segunda-feira, julho 04, 2016

O Ramalheda

Só quem é de Vila Real de outro tempo sabe quem era o Ramalheda. O nome é "bom" e sonoro. Um dia, andava eu na escola primária, o meu pai disse-me: "Aquele é o senhor Ramalheda". (Faço parte de uma geração em que os nossos pais, referindo-se a terceiros, nos habituavam a anteceder o seu nome de família por "senhor"). Recordo vagamente a figura. O Ramalheda (o senhor Ramalheda) era um industrial de fogos de artifício, sedeado algures próximo de Vila Real. Não havia "fogo" nas festas da cidade ou redondezas que não fosse fornecido pelo Ramalheda.

(Em Viana do Castelo, recordo-me bem, as coisas, durante anos, eram bem mais complexas e o "mercado" funcionava: os Silvas e os Castros competiam pelo fornecimento do produto, numa rivalidade feroz, de que a qualidade do "fogo" só ganhava. Eram três ocasiões. Começava pelo fogo "do jardim", o "fogo preso", no primeiro dia. Quem se lembra ainda do eterno" ciclista", que pedalava "lá em cima"? No segundo dia, tínhamos o fogo "da santa" ou "fogo do meio", saído da ribeira. E, finalmente, no último dia, a "serenata", com "fogo" de barcos no Lima, com a "cachoeira" da ponte a fechar as Festas. Há que ter uma piedade cristã por quem sofre dessa trágica lacuna de nunca ter ido a Viana, às Festas, ver o "fogo". Quem vos diz isto, com toda a independência, é o presidente da "comissão de honra" das Festas da Senhora da Agonia 2016...)

Voltemos ao "vilarrealense" Ramalheda. Um dia do final dos anos 50, um acidente ocorreu nos arredores da cidade, durante as festas de Nossa Senhora da Pena (a "Sedapâna", na linguagem oral comum; era o tempo em que, se alguém colocava muitos faróis "extra" no carro, recebia a graça irónica, na esquina da Gomes: "pareces o arraial da Sedapâna!"). Houve uma explosão na área dos fogos do Ramalheda e uma família inteira morreu, entre os quais um colega meu de escola primária. Eu tinha, creio, 6 anos, e lembro-me do lugar vago que, estupidamente, o professor Pena (mais Pena!) deixou por semanas na cadeiras da escola "do Trem".

Ontem, precisamenfe às seis da manhã, lembrei-me, para mal dos meus pecados, do Ramalheda: uns atrasados mentais de uma qualquer Junta de Freguesia perto de Abambres, decidiram lançar uma série de cerca de trinta morteiros. Às seis da manhã?! Verdade seja que só me acordaram porque eu estava já acordado (não é contraditório, podem crer). 18 horas mais tarde, do mesmo local, pela meia-noite de ontem, veio finalmente, o "fogo". Foram cerca de dez minutos. Que tal? "Tant bien que mal", porque, por mais que me esforce em complacência, os meus "benchmark" continuam fixados nas passagens de ano em Sidney, Rio e no Funchal, no 14 juillet em Paris, no 4th of July em Nova Iorque e, claro, na "serenata" da Senhora da Agonia, em Viana. Mas o "fogo" nos arredores de Abambres lá terminou, como mandam as regras, com uma vistosa "girândola final", seguida dos derradeiros três morteiros da praxe. Como é que eu sei estas coisas? Ora essa! Eu li cedo, do Cortazar, a propósito de coisas bem diferentes, o "todos os fogos o fogo"!

Ainda trabalhará no "fogo", a família do Ramalheda?

domingo, julho 03, 2016

Manhãs


Sempre tive a ideia de que há qualquer coisa de naïf no modo como olhamos as belas manhãs. Um dia a nascer com um sol de exceção cria a expetativa de que as coisas vão correr muito bem, que o resto do dia vai estar à altura do modo como começou. Ora a experiência mostrou-me que só muito raramente as coisas se passam assim. Os dias correm como têm de correr, às vezes mal, outras bem e, na maioria dos casos, assim-assim, que é a sina média das coisas. A mim, com toda a franqueza, isso já não me angustia minimamente. Cada vez mais, vivo bem e sereno com a uma mediania razoável de objetivos, satisfaço-me e valorizo "o que vier à rede". (Até a simplória "filosofia de almanaque" de que este texto está imbuído é prova evidente disso). Transformei-me, desde há bastante tempo, num militante fervoroso do "possibilismo", uma "técnica" que refinei ao requinte e que me permite raramente ter desilusões (e, podem crer!, relativiza e atenua as chatices, na lógica sábia de que "o que não tem remédio remediado está"). Aliás, olho quase sempre com algum gozo sobranceiro para a ambição obsessiva de alguns, embora reconheça que é ela que, lá no fundo, tem o poder de mudar a sério as coisas. Só que eu já há muito que não "ando por aí", não "estou nessa", razão por que repito, sem a menor melancolia, a frase conformada, desencantada e tão verdadeira, mas que sei que irrita bastante alguns: "é a vida!". Será por isso que, desde sempre, estas manhãs radiosas me "dizem" tão pouco?

Ilustração

Por alguns dias, os textos a publicar por aqui vão surgir sem imagens. Como sei que a maioria dos leitores faz parte da geração que consegue ler sem "figurinhas", espero que não levem a mal. Se tiver tempo, e retrospetivamente, ilustrarei mais tarde os escritos.

As palavras "em estrangeiro"

Alguns leitores - aqui no blogue e em artigos - queixam-se do facto de eu utilizar, com exagerada frequência, palavras e expressões estrangeiras.

Reconheço sem qualquer problema que padeço desse vício, aceito que ele não seja "bonito" para uma escrita que se desejaria em bom e puro português, exponho-me mesmo à crítica justa de algum excesso de "cosmopolitismo", a roçar a snobeira. Tudo o que quiserem! 

Mas não tenciono mudar, desculpem lá! A minha escrita nestes espaços é, cada vez mais, espontânea, imediata e próxima da oralidade. Falo como escrevo e escrevo como falo. Como vício adquirido por quem viveu bastante tempo fora do país, ficaram-me essas "bengalas" de facilidade expressiva (noto que também uso imensas aspas, o que igualmente desfeia a escrita, tal como os parêntesis em que escrevo isto mesmo). Quem por aqui fizer o favor de andar terá de conviver com elas.

OK?

sábado, julho 02, 2016

Michel Rocard

Morreu Michel Rocard, uma das figuras mais brilhantes da esquerda francesa. Foi o criador do PSU (Partido Socialista Unificado) que, para alguns, nos quais me contava, muito inspirou essa aventura improvável que foi o nosso MES (Movimento de Esquerda Socialista).

Rocard teve um percurso interessante na vida política da França. Foi primeiro-ministro de François Mitterrand, que nunca o apreciou e desconfiava imenso da sua evidente ambição. A modernidade e o brilho da suas ideias, onde assentava uma capacidade extraordinária de olhar o futuro, com criatividade e inteligência, chegou a seduzir áreas fora do mundo socialista. Talvez por isso, o rótulo de "Rocard d'Estaing" foi-lhe colocado um dia, de forma crítica, pelos setores do PSF que sempre cuidaram em "fazer-lhe a cama", travando, com sucesso, a sua ascenção ao Eliseu.

Rocard tinha amigos portugueses, entre os quais se contava António Guterres, que muito admirava, como um dia me disse em Estrasburgo, depois de uma intervenção do primeiro-ministro português no plenário, que o deixou entusiasmado. Havia qualquer coisa de comum entre essas duas figuras.

Tive pena de, nos quatro anos que passei na embaixada em Paris, não ter procurado o seu convívio. Nunca me perdoei disso.

Referendo europeu

Faço um "disclaimer" prévio: sou arraigadamente contra o instituto do referendo, sempre achei a sua inserção constitucional uma insensatez e nunca coloquei o meu voto num referendo. Nem o farei nunca. Ou alguém quer testar a sensatez popular e arriscar um referendo sobre se deve ou não haver impostos? 

Dito isto, acho normal, em democracia, que haja quem goste de referendos e até que, à suiça, os procure organizar por tudo e por nada. Estão no seu pleníssimo direito.

Por isso vi, com naturalidade, que ao  Bloco de Esquerda, claramente para fazer um "número" mediático, num encontro qualquer que realizou, lhe desse na veneta propor um referendo sobre a Europa. 

Como já se está na fase de rapar o fundo do tacho dos temas fraturantes (embora o Bloco não tenha coragem para arriscar um referendo às touradas, não vá o povo espetar-lhe a bandarilha do "sim"), à boleia do Brexit saiu-lhes aquela imaginativa pérola.

Em 15 segundos, o presidente da República arquivou-lhes a insensatez e o PS, coitado, lá teve de dizer aquelas coisas oblíquas que é obrigado a exprimir, quase sempre argumentando contra a "oportunidade", perante os humores ciclotímicos dos "compagnons de route" da geringonça, obrigados a fazer prova de vida própria.

Tudo acabou por aí? Não! Alguma direita mediática e uns tenores partidários sem serviço atribuído vêm agora falar da "gravidade" da proposta do Bloco, da imagem de irresponsabilidade que isso projeta sobre a imagem do governo, sobre Portugal e, se calhar, sobre a civilização ocidental.

Conhecendo-os, estou certo que os mais importantes embaixadores estrangeiros em Lisboa terão dado ao assunto a importância que ele tinha. Isto é, nenhuma.

Diplomacia europeia


Nos dias que correm, muito daquilo que os governos fazem no tocante à Europa passa pela área das Finanças e pelos gabinetes dos primeiros-ministros. A obsessiva agenda económico-financeira, que absorve o discurso da União Europeia, ajuda bastante a que assim seja. Acresce que o Tratado de Lisboa, ao afastar os ministros dos Negócios Estrangeiros do Conselho Europeu (instância máxima de decisão da União), veio criar (desnecessárias) dificuldades ao trabalho das diplomacias nacionais no processo funcional em Bruxelas.

Quando o atual executivo foi criado, fiquei curioso em observar como se processaria articulação funcional entre o primeiro-ministro, o chefe da diplomacia e a secretária de Estado dos Assuntos europeus. Como penso que se compreenderá, mantenho uma particular atenção ao tema, desde que, já há mais de quinze anos, tive algumas responsabilidade por essas áreas - se bem que entre a Europa desse tempo e a de hoje haja um imenso mundo de diferenças. 

Devo dizer que, à partida, tinha uma expetativa de que as coisas se iriam passar bem. António Costa detinha uma grande experiência europeia, por ter sido ministro de várias pastas, por ter dirigido conselhos de ministros europeus e por ter sido vice-presidente do Parlamento europeu. Augusto Santos Silva, embora sem prática política direta no setor, tinha um vasto, diversificado e rico currículo governativo, além de ser uma das melhores "cabeças" do executivo, de que em boa hora passou a ser "número dois". Finalmente, Margarida Marques é, nos dias de hoje, sem a menor dúvida, pelo seu profundo conhecimento da maquinaria bruxelense, com décadas de experiência na estrutura da Comissão e com uma valiosa e atualizada rede de contactos, uma das pessoas melhor habilitadas em Portugal neste domínio.

Ao final destes meses, as minhas expetativas, como observador exterior, foram francamente excedidas. Acho que o "triângulo" institucional referido projeta uma imagem de grande eficácia, de conhecimento e de elevada sensibilidade para os problemas, numa das vertentes que hoje são mais decisivas para o futuro de todos nós. A rápida, adequada e certeira reação às diatribes do ministro germânico das Finanças mostra uma forte determinação e um assinalável sentido de responsabilidade.

Como português, antigo diplomata e já longínquo "operacional" nessa área, fico muito satisfeito por ver a diplomacia europeia de Portugal em excelentes mãos, o que só comprova a capacidade de montagem e gestão de equipas de António Costa. 

sexta-feira, julho 01, 2016

Perceber Schauble




Custa-me ter dizer isto, mas eu percebo muito bem Wolfgang Schauble!
Quando, há dois dias, observei o coro ofendido de vozes lusitanas a adjetivar de insultos, por vezes soezes, o ministro das Finanças alemão, tive um sentimento de compreensão pela atitude daquela figura, que, com determinação germânica, teve a coragem de apontar, com dedo disciplinador, o rumo que entendia melhor para esse relapso país do Sul que nós somos. Um Estado que se permite, de forma que ele lê como absolutamente irresponsável e irracional, colocar no terreno algumas políticas que abertamente contrariam a lógica que ele, e quantos pensam como ele – muito em especial, neste respeitável jornal que tão generosamente me acolhe no seu seio -, acarinham as ideias que ele perfilha, para bem da estabilidade da Europa, da sanidade das suas políticas públicas, das “contas certas” de quantos pensam que, se se quer pertencer a um “clube”, se deve subscrever, custe o que lhes custar, as regras que se assinaram.
Não sou alemão, mas percebo-os muito bem. Os leitores não necessitam sequer de ir a um atlas para se darem conta do que mudou, nos últimos anos, no panorama de segurança do continente. Basta que recuem até ao fim da Guerra Fria, que olhem para a Alemanha desse tempo, pelo meio da qual passava então a fronteira entre o mundo democrático e a Europa autoritária de Leste, tutelada por Moscovo. Pela RFA desses tempos passava a “cortina de ferro” (para utilizar a expressão forte de Churchill, no discurso de Fulton), a senhora Merkel gozava então as delícias frugais de ser uma jovem “pioneira” na RDA, os pacifistas estavam a Oeste e mísseis a Leste, como lembrava Mitterrand. Depois, a URSS implodiu, económica e politicamente, e Reagan e um papa amigo ganharam essa guerra sem necessidade de disparar um tiro. A União Europeia e a NATO limitaram-se a integrar institucionalmente essa nova realidade, como a América indicou que seria a coisa mais sensata a fazer.
Olhem agora, caros leitores, para a Europa de hoje: a Alemanha está, de novo, centrada em Berlim. Entre as suas fronteiras e as da Rússia, sucessora da URSS, há uma “buffer zone” de segurança que lhe confere uma centralidade única. Até se pode permitir adubar as pulsões traumáticas dessa “nova Europa”, criada a Leste pelos alargamentos, esse mundo de aventuras de proselitismo democrático ocidental por terras georgianas e ucranianas, suportado por dinheiros de Bruxelas.
Agora, os britânicos avisam que querem sair da Europa. Em Berlim, passado o primeiro momento de espanto, fazem-se as contas. Que tal recompor, sob a tutela germânica, o “núcleo duro”, agora que Londres desaparece como constante ameaça da afirmação soberanista? A França está em frangalhos, com Hollande a não ser levado a sério por ninguém. A Itália, numa crise só disfarçada pelos esgares de Renzi, é hoje um “joke” na equação europeia. O Benelux é o Benelux, isto é, uma periferia alemã sem identidade e prestígio, desejosa de ser cooptada para um futuro onde possa sobreviver, com bicicletas e bem-estar. Fora dos “seis”, a Espanha e a Polónia não contam, pelas diferenciadas fragilidades que conjunturalmente atravessam.
A Eurozona tutelada por Berlim é, assim, o “core” do futuro. Todo? Não. Expurgado dos relapsos, Grécia e Portugal, num tempo em que as aritméticas políticas retiraram do poder os obedientes amigos locais de Berlim. Fazê-los cair, agravar os sinais que os mercados possam ler como desestabilizantes, fará com que Lisboa e Atenas abandonem progressivamente o mundo “puro” do regenerado euro. Às tantas, até nos podemos dar ao luxo de fazer um “haircut” compensatório na sua dívida, para atenuar o seu “phasing out” do clube, deve estar a pensar Schauble. Como eu o compreendo!

Para inglês ver



"Nos três primeiros pontos, a nossa posição é a que está neste texto. Nos restantes, que não nos afetam, espere pela atitude britânica e, depois, apoie aquilo que eles disserem."

Num primeiro momento, pensei ter ouvido mal as instruções, dadas num gabinete do palácio das Necessidades, na véspera da minha partida para uma reunião no Luxemburgo, nesse primeiro semestre de 1986, entrados “de fresco” nas instituições comunitárias. A minha surpresa tinha também a ver com o facto de, nas tais questões em que deveria “seguir os ingleses”, ter alguma opinião e fundamentos para ela, numa matéria que estudara e julgava conhecer bem. Nada disso me valeu: devia proceder como indicado. Regressei ao meu serviço, então bem longe do edifício central do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com a secreta e residual esperança de que Londres pensasse como eu... Já não sei como tudo acabou.

Foi assim durante muitos anos. Séculos. Na ida da corte para o Brasil, na abertura dos portos lá decidida, na tutela permanente da nossa política externa, com o fantasma de Madrid no nosso horizonte. Um dia, o nosso “mapa cor-de-rosa” foi contraditório com o projeto inglês de ligar o Cairo ao Cabo e lá veio o “ultimatum”. O país entrou numa daquelas emoções nacionalistas que, a espaços, lhe sobrevêm, num “afrontamento” típico de uma nação em menopausa. Fez um hino em que apelava a “contra os bretões, marchar, marchar!”. Depois, “baixou a bola” e, no lugar de “bretões”  colocou “canhões”, como se nada se tivesse passado. Pelas costas, Londres negociou duas vezes com a Alemanha uma partilha das nossas colónias e ainda flirtou com Madrid, quando pensava poder cá recolocar o rei que acolhia.

Os republicanos, repudiados por Londres, só com o sacrifício da Flandres conseguiram lugar à mesa de Versalhes. Depois, a Inglaterra acomodou-se ao Estado Novo, controlou-lhe as hesitações face aos “aliados” e, no fim da guerra, ficou-lhe grato pelo volfrâmio e pelos Açores. Salvou a pele política a Salazar, numa “neutralidade colaborante” com a ditadura, que teve então o desplante de dizer que fazia eleições “tão livres como na livre Inglaterra”. Esquecendo os crimes do regime, colocou Portugal no “mundo livre” da NATO e, depois, na EFTA. E, diplomaticamente, excetuada a questão colonial, domesticou as Necessidades, onde o “lobo” ibérico justificava uma permanente ideologia de subordinação.

A entrada na UE “libertou” Portugal de Londres, mesmo se, no início, episódios como aquele com que abri este texto ainda ocorressem. Mas foi sol de pouca dura. Em política europeia, cada um foi por seu lado. E agora? Regressamos à “oldest alliance”, recuperada nos últimos dias na retórica caseira? Acredito tanto nela como os britânicos.

"Expresso da Meia Noite"


Hoje, sexta-feira, dia 1 de julho, pelas 23.00 horas, estarei no "Expresso da Meia Noite" a discutir a Europa pós-Brexit

quinta-feira, junho 30, 2016

Ramalho Eanes

                           

Comecemos pelo fim. António Ramalho Eanes é um democrata, um homem impoluto e uma pessoa de bem. O regime que saiu do 25 de abril ganha em ter, dentre as personalidades que o representaram num lugar cimeiro, uma figura como ele. Achei muito oportuno e justo que, no momento em que se comemoram os 40 anos da sua posse como presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa tenha decidido homenageá-lo.

Recordo-me bem de assistir, durante a famosa Assembleia "selvagem" do MFA, em 11 de março de 1975, a apelos insanos de alguns excitados participantes, apelando à prisão de Ramalho Eanes, que, ao tempo, era presidente da RTP. Foi Vasco Lourenço quem, com grande vigor, então o defendeu. Tempos depois, na minha memória política, guardo a sua figura ascética, de óculos estranhamente escuros, a receber Costa Gomes na Amadora, ao fim do dia 25 de novembro desse mesmo ano, depois de ter conduzido as operações militares, do lado que se opunha ao radicalismo de esquerda, nesse dia de trágico confronto castrense. 

Um ano depois, Eanes era candidato à presidência da República, com o apoio do PS e PPD (a ordem é inversa, porque Sá Carneiro, sabendo por um "leak" que os socialistas iam convidá-lo, resolveu tomar a dianteira). Eanes seria eleito com facilidade. Não votei nele nessa eleição, porque o seu perfil político e pessoal não me inspirava então a menor confiança. Mas acabei por votar nele cinco anos depois, na sua reeleição, mais "by default" do que por entusiasmo, porque do outro lado estava a figura preocupante de Soares Carneiro, um general de perfil autoritário e muito discutíveis credenciais democráticas, apoiado por toda a direita.

Enquanto presidente, Eanes conseguiu um raro pleno ao entrar em conflito simultâneo com os líderes do PS, PPD e CDS. Os tempos da vida político-partidária eram complexos e, reconheça-se, o seu papel não era fácil, até porque era a ele que competia "desenhar" o primeiro recorte de um chefe de Estado em democracia, num regime semi-presidencialista ainda em teste. Em 1980 e 1983, coube-me, por coincidência, a responsabilidade de organizar, logisticamente, duas visitas de Estado de Ramalho Eanes, respetivamente à Noruega e a S. Tomé e Príncipe. Fiquei então com respeito pelo seu elevado sentido de Estado, demonstrado em ambas as ocasiões, embora essa coincidência funcional não tivesse contribuído para criar uma empatia pessoal com a sua figura humana, demasiado rígida para o meu gosto.

Porém, muito ainda antes disso, o que em nada contribuiu para que melhorasse a imagem inicial que dele criara, havia sido o modo como deu livre curso à subida ao poder de uma geração de oficiais generais que se dedicaram, com lamentável zelo revanchista, a prejudicar alguns militares de abril que muito prezo. Faço uma avaliação francamente negativa do seu papel nesse período, mas, pelos vistos, estou quase "sozinho": já constatei que os seus críticos militares de então, aqueles que terá prejudicado, são, nos tempos que correm, seus grandes admiradores...

Porém, a minha maior crítica a António Ramalho Eanes, com quem me "cruzei" pontualmente no apoio (no caso dele, indireto) à candidatura presidencial de Salgado Zenha, em 1986, tem a ver com a iniciativa, que titulou, da criação do Partido Renovador Democrático (PRD), uma nefasta estrutura partidária, assente numa doutrina de "um partido anti-partidos", que se reivindicava de uma superioridade ética que o tempo revelou falsa e, na minha perspetiva, tinha germes que, noutros países e noutras circunstâncias, levaram a aventuras políticas que nem é bom lembrar. O PRD tinha a intenção de aniquilar o Partido Socialista. Para evitar isto, Mário Soares - que tinha em Eanes o seu inimigo de estimação, atitude que creio correspondida durante largos anos - acabou por tomar o gesto político de dissolver a Assembleia da República, abrindo caminho a uma década de cavaquismo governativo. Há coisas que se pagam...

Eanes iniciou depois um percurso marcado por alguma discrição, dedicando--se a estudos universitários e, de quando em vez, brindando-nos com algumas dissertações em público, algo rebuscadas, mas onde revelou a maturação de um pensamento político crescentemente próximo de posições progressistas. Neste contexto, o seu apoio às candidaturas de Cavaco Silva tem difícil explicação, a qual terá sempre de ser lida na difícil articulação com o seu surgimento como o grande promotor de Sampaio da Nóvoa no recente sufrágio presidencial.

A vida ensinou-me a olhar de uma forma muito mais ponderada e equilibrada para as pessoas e para as coisas. E, sem qualquer esforço, sou hoje levado a concluir que António Ramalho Eanes é uma figura com grande dignidade, a quem o país deve admiração e merece considerar como umas das referências do nosso regime democrático.

quarta-feira, junho 29, 2016

País organizado


"Convém-lhe mais às três ou às três e meia?"

A pergunta era feita por um amigo, que me convidara para fazer uma palestra numa universidade, fora de Lisboa.

"Talvez às três e meia...", respondi-lhe, já a pensar em não ter que apressar a almoçarada. Já que ia àquela cidade, aproveitaria para ir comer nesse dia a um restaurante de que me haviam falado muito bem.

O leitor perguntar-se-á que diabo tem este curto diálogo de notável para ser aqui reproduzido. De facto, nada. Ou melhor, talvez a circunstância da data da palestra ser em meados de novembro possa demonstrar que este país, afinal, organiza o seu futuro.

As malhas que o império deixa

Tinha-o notado no aeroporto de Lisboa. De "balalaika" cinzenta era, com toda a certeza, uma figura grada do "establishment" de um país africano de língua portuguesa. Tratava-se de um cavalheiro na casa dos cinquenta, negro, que viajava como se "deve" viajar: sem rigorosamente nada na mão. 

(Comparado comigo, ganhava-me à légua. Eu levava um pasta pesadíssima, "laptop", iPad, um livro, várias revistas, três jornais diários do dia, a que somei, na FNAC do aeroporto (não, não ia em "business class"...) o "Financial Times" e o "El Pais". E uma saca com roupa e higiene. Ele não: como "deve ser", despachara a bagagem).

Chegados a Amesterdão, caminhou, à minha frente, calmo e sem pressas, pela manga de acesso, apenas com um jornal na mão, seguramente obtido na classe "executiva" em que viajara.

Chegado ao topo da manga, aguardavam-no dois cavalheiros, também negros, engravatados, diplomatas pela certa (só diplomatas poderiam aceder àquela área).

Tudo o que até aqui relatei é irrelevante. O importante é o que vem a seguir.

No encontro entre o cavalheiro, chegado de Lisboa, e as duas figuras que o aguardavam, eu, que vinha imediatamente atrás, testemunhei o seguinte diálogo:

- Querem o "Record"? Trouxe-o do avião.

- Não havia "A Bola"?

- Não...

- Bom, sempre é melhor que "O Jogo"...

Perdemos um império, mas há coisas que não passam...

terça-feira, junho 28, 2016

O casario do Bragado


Há dias, ao sair da A24 para as Pedras Salgadas, olhei uma placa de trânsito com o nome de Bragado, uma aldeia ali perto, e lembrei-me da história. Ouvi-a, há anos, a alguém a quem lha tinha contado quem também a ouvira a terceiros. Mas logo verão que o essencial se não perde.

Estava-se nos primeiros anos dessa trágica aventura migratória portuguesa para terras de França, no final dos anos 50. Do Norte, de Trás-os-Montes, tal como do Minho e das Beiras, saíram "a salto" esses primeiros heróis, em pequenos grupos, às vezes explorados pelas máfias de "passadores" que os "ajudavam" na travessia das fronteiras e, também muitas vezes, abandonavam à sua sorte quem não falava uma palavra das terras de línguas estranhas que tinham de atravessar. Enfrentar o desconhecido, para quem vinha de pequenos povoados, deve ter sido uma saga difícil de imaginar.

Estamos a falar de gente muito simples, lançada num mundo onde cabiam as referências básicas do que lhe fora dado ver, nesse trauma de imagens e medos, de realidades inesperadas e surpreendentes, gerados num percurso bizarro, entre aldeias recônditas e periferias de imensas cidades, que só avistavam ao longe, ou a partir das obras onde iam trabalhar, então quase de sol-a-sol.

O episódio que vou contar é desse tempo, de uma conversa, nas férias em Portugal, de um desses emigrantes, numa roda de amigos, em Vila Pouca de Aguiar. O nosso homem estava a relatar, para benefício de um auditório de gente que nunca tinha ido muito mais longe do que o perímetro da sua aldeia, o que eram as terras do seu destino de trabalho.

A certo passo, um amigo perguntou-lhe: "Olha lá! E de que tamanho é que é Paris?" 

Imagino a dificuldade do homem em explicar a ordem de grandeza de uma cidade cujo centro, pela certa, nunca tinha visitado, cujo recorte apenas vislumbrava no caminho para Champigny ou de outro "bidonville" onde a pobreza portuguesa se ia então refugiar, à procura daquilo que o país onde nascera lhe negara. 

Pensou um pouco e, com medidas comparativas que os amigos talvez pudessem melhor avaliar, lá se decidiu adiantar:

- Paris é muito grande. É assim de um tamanho que vai de Vila Pouca até às Pedras e que chega até a algum casario do Bragado.

Se pensarmos que de Vila Pouca às Pedras Salgadas são seis quilómetros e o Bragado fica apenas mais dois adiante, e que só o periférico à volta da parte central de Paris tem 35 km de comprimento, poderemos apreciar o erro de perspetiva do nosso homem. De uma coisa estou certo: os amigos que o ouviam ficaram cientes, de forma muito clara, de que Paris era uma cidade muito grande. E isso é que importava.

Por vezes, ao atravessar Paris, quando por lá era embaixador, ao percorrer longas distâncias de um ponto ao outro da cidade, senti-me quase a chegar a "algum casario do Bragado".

O "opt-out" final

(Na noite/manhã do Brexit, publiquei no Observador, a convite desse site, o texto que se segue. Dei-me agora conta de que, por lapso, não o reproduzi, como sempre faço, quanto mais não seja "for the record", neste blogue.)
David Cameron vai ficar na História do Reino Unido e da Europa. É mais do que um pé-de-página. É o titular de um dos mais tristes capítulos que um país com a responsabilidade global do Reino Unido inscreve no curso dos factos europeus.
O primeiro-ministro cessante, que os últimos meses consagraram como um irresponsável bombeiro pirómano, brincou com o futuro do seu país para tentar sarar uma ferida partidária que só acabou por agravar. Fez emergir, com uma evidência sem par, uma detalhada agenda eurocrítica que vai agora ser apropriada por setores em todos os Estados membros. Só partilho com ele a sua derrota.
O anúncio da saída britânica da União vai estimular pulsões referendárias noutros Estados membros e, em alguns outros, suscitar “condições” para a permanência no projeto comum, que passarão por alguma maior “flexibilidade”, isto é, pela aproximação e aproveitamento de alguns aspetos da integração diferenciada de que o Reino Unido já dispunha. As eleições presidenciais francesas estão à porta e o dia de ontem não podia ter corrido melhor a Marine Le Pen.
Alguns dirão: se mais de metade dos eleitores britânicos votaram contra a permanência do seu país na União é que, pela certa, alguma razão terão.
Claro que sim! Nenhum eleitorado fica insensível a uma campanha demagógica que colocou a União Europeia como a fonte de todos os males, como o bode expiatório de tudo quanto não funciona, dos migrantes à burocracia, da insegurança das ruas à do emprego.
E, particularmente, nenhum eleitorado consegue reagir a esta demagogia organizada se, ao seu lado, não tiver uma pedagogia assumida oficialmente em favor da Europa, da causa europeia, dos valores do projeto integracionista, dessa soma de vontades que trouxe décadas de paz, de estabilidade e de bem-estar a centenas de milhões de pessoas. E de esperança a muita gente, como os cidadãos das antigas “democracias populares”, que perceberam que era a este projeto de sucesso que queriam aliar-se, para a defesa da democracia conquistada, do desenvolvimento desejado, da segurança coletiva que nele vislumbram.
Cameron, ao invés, fez uma campanha através do medo, instilando a angústia do salto para o desconhecido, a isso juntando o sublinhar egoísta daquilo que supostamente tinha conseguido para o Reino Unido – aquilo que os outros não tinham! Até explicou, sob o silêncio vergonhoso mas não envergonhado dos líderes europeus que a isso o autorizaram, que podia vangloriar-se de ter limitado os direitos sociais ligados a essa imensa conquista (passada) que era a livre circulação de pessoas no espaço comunitário, complemento indispensável do mercado interno de que Londres é um dos maiores beneficiários.
O Reino Unido, contudo, já tinha quase tudo. Não estava na moeda única, pelo que detém autonomia monetária, isenta os seus bancos da supervisão do BCE, gere a seu bel-prazer a política de rendimentos e preços, não se preocupava com o Pacto de Estabilidade do senhor Theo Weigel nem com os limites do Tratado Orçamental. No orçamento, beneficiava do seu indiscutido “rebate” (ou cheque compensatório de volta), obtido por Margareth Thatcher. Pela City londrina passam 40% dos títulos emitidos em euros. Etc, etc., porque a lista das “exceções” britânicas é bem mais longa e, espante-se que não souber, nem a Carta dos Direitos Fundamentais lhe tinha escapado.
Em relação à Europa, os primeiros-ministros britânicos foram formatados num “template” tipo Alberto João Jardim, que empochava as conquistas obtidas, “taken for granted”, e, no minuto seguinte, logo reclamava novas vantagens e concessões. Ser ilha terá alguma coisa a ver com essa similitude?
A União Europeia nunca soube, desde sempre, lidar com o Reino Unido. Pressentia a importância de não perder a 5ª economia do mundo (e a 2ª no seu seio), com lugar na foto de família sorridente do G8, o seu poder militar mais significativo, uma voz internacional (com assento permanente e veto no Conselho de Segurança da ONU), com uma rainha que ciclicamente encena o sucedâneo coreográfico do império que é a Commonwealth.
Desde o dia 1 da sua entrada no clube europeu, o Reino Unido consagrou-se como um parceiro relutante, difícil, cioso da diferença. Estava, diga-se, no seu pleno direito, como estava no direito dos restantes parceiros terem resistido a esse tropismo endémico, em busca galopante do regime de “exceção”. Se, em tempo oportuno, lhes tivesse sido dito “se estão mal, mudem-se!”, talvez não tivéssemos entrado por este plano inclinado, politicamente obsceno, de “opt out” sistemáticos. Esse movimento descendente, erigido como política oficial, apontava, a prazo, para o destino deste “opt out” final.
O Brexit passou. Mas, volto atrás, a mais de metade da opinião pública britânica, que agora se revoltou contra a União Europeia, vai, com toda a certeza, pressionar – porque a democracia parlamentar no Reino Unido funciona – os seus deputados e governos por resultados concretos, exigindo tudo aqui que, afinal, não tinham por “culpa de Bruxelas”. E a outra quase metade, derrotada na sua aposta em ficar, vai exigir ao poder que sobrar em Londres que lhe garanta o que, com o tempo, se tornará mais evidente serem as vantagens que, afinal, advinham da pertença ao clube com sede em Bruxelas. Não vai ser fácil ser governo em Londres na próxima década.
No imediato, confesso que não posso esperar para ver a prosápia de Cameron, naquele “perpwalk” que vai ser a sua entrada – encenada, apressada, vigorosa – no Justus Lipsius, daqui a dias, lá por Bruxelas. Estou interessado em perceber como vai ele, como os britânicos quase sempre fazem, fazer da derrota uma imensa vitória. A menos que tenha a decência de “step out”, o que está longe de ser certo.
A questão britânica importa-me, naturalmente, mas interessa-me muito mais, confesso, o futuro europeu. E aqui, como dizem os ingleses, estamos em “unchartered waters”, isto é, no nosso poético dizer, “por águas nunca antes navegadas”. Até pode acontecer que, passada uma turbulência inicial, mais ou menos controlada politicamente, este “Lehman Brothers” europeu acabe por amainar, na ciclotimia dos mercados. E até há quem diga que, daqui a semanas, todos concluiremos que, afinal, este traumatismo tido por cataclismo não passou de um susto, como o “millenium bug”.
Mas não, não vai ser assim, quaisquer que seja o percurso dos primeiros tempos. O Reino Unido vai ter de votar, no plano parlamentar, o “leave” – e nós sabemos que a democracia britânica tem uma linearidade que, neste domínio, nos não trará surpresas. Antes ou depois disso, Londres vai ser forçado a invocar o Artigo 50º do Tratado de Lisboa e uma longa negociação de “divórcio” (litigioso, podem crer) vai iniciar-se.
Não é fácil lidar com os britânicos em terreno de negócios. Como alguém dizia, “os ingleses não têm amigos, têm interesses”. Às vezes, contudo, têm interesse em ter amigos, mas agora alienaram-nos. Vamos, a Europa que resta, ter grandes dificuldades pela frente, desde logo desmantelar todo o arsenal de acordos externos que a União (com os britânicos dentro) tem. São “só” 54 países! Londres tem os direitos dos nossos trabalhadores como reféns, pelo que isso será moeda de troca valiosa para o que viermos a exigir deles.
Este passo britânico vai ter efeitos muito deletérios no ambiente europeu. No passado, sempre falámos de “construção europeia”, agora iniciámos um tempo novo, o da “desconstrução”. Como disse, o tropismo em favor da generalização de “exceções” pode começar a “cogumelizar” (os ingleses têm para isso a bela expressão “mushrooming”, faça-se-lhes essa justiça!) por aí adiante. E isso, ao contrário do que alguns pretendentes caseiros à recuperação de soberania possam pensar, pode virar-se contra nós, contra Portugal.
Eu explico: no estado caótico em que o projeto europeu se encontra, sem lideranças nem visões de futuro, esta decisão britânica, por muito que demore a concretizar-se, abre um ambiente favorável a que germinem algumas ideias em torno de uma espécie de “refundação”, assente nesse saudoso núcleo duro que viveu as “trente glorieuses” (os trinta anos de sucesso económico), com mão-de-obra barata, protecionismo aduaneiro e outras delícias. Foi um tempo que permitiu estruturar o modelo social europeu, agora em risco por um endémico crescimento sofrível, fruto da perda de competitividade europeia, por uma má gestão da globalização, a que se soma uma crise demográfica que não é compensada, por razões políticas que este referendo deixou bem evidentes, por uma política racional de imigração.
E tenho para mim muito claro que qualquer modelo centrípeto dessa natureza implicará a formação de um “núcleo duro”, para a entrada no qual será preciso mais do que vontade, isto é, será essencial ter capacidade económica e sustentabilidade financeira, nos termos que a Alemanha vier a ditar. Nesse modelo, dificilmente Portugal estará presente. Esta é a minha convicção, mas adoraria estar enganado.

segunda-feira, junho 27, 2016

O Verão


Está por aí um calor que até assa canas, dizia-se na minha juventude. Cada vez mais! Tenho imagens fortes de dias abafados, nesses tempos, lá por Vila Real. Sem ar condicionado, algo que nem sonhávamos o que era mas que víamos na publicidade da "General Electric", na edição brasileira do "Reader's Digest", o calor matinal arrancava-nos da cama, as tarde passavam-se com janelas abertas "para fazer corrente" e só lá para o fim do dia nos aventurávamos para namorar "pela sombra" ou ir beber um "fino" na esplanada da Gomes.

Bem mais jovem ainda, dias havia em que eu me refugiava no Albertino dos jornais, cuja vizinhança da minha casa permitia o privilégio da consulta gratuita de tudo quanto tivesse letras e imagens, ou ia para o canto do balcão do Carvalho da drogaria, ouvindo-lhe as graças lúbricas às empregadas domésticas que por lá passavam a comprar água-raz ou benzina para as nódoas.

A cidade era então uma chatice inenarrável, onde não acontecia nada, onde muito pouco havia para fazer, onde não existia uma única piscina e até as árvores, sob a torreira, surgiam com uma auréola tremida, como nas miragens dos filmes. Às vezes, dou comigo a pensar que o conceito de "bons tempos", que frequentemente soltamos nas conversas, tem apenas a ver com o facto de então sermos novos.

(Olhe-se para Vila Real, nos dias de hoje! Para as "corridas", para a alegria nas ruas, para a oferta cultural e lúdica. É a noite e o dia!)

Há minutos, aqui em Lisboa, na minha rua irrespirável sob o sol forte, uma vizinha dizia para outra, que ia a caminho da praia: "Agarra o Verão, filha!".

Entrei em casa com a frase na cabeça. Como, com a idade, temos a mania do "déjà vu", achei que era isso. Cinco minutos depois, já não sei bem porquê, a memória deu um salto: "Agarra o Verão, Guida, agarra o Verão!"

É isso! Era essa a frase. Alguém se lembra do que era? Lembro eu: era o nome original de um texto de Luís de Sttau Monteiro que deu origem a uma das primeiras telenovelas portuguesas, "Chuva na areia".

"Para que te serve essa informação toda?", perguntava-me desdenhoso um amigo, sempre muito cético sobre o préstimo destes meus despretensiosos escritos. Ele é capaz de ter razão, e não sei se gostou da minha resposta: "Talvez não sirva para nada, mas sinto-me mais confortável tendo-a..."

Mudando de conversa

Se nos deixamos tomar exclusivamente pela gravidade da conjuntura, do Brexit às eleições nos nossos vizinhos, tornamo-nos bisonhos e distantes das coisas boas da vida.

É por essa razão, porque aligeirar os dias se torna importante, agora que o sol e o calor felizmente não dependem da generosidade da senhora Merkel, que chamo a atenção no meu blogue "irmão" deste, o "Ponto Come" (pode sempre consultá-lo clicando no lugar próprio, na coluna à direita), para duas notas de análise gastronómica que acabo de publicar.

A primeira foi escrita no lindíssimo número de Verão, recém editado, da "Epicur". Não comprar a "Epicur" é perder um dos "objetos" gráficos mais interessantes que se produzem em Portugal. Nele falo sobre esse meu "vício de estimação" que é o restaurante "Poleiro", na rua de Entrecampos, em Lisboa.

A segunda nota é uma crónica editada na passada sexta-feira na revista "Evasões" (distribuída com o "Diário de Notícias" e com o "Jornal de Notícias"), sobre o restaurante "Pedra Furada", um espaço clássico, muito perto de Barcelos, no Minho, que se tornou num ponto de passagem dos caminheiros internacionais na estrada religiosa para Santiago de Compostela.

Como dizem os guias turísticos da Michelin, cada um deles "vaut un détour".



domingo, junho 26, 2016

Da democracia na Europa



Do outro lado do mundo, um grande amigo exprimiu, num email que me endereçou, o seu contentamento pelo facto dos britânicos terem iniciado o caminho de saída da União Europeia. Esse amigo é uma pessoa responsável, a sua opinião não é « impressionista ». Trata-se de alguém que está de boa-fé, que conhece muito bem o Reino Unido, que tem uma grande experiência da União Europeia, que olha para esta questão com uma prudente serenidade e sem a menor acrimónia. E deixou clara, naquela sua comunicação, que a sua atitude não relevava de qualquer resistência face ao crédito anual na conta de Londres do cheque compensatório da sua contribuição orçamental (o « rebate ») ou  do seu tropismo obsessivo por « exceções » ou « opt-out », com que os diferentes governos britânicos historicamente atenuam as reticências da sua opinião pública face a Bruxelas.

O que irritava esse meu amigo – e que ele acha que o Brexit pode corrigir – é a atitude britânica de persistente denúncia do caráter não democrático da União, numa sobranceria afirmativa da superioridade representativa da sua ordem nacional. E, na sua ideia, mesmo que a UE não seja perfeita, ela não merece esse desprezo e desqualificação. Para ele, sem o Reino Unido, a União pode, com maior facilidade, encontrar um caminho menos turbulento para o seu futuro.

Que eu não estaria de acordo com a sua perspetiva era uma dado adquirido por esse amigo, que leu ou ouviu muito do que eu disse nos últimos dias sobre este assunto. Porém, com a lealdade frontal de quem sabe que eu só lhe agradeço o contraditório, ele quis transmitir-me o que pensava. E eu estou-lhe grato por isso.

De facto, não estamos de acordo. Também a mim me irrita, desde o primeiro momento, o sentimento britânico de que a Europa integrada tem deficiências notórias na sua responsabilização (a expressão anglo-saxónica « accountability » é insubstituível). Não porque isso seja falso, mas porque o Reino Unido, ao auto-excluir-se de muitas das suas políticas, acabou por ser co-responsável com a circunstância dessa deriva marcar hoje muito do funcionamento da União. Uma democracia tão poderosa como a britânica deveria, precisamente, ajudar-nos, colocando-se « in the heart of Europe », a colmatar esse défice democrático. E é por isso que, ao invés de rejubilar com este « opt out » final, preferiria que os britânicos se tivessem mantido no projeto comum. Mesmo que parceiros relutantes, eles ajudar-nos-iam a reforçar a magnífica diversidade que é uma das forças da Europa. Sem os britânicos, estaremos mais fracos. E, sem nós, eles também. O que não é uma boa notícia para a democracia na Europa.

(Artigo publicado no Jornal de Notícias em 26 de junho de 2016)

Futebóis


Costumo ser muito racional a ver futebol. Sou incapaz de gritar "penalti!", a favor da minha equipa quando isso não aconteceu, digo alto quando um jogador "dos meus" está em posição de "fora-de-jogo" ou merece um cartão. Já passei por momentos menos cómodos em estádios de futebol, por virtude dessa minha atitude. Julgo que esse vício "de justiça" advém de um curso de arbitragem que frequentei na Associação de Futebol de Vila Real, em meados dos anos 60 do século passado.

Este meu rigor de leitura das regras do jogo soma-se a uma sempre franca análise do modo como as partidas decorrem. Não tenho o menor problema em reconhecer que a minha equipa merecia ser derrotada e, sem o mínimo rebuço, sou capaz de reconhecer quando a vitória do adversário é justa. Quem me conhece sabe que sempre fui assim. E vou continuar a ser, claro.

Mas se esta minha frieza, na "análise concreta de uma situação concreta" (onde será que li isto?), é uma evidência, a verdade também é que, com frequência, dou por mim a subscrever uma frase que ouvi um dia ao Dr. Adriano Afonso, juiz de Direito, um histórico dirigente lampiónico, que disse uma coisa mais ou menos assim: "não me importo que a minha equipa ganhe, num golo marcado com a mão, em fora de jogo e já depois do tempo regulamentar".

Foi isso que me aconteceu ontem.

Portugal teve uma prestação medíocre (é a minha opinião, cada um tem direito a ter a sua). A Croácia, em "jogo jogado", merecia a vitória e o nosso golo foi marcado, claramente, "contra a corrente do jogo". Esta é a verdade, pelo menos para mim, que acho esta nossa seleção muito fraca, "descosida", com um meio-campo atarantado e, com frequência, à beira do desastre, quando os adversários se aproximam da nossa área. Não há patriotismo que me faça dizer aquilo que não vejo.

Mas, ontem, como sempre que vejo futebol com emoção, reencontrei-me com o Dr. Adriano Afonso no desejo veemente de que pudéssemos marcar um golo que nos garantisse a sorte que tanta vez não temos tido. Não lhes digo, por impublicáveis, algumas "instruções" e epítetos nada simpáticos com que, ao longo daqueles mais de 120 minutos, mimosiei os nossos jogadores. Mas, no final daquela partida que me angustiou, o meu contentamento ultrapassou, como é óbvio, qualquer juízo de justiça.

Esta é a diferença entre o mundo das emoções e o mundo da racionalidade. Quem vive eternamente no primeiro torna-se um ser mais digno de piedade do que de respeito. Quem se obstina no segundo é um ET desumanizado e fora do sentimento da tribo, que dá graça à vida. No equilíbrio razoável entre os dois reside essa coisa rara que é o bom-senso.

O primeiro dissídio

Que o divórcio britânico com a União Europeia não ia ser fácil já toda a gente sabia. Que, desde tão cedo, as divergências se instalassem entre Londres e os restantes parceiros, relativamente à metodologia de saída, já é um pouco inesperado.

O Reino (por ora ainda) Unido pretende, à luz dos seus interesses, e agora que a decisão de abandono do "clube" está tomada, fazer as coisas ao seu ritmo. De facto, no plano estrito do cumprimento dos tratados, nada obriga a que o resultado deste referendo tenha consequências legais imediatas. Mais do  que isso, não as pode ter antes que o Parlamento britânico (Câmara dos Comuns e dos Lordes), que, naquele país, tem poderes constitucionais permanentes, ratifique formalmente aquilo que o referendo decidiu, porquanto este, no plano dos princípios, não é vinculativo.

O objetivo evidente dos britânicos - e isso ficou claro nas palavras de David Cameron e de Boris Johnson, o que indicia uma unanimidade dentro dos conservadores - é que os "estilhaços" desta crise se não espalhem com fragor sobre o todo o sistema nacional. Para isso, torna-se importante tentar deixar "assentar o pó", de molde a criar um ambiente tão "business as usual" quanto possível, que afete da forma menos gravosa a sua economia e consiga a esvaziar a forte crispação interna provocada pela campanha do referendo. Neste último caso, isso é decisivo, na perspetiva de Londres, para evitar um ambiente emocional que facilite que a Escócia "cavalgue" de imediato o ambiente do referendo e reabra já, com estardalhaço recriador de novas tensões, a questão do referendo.

Para a Europa que fica na União, e que por via desta decisão britânica sofreu um abalo inédito e fortíssimo, cujas consequências está muito longe de poder medir, quanto mais cedo o divórcio possa consumar-se mais rapidamente, pelo menos em teoria, lhe será possível criar um novo equilíbrio interno. Por isso, ser-lhe-ia importante que os britânicos invocassem, desde já, o mecanismo de saída que existe no artigo 50° do Tratado de Lisboa, a fim de iniciar logo que possível a longa negociação que vai seguir-se.

Já se percebeu que estamos perante dois interesses e duas táticas diferentes e não conjugáveis. De uma certa forma, pode dizer-se que os britânicos têm "a faca e o queijo na mão". Porquê? Porque são eles e mais ninguém quem tem direito a invocar o Artigo 50°. E porque o conceito de "o resto da União", por muito que seja fortemente real, não tem existência no plano formal. Até que o "divórcio" esteja consumado, nenhum efeito jurídico pode ser retirado do resultado deste referendo, pelo que, quando alguém se pronunciar nesta matéria em nome da União Europeia deve fazê-lo tendo sempre em atenção que, até ver, Londres é membro pleno de todas instituições. A questão está assim, essencialmente, situada no plano político e é por aí que as facas se vão desembainhar.

O outro lado do vento

Na passada semana, publiquei na "Visão", a convite da revista, um artigo com o título em epígrafe.  Agora que já saiu um novo núme...