nosso Tribunal Constitucional, aliás sob a culposa omissão do supremo "magistrado" da nação. Se o juíz incorreu em práticas que podem suscitar suspeição, as instâncias próprias do sistema judicial deveriam atuar com todo o rigor e a necessária tranparência E, para proteger a sua própria dignidade institucinal, deveriam utilizar os mecanismos ao seu alcance para que não fique a dúvida de que "isto é o da Joana", e não necessariamente Marques Vidal.

terça-feira, agosto 02, 2016

Vi-te na praia, João!


Eu estava sem óculos e aquela luz forte não ajudava. Ia a aproximar-me da água e, à distância, vi-te: lá estavas tu, à beira-mar, grande, barriga como deve ser, naquele porte de bom gigante, dominador benévolo da cena, num grupo animado de pessoas. Olhei à volta, mas não vi sombra da Alzira, às tantas a tagarelar sob um guarda-sol. Fui-me chegando. Lembrei-me então de te desafiar para um arroz de lingueirão na Sílvia, na Carrasqueira, mas logo pensei que tu, cozinheiro emérito e generoso, me ias dizer que tinhas lá em casa, da tua lavra, umas ameijoas "de truz". Tive a ideia de comentar contigo as primeiras férias da "geringonça", o acampamento LGBTIQ+ do pessoal do Bloco, as sanções que afinal "já eram", para raiva surda de alguns canalhas, as últimas do Marcelo (nunca são "as últimas", porque ele entretanto faz outras). Ia perguntar-te se já te tinhas cruzado por ali com o Eanes, que não deve andar longe na areia e saber se, também tu, já lhe tinhas perdoado aquelas coisas de novembro desse ano da imensa graça de 75. Estava quase a chegar ao pé de ti (à "tua beira", como dizemos mais carinhosamente no norte), quando uma bola de praia, chutada por um Eder "de trazer por casa", me atingiu no ombro. E, pronto!, caí em mim. Não eras tu, João! Verdade seja que tínhamos estado, numa noite não há muito tempo, naquela capela junto ao palácio Fronteira, a despedir-nos de ti: a Élia, o Zé Manuel Costa Neves, o João Soares, o Vasco Lourenço e "tutti quanti" da tua (da nossa) "tropa". Mas o calor traz-nos miragens, neste caso, das boas. E, pelos vistos, também saudades. Como hoje, de ti.

Silêncios


Há algumas décadas, um amigo europeu, quase nórdico, fez-me notar que, em qualquer noite portuguesa, por mais campestre que ela fosse, havia sempre o risco de se ouvir, ao longe, o som irritante de uma motorizada. E que os portugueses também já davam por adquirido esse acervo antropológico consuetudinário que eram os sinos horários das igrejas ou o som difuso das festas de verão. Enfim, para esse meu amigo, os portugueses haviam já perdido o prazer do silêncio.

Nunca havia atentado muito nisso mas, a partir de então, fiquei a matutar um pouco mais no valor dos silêncios. E passei a dedicar-me à sua procura quase militante e a racionalizar o gozo que, na realidade, deles sempre retirava. Trazia-os comigo da adolescência, quando Vila Real tinha madrugadas de intensa serenidade. Arquivei, depois, na memória, algumas noites norueguesas quase perfeitas, um certo silêncio de uma madrugade no Mussulo, uma insónia na varanda de um hotel incómodo em Fergana, no Usebequistão, e, maravilha das maravilhas!, uma absoluta ausência de ruídos no deserto de Wadi Rum, no sul da Jordânia.  

Mas continua a haver na minha vida um silêncio especial, que nunca esquecerei: uma noite, no oeste da Escócia, na Isle of Skye, nos anos 90. Tinha ido por lá em busca de um "bed & breakfast" que me diziam ter um restaurante soberbo (de um antigo cozinheiro do Martins - escreve-se assim, sem apóstrofo, à portuguesa - de Edimburgo) e, também, para tentar confirmar uma teoria sobre o aumento do teor de "pit" nos whiskies de malte, de oriente para ocidente da região, o que me obrigou a uma peregrinação de estudo por destilarias escocesas, que quase doutorou o meu fígado. Nessa noite, saí para passear a digestão algumas centenas de metros fora do hotel e, foi então que, pela primeira vez desde sempre, "ouvi" um verdadeiro silêncio. Nem motorizadas à distância, nem grilos nas bermas, nem vento nas ausentes árvores, nem nada. Apenas um magnífico e profundo silêncio, seco e chocante, como nunca tinha experimentado. Para um mortal não habituado, a força dele até soava a estranho.

Confesso que sou hoje um consumidor obsessivo de silêncios, que os procuro de forma ansiosa em todos os locais onde me alojo. Mas, geralmente, e porque passei a viver em cidades, onde sempre sobrevive um "bruá" de fundo, com maior ou menor intensidade, raramente tenho a sorte de me reencontrar com os grandes silêncios. Acho, aliás, que à maioria das pessoas, cidadãos urbanos, isto já nem é uma questão que se coloque, porque foram habituadas a viver assim, com esse residual cenário auditivo nas suas vidas. Pensei nisto quando morei em Nova Iorque, que tem um dos mais belos ruídos urbanos do mundo. Ou, pelo menos, é isso que nós somos levados a pensar, na relativização da inevitabilidade das coisas.

Mas ainda não desisti, por completo, de colecionar silêncios. Por isso, nas noites campestres que posso ir tendo, descontados os sons ínfimos da natureza, continuo um seu incurável consumidor.

Ontem, numa madrugada na varanda de uma certa casa, onde há anos me entretenho, pelos verões, a procurar essa suprema paz auditiva, fui surpreendido com a persistência de um certo som de fundo, contínuo, uma espécie de "zoeira" que poderia identificar-se a um ruído distante de um avião. Fiquei à espera que o som passasse. Qual quê! Continuava. Foi então que, olhando uma luz vermelha no alto do monte fui levado a concluir que esse ruído incontornável (desculpem o adjetivo jornalístico, tão feio como o ruído) era, nem mais nem menos, o som de uma dessas pás eólicas que fazem as delícias estatísticas das nossas energias alternativas e que, nos dias de hoje, produzem esses ruídos que, estando longe dos desejados silêncios, nem por isso deixam de ser música para os meus ouvidos. Sei lá bem porquê.

(versão adaptada de um post aqui publicado em 28.7.11)

segunda-feira, agosto 01, 2016

Argélia


Tenho um "fraco" pela Argélia, devo confessar. Pela sua cultura - de Camus a Kateb Yacine, embora não conheça muito mais -, pelo percurso complexo desse território atípico, que chegou a fazer parte das Comunidades Europeias (com efeitos até 1968, é verdade!), atravessado por uma das mais sangrentas guerras de libertação de que há memória. Mantenho presente a heroicidade dessa luta pela independência, bem como o papel desempenhado pelo país no contexto internacional que se lhe seguiu e, muito em especial, a sua contribuição para a manutenção da esperança da liberdade em Portugal, nos anos 60 e 70. 

Da mesma maneira que entendo muito lamentável que os países africanos saídos do colonialismo português nunca tenham feito uma homenagem a quantos, por cá, arriscaram a liberdade e a vida para apoiar a sua luta (e estranhamente nunca ouvi ninguém falar disto), acho muito triste que a democracia portuguesa nunca tenha feito uma homenagem pública ao país que acolheu a FPLN e Humberto Delgado, nesses tempos difíceis em que a instauração da ditadura militar retirou ao Brasil o estatuto de esteio principal para o acolhimento dos lutadores anti-salazaristas. Com Paris, e mais limitadamente com Roma e algumas capitais do "socialismo real" onde se refugiava o PCP, Argel foi, por anos, a principal "capital" da luta pela nossa liberdade.

O regime em vigor na Argélia tem hoje (como sempre teve, aliás) contornos muito discutíveis à luz dos padrões democráticos ocidentais, mas acho que os últimos anos têm ensinado ao mundo que há que saber viver com as diferenças, por muito chocantes que estas sejam, desde que possam funcionar em favor de valores determinantes da nossa segurança geopolítica global. E mais não digo, nesta confissão de "realpolitik".

Há cerca de dois anos, regressei uma vez mais à fascinante "cidade branca" de Argel, por cujas ruas passeio sempre como por senteiros da minha História afetiva. Dessa última vez, fiz perder aos meus guias algumas horas, para uma romagem a vários locais dessa presença portuguesa, um mundo conflitual de exílio, como são sempre esses meios de tensa diáspora forçada, com clivagens políticas a testar os caráteres. Por lá andei a fotografar o escritório da FPLN e da "Rádio Voz da Liberdade", as casas onde morou e operou Humberto Delgado, bem como outros locais que tinha aprendido como geografias essenciais a essa aventura. Dias depois, tive um telefonema do meu amigo Carlos Antunes (esse mesmo, o das "Brigadas Revolucionárias"), a corrigir uma imprecisão que eu tinha deixado na descrição feita meu blogue.

É dessa última viagem a Argel que quero deixar aqui uma nota. Na sala de embarque do aeroporto, olhei as revistas e os livros e, surpresa das surpresas!, não encontrei rigorosamente nada que me interessasse. Uma das publicações à venda era um volume de fotografias, a preto-e-branco, sobre o massacre de 17 de outubro de 1961, a trágica noite em que a polícia francesa, dirigida pelo "infamous" Maurice Papon, liquidou dezenas (o multiplicador das dezenas nunca ficou estabilizado) de argelinos desarmados, nas ruas de Paris, parte dos quais atirados ao Sena. O album mostrava imagens da repressão e cadáveres amontoados junto aos "bouquinistes", nessa jornada de vergonha para a democracia gaullista.

Sentei-me num banco na sala de embarque e, minutos depois, dei conta de ter por vizinhos dois jovens, com pouco mais de vinte anos. Um deles tinha o tal livro na mão, ia-o folheando e mostrando ao amigo, com comentários e exclamações iradas, em árabe, dando (lembro-me bem!) palmadas nas fotos. A indignação que ia nas suas caras revelava bem a revolta que neles germinava, adubada por aquela histórica e impagável injustiça. Quando, algum tempo mais tarde, os vi embarcar no voo da Air Algérie para Paris, fiquei a pensar na contribuição que iriam dar para a fogueira de ódio que por ali há muito se preparava, que era tão previsível como o é o dia seguinte, e que, tempos depois iria desembocar no Bataclan ou na Promenade des Anglais.

Felizmente, ao que tudo indica, os migrantes ilegais argelinos que foram detidos, há dois dias, no aeroporto de Lisboa, não teriam necessariamente propósitos violentos. Espero bem que não. A Argélia é um magnífico país que, aos olhos portugueses, merece ser conhecida por muito mais do que isso.

Filipa Leal


Sou um leitor distraído de poesia. O meu amigo Luís Filipe Castro Mendes, que, neste país de mão estendida, significativamente transitou das Necessidades para a Ajuda, onde hoje oficia como Ministro sem Pasta suficiente para aquilo que a Cultura requereria, não me vai perdoar por eu dizer isto. 

Mas digo, porque é a verdade. Só leio poesia a espaços, em férias, em aviões e tempos atípicos assim. Daí que não conheça a esmagadora maioria dos poetas contemporâneos (dizem-me que "não é fino" dizer "poetisas") e disso faço "mea culpa". 

Para atalhar. Li ontem no suplemento de Economia do "Expresso" de anteontem (o jornal deixou de ter notícias de atualidade, pelo que o tempo por ali não conta, como se vê na "pressa" em colocar cá fora as revelações dos "Panama Papers" e a lista dos jornalistas no "payroll" do Espírito Santo), colocado pela mão do Nicolau Santos, um poema de Filipa Leal. Isso vai obrigar a que, mal tenha uma livraria à mão, comprar tudo quanto essa senhora tiver publicado.

Pronto, era isto que eu queria dizer.

Atenção

Aconselho a que não se alarguem muito em bocas sobre a ida de comentadores para cargos políticos. É que, como se prova, Cristo é useiro e ve...